Sionismo não é palavrão!
Paulo Geiger
Paulo Geiger
As sinagogas cariocas na visão de João do Rio Orna Messer Levin
As sinagogas cariocas na visão de João do Rio Orna Messer Levin Sionismo não é palavrão!
Os dilemas da educação judaica
Rafael Bronz e Anita Goldberg
Os dilemas da educação judaica Rafael Bronz e Anita Goldberg
O legado do Judaísmo Progressista
Rabino Howard A. Berman
O legado do Judaísmo Progressista Rabino Howard A. Berman
O Alef-Bet da política israelense João Koatz Miragaya
O Alef-Bet da política israelense João Koatz Miragaya
A questão da Kasherut Raul Cesar Gottlieb
A questão da Kasherut Raul Cesar Gottlieb
Considerações sobre a fé Rabino Sérgio Margulies
Considerações sobre a fé Rabino Sérgio Margulies
O Profeta Elias: pactos, alianças e rupturas Rabino Dario Bialer
O Profeta Elias: pactos, alianças e rupturas Rabino Dario Bialer
Adversus Iudaeos – Isidoro de Sevilha Saul Kirschbaum
Adversus Iudaeos – Isidoro de Sevilha Saul Kirschbaum
Reformista Graças a Deus Paulo Haroldo Mannheimer
Reformista Graças a Deus Paulo Haroldo Mannheimer
Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 8, n° 20, Abril de 2013 devarim devarim
Uma das manifestações características da nossa época é o twitter – uma troca intensa de pequenas mensagens difundidas instantaneamente aos conhecidos e des conhecidos da rede (muitos sob perfil fictício) sobre o assunto do momento. O tamanho do texto e a velocidade da troca impedem ao participante se aprofundar na mensagem fixando-o muito mais pela emoção do que pelo conteúdo.
O twitter mais provoca sensações do que transmite infor mações.
Manifestações não nascem no vácuo. Elas são o produto dos formatos culturais predominantes na época e refletem a forma de pensar e os gostos das sociedades. Seguramente nunca repre sentam o todo, mas certamente refletem a atitude de muitos.
E é possível identificar, numa série considerável de situa ções, que a cultura do twitter está infiltrada na forma superficial com que muitos percebem o mundo. Foquemos em três delas, começando pela vertente egípcia da chamada “Primavera Ára be”. A sensação é magnífica: o povo na praça mobilizado pe las redes sociais exigindo democracia; o exército passa a apoiar os manifestantes provocando a derrubada célere do antigo di tador; pela primeira vez na história do país são realizadas elei ções livres; o novo governo eleito sobe ao poder para exercer a democracia, o respeito aos direitos individuais e levar o país ao desenvolvimento social e econômico.
Contudo, por trás destas bonitas imagens operou um pro cesso cuidadosamente conduzido com base numa ideologia to talitária que instalou no país o modelo político da Idade Mé dia, onde a exclusão do desigual foi elevada ao status de norma legal e onde o partido eleito detém todos os poderes do Estado.
Boa parte da imprensa influente, inebriada pelas sensações libertárias, não consegue captar a informação essencial por trás dos acontecimentos e produz bizarras interpretações dos fatos, chegando ao paroxismo de anunciar o nascimento das “demo cracias iliberais”, que seriam regimes onde os governantes são eleitos para legitimar a discriminação e a desigualdade (artigo de Jocelyn Cesari no Washington Post em 27 de janeiro passa do). Ora, qualquer um que mergulhar um dedinho na infor mação sabe que o nome disso é “tirania” e não uma nova for ma de democracia!
Passemos em seguida ao caso de Israel. Aqui a sensação não provoca encantamento, pois ela é de guerra, opressão e trucu lência. Os tweets se sucedem: uma sociedade militarizada que frequentemente recorre às armas contra os vizinhos; que ocu
pa territórios que não lhes pertencem; que sonega direitos da sua minoria árabe; um país neocolonialista.
E a mesma imprensa que enxerga virtudes no ditador elei to demoniza grosseiramente Israel e seus cidadãos. O israelen se pratica o apartheid dizem eles, sem se dar conta de que 20% de sua população universitária é composta por árabes, cuja so litária exceção de cidadania é não serem obrigados a servir ao exército. Afirmam que o exército é brutal sem reportar os esfor ços sem precedentes na história para a prevenção de vítimas en tre não combatentes. Embalados pelos fragmentos de informação que voam pela rede, não conseguem informar o que acon teceria caso o Estado de Israel baixasse por um breve instan te a guarda de sua defesa e nem remotamente se ocupam em estabelecer paralelos com outras nações em estado de guerra.
No terceiro caso deixemos a imprensa de lado e vejamos o que nós mesmos fazemos com o judaísmo moderno.
As imensas contribuições para as vidas cotidianas legadas pelos ensinamentos éticos e filosóficos dos gigantes do nosso passado estão sendo reduzidas a um conjunto de sensações. O judaísmo que herdamos foi lentamente construído a partir da somatória de uma aguda percepção da natureza humana com o incessante esforço de construção de um mundo justo e dig no. Desprezamos este admirável viés humanitário a favor de uma coleção de rituais composta por um conjunto muito bo nito de tradições, frequentemente obedecidas a partir da cren ça de que Deus nos ajudará através delas, mesmo quando ig noramos o contexto de suas origens e não entendemos nenhu ma das palavras proferidas.
Um amigo me contou que, ao indagar sobre o conteúdo ju daico da colônia de férias em que estava inscrevendo os filhos, ouviu a solitária e incrivelmente pobre resposta: “A comida é kasher”, dita com o ar triunfante de quem resolveu definitiva mente a questão da continuidade judaica.
Não há nada que desabone as emoções dos rituais ou que desmereça as sensações adquiridas pelos tweets que passam em nossas vidas. A vida sem vibração não é vida. Contudo, é ne cessário ter a sensibilidade de não permitir que as emoções ini bam o perene diálogo judaico com o entorno e as trocas que ad vêm dele. Para enriquecer esta parte da vivência judaica no Bra sil editamos a Devarim, que chega nesta edição ao seu vigésimo número. Somos gratos pelo apoio que os leitores nos conferem.
Raul Cesar Gottlieb Diretor de Devarim
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 1 editorial
Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 8, n° 20, Abril de 2013
P R es I dente d A ARI Ricardo Gorodovits
R A b I nos d A ARI sérgio R. Margulies dario e bialer
dIR eto R d A Rev I stA Raul Cesar Gottlieb
Conselho e d I to RIA l beatriz bach, breno Casiuch, Rabino dario e bialer, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio Margulies.
e d I ção Roney Cytrynowicz (editora narrativa Um)
e d I ção de A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) tainá nunes Costa
F oto GRAFIA de CAPA Aydin Mutlu / istockphoto.com
I l U st RA ções Myriam Glatt
t RA d U ção Ana beatriz torres
Rev I são de t exto Mariangela Paganini (libra Produção de textos)
Colaboraram neste número: Anita Goldberg, Rabino dario e bialer, Rabino howard A. berman, João Koatz Miragaya, orna Messer levin, Paulo Geiger, Paulo haroldo Mannheimer, Rafael bronz, Raul Cesar Gottlieb, saul Kirschbaum, Rabino sérgio R. Margulies.
os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista devarim ou da ARI.
os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.
A revista devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br devarim@arirj.com.br
Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ biblioteca virtual devarim: www.docpro.com.br/devarim
A contracapa de devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ
devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.
sumário
Considerações sobre a fé Rabino Sérgio R. Margulies 3
O Profeta Elias: Pactos, alianças e rupturas, desde a época bíblica até os nossos dias Rabino Dario E. Bialer 9
Resgate e Renovação do nosso Legado de Judaísmo Progressista Rabino Howard A. Berman 14
A questão da Kasherut Raul Cesar Gottlieb 21
As sinagogas cariocas na visão de João do Rio Orna Messer Levin 29
Um olhar de educadores sobre dilemas e questões da Educação Judaica Rafael Bronz e Anita Goldberg 39
Adversus Iudaeos – Isidoro de Sevilha Saul Kirschbaum 45
O Alef-Bet da política israelense João Koatz Miragaya 52
Seção Em Poucas Palavras 58
Reformista graças a Deus Paulo Haroldo Mannheimer................................................................. 62
Cócegas no Raciocínio: Sionismo não é palavrão! Paulo Geiger 64
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Considerações sobre a fé
rabino sérgio r. margulies
Decidir gerar um filho ou uma filha é um ato de fé. Talvez a maior de monstração de fé possível. Exige orientar a vida em prol de um novo ser. Requer ter fé na capacidade de prover e educar. Demanda fé no mundo que recebe este novo ser. Se for colocado na balança da racio nalidade e da ponderação calculista, talvez a tendência fosse optar por não ter filhos em função dos vários elementos tangíveis e intangíveis necessários para prover uma criação adequada, sem contar o imprevisível.
Ainda assim, o desejo de ter filhos impera sobre a racionalidade, tal como a fé prevalece sobre as ponderações da razão. Fé é uma emoção de difícil – se não de impossível – definição que nos mobiliza a realizar atos transcendentes. Trazer a este mundo uma geração futura é um ato transcendental. Fé é a con fiança em que, nos passos rumo ao futuro, as circunstâncias da vida, se forem favoráveis, serão bem aproveitadas e, se forem desfavoráveis, serão superadas.
Traço marcante do ser humano contemporâneo é a busca do controle. Des te modo, aprimora a manipulação dos vários fatores que podem influenciar o destino da vida. Sapiens é o ser humano que, ao buscar o controle, reconhece os limites deste controle. Nem a tudo, muito menos a todos, podemos contro lar. Fé é o reconhecimento deste limite. Constitui-se no ato de maravilhar-se com dimensões da vida que atuam além de nossa compreensão. Assim, através da fé, o caminhar que enseja o controle segue paralelamente à jornada de ad miração do mistério.
O controle dá sensação de poder. Supremacia. Neste sentido, poder-se-ia afirmar que a fé, como estado espiritual que reconhece os limites humanos, tra ria uma sensação de inferioridade. Porém, ao contrário, permite nos revestirmos
O ser humano de fé, ao compreender seu limite, poderá utilizar seu potencial de modo mais apropriado. A fé permite enxergar além do conflito, do confronto e da competição. A fé absorve o complemento, inclui o contraditório, abrange o aparentemente oposto.
Ilustrações: Myriam Glatt
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de grandeza. A genuína grandeza é derivada tanto do potencial a ser desbrava do quanto do reconhecimento dos limites impostos a este potencial. O ser humano de fé, ao compreender seu limite, poderá utilizar seu potencial de modo mais apro priado. O ser humano de fé entende que a expansão do seu potencial não é limi tada ou ameaçada pela expansão do po tencial dos outros. A fé permite enxergar além do conflito, do confronto e da com petição. A fé absorve o complemento, in clui o contraditório, abrange o aparente mente oposto.
A fé não é um mecanismo de negociação com Deus. Aceitar esta negociação seria um ato de desconfiança para com Deus. A fé é um ato de confiança absoluta, sem necessidade de garantia. A própria fé é a garantia.
A fé não foca na ameaça externa, embora não deva ser cega às forças insanas que desdenham a existência do dife rente. O foco da fé é o ato de transformar-se e aceitar-se. A partir daí, a fé favorece uma convivência interna entre o potencial e o limite. Quem coexiste consigo conseguirá mais facilmente estabelecer parcerias. Fé é a ponte cons truída através de vigas espirituais que superam o abismo que separa cada um de si e cada um do outro. Enquanto frequentemente associada ao fanatismo, a fé é justamen te a reversão deste. O fanatismo rejeita os limites que a fé nos mostra.
O ser humano de fé não se frustra com os limites. Atra vés da fé, ao invés de focar no limite imposto pela finitu de, fazemos emergir a infinitude de cada finito. Explican do: os recursos – humanos, tempo, dinheiro, natureza –são limitados. A fé percebe os efeitos que os recursos limi tados podem proporcionar. Estes efeitos podem, ao serem exponencializados com o tempo, ter repercussão infinita.
O imediatismo pode não enxergar isto, porém a vi são moldada pela fé vislumbra mais adiante. Para que dos recursos finitos sejam extraídos efeitos permanentes além do aqui e agora, é crucial utilizá-los corretamente. Assim, a fé é tanto a relação transcendental com uma dimensão maior quanto uma relação fundamentada na concretude dos princípios que norteiam os vínculos sociais.
Ter fé é lidar com o medo. O ser humano receia o desconhecido. Teme pelo que pode acontecer. Apavora -se diante de consequências indesejadas. Tenta, para lidar com este medo, desenvolver tecnologias que aumentam a capacidade de antecipar o imponderável. A fé não é uma vestimenta de ilusão. Ainda que sejam desenvolvidas – e é
salutar que assim seja – técnicas apuradas de previsão nos vários âmbitos da vida, a fé reconhece que nem tudo pode ser pre visto ou antecipado.
Diante do medo do desconhecido o ser humano vislumbra um poder que transmite uma sensação de tranquila invulnerabilidade. A fé reconhece a fragi lidade do ser humano. Não importa o quanto poderosos somos ou nos julguemos, somos inevitavelmente vulneráveis a inúmeros dissabores e intempéries. A fé busca de reverter o desespero diante da constatação da fragilidade. É a força que visa impedir sermos arrastados pela correnteza como náu fragos sem boia. Convoca-nos para extrair do âmago do ser e dos vínculos sagrados de convívio familiar a energia que nos reconecta a uma vida plena. Talvez esta plenitude renovada seja distinta da de antes, mas nem por isso des provida de bênção.
Outra maneira de lidar com o temor perante o desconhecido é se agarrar numa religiosidade envolta de barga nha com a força divina. A fé não é um mecanismo de ne gociação com Deus. Aceitar esta negociação seria um ato de desconfiança para com Deus. A fé é um ato de descon fiança absoluta, sem necessidade de garantia. A própria fé é a garantia. A fé não exige que os clamores sejam respon didos, por mais que gostaríamos que fossem. A possibilida de de externalizar estes clamores já é um passo importante. Em acréscimo, a resposta pode vir de uma forma que não percebemos. O nosso limite humano não necessariamente capta a maneira como as injunções divinas se manifestam.
A fé não anula o medo, mas nos encoraja a não ficar mos paralisados, inertes, desconcentrados. Convoca-nos a prosseguirmos com o vigor possível, com a tenacidade viável, com o resgate das bênçãos. A fé apura nossa percepção e nossa ação para que resgatemos as centelhas de bênçãos que pairam à nossa volta. Centelhas que pareciam evaporar e bênçãos que pareciam se esvair são potencialmente resgatadas para nutrir nosso espírito e irrigar nossa alma.
A fé atiça o sentimento de solidão. Da fé emergem perguntas: Quem está comigo? Quem me acompanha? Cadê Deus? Onde estão a bondade e a misericórdia? Em seu resgate pelas bênçãos, o ser humano, impulsionado pela fé, apura sua sensibilidade e vê devassidão e devas
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tação. A fé pode conduzir à decepção. A decepção, por sua vez, transportaria o espírito contrito à reclusão. É a solidão da fé. Seríamos como ursos que optam por hibernar nas cavernas do isolamen to por entender que no mundo prevale ce somente um tenebroso inverno. Ain da que o retiro possa ser circunstancial mente válido para o escrutínio da alma, a fé é mobilizada por um chamado:
“Se não há um ser humano, que ele seja você”, conforme sugere o Talmud no capítulo da Ética dos Pais. A fé resgata a mensagem dos que se calam em desprezo e dos que ensurdecem no descaso. “Vocês são testemunhas” – ensina o texto bíblico.
A fé é um testemunho à vida. Estabelece uma parceria com o Criador da vida. As sim, a fé modifica a pergunta “onde está Deus?” para “onde deixamos a mensagem divina ir?”. A fé transforma o solitário estupefato com os acontecimentos em solidário. Acredita que o sopro do espírito solidário prevalece sobre o vendaval do abandono que um ser hu mano pode relegar ao outro.
Assim, a fé modifica a pergunta “onde está Deus?” para “onde deixamos a mensagem divina ir?”. A fé transforma o solitário estupefato com os acontecimentos em solidário. Acredita que o sopro do espírito solidário é mais forte do que o vendaval do abandono que um ser humano pode relegar ao outro.
para então voar novamente. A fé requer a dúvida para que o espírito inquieto pos sa encontrar seu ninho de aconchego a fim de voar novamente para a vida. A fé não pressupõe seguir pela vida numa es trada perfeitamente pavimentada e reta, mas proporciona a compreensão de que os solavancos fazem parte desta estrada repleta de sinuosidade, aclives e declives em meio aos trechos em linha reta.
A fé em sua transcendência permi te habitar simultaneamente em nosso es pírito o tempo do passado, o presente e o futuro. Não somos donos da história, mas tampouco seus servos. Pertencemos a uma história, mas a história também nos pertence. Por isso, o futuro também nos pertence. Através da fé reconhecemos fatores que impossibilitam precisar qual será o futuro, mas permite afirmarmos que este futuro nos pertence e por nós pode ser construído. A construção do futuro tem uma viga: a esperança.
A fé é um convite para assegurar nossas convicções e para fortalecer nossas certezas, mas a fé traz para cada ponto de exclamação um de interrogação. Fé é ter a ca pacidade de confrontar as certezas até então julgadas ina baláveis. É a capacidade de provocar turbulência para que a aceitação das proclamadas verdades não seja isenta do pensar, refletir e analisar. A fé provoca um turbilhão na calmaria das posições confortavelmente incorporadas. Com isto, a fé nos convoca para sermos timoneiros da nau de nossas vidas. A fé visa evitar que sejamos suga dos pelos maremotos da passividade e do desinteresse. A fé que rejeita a dúvida é como um pássaro que nega o seu ninho. Só quer voar, mas não há onde se revigorar
A esperança é a chama que faz a fé brilhar e resplande cer. Construir o futuro é criar vidas ou propiciar um mun do melhor para as novas vidas. Ou ambos. Esta constru ção anseia transformar pântanos em terras áridas e desertos em bosques, tal qual almeja irrigar o espírito atormentado, semear o coração apequenado e fazer florescer na mente ofuscada a admiração pelo encanto da vida.
Em fé perguntamos: acontecerá? Em fé honesta res pondemos: acreditamos que sim, mas não sabemos por certo! E em fé plena afirmamos: seja como for, estaremos juntos e isto já será uma bênção. Fé é estar junto: consigo próprio, com os outros, com Deus.
Sérgio R. Margulies é rabino e serve a Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro (ARI).
Myriam Glatt, cujo trabalho ilustra os artigos do Rabino Sergio Margulies e de Raul Gottlieb, estudou no Colégio Barilan, gra duou se em arquitetura nos anos 1980 e depois viajou para a Califórnia para estudar Artes Aplicadas. Nos anos 1990 traba lhou com cenografia em vários segmentos, tais como teatro, TV, vitrine e fotografia. A partir de 2008 se voltou para as Artes Plásticas e estudou cinco anos no Parque Lage, de 2008 a 2012. Em paralelo desenvolve um trabalho de arte judaica, ligada às suas raízes e em diálogo com a arte contemporânea. Atualmente mantém um atelier no Rio de Janeiro, cursa pós gradua ção em Arte e Filosofia na PUC RJ e prepara uma exposição na Galeria Tac.
6 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
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o Profeta e lias: Pa Ctos, alianças e ru P turas, desde a é P o C a bíbli C a até os nossos dias
rabino dario e. bialer
Oprofeta Elias é uma das figuras mais conhecidas e enigmáticas de toda a literatura bíblica. Quase todos os judeus, sejam mais ou menos estu diosos e praticantes da lei, costumam deixar-lhe uma taça de vinho e manter a porta aberta de suas casas para que ele lhes visite na noite do Seder de Pessach, bem como uma cadeira reservada para ele em cada brit-milá. E semanalmente, na Havdalá (cerimônia que marca a finalização do Shabat), lembramo-nos dele cantando: “Elihau ha navi, Elihau ha tishbi, Elihau ha gui ladi, bimera beiamenu iavo elenuim Mashiach ben David.”
Ou seja, a cada semana declaramos que ele vai voltar para anunciar a chega da do Messias. O que faz um homem, por mais profeta que seja, junto com o Messias? É bastante simples de entender. Elias, de acordo com o que está docu mentado na Bíblia, não morreu e sim ascendeu ao céu, como está escrito: “En quanto [Elias e Elishá, seu discípulo] andavam e conversavam, eis que uma carru agem de fogo com cavalos de fogo surgiu entre eles, e Elias ascendeu ao céu num redemoinho.” (Reis II, 2:11). Quer dizer, é um ser que não está nem vivo entre nós nem morto. Ele está junto de Deus e lá ficará até que lhe seja indicado vol tar junto com o Messias.
Sua morte foi sobrenatural da mesma forma que sua vida também o foi. Sua missão profética não foi a de uma profecia tradicional, de chegar junto ao povo e anunciar a palavra de Deus.
Ele foi um profeta fortemente vinculado à magia, como vemos em Reis I, ca pítulo 17: “Ele se jogou sobre o menino [morto] três vezes e clamou ao Eterno dizen
Em tempos de crise espiritual ou econômica, o número de candidatos potenciais às tarefas proféticas aumenta drasticamente. A popularidade do profeta Elias é consequência da fragmentação social no reino de Israel que foi bem capitalizada por ele.
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do: Oh Eterno, meu Deus, por favor, faça com que a alma desta criança volte a ele. O Eterno atendeu ao pedido de Elias e a alma do menino retornou a ele e ele ressuscitou”. Além da magia, Elias também se carac terizou pelo temor que despertava, tanto entre os seus seguidores como, especial mente, ao poder político que enfrentava. Na concepção bíblica a dupla Achab-Je zabel foi a dinastia real mais pecamino sa, aquela que mais desafiou a sobrevivên cia espiritual de Israel. Foi no tempo de les que viveu Elias e marcante foi seu fu ror contra eles.
Devemos ser autênticos e fazer o nosso próprio caminho em vez de tentar trilhar os caminhos do passado.
Hoje é o presente, um tempo que ainda não foi vivenciado, que está em permanente construção e, portanto, merece uma resposta inédita de nossa parte.
A riqueza e o êxito político de Achab se manifestaram no desenvolvimento das cidades com um magnífico programa de edificações. So mos informados a respeito disto tanto pela narrativa bí blica (Reis I 16:34 e 22:39) como pelos restos arqueológi cos achados em Samaria, Megido, Siquem e Jericó. A Bí blia registra a construção em Samaria de uma imponen te casa de Baal para atender as necessidades rituais da rai nha Jezabel (Reis I 16:32). Um rei de Israel construindo um templo pagão!
Em tempos de crise espiritual ou econômica, o núme ro de candidatos potenciais às tarefas proféticas aumen ta drasticamente. Nesse contexto, explica o rabino Felipe Yafe em sua tese de doutorado1, a grande popularidade do profeta Elias é consequência da profunda fragmentação so cial no reino de Israel que foi bem capitalizada por ele, ao ponto de constituir um poderoso exército de seguidores.
A divisão do povo se dava por duas linhas principais: por um lado havia aqueles que se instalaram em Canaã, tornaram-se camponeses e construíram suas casas no país. Em paralelo havia os homens que continuavam vivendo como pastores e que almejavam continuar a vida como era antes da conquista, da mesma forma como os arameus an tepassados de Israel.
Para estes últimos, os padrões de vida de Israel deve ria ser o dos nômades e não o dos agricultores sedentários, como o explica Fohrer: “O homem verdadeiro, o crente verdadeiro é o nômade. Portanto Israel deveria ter perma necido na montanha de Deus no deserto, daquela mon tanha que o Eterno os expulsou, sem o desejar, devido à sua maldade. O território em que edificaram seus santuá
rios é apenas um substituto imperfeito do verdadeiro lar de Israel: no deserto com a montanha de Deus. Os israelitas deser taram do Eterno no momento exato em que se instalaram num território”.2
Já o reino via a cidade como o cen tro da sociedade israelita e a idealização da vida nômade era uma clara oposição retrógrada ao processo de modernização que estava tendo lugar. Esse contexto po lítico-social impactou no fervor religioso que o povo rapidamente começou a de monstrar.
Elias alimentou esses sentimentos de raiva e frustração para minar a posição real que decidiu introduzir o culto de Baal e o consequente abandono dos caminhos de Deus. Elias reuniu àqueles que preferiam servir ao Deus do Sinai e do deserto como sendo a única expressão de suas lealda des religiosas, introduzindo uma espécie de “luta de clas ses” (nômades x sedentários) na luta contra a idolatria e a corrupção do rei.
Assim se origina o episódio do Monte Carmel no qual, ante as exigências do comandante-profeta-militar-revolu cionário, os homens imbuídos pela causa do Eterno mata ram 750 profetas de Baal e Asherá (Reis I 18:40).
Ele é apresentado como um herói. Aquele que salvou o pacto de Deus com o seu povo. Como um homem ao qual todos temiam. Isto também pode explicar as vezes que se atreveu a desafiar publicamente o rei em mais de uma oportunidade (ver entre outros exemplos Reis I 18:18-21 e 20:24). No Monte Carmel, onde David havia levantado um altar em honra a Deus, é Elias quem o recupera e sal va um pacto que está se extinguindo.
Essa atitude é interpretada por Murphy3 entre outros autores como a pretensão de Elias a se elevar como um novo e segundo Moisés. Essa ideia me lembrou que, no relato seguinte ao da matança para preservar o pacto, Elias definitivamente assume querer ocupar o lugar vazio dei xado pelo grande libertador do povo no Êxodo do Egito.
Elias embrenha-se no deserto, como era de se esperar, pois esse é o seu lugar, mas com um propósito que surpre ende. Está escrito no texto: “Levantou-se, comeu e bebeu; e com a força daquela comida caminhou quarenta dias e qua renta noites até Horeb [mais conhecido como Sinai], a mon
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tanha de Deus. E quando chegou, subiu na montanha (...) e eis que nesse momento passava o Eterno, como também um forte vento que fendia os montes e quebrava os penhascos; po rém Deus não estava no vento; e depois do vento um terremo to; também o Eterno não estava no terremoto; E depois do ter remoto um fogo; porém o Eterno também não estava no fogo; e depois do fogo, uma voz suave e delicada, que num sussur ro lhe diz: Que fazes aqui, Elias?”.
Subir a montanha, o vento forte, a terra tremendo e o fogo, a que se assemelha este relato? Vejam em Shemot / Êxodo 19:16-18:
“Ao terceiro dia, ao amanhecer, houve um forte vento, tro vões, relâmpagos, e uma nuvem espessa sobre o monte; e ou viu-se um shofar muito forte, e todo o povo estremeceu (...) todo o monte Sinai fumegava, porque Deus tinha descido so bre ele em fogo; (...) e o monte tremia fortemente”.
O relato acima é o da subida de Moshé ao Monte Si nai para receber as tábuas da lei. As histórias de Elias e
de Moshé parecem ser exatamente a mesma! Os dois an dam no deserto por quarenta dias, ambos sobem ao Monte Sinai para encontrar a Deus, com idêntica descrição dos fenômenos que aconteceram quando da revelação. Tudo igual, mas com uma diferença fundamental, que se revela sutilmente: enquanto que com Moshé todo o impressio nante cenário vai crescendo, até chegar ao momento cul minante em que ele efetivamente se encontra com Deus e recebe a Torá, com Elias parece que Deus quer fugir da si tuação. Há o vento, mas Deus não está no vento. Vem um terremoto, mas Deus não está no terremoto. Um fogo des ce do céu, mas Deus não está no fogo. Deus não está em nenhum desses grandes acontecimentos, mas num sussurro, uma voz suave, que não lhe revela a Torá, mas lhe ques tiona delicadamente: O que você está fazendo aqui?
O que o texto, cheio de sutil ironia nos transmite, é uma mensagem muito importante: que não podemos vi ver a vida do outro. Que devemos ser autênticos, e fazer o
Brian Jackson /
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nosso próprio caminho em vez de tentar trilhar os caminhos do passado. Que os acontecimentos históricos não podem ser revividos porque os entornos evoluem e as cir cunstâncias já não são as mesmas. Hoje é o presente, um tempo que ainda não foi vivenciado, que está em perma nente construção e, portanto, merece uma resposta inédi ta de nossa parte.
O que pensava Elias? Provavelmente que chegaria ao Sinai e Deus iria lhe parabenizar pela luta contra a ido latria e contra os desmandos do rei e entregar outra Torá para ele? Que o iria nomear um segundo Moisés, fundan do através dele novamente o povo de Israel?
Talvez Elias imaginasse o que muitos de nós alguma vez fantasiamos: poder voltar o tempo atrás e, desde esse passado imaculado e perfeito (porque idealizado), apagar a transgressão e as imperfeições (porque real) do tempo pre sente. Mas Deus rejeita Elias, e com isto rejeita a volta aos formatos da geração do êxodo, pois a realidade não pode se negar, a realidade deve se abraçar, vivenciar e transformar.
Elias rejeita a transformação social de sua geração e pre tende voltar ao passado copiando exatamente o que Moi sés fez. Se aquilo fez sucesso no passado, por que não co piar a mesma fórmula no presente? Mas esta atitude faz dele uma caricatura.
E é esta caricatura que o texto sagrado descreve na de licada pergunta divina sussurrada a Elias: “O que fazes aqui?”, pois o judaísmo sempre foi, e continua sendo, a tentativa de acrescentar nossa narrativa aos textos sagra dos, inscrevendo neles nossas ações e não falsificando o presente (por exemplo, copiando o relato do Sinai e mu dando o nome do seu protagonista) tentando acomodá -lo aos entornos do passado. Nada mais antijudaico e nada mais absurdo que isto. O afastamento do mundo nunca foi o ideal da Torá.
Fugir ao deserto ou a Mea Shearim são duas tentativas idênticas de deixar tudo como alguma vez foi. Isso rom pe com o vínculo que o judaísmo sempre teve com as mudanças e com o mundo. Quando o homem deixa de criar
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e começa a copiar o passado a resposta divina (também aos Elias da nossa geração) não demora a exclamar: O que estão fa zendo aqui?
Moisés e a entrega de Torá no Sinai, com uma reveladora mensagem atempo ral, são o produto de um contexto deter minado. Existe um Moisés porque exis te a necessidade de criar um padrão com portamental de liberação da opressão e existe nesse momento a Torá, porque existe a necessidade de mostrar o cami nho para a construção de uma sociedade justa e igualitária.
Não há nada de sagrado no passado! O sagrado está na tentativa de buscar o sentido e a felicidade no presente, atualizando a sabedoria das experiências passadas e criando também novas formas e modelos.
Mas não era essa a realidade na qual vivia o profeta Elias, da mesma forma que a vestimenta dos Chassidim –que com uma visão profundamente inovadora realizaram uma transformação cultural e religiosa sem precedentes na modernidade – era funcional no contexto em que eles sur giram, porém não faz mais sentido hoje.
Portanto, o cartão postal do homem de preto rezando ao pé do muro não deveria ser a imagem paradigmática do judeu. Isso não faz justiça à rica história judaica, pois não faz nenhum aporte original. É uma mera cópia do passado.
A prolífica literatura de relatos chassídicos transcende completamente o entorno onde ocorreram de tal forma que as caricaturas que vemos hoje andando pelas ruas aca bam ridicularizando uma cultura de raízes profundas que realmente fez um aporte singular e significativo.
Seguramente a história que mais contraria o Chassidis mo atual é o conto sobre a angústia de Rav Zussia4, o cé lebre mestre chassídico do século XVIII. O conto informa que jamais devemos pretender imitar outra pessoa, mesmo quando esta outra pessoa é um santo homem do passado:
“Chorando na véspera de sua morte, diz Zussia a seus dis cípulos: – Quando eu morrer e chegar ao tribunal celestial, não tenho medo que me perguntem: Zussia, por que você não foi tão grande quanto Moshé?, pois eu não sou Moshé. Tam bém não tenho medo que me perguntem por que não fui tão fiel como Abraham, pois eu não sou a Abraham. Meu medo é que me perguntem: Zussia, por que você não foi Zussia? Pois aí eu não saberei o que responder!”.
Talvez o ser humano procure um refúgio no passado para garantir a si mesmo que está indo no caminho certo. Talvez a fantasia seja que se outros foram felizes trilhan
do esse caminho, ou se uma determinada proposta religiosa foi satisfatória em al gum momento, por que não fazer o mes mo? E a resposta judaica é contundente: não há nada de sagrado no passado! O sa grado está na tentativa de buscar o senti do e a felicidade no presente, atualizan do a sabedoria das experiências passadas e criando também novas formas e modelos. Quando Rav Kuk, o primeiro grão rabino do incipiente estado de Israel ensinou: “Ha iashanitchadesh,veha cha dashitkadesh – renovar o antigo e santifi car o que foi renovado”5 ele, com sabedoria, estava orien tando as pessoas na direção do contexto que o jovem estado exigia. Ele era um homem inserido no mundo, por isso ele podia ser chamado de grande rabino, enquanto que os que se autodenominam grandes rabinos na atu alidade são percebidos como fanáticos pelo resto da so ciedade, porque não enxergam o futuro, apenas o passa do que ficou atrás.
Eles, como o profeta Elias, confundem a realidade, misturando a justa luta contra a idolatria e a opressão com o ideal de voltar o tempo atrás santificando o passado e desconsiderando o que está nascendo. Sua luta é admirá vel, mas seu ideal é árido como o deserto, nada novo surgirá dali.
É por isso que, por mais que acreditem ser os salvado res do judaísmo e a encarnação mesma de Moshé, se chegarem a subir o monte, Deus lhes perguntará singelamen te: “O que vocês estão fazendo?”.
Desculpem-me a heresia, mas com essas figuras como porta-vozes e aliados, duvido que o Messias tenha inten ções de, por enquanto, chegar.
Notas
1. Yafe, Felipe C. Profetas Reis y Hacendados en la epoca Bíblica. Estudio teológico-so ciológico y crítico del Israel preclásico, ed. Lumen, 1997.
2. Fohrer, G. History of Israelite Religion, ed. Nashville, 1972.
3. Ver Murphy, R. The figure of Elias in the Old Testament, Carmelus 15, 1968.
4. Ver em Buber, Martin, Or Ha ganuz, ed. Shoken, 1946.
5. Igrot ha Rav Abrham Itzchak ha Cohen, Jerusalem, 1946.
O Rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Is raelita – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Aires, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém.
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r esgate e renovação do nosso l egado de Judaísmo Progressista
Em termos teológicos, a Reforma Clássica está baseada na tradição bíblica dos profetas hebreus, interpretada com ênfase na ação ética e na justiça social, mais do que na observância do ritual ou nas leis cerimoniais.
rabino Howard a. berman
Um dos pontos mais fortes do Judaísmo Progressista é o compromisso específico do nosso Movimento e sua capacidade de desenvolver uma ampla variedade de expressões do Judaísmo Liberal enraizadas nas culturas locais e idiomas de cada país.
O Judaísmo Reformista nos Estados Unidos e o Judaísmo Progressista no Brasil – em Israel, na Alemanha, na Grã-Bretanha – refletem as influências so ciais, religiosas e culturais dos ambientes em que se encontram inseridas. Todas essas variações abraçam as tradições eternas das crenças e práticas judaicas que unem nosso povo pelo mundo afora e nos definem como uma comunidade es piritual universal com história e destino comuns.
Contudo, além da tradição que compartilhamos com todos os judeus, tam bém fazemos parte do singular legado do Judaísmo Liberal. O Movimento Pro gressista não é meramente um fenômeno recente que busca adaptar a prática judaica à sociedade moderna. Muito além disso, nós representamos um minhag único – uma cadeia de interpretação e prática do judaísmo que possui raízes históricas profundas e que se coloca, juntamente com outras tradições únicas, como é o caso do Hassidismo, como uma compreensão específica da identi dade e da vida judaicas; com sua própria história, literatura, música e valores.
Esta tradição histórica do Judaísmo Progressista é geralmente denominada Reforma Clássica. É bem verdade que esse termo é a expressão mais comumen
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te usada para denotar a dimensão histórica do nosso Movimento, que se desenvolveu durante o século XIX e iní cio do século XX, porém admitimos que a palavra “Clás sica” é problemática.
Ela implica no risco de uma expressão vital e dinâmica do compromisso religioso vir a ser vista como antiquada, ou ligada a um período histórico em particular. Contudo, na sua ligação com a visão pioneira inicial do Judaísmo Li beral de dois séculos atrás, esses ideais e expressões especi ficamente abraçados pela Reforma Clássica são claramen te peculiares no espectro contemporâneo do Movimento Progressista mundial.
Essencialmente, essa tradição traz os ideais espirituais liberais, as ricas bases intelectuais e a ampla visão univer sal dos primeiros pioneiros da Reforma Judaica, iniciada na Alemanha, e que se expandiu depois para os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Commonwealth e, posterior mente, para outros centros da Europa e da América Latina.
Em termos teológicos, a Reforma Clássica está basea da na tradição bíblica dos profetas hebreus, interpretada
com ênfase na ação ética e na justiça social, mais do que na observância do ritual ou nas leis cerimoniais. Intelectu almente, foi uma expansão do estudo acadêmico e científi co moderno da história e da filosofia judaicas, que surgiu na Alemanha nas primeiras décadas do século XIX. Cultu ralmente, refletiu a transformação da vida comunitária ju daica da época, como resposta à emancipação do mundo judeu europeu do isolamento social do gueto.
Na América, onde o Judaísmo Liberal alcançou sua maior influência e maior número de seguidores, o Movi mento Reformista inicial abraçou a cultura pluralista da democracia e desenvolveu uma liturgia e uma lógica, que refletiam a experiência singular do judaísmo em socieda des livres e abertas dos Estados Unidos e do mundo Oci dental. Trouxe o ensinamento de que o judaísmo sempre desenvolveu novas respostas para os desafios de cada gera ção e que historicamente esteve comprometido com um encontro criativo e a síntese com muitas culturas ao longo dos tempos – afirmando que os judeus modernos ti nham o direito e a responsabilidade de continuar esse pro
Templo Sinai, em New Orleans, EUA, uma das maiores congregações da Associação pelo Judaísmo Reformista Clássico.
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cesso dinâmico de construção de um novo capítulo da his tória judaica.
A tradição da Reforma Clássica tem suas raízes no le gado da ala “radical” dos primórdios do Movimento, que buscava uma revisão substancial tanto do culto sinagogal quanto dos princípios teológicos. As primeiras declarações dos princípios do Judaísmo Reformista formuladas pelo Sínodo rabínico na Alemanha de 1840 e, posteriormen te, nas “Plataformas” do movimento americano permane cem como expressões formativas dos ensinamentos histó ricos da Reforma. Mais especificamente, sua interpretação da natureza principalmente religiosa da identidade judaica e a ênfase sobre as esferas ética e espiritual, mais do que da natureza do ritual judaico, continuam a influenciar mui tos judeus da Reforma Clássica hoje.
A formulação dinâmica e permanente dos ideais do Mo vimento em resposta aos desafios transformadores da vida judaica no século XX também levaram à adoção de uma afirmação significativa de “peoplehood” (neologismo inglês que denota a consciência de pertencer a um povo) judai ca e refletiram a tendência ao resgate do ritual tradicional.
Enquanto os diferentes pontos do espectro da Refor ma expressaram esses ideais em diversos estilos litúrgicos,
seja na prática ritualista mais conservadora das congre gações reformistas/liberais europeias, seja na abordagem mais “radical” nos Estados Unidos, é importante perce ber que o que hoje é entendido como “clássico”, na ver dade, foi a herança comum de todas as iterações do Ju daísmo Progressista.
De fato, apesar dos debates acerca do papel do Sionismo que dividiu em dois extremos o espectro Reformista no início do século XX, o que hoje é denominado “clássico” na verdade se refletiu no estilo de culto mais amplamen te predominante e na cultura sinagogal do Movimento, até as mudanças significativas que influenciaram a maior tendência neotradicionalista na década de 1960. Grande parte deste redirecionamento do Judaísmo Reformista foi uma resposta à tragédia do Holocausto e à nova dinâmica da identidade judaica engendrada pelo nascimento do Es tado de Israel em 1948.
A Reforma Clássica de hoje continua a afirmar a vali dade e a viabilidade dos princípios liberais históricos do movimento e as tradições do culto como um contexto al ternativo para compreender essas questões e nossa resposta aos eventos transformadores do nosso tempo. Uma apre ciação do contexto histórico do início do desenvolvimento
Para o Judaísmo Reformista, a ênfase sobre as esferas ética e espiritual deve prevalecer.
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do Judaísmo Reformista e sua subsequente interpretação “Clássica” levanta a ques tão habitual – e geralmente crítica – da dinâmica da “assimilação” como um fator nesse processo. Entendemos que essa di nâmica seja uma aceitação positiva da cul tura progressista e pluralista e dos valores democráticos pelos judeus norte-america nos e europeus no século XIX e pelo Mo vimento Reformista, de uma forma geral, ao longo do tempo.
Especificamente afirmamos e cele bramos a experiência judaica em mui tos países e culturas nos quais os judeus têm vivido. A genialidade do Judaísmo Reformista reside em abraçar com con fiança as expressões culturais e identi dades de cada lugar onde as comunida des judaicas florescem e interagem com a sociedade mais ampla. Ao invés de ver nisso um desejo de aceitação social, ele deve ser inseri do no amplo contexto de continuidade da história so cial judaica.
A genialidade do Judaísmo Reformista reside em abraçar com confiança as expressões culturais e identidades de cada lugar onde as comunidades judaicas florescem e interagem com a sociedade mais ampla. Ao invés de ver nisso um desejo de aceitação social, ele deve ser inserido no amplo contexto de continuidade da história social judaica.
A influência da cultura estética, da música e da arquitetura locais sobre os estilos de culto reformistas também po dem ser interpretados sob esse prisma. Essa dinâmica foi idêntica à mistura da observância religiosa e costumes judaicos com a cultura mais ampla da Rússia e da Polônia medievais ou do mundo islâmi co, que respectivamente moldaram as tra dições Chassídica Ortodoxa e Sefaradita. Os judeus reformistas foram incluí dos em um processo positivo e criativo de aculturação que sempre esteve em cur so em todos os períodos e lugares da his tória judaica. Nas sociedades livres, aber tas e pluralistas do mundo moderno, isto reflete um compromisso profundo e ge nuíno em relação ao judaísmo e ao futuro do povo judeu. Existiam muitos cami nhos mais fáceis para a verdadeira “assi milação” do que os minuciosos estudos rabínicos e a criatividade espiritual que moldaram o Judaísmo Liberal his tórico na Europa e na América.
Essa experiência sempre refletiu um encontro conscien te e uma síntese criativa dos valores típicos do judaísmo e suas tradições com os ambientes culturais circundantes nos quais vivemos e penetramos tanto quanto as circuns tâncias permitiram.
Princípios Fundamentais
O princípio fundamental da Reforma Clássica é que o Pacto do povo judeu com Deus reside no coração da nossa identidade e história enquanto judeus. Enquanto
Estudantes de rabinato e chazanut no HUC, Instituto do Judaísmo Reformista Clássico, em Jerusalém.
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nossa fé gera e permite muitas compreensões e interpretações diferentes do divi no, é a busca religiosa pela fé e significado que encontramos no centro da identida de judaica. Enquanto comunidade espi ritual, valorizamos os laços únicos da his tória e o destino que nos unem aos nos sos irmãos judeus através dos tempos e no mundo hoje.
Entendemos que o povo judeu é uma comunidade de fé, unida pela experiên cia compartilhada e baseada nos ensina mentos específicos da religião judaica. As ricas e variadas tradições éticas e culturais da experiência judaica através dos tempos oferecem dimensões significativas à nossa identidade religiosa, porém nossa fé tem aspirações eternas e universais.
A comunidade judaica brasileira está profundamente enraizada nesta tradição, tanto nas suas origens alemãs quanto nas formas específicas de desenvolver uma vida e prática judaicas progressistas dentro da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro e nas demais comunidades irmãs.
Respeitamos o conceito histórico de Reforma ligado à nossa ênfase na visão ética e moral dos nossos Profetas he breus no que tange à “Missão de Israel”. Esta crença sus tenta que os judeus são conclamados a serem testemu nhas do Deus único e da unidade de toda a humanidade e que, enquanto indivíduos e comunidade, somos chama dos a trazer justiça e paz ao mundo. Os líderes da tradição reformista clássica sempre estiveram à frente desses esfor ços e desafios, abordando as grandes questões sociais dos tempos modernos com coragem e ação proféticas. Afirma mos essa visão espiritual ampla, universalista e humanista.
Valorizamos as tradições de culto específicas da Refor ma histórica, isto é, uma liturgia significativa e participati va, dirigida às nossas mentes e corações. Esse compromis so sempre esteve acompanhado de um serviço que aborda diretamente a oração no vernáculo de cada país, enrique cido pelos elementos eternos dos textos e das músicas he braicas, que simbolicamente nos unem ao nosso passado e a todos os judeus do mundo.
Enfatizamos que o que torna a experiência verdadeira mente “judaica” não é o quanto a língua hebraica é usada, mas os ideais e valores por ela refletidos. O culto reformis ta clássico também abraça o papel inspirador do coral e da música instrumental, que elevam o espírito e refletem os mais altos níveis artísticos; se nutrindo tanto da distinta herança da sinagoga da Reforma, quanto das composições da criatividade contemporânea.
Acreditamos que essas qualidades ca racterísticas do culto reformista clássi co continuam a oferecer uma opção vi tal e criativa a muitos judeus atualmente. Isso inclui não apenas os diversos mem bros das nossas congregações, que foram criados na nossa tradição e a apreciam, como também a enorme quantidade de jovens que buscam uma forma significati va e accessível de identidade e culto judaicos, baseados não na nostalgia, nem na et nicidade, mas assentada nas realidades das suas experiências na nossa sociedade plu ralista contemporânea.
Nosso Movimento Reformista con temporâneo inclui uma ampla diversida de de interpretações e estilos. Nossa espe rança e compromisso residem em que a tradição histórica da Reforma Clássica – que traz em seu arcabouço uma integridade própria e um significado pere ne, imersos em muitas outras correntes ricas de experiência judaica através dos tempos – seja reconhecida e honra da pela sua vitalidade contínua e pelo seu potencial em fa lar à nova geração de judeus de hoje.
A Society for Classical Reform Judaism
Para ajudar a que esta visão se torne realidade, a So ciety for Classical Reform Judaism (Associação pelo Juda ísmo Reformista Clássico) foi fundada nos Estados Uni dos em 2008, como uma voz em defesa da vitalidade con tínua da tradição histórica Reformista / Progressista / Li beral dentro do nosso movimento internacional, a SCRJ surgiu como uma presença reconhecida, colegiada e cria tiva na ampla família da Reforma.
Trabalho com um número cada vez maior de congre gações, oferecendo programas e recursos para a afirmação da nossa diversidade, e para o enriquecimento da vida con gregacional, valorizando o pluralismo e a herança com partilhada por todos. Daí a importância da nossa gran de parceria com o Hebrew Union College-Jewish Institute of Religion – tanto em Cincinnati, quanto em Jerusalém que incluiu uma nova geração de estudantes rabínicos e de chazanut que se identificam com a nossa missão e nos permitem desenvolver um novo entendimento e expres sões criativos dos minhaguim da Reforma Clássica, como
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“Permita que em nossos corações possamos entender e avaliar; apreender, estudar e ensinar; proteger e cumprir e apoderar-nos de todas as palavras da tua Torá, com amor.” (Bircat Ahavá, a benção do amor das orações matutinas)
Apalavra “kasher” remete diretamente às restrições alimentares prescri tas pela tradição judaica a partir de mandamentos inscritos na Torá – o código fundante do judaísmo – que proíbem o consumo de determi nados alimentos, além da ingesta simultânea de carne com leite.
A palavra em si não é citada na Torá, que contém as injunções básicas sem rotulá-las. Ou seja, a Torá não diz, por exemplo: “Estas são as leis da kasherut”, seguindo uma lista a partir daí. As leis estão espalhadas ao longo do texto, ape nas mais tarde elas foram catalogadas e reunidas.
O uso de “kasher” como rótulo para as restrições alimentares se deve ao seu significado original: “adequado”, “próprio”. Assim, o código que evoluiu a partir daqueles mandamentos passou a ser denominado de “kasherut” (a qua lidade de ser “kasher”), pois suas regras indicam o que é adequado ao consu mo pelos judeus.
E como os idiomas estão em constante evolução, “kasher” passou também a significar “legal”, “legítimo”, inclusive em contextos que não o alimentar. Em certos lugares o uso da palavra neste sentido transbordou dos círculos judaicos a tal ponto que você pode falar hoje que certo procedimento tributário não é kosher (a forma iídiche de pronunciar a palavra) para parceiros de negócios no va-iorquinos sem medo de não ser entendido.
Ilustrações: Myriam Glatt a questão da Kas H erut
A Torá, que é a fonte das regras de kasherut, não traz justificativa alguma para a maior parte delas.
raul Cesar gottlieb
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Outra evolução da palavra, já no hebraico falado em Israel, enriqueceu o seu sentido com o conceito de “aprimorar” (talvez a partir da noção de que a kasherut é um refinamento do processo alimentar), significado que se aplica inclusive à forma física das pessoas. Em Israel os ambien tes de ginástica são chamados de “cheder (sala, quarto) kosher”, o que normalmen te desafia a compreensão dos visitantes –“o que pode haver de kasher ou não ka sher numa aula de Pilates?”, se pergunta o turista desavisado.
Justificativas para a kasherut
A Torá, que é a fonte das regras de ka sherut, não traz justificativa alguma para a maior parte delas. Vejam alguns pou cos exemplos (as traduções não são lite rais, porém mantêm o sentido do texto bíblico):
Outro princípio judaico que teve impacto forte nas regras da kasherut trata da prevenção de causar sofrimento desnecessário aos seres vivos, incluindo os animais. Os animais podem servir de alimento e sua pele pode servir de abrigo, contudo, existem regras estritas sobre como abater o animal para evitar que ele sofra.
“Podereis comer todo animal da terra que tem o casco fen dido e a unha separada em dois, de cima até em baixo, e que rumina”. (Vaikrá/Levítico 11:3).
“Dos animais que estão nas águas dos mares e dos rios po dereis comer todos os que têm barbatanas e escamas”. (Vai krá/Levítico 11:9).
“Não comereis nenhum animal que morreu por si [ou seja, que não foi abatido especificamente para o consumo humano]” (Devarim/Deuteronômio 14:21).
Existem apenas dois casos excepcionais onde as regras são justificadas. A proibição do consumo de sangue, “pois a alma da criatura está no seu sangue” (Vaikrá/Levítico 17:11) e a interdição do consumo do nervo ciático, que é atribuí da ao toque do anjo que lutou com Jacó na junção de sua coxa (Bereshit/Genesis 32:25-33).
A partir da lacuna de justificativas brotaram fecundas especulações. É muito popular a noção de que elas foram ditadas pela higiene, mas esta suposição deixa de explicar porque não se pode ingerir carne de porco que é seme lhante em teor de gordura da permitida carne de carneiro.
Especula-se também que elas tenham o objetivo de manter o indivíduo num entorno edificante, coisa que o consumo de aves de rapina não propiciaria, mas esta su posição não explica a proibição de consumo dos animais marinhos sem escamas, por exemplo.
Talvez não haja um único motivo para todas as regras e sim que cada regra tenha o seu motivo singular. Talvez também, como observa um bom amigo, a razão e o sentido destas leis foi tão somente o de “criar leis” para alicerçar o ordenamento civilizatório que permite a vida em grupo. E, neste caso, quanto mais concretas, co tidianas e introjetadas fossem maior seria a sua eficácia.
Mas ainda assim é certo que tudo o que existe são especulações, visto que o texto da Torá não indica os motivos, sal vo nos dois casos acima relatados.
A especulação que mais me agrada propõe que as regras alimentares foram feitas para afastar os hebreus dos povos canaanitas no meio dos quais habitavam. Assim a proibição de cozinhar o cabrito no leite de sua mãe seria o repúdio a um popular ritual ca naanita que usava este prato para invocar a fertilidade dos rebanhos – uma das grandes preocupações das sociedades agropastoris, seja ela hebreia ou canaanita.
Evidências arqueológicas mostram que os hebreus não consumiam carne de porco enquanto que entre os canaa nitas esta era uma dieta popular. Proibir a ingesta da igua ria do vizinho seria inegavelmente um fator de forte dife renciação que ainda evitaria o congraçamento entre eles, visto que desde os tempos imemoriais os seres humanos celebram os seus encontros em torno de comida.
No entanto, a hipótese da diferenciação é apenas mais uma especulação, tão boa ou tão ruim como todas as demais. O certo é que a racionalidade das leis não é conhe cida. Mesmo assim elas foram meticulosamente seguidas desde os tempos bíblicos, o que me leva a crer, em mais uma conjectura, que as pessoas da época conheciam os seus motivos e é justamente por serem muito evidentes para os antigos que não foi considerado necessário regis trá-los por escrito.
Das frases da Torá até as regras da Kasherut
O princípio básico da atuação dos rabinos que formu laram o judaísmo a partir das concisas frases da Torá está registrado no primeiro versículo da Ética dos Pais: “Façam uma cerca em torno da Torá”. Este princípio os levou a
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normatizar condutas que impossibilitassem (ou no mínimo tornassem muito improvável) desobedecer aos manda mentos da Torá, ainda que involuntariamente.
Um bom exemplo deste processo é a questão da carne e do leite. A Torá diz “Não cozinharás o cabrito no leite de sua mãe” (Shemot/Êxodo 23:19, 24:26 e Devarim/Deu teronômio 14:21) e a partir daí se estabeleceu uma sepa ração completa de consumo de qualquer tipo de leite com qualquer tipo de carne. E também foi estabelecido um li mite de tempo entre a ingesta de um e de outro, afastando o risco dos alimentos se misturarem no estômago.
Assim que é proibido comer queijo de minas com fran go, independentemente da total impossibilidade de uma galinha gerar um bezerro, ou vice-versa. Esta lei até pode parecer ridícula, mas ela ganha coerência à luz do princípio que norteou a legislação. Muitas pessoas têm dificul dade de diferenciar, por exemplo, leite de vaca de leite de cabra e carne de carneiro de carne de boi. Desta forma a separação total constitui-se numa cerca adequada ao man damento da Torá.
Um segundo princípio que norteou os rabinos está ba seado na percepção histórica que os não judeus cultivam
um interesse perene em prejudicar os judeus, até mesmo no nível das menores picuinhas. Esta percepção colocou sob suspeição qualquer tipo de manipulação dos alimen tos por não judeus. E, aplicando-se o princípio da cerca à Torá, a mera suspeita é motivo mais que justificado para o afastamento.
O vinho kasher é um produto exatamente igual ao vi nho não kasher, o leite kasher é exatamente igual ao leite não kasher e assim por diante, numa série grande de ali mentos processados. A única diferença entre estes produ tos é o fato dos primeiros serem manipulados ou por ju deus ou sob rigorosa supervisão de judeus, mas os proces sos e os ingredientes são os mesmos.
Outro princípio judaico que teve impacto forte nas re gras da kasherut trata da prevenção de causar sofrimento desnecessário aos seres vivos, incluindo os animais. Este princípio não emana de uma frase pontual da Torá, mas da convergência de uma coleção delas. Os animais podem servir de alimento e sua pele pode servir de abrigo, con tudo, existem regras estritas sobre como abater o animal para evitar que ele sofra. Um animal, mesmo que tenha seu consumo permitido pela Torá, não é kasher se for abatido de forma que contraria as regras rabínicas.
A superposição das frases objetivas da Torá sobre estes três pilares construiu o grande edifício de regras que com põem a kasherut.
Revisitando a kasherut na atualidade
As culturas que sobrevivem revisitam suas normas constantemente, visto que circunstâncias cambiantes pro põem novos desafios, geram novas percepções e necessida des. Culturas que se impõem freios por conta de aderên cia religiosa ao passado correm sérios riscos de caminhar para a irrelevância.
E é nesta revisita que a kasherut mostra ser problemá tica nos dias de hoje e merecedora, a meu ver, de uma re forma que a tornaria mais significativa.
Comecemos pela suspeição aos não judeus. É inegável que ela tem fortes justificativas históricas. Mas será que elas ainda se mantêm? Os judeus vivem em Estados democráticos e de direito que lhes garantem cidadania plena e os coloca ao abrigo de perseguições. Além disso, desde que o Estado moderno assumiu o papel de controlador da quali dade e da higiene dos alimentos ofertados ao público, caiu a necessidade do estabelecimento de um controle parale
lo para verificar se o alimento segue o que diz seu rótulo.
Tomemos o exemplo da “água mineral kasher”. Per gunto-me como a água mineral vendida nas prateleiras dos supermercados poderia deixar de ser própria ao consumo pelos judeus? Alguém realmente imagina que uma empresa de alimentos venha a dissolver gordura de porco numa das marcas de água mineral que vende, com o obje tivo de atormentar os judeus? E na remotíssima hipótese de o fazer, será que os controles das agências governamen tais não identificariam o crime e aplicariam pesadas san ções? Então para que serve o certificado de kasherut nas garrafas de água?
O caso da água é bizarro e indolor, apesar de talvez ter um preocupante subtexto comercial (suspeito que os inte resses econômicos da florescente indústria de certificados de kasherut expliquem algumas posturas), porém o caso do abate dos animais é dramático.
Durante milênios os judeus estiveram na vanguarda da humanidade ao reconhecer como odiosa a prática de afligir os animais além do necessário. As regras de abate com facas afiadas e sem defeitos, que devem atingir pontos precisos do animal para causar a morte de forma rápida eram o su prassumo da tecnologia do abate indolor. Abatíamos ani mais de forma menos econômica que os nossos vizinhos, mas de forma muito mais adequada. Podemos nos orgu lhar dos nossos antepassados por isto.
No entanto, os processos evoluíram e hoje existem mé todos de abate que são cientificamente comprovados como sendo menos traumáticos aos animais que o abate kasher. Deveríamos, então, penso eu, sancionar como kasher os métodos menos dolorosos. Porém, o apego às regras prá ticas do passado e não aos seus fundamentos impede isto. O abate continua a ser considerado como kasher unica mente se for realizado com os métodos regulamentados há milênios.
Preserva-se o processo ao invés de se preservar o prin cípio. E com isto esvazia-se o judaísmo de seu conteúdo judaico, reduzindo-o a uma coleção de rituais destituídos de significado.
A situação é grotesca a tal ponto de existirem países (o jornal Haaretz de 28 de novembro de 2012 noticiou o caso da Polônia, que periga se espalhar pela União Europeia) passando legislação que torna o abate kasher fora da lei por causar crueldade desnecessária aos animais. Ou seja, esta mos abandonando a vanguarda do humanismo porque,
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lamentavelmente, perdemos a capacidade de renovar os nossos costumes.
Outra situação ainda mais pungente é a das substâncias tóxicas. No tempo da Torá o ser humano ainda não tinha ad quirido o terrível hábito de consumir dro gas que matam lentamente, tais como o tabaco, a cocaína e outras. Assim que a Torá não fala nada sobre elas com a conse quência que fumar é kasher, assim como injetar heroína. Mas tomar água não cer tificada pelo Rabinato é completamente proibido!
Isto tudo apesar da Torá proibir o sui cídio e ordenar que se cuide muito bem da própria saúde. Fica evidente a urgência da revisita à kasherut. A tecnologia mu dou, os hábitos mudaram, os desafios são outros. A preservação dos princípios ju daicos obriga a revisão dos métodos. O que acontece hoje com alguns aspectos da kasherut é uma subversão dos nossos princípios fundantes, sob o disfarce do apego à tradição. Ou será que a tradição judaica san ciona o autoenvenenamento?
As drogas deveriam ser declaradas inequivocamente não kasher e fumar deveria ser proibido em todo o entorno das nossas instituições. A preocupação com a sustentabilidade e com a exploração do trabalho em condições semelhantes à escravidão deveria ser incluída no rol das preocupações comunitárias.
que sejam abatidos de forma indolor ao final dela. É o caso, por exemplo, da ali mentação forçada dos patos e gansos cria dos para a produção do “foie gras” e dos bezerros criados para a produção da vite la. O princípio bíblico que nos impede impor sofrimento desnecessário aos ani mais deveria colocar estes alimentos na lista das restrições, independentemente da omissão dos textos antigos.
Neste mesmo viés, as drogas deveriam ser declaradas inequivocamente não ka sher e fumar deveria ser proibido em todo o entorno das nossas instituições. A pre ocupação com a sustentabilidade e com a exploração do trabalho em condições se melhantes à escravidão deveria ser incluí da no rol das preocupações comunitárias, com uma coleção de diretrizes a serem agregadas às leis religiosas seguidas pelas instituições e seus membros.
Por uma Kasherut Reformista
A ausência de justificativas no texto da Torá e a per cepção que a kasherut impunha barreiras ao convívio so cial levou aos primeiros formuladores do movimento Re formista a abolir a prática da kasherut como uma obriga ção em suas comunidades.
Porém, como costuma acontecer com os movimentos revolucionários, ao passar dos anos as posições se flexibi lizaram e a valorização de “klal Israel”, no sentido do per tencimento ao povo judeu, fez com que muitas comuni dades repensassem a sua atitude com relação à kasherut. Assim que hoje em dia é raro encontrar uma comunidade Reformista que admita alimentos proibidos pela Torá em suas dependências. Porém, falta agregar a este movimento em direção às tradições uma revalorização dos princípios básicos do judaísmo, avaliando como eles impactam os ali mentos e as substâncias que não existiam na época da for mulação da kasherut.
Existem processos modernos nos quais os animais são submetidos a intenso sofrimento durante a sua vida, ainda
Finalmente, o sábio princípio da criação de cercas à Torá deveria ser interpretado conforme o panorama tec nológico atual. Vivemos o desenvolvimento acelerado da Era da Informação, na qual cada um de nós carrega consi go um aparelho leve e pequeno que garante acesso de for ma onipresente a uma quantidade gigantesca de informa ções e serviços. Este aparelhinho não era impensável ape nas nos tempos dos sábios do Talmud, ele também era im pensável há meros dez anos!
A proteção neste contexto deve seguir os princípios do firewall e não o das muralhas de pedra. Ou seja, pela filtragem dos conteúdos através da educação e não pelo isola mento físico. Nossas cercas devem ser erigidas por meio de processos que habilitem as comunidades a tomar decisões judaicas por si só, capacitando-as a olhar através das re gras pragmáticas e entender sobre quais princípios repou sam, a valorizar adequadamente seus conceitos e a ajustar a sua aplicação.
O imobilismo reverente não é, nem nunca foi, uma cerca adequada à Torá.
Raul Cesar Gottlieb é diretor de Devarim, membro do conselho da ARI, vice presidente da WUPJ América Latina e ex chaver da Cha zit Hanoar Rio de Janeiro.
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a s sinagogas
C ario C as na visão de João do r io
O cronista da Belle Époque
Durante aproximadamente um mês, após o carnaval de 1904, João do Rio fez circular entre os assinantes da Gazeta, um dos mais importantes matutinos do período, matérias de caráter informativo nas quais tratava das crenças populares e das organizações religiosas da cidade.
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orna messer levin
Q uem lê os jornais diários poderia imaginar que o Brasil é um país es sencialmente católico ou positivista” anotou em 1905 Paulo Barreto, vulgo João do Rio, na apresentação ao livro As religiões no Rio. En tretanto, completou, a capital do País pulula de religiões. E concluiu: em cada rua há um templo, em cada homem uma crença diferente e ainda ignorada pela maioria. Foi pensando em diminuir o que diagnosticava como sendo um desconhecimento absoluto a respeito da fé religiosa de seus contem porâneos que ele publicou na Gazeta de Notícias, a partir de 22 de fevereiro de 1904, as célebres reportagens mais tarde reunidas no livro com selo da Editora Garnier. Durante aproximadamente um mês, após o carnaval de 1904, João do Rio fez circular entre os assinantes da Gazeta, um dos mais importantes matutinos do período, matérias de caráter informativo nas quais tratava das crenças populares e das organizações religiosas da cidade.
No cabeçalho da Gazeta de Notícias havia sempre uma chamada com as principais manchetes do dia. Ali os editores do jornal lançaram as reporta gens classificando-as como um inquérito. Diariamente uma chamada publici tária anunciava o tema da próxima edição, num claro empenho promocional destinado a atrair os leitores para um assunto até então inédito na imprensa. Não é preciso dizer que as reportagens sobre as religiões fluminenses fizeram um sucesso enorme. As vendas da folha, comercializada a 100 réis, aumenta ram e o nome do jovem Paulo Barreto, que há pouquíssimo tempo tinha ado tado o pseudônimo de João do Rio, ganhou projeção nas rodas literárias e nos cafés do centro. Como consequência, a primeira edição em livro logo se esgo
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tou. A obra ganhou oito tiragens sucessivas, alcançando, por volta de 1910, a soma extraordinária de 8.000 exem plares vendidos. Nesse ano João do Rio também conse guiu realizar o sonho dos bacharéis e ingressou na Acade mia Brasileira de Letras.
Tamanha notoriedade decorria, em parte, do fato dele ter sido o primeiro a realizar incursões nos territórios fre quentados pela parcela menos privilegiada da sociedade, à cata de assuntos para compor suas crônicas. Para escrevê -las, perambulava, vagueando ao estilo do flâneur, por re dutos sinistros, regiões escuras da metrópole, que consti tuíam a contraface da visão luminosa do progresso repu blicano. Algumas dessas reportagens foram reunidas no li vro A alma encantadora das ruas (1908), no qual há retra tos da tragédia diária experimentada por imigrantes, trabalhadores da estiva, operários, ambulantes e marginais. O volume contém registros curiosos do modo de ser e de pensar de um contingente crescente de populares subem pregados, biscateiros e pessoas que sobreviviam atuando em ofícios ilegais, como tatuadores, fumadores de ópio e curandeiros. A existência dessa população carioca repre sentava um mistério para a maioria dos leitores instruídos
que, por isso, buscavam avidamente as informações veicu ladas na imprensa.
João do Rio, partindo da ideia de que a vida social equivaleria a um palco de teatro onde as pessoas desfilam máscaras cotidianas, tentava perseguir os segredos que, a seu ver, se encontravam guardados nos esconderijos mais recônditos das almas. Interrogava trabalhadores e ouvia relatos de gente das ruas, anônimos do bas-fond, tentan do compreender o submundo da contravenção e do cri me. Quanto a isso, compartilhava das noções que nortea vam a linhagem do esteticismo decadentista de Oscar Wil de, autor em quem se espelhou e de quem, aliás, traduziu o livro de ensaios Intenções, o romance O retrato de Dorian Gray e a peça Salomé. Atualmente, João do Rio é apon tado como o pioneiro do jornalismo moderno no Brasil. Suas crônicas contribuíram para a reformulação do exer cício tradicional da profissão, a partir do qual surgiram os princípios da reportagem moderna, que continuam em vigor até hoje. No lugar do escritor recluso das redações, re novou a figura do jornalista, saindo às ruas para colher in loco os dados com que redigia suas matérias.1 Interessou -se pelo estudo dos fenômenos psicossociais, aproximan
João do Rio partia da ideia de que a vida social equivaleria a um palco de teatro onde as pessoas desfilam máscaras cotidianas.
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do-se dos métodos de investigação utilizados à época por médicos e etnógrafos, tais como Nina Rodrigues, autor de Os africa nos no Brasil, que empreenderam pesqui sas de campo inovadoras.2
Na imprensa brasileira reproduzia-se o padrão gráfico e editorial dos jornais franceses. De Paris vinham os tipos gráfi cos, as informações enviadas pelas agên cias telegráficas e os clichês das litogra vuras. Chegou-nos da imprensa parisien se a moda de publicar inquéritos, enque tes e entrevistas com personalidades. João do Rio abriu esse filão entre nós ao pro por a publicação de entrevistas. O primeiro conjunto realizou com diplomatas que opinaram a respeito da questão da imigra ção. Essa consulta, de teor político, ante cedeu o inquérito sobre as religiões publi cado na Gazeta, motivando, por sua vez, uma terceira série com medalhões da in telectualidade brasileira. Publicadas entre março e maio de 1905, as entrevistas com escritores se in titularam Momento Literário. As perguntas enviadas foram feitas por escrito e especulavam a respeito da concorrência entre o jornalismo e a literatura. O assunto causou irrita ção e desconfiança em alguns acadêmicos. Da mesma for ma, causaram confusão as cinco reportagens religiosas da Gazeta que versaram sobre os cultos afro-brasileiros. A divulgação aberta de detalhes da hierarquia sacerdotal e de endereços onde os ritos se realizavam não agradou nem um pouco a comunidade negra, que temia a ação repressiva da polícia. Apesar de a liberdade religiosa estar garantida na Constituição da República, a perseguição a pais-de-santo negros era frequente. Muitos vinham sendo detidos sob a acusação de prática de exploração da credulidade pública.3 Por isso, quiseram identificar quem havia servido de guia e informante a João do Rio.
Ele foi o primeiro a realizar incursões nos territórios frequentados pela parcela menos privilegiada da sociedade, à cata de assuntos para compor suas crônicas.
Para escrevê-las, perambulava, vagueando ao estilo do flâneur, por redutos sinistros, regiões escuras da metrópole, que constituíam a contraface da visão luminosa do progresso republicano.
tores. Em ambas o jornalista visita igrejas, conversa com sacerdotes e desvenda sei tas minoritárias na cidade. Algumas coin cidem, como é o caso da Igreja da Humanidade, que corresponde à Igreja Po sitivista existente no Brasil. A Igreja era frequentada pela família de João do Rio, cujo pai, Alfredo Coelho Barreto, nasci do em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, bacharelou-se em Engenharia pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro onde travou contato com a filosofia de Comte. Milita res e matemáticos como ele, lente no Gi násio Nacional, atual Colégio Pedro II, foram os primeiros entusiastas do pensamento científico que começou a ser divul gado no país em 1864 com o livro Escra vidão no Brasil, do dr. Brandão. Na década de 1880, Ferreira de Araújo iniciou a divulgação nas páginas da Gazeta de Notí cias com a coluna Centro Positivismo. O templo que João do Rio visitou lo calizava-se à Rua Benjamin Constant. Assim como os fi lhos de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, que ainda faziam ali as prédicas dominicais, João do Rio recebera sacramen tos nessa Igreja. O Centro dos positivistas fora o responsá vel pela organização de procissões cívicas e tivera uma in tervenção enorme no início da República. Durante a visi ta de João do Rio, o entrevistado citava exemplos da colaboração dos positivistas na definição da bandeira nacional, na separação entre a Igreja e o Estado e na reforma do Có digo Civil, especificamente no caso da tutela dos filhos. Ao todo, afirmava ele, havia no Brasil 700 filiados, sem con tar os incontáveis simpatizantes.
O Inquérito
Acredita-se que para montar o plano de As religiões no Rio, João do Rio tenha tirado inspiração no inquérito pu blicado por Jules Bois no jornal Le Figaro e editado no vo lume Les petites réligions de Paris, em 1898. Há semelhan ças na concepção geral e nas religiões apresentadas aos lei
Não deixa de ser interessante que João do Rio tenha se interessado em catalogar e descrever atentamente dife rentes dogmas e crenças da população fluminense numa época em que o pensamento científico era tomado como uma espécie de bandeira civilizatória. Familiarizado com a religião católica, afinal recebeu educação teológica no Colégio de São Bento, reduto da elite carioca, e também com a filosofia positiva, por influência do pai, mostrou-se determinado a fazer uma imersão etnográfica pelo universo de outras ortodoxias.4
Depois de visitar pessoalmente os ambientes devocio
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(Continua na p. 34)
Revista Devarim chega à 20a edição
Chegamos ao vigésimo número de Devarim. No conjunto publicamos centenas de textos, em sua grande maioria originais e escritos especialmen te para a revista por pessoas de todas as partes do mundo, mas principalmente do Brasil, com predominância de autores que não escrevem profis sionalmente. Provamos que os judeus do Brasil são intelectualmente ativos, criativos e interessados na vida religiosa moderna e em suas questões.
Mais de meio milhão de palavras foram impressas em Devarim nestes oito anos. Destas, selecionamos as duas mil mais frequentes (eliminando ar tigos e preposições) e criamos, com a ajuda da ferramenta “Wordle”, a nuvem desta página. Nela é possível identificar quais temáticas nos mobili zam. O destaque ficou com a pertinência judaica, tipificada pela palavra “ser” acompanhada pela série de palavras que remetem à nossa identida de: “Israel”, “judeus”, “judaísmo”, “Brasil” e outras. Divirtam se com a análise da nuvem, muitas conclusões podem emanar dela.
nais, recolher informações com membros das seitas, interrogar interlocutores selecionados espontaneamente e mostrar curiosidade pelos depoimentos, redigiu 23 crônicas consideradas pioneiras, seja em razão do tema, seja pelo método ado tado. O caráter histórico e documental dessas crônicas reside na observação cri teriosa de dados acerca dos fundadores, dos líderes em atividade, dos recursos fi nanceiros, dos rituais, da difusão em ou tros Estados da federação, da manuten ção ou não de escolas e publicações, bem como de questões referentes à governan ça das sociedades religiosas. Ainda que se possa verificar certa dose de invenção nas descrições, os textos são essencialmente fiéis ao que existia no Rio de Janeiro no início do século XX.
Era Purim quando João do Rio visitou uma sinagoga acanhada em funcionamento no sobrado simples da Rua d’Alfândega no 303. Pela descrição minuciosa que João do Rio nos oferece é fácil imaginar o ambiente no qual ele ouviu, num misto de fascínio e estranhamento, a leitura da Meguilat Esther e acompanhou os batuques alegres.
No livro, as religiões foram ordena das segundo suas origens e similaridades. No grupo relativo às igrejas evangélicas, subdivididas em seus diversos ramos, João do Rio se ocupou das sociedades presbiterianas, batistas, metodistas e adventistas. Visitou a Igreja Fluminense, fundada em 1858 pelo médico escocês Robert Reid Kalley, que chegou ao Brasil vindo da Ilha da Madeira para pregar o amor a Cristo e esteve na Igre ja Presbiteriana na Rua Silva Jardim no 15, que havia sido fundada em 1861 por missionários americanos. Ao contrá rio da Igreja Fluminense, enfatizou, a propagação dos pu ritanos contou com recursos transferidos do exterior. Por esse motivo, a Igreja Presbiteriana já possuía um salão es paçoso e reluzente, no qual cabiam 800 pessoas. Na Igre ja Metodista da Praça José de Alencar, João do Rio pôde assistir a uma cerimônia de casamento. Esclareceu que se tratava de um desdobramento da Igreja Episcopal, cujas atividades se iniciaram 27 antes em uma pequena casa da Rua do Catete. Outro ramo da Igreja protestante ameri cana que se instalou no Brasil em 1884 aparece represen tado no templo Batista, situado à Rua Santana. Destaca-se ainda a visita à Associação Cristã de Moços.
Ao lado das Igrejas oficialmente estabelecidas, João do Rio identificou um grupo de cultos diabólicos menos vi síveis. Nesse elenco incluiu o satanismo, a missa negra e o exorcismo como práticas recorrentes de louvor a satã. Tão
surpreendentes quanto estas lhe parece ram as assim chamadas “sacerdotisas do futuro”, isto é, feiticeiras, videntes, car tomantes, quiromantes, grafólogas e bruxas que compunham um mundo exóti co de profissionais da sorte. Afirmava ter visitado mais de 80 estabelecimentos da quele tipo de exploração do futuro onde se garantia predizer a sorte dos ricos. Fa zendo-se de oráculos, prometiam curar, salvar, trazer fortuna ou desfazer desgra ças. No entender do cronista, as sacerdo tisas tomavam conta dos bairros e infesta vam a cidade enganando os fiéis ignoran tes com consultas falsas. Citava a Casa de Cartomancia na Rua do Ouvidor, a Ce guinha vidente da Rua da Misericórdia, Rosa, que olhava na água e se dizia astróloga atuando numa rua paralela à praia de Botafogo, uma corcundinha instalada na Rua General Câmara e uma tal M.me Ma thilde na Rua do Catete.
Se na sociedade mais baixa João do Rio havia encon trado essa centena de mulheres que classificou como “tra ficantes”, pois, na sua opinião, enganavam a credulidade dos ignorantes com uma inconsciente mistura de feitiçaria e catolicismo, entre a gente mais educada constatou, com certa perplexidade, a existência de um número talvez até maior de salas de espiritismo, onde se realizavam estudos do fenômeno psíquico e de adivinhação do futuro “com um ar superiormente convencido”. Verificou que a fede ração espírita tinha 800 sócios e, em 1903, havia expedi do 8.000 receitas de curas mediúnicas, além de manter a publicação de 19 jornais no Brasil.
No grupo das correntes religiosas de origem africana, João do Rio revelou aos leitores da Gazeta de Notícias as práticas de feitiçaria e os rituais de possessão de ex-escravos ligados ao candomblé. Percorreu terreiros e casas na Cida de Nova, Gamboa, Santo Cristo e nas redondezas da Pra ça Tiradentes para encontrar remanescentes africanos, os quais, segundo relatou, se dividiam em três categorias: os alufás ou malês, maometanos habilitados na leitura do Al corão, originários das etnias haussá e iorubá que seguiam os rituais da fé, não comendo porco e jejuando 40 dias no Ramadã; os orixás pertencentes às etnias gêge e iorubá, que
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tinham uma hierarquia complexa de divindades misturadas às santidades do catolicismo, correspondente hoje ao candomblé; e os cabindas, que pertenciam às pequenas na ções no interior da África, dos quais restaram uns mil ne gros seguidores da macumba.
Na vertente semita receberam destaque os judeus e os maronitas. Estes últimos eram descendentes dos Aramilos, filhos de Aram. Sua capela ainda se encontrava em cons trução, em um terreno na Rua Senhor dos Passos, uma vez que a Irmandade havia sido fundada apenas em 1900. En quanto a edificação não era inaugurada, os cristãos sírios celebravam as missas nos bairros da Saúde e Cascadura. De acordo com João do Rio, havia no Rio cerca de cinco mil maronitas, embora no Brasil eles chegassem a 50 mil. Qua se sempre os maronitas eram confundidos com os turcos, porque não dominavam direito o português e trabalhavam no comércio da Rua da Alfândega e dos subúrbios, mes mo quando possuíam instrução superior. Havia, segundo João do Rio, médicos, jornalistas e doutores no comércio. A imagem positiva dos maronitas, segundo se depreende
em seu relato, resultava do fato de serem os cristãos sírios hábeis nos negócios e pacifistas.
Pelas sinagogas
Era Purim quando João do Rio visitou uma sinagoga acanhada em funcionamento no sobrado simples da Rua d´Alfândega no 303. Uma parte dessa casa despojada de luxo servia de moradia para o hazan Moisés e sua espo sa. Na sala de jantar, o hazan, que tinha feições espanho las, pusera ornamentos representando as 12 tribos de Judá. Na sala da frente, onde funcionava a sinagoga, as paredes eram limpas, só de tábuas de madeira, tendo ao fundo a arca, com cortina de seda, onde se guardava o livro sagra do. O hazan se posicionava sobre o altar de vinhático en vernizado para fazer a leitura e cantar.
Pela descrição minuciosa que João do Rio nos oferece é fácil imaginar o ambiente no qual ele ouviu, num mis to de fascínio e estranhamento, a leitura da Meguilat Es ther e acompanhou os batuques alegres. Do teto do salão, segundo suas indicações, pendiam “em correntes brancas
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De acordo com João do Rio havia no Rio de Janeiro cerca de cinco mil maronitas, confundidos com os turcos.
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grandes vasos de vidro, cheios de água, onde lamparinas colossais queimavam, crepitando”. Sobre o altar, “um lus tre de cristal chispava luzes em múltiplos pingentes”, crian do uma atmosfera de sonho estranho e fantasia.
Foi nessa sinagoga indicada por um negro falasha que ele presenciou, no dia 14 de Hadar de 5664, as comemo rações festivas do “carnaval nas sinagogas da Sion flumi nense”, conforme sua expressão. Os divertimentos e as ale grias que Mardocheu (Mordechai) determinou ao triunfar sobre Aman foram celebrados ali com satisfação por cerca de quatro mil judeus. Os perfis morenos indicam a descen dência espanhola e árabe dos presentes que estavam, diz o cronista, vestidos “à moda hebraica”, com túnicas e alper catas mostrando os pés. Os homens usavam chapéus e as mulheres portavam lenços.
Na estatística de João do Rio havia no Rio dez mil ju deus festejando a maravilhosa influência da linda Esther sobre o reinado de Assuero, cujo poder se prolongava da Índia até a Etiópia. Esses dez mil judeus divertiram-se, tro caram presentes, cantaram, beberam e ouviram mais uma vez a narrativa exemplar de Purim conduzida pelos hazanim nas várias sinagogas abertas. Nem todos, alertava o cronista, podiam festejar com alegria na alma. Em suas in vestigações, João do Rio pôde verificar dentro da comunidade distinções que atribuía ao nível econômico das famí lias ou às tradições culturais de origem.
Reconhecia a presença de diferentes segmentos sociais, apontando israelitas franceses, russos, ingleses, turcos, marroquinos e árabes. Incorrendo em alguns enganos in
terpretou de forma equivocada o que supunha ser uma di visão de seitas entre os asquenazis, comuns na Rússia e na Alemanha, os falashas da África, os Rabanitas e os Caraítas. Sua preocupação, no entanto, parece ter sido a de mostrar os contrastes entre as classes sociais dentro da comunida de israelita do Rio. Como de hábito, procurava vasculhar os subterrâneos da fé, tentando jogar luz também sobre a parte “exótica” dos seguidores de Israel, para compreender a psicologia da gente com vida precária.
De um lado, João do Rio enfatizou a riqueza dos ju deus ligados ao comércio de luxo, joalheiros que domi navam na cidade a arte dos brilhantes ou investidores da bolsa de valores, negociantes, em geral, ingleses, franceses e alemães. Esses cavaleiros de vida mundana veraneavam em Petrópolis e frequentavam as altas rodas da sociedade carioca, resguardando-se com absoluta discrição. Uns, de acordo com o cronista, praticavam o culto íntimo, outros não precisavam de hazan porque faziam juntos apenas as duas grandes celebrações do calendário anual: Iom Kipur e Rosh Ha Shaná. Com uma ponta de indignação provocati va, João do Rio adicionou o comentário de que os judeus ricos do Rio não tinham ligações com os humildes, nem os protegiam, como em Paris e Londres faziam os banquei ros Hirsch e Rottschild. Tampouco se preocupavam muito com a construção de sinagogas, estabelecendo-as em salas de prédios do centro.
Um outro grupo numeroso era formado, segundo o cronista, por judeus armênios e marroquinos que chega ram ao Brasil em levas recentes de imigração. Os judeus
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Nas estatísticas de João do Rio havia no Rio de Janeiro dez mil judeus de diferentes segmentos sociais.
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árabes, na visão do cronista, vieram sem recursos, quase miseráveis, mas estavam prosperando. Começaram a vida como camelôs, ambulantes e empregados de lojas no centro, ao lado dos maronitas, dos turcos maometa nos e dos gregos.
Outra parcela numericamente significativa era aque la constituída pela gente ambígua, que morava no centro onde, sob a ótica higienista do repórter, “vicejavam os ví cios”. João do Rio refere-se nesse particular às pensões si tuadas no triângulo central demarcado pela Praça Tira dentes e as Ruas do Núncio, Sete de Setembro, Luís de Camões, Senhor dos Passos, Tobias Barreto, Espírito San to e as transversais da Rua Conceição. A região era habi tada por gente simples e barulhenta, mulheres subjugadas pelos maridos e cáftens que obrigavam moças a entrar no meretrício.
O que se torna interessante é que João do Rio informa haver nessas pensões baratas e sujas uma sala ocupada por modista e outra destinada à sinagoga. As mulheres eram em maioria. Tinham desembarcado no Rio vindas de Mar selha, da Rússia e de Buenos Aires. A impressão deixada no repórter é de que essas moças faziam questão de se declarar judias e guardavam a fé. No Dia do Perdão, os prostíbulos se fechavam, pois todas faziam jejum e orações. Da mes ma maneira, em Purim, as sinagogas ambulantes funcio navam animando e alegrando as pensões com as cantorias.
Contrastando com essa visão um tanto repulsiva do segmento mais baixo da comunidade, João do Rio fez questão de ressaltar que as levas migratórias de israelitas também fizeram vir ao Brasil homens cultos e inteligen tes. Para ilustrar isso, destacou a visita à sinagoga da Rua Luís de Camões. Ali encontrou o hazan David Hornstein, um professor poliglota, correspondente de jornais hebrai cos e rabino diplomado pela Universidade Talmúdica. An tes de vir ao Brasil o hazan vivera na Palestina, na históri ca colônia que o barão Rottschild instalou em Rishon Le Tzion. Quando ocorreu a sublevação dos colonos, o barão decidiu eliminar o projeto, levando à dispersão dos revol tosos, dentre os quais havia russos niilistas, pelo que cons ta na crônica de João do Rio. Alguns ex-colonos, como o rabino David, seguiram seu caminho na direção de Beiru te, depois Paris e Brasil.
Naquela sinagoga, João do Rio acompanhou a leitura dos rolos da Torá e as bênçãos do hazan. Em suas anota ções registrou que o rabino Hornstein já havia oficializado
cerimônias de descoberta de 150 sepulturas, cerca de 700 circuncisões, diversos casamentos e conciliações. Sua im pressão sobre a figura sóbria e solene daquele culto sacer dote era bastante positiva e contrastava, sem dúvida, com o perfil das damas de “vida airada”.
A essa altura, vale a pena reiterar o caráter informativo das observações de João do Rio sobre a comunidade judaica carioca no alvorecer do século XX. Convém situá-las no conjunto de reportagens cujo intuito era transmitir aos lei tores informações obtidas por intermédio de informantes e membros das associações religiosas. É notável o deslum bramento que o cronista da nossa Belle Époque demonstra diante da perspectiva histórica daquelas riquíssimas heran ças judaicas. Tal é o fascínio de João do Rio que, ao des crever a festa de Purim, ele cria a sensação de que a leitura da meguilá conseguia impregnar os ouvintes, confundin do passado e presente.
Escritor habilidoso, João do Rio soube manipular esti listicamente a descrição da festividade antiga fazendo com que seus leitores imaginassem que “daquele livro sagrado, entre aquelas iluminações, emanava a suprema delícia; era como se cada palavra recordasse os banquetes dados aos príncipes nos átrios do palácio decorado da cor do céu, da cor do jacinto e da cor da açucena; era como se cada período abrisse a visão das colunas de mármore, dos lei tos de prata e ouro e dos pavimentos embutidos, onde es meraldas rolavam...”
E, por fim, como quem sabe controlar os efeitos ine briantes, arrematou ponderando: “Nós estávamos apenas numa sala estreita que fingia de sinagoga, no fim da Rua da Alfândega”.
Notas
1. Marcelo Magalhães Bulhões – Literatura e jornalismo em convergência. São Paulo: Ed. Ática, 2007.
2. João Carlos Rodrigues. João do Rio – Uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
3. João Carlos Rodrigues. op.cit., p.52.
4. Julia O’Donnell. De olho na rua, a cidade de João do Rio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
Orna Messer Levin é professora do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL – Unicamp), autora de As figurações do Dandi – um estudo sobre a obra de João do Rio (Campinas, Uni camp, 1996) e organizadora de Teatro de João do Rio. Coleção Dramaturgos do Brasil (S.P., Martins Fontes, 2002).
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u m ol H ar de edu C adores sobre dilemas e questões da e du C ação Judai C a
rafael bronz e anita goldberg
Acompanhamos, com bastante atenção, o texto da penúltima edição da Devarim, intitulado “Dilemas e Questões da Educação Judaico -Sionista no Rio de Janeiro”, de autoria de Michel Gherman, sobre a educação judaica em nossa cidade. Notamos, também, em outros fóruns de debate, críticas parecidas às encontradas no artigo. Certos de que to das as críticas são bem-vindas quando ajudam a refletir sobre o nosso trabalho educativo e de que o debate público em torno desse tema é de fundamental im portância para o crescimento da nossa comunidade, gostaríamos de contribuir para a questão oferecendo a visão de quem convive diariamente com o tema em uma instituição educativa judaica.
As críticas à educação judaica aparecem basicamente em dois sentidos:
O ensino judaico centraliza a construção da identidade judaica do aluno através da vitimização do povo judeu ao longo da História, ocupando a Shoá um lugar central nessa formação, consolidando tal postura com a viagem à Marcha da Vida.
Israel raramente é questionado por suas posturas. Ou seja, há uma relação acrítica com o Estado Judaico.
Educação Judaica: um olhar atual Concordamos que os posicionamentos destacados acima não respondem às necessidades de hoje. Por esse motivo, neste artigo, consideramos de funda mental importância recolocar essas questões, tendo em vista o que vem sendo pensado, e feito, atualmente na instituição em que trabalhamos.
Durante muito tempo o tema do Holocausto ficou silenciado nos âmbitos familiares. Chegando às escolas, o ensino do Holocausto, assim como de uma ampla gama de temas judaicos, faz parte do currículo. Não podemos, e não devemos, fugir.
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Para compreendermos melhor essas duas visões, precisamos entender a raiz dessas construções ideológicas e olhar para a nossa comunidade de algumas ge rações atrás. Ao elaborarmos um proje to educativo, é premente sabermos quem somos hoje, e refletirmos sobre qual lugar pretendemos ocupar em nossa sociedade.
A escola, como uma agente da educa ção judaica, está inserida em um contexto histórico e sociológico específico, e ambos os posicionamentos acima refletem uma comunidade de imigrantes perseguidos e obrigados a fugir de seus países. O con texto global nos mostrava Israel buscando a sua sobrevivência, lutando claramente contra inimigos que queriam destruí-lo. De fato, ainda hoje ecoam fortes vozes no mundo com este intuito. Nesse sen tido, a construção ideológica apresenta da nos parece até mesmo coerente com o momento histórico vivido por aquela geração.
A Shoá, para nós, não é uma questão somente judaica, mas humanitária. Temos trabalhado uma visão desse evento histórico como uma importante reflexão não de “volta a Auschwitz”, mas sim de “distanciamento a Auschwitz”. O que devemos fazer para que a intolerância seja questionada nas diversas formas que se manifesta em nossa sociedade?
Começamos por entender, portanto, a questão do Ho locausto, sob um ponto de vista mais atual. Durante mui to tempo esse tema ficou silenciado nos âmbitos familia res. A figura do israelense, que defende o seu país, se for mou como uma resposta aos judeus europeus vítimas do Holocausto. O silêncio foi quebrado quando os sobrevi ventes iniciaram seus relatos a seus netos e bisnetos, que, hoje, são os nossos alunos, ou seus pais. Os campos polo neses se abriram a eles.
Chegando às escolas, o ensino do Holocausto, assim como de uma ampla gama de temas judaicos, faz parte do currículo, que, naturalmente, é selecionado como temáti ca a ser estudada. Não podemos, e não devemos, fugir. Do ponto de vista pedagógico, tudo o que envolve essa parte da História desperta grande interesse no aluno, que, como não poderia deixar de ser, trata o assunto com muito res peito. Em experiências recentes que tivemos em institui ções não judaicas, observamos que tal tema emociona a to dos, despertando olhos atentos e atenção redobrada. Vale lembrar que nossos alunos são a última geração que conhe cerá pessoalmente os sobreviventes, e isso representa para suas vidas uma relevante responsabilidade.
O contexto citado acima não faz do Holocausto (ou o
que ele representa como vitimização do povo judeu) ponto central da construção de identidade de nossos alunos, mas exi ge grande capacidade criativa e pedagó gica para equilibrar o peso que é dado a esta temática em comparação com as de mais matérias.
A Shoá, para nós, não é uma questão somente judaica, mas sim uma questão humanitária. Temos trabalhado uma visão desse evento histórico como uma im portante reflexão não de “volta a Aus chwitz”, mas sim de “distanciamento a Auschwitz”. O que devemos fazer para que a intolerância seja questionada nas diversas formas que se manifesta em nos sa sociedade? O ensino contextualizando historicamente o tema, e refletindo sob o legado para a sociedade atual, é importan te ferramenta para que nossos alunos en tendam o momento estudado não apenas sob o aspecto emocional.
Nossa recente iniciativa em levar à Marcha da Vida dois alunos do Colégio Santo Inácio (escola católica tradicional no Rio de Janeiro) reflete o caráter universal de nossa relação com o assunto. Assim sendo, cabe ressaltar que essa proposta não é um ato isolado, mas fruto de um trabalho realizado há mais de seis anos com a instituição parceira, sob a bandeira de um constante “diálogo inter cultural”. A questão deste diálogo ganha aspecto mais im portante em nosso trabalho, uma vez que não restringi mos essa prática aos nossos colegas cristãos, pois abrimos as portas de nossa escola, algumas vezes ao ano, a um cole ga muçulmano que vem trazer sua cultura e dialogar com nossos alunos.
Do ponto de vista da visão, e do relacionamento com Israel, alvo da segunda crítica feita ao ensino da área ju daica, estamos imersos no dilema entre conversar sobre os erros de Israel sem tornarmo-nos parte do coro de in compreensão mundial que se reflete em todas as mídias da atualidade. Essa tarefa não é fácil. Despertar o amor por Is rael é parte de nossa proposta, debater sobre seus dilemas e problemas também. Não são dois objetivos antagônicos. Uma pergunta também cabe aqui: a comunidade está pre parada para encarar as críticas a Israel?
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Reformas educativas: tempo de mudanças
Temos adotado uma postura de transformação curri cular em nosso ambiente educacional há bastante tempo. Acreditamos na ideia de um “judaísmo cultural”, que pro move a possibilidade de diversas portas de identificação e áreas de interesse em relação ao judaísmo. O “Projeto Maf teach” (mafteach quer dizer chave em hebraico), do Ensino Médio, que já existe há dez anos, segue essa lógica, possi bilitando ao aluno o direito de escolha entre 22 diferentes módulos ao longo de dois anos de estudo.
O projeto já despertou o interesse de diversas institui ções, como a Universidade de Jerusalém, bem como de outras escolas judaicas da América Latina, como pude mos observar em eventos que participamos (veja a tabe la dos módulos oferecidos). Atualmente, nossa equipe de professores continua trabalhando na reformulação do pro jeto de História Judaica do Ensino Fundamental II, bus cando preencher as lacunas percebidas na matriz curricu lar judaica.
Seguindo uma linha pedagógica voltada para uma edu cação de valores éticos e morais, temos trabalhado a área judaica como referência em projetos de cunho social. O “Projeto Dorot” (gerações em hebraico), realizado há 12 anos, leva os ensinamentos judaicos para fora do âmbi to da sala de aula, reforçando o judaísmo como parte de nossas vidas cotidianas. Com este e outros projetos, nos sos alunos podem entender melhor conceitos como Bikur Cholim, Guemilut Chassadim, Tzedaká, Tikun Olam, etc.
Parte de nossa missão como instituição educativa judai ca é formar futuros líderes comunitários que poderão de senvolver suas atividades norteados por uma postura ética e moral perante a comunidade, e seu entorno.
Entendemos que as fontes judaicas possuem caráter atemporal de forma que podem e devem estar em constan te diálogo com a contemporaneidade. Recentemente, te mos elaborado a construção de um eixo judaico/transver sal em referência à questão dos temas transversais na educação, assunto de grande importância no contexto educa tivo. Assim, promovemos uma aproximação do “conheci mento acadêmico” com o “conhecimento vulgar” (cotidia no), ou, na linguagem específica, tornar o ensino judaico mais relevante e significativo aos olhos de nossos alunos, sem perder sua autenticidade. Judaísmo e Temas Transver sais se fundem reforçando as duas mensagens. Nada mais atual, mas esse já é assunto para outro artigo.
Temos consciência de que toda mudança em educação demanda tempo e de que é possível ainda encontrarmos resquícios das críticas levantadas no início do texto. As mudanças, muitas vezes, são geracionais, como no exem plo de Moshé na História do êxodo do Egito. Nosso aluno
DISCIPLINAS OFERECIDAS NO PROJETO MAFTEACH DA ÁREA JUDAICA DO ENSINO MÉDIO
1º ANO
Amor no Tanach Cabala
As Histórias mais polêmicas da Torá Conflito árabe israelense Cantando e Contando Israel Diálogo Inter religioso Conflito árabe israelense Filósofos Judeus
Introdução ao Talmud Humor Judaico
Ivrit be Ivrit Iediot Achronot (atualidades)
Judeus Notáveis
Resistência Judaica
Shoá
Sociedade Israelense
Tikun Olam
2º ANO
Ivrit be Ivrit
Judaísmo e Dilemas Modernos
Judaísmo e Meio Ambiente
Sionismo Judeus no Brasil
Literatura Judaica
Preparação para a Marcha da Vida (assistência aos enfermos, assistência social, justiça social, reparação do mundo, etc.). Em âmbito institucional, es tamos expandindo nossas atividades voluntárias na socie dade como um todo, sendo este caminho conduzido me diante lideranças da área judaica, o que reforça a concep ção de um judaísmo vivo, atuante e moderno.
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de hoje não aceita com passividade qualquer tipo de argumento, pois traz consi go as referências encontradas na “era da informação” em que vivemos.
Em suma, apesar de concordar com as reservas feitas sobre as linhas ideológicas e pedagógicas apresentadas no artigo citado no início de nosso texto, com certeza não nos vemos reproduzindo, em nossa esco la, essa linha de trabalho. Ao contrário, estamos conscientes de nosso direciona mento, e gostaríamos de dividir essas re flexões com a comunidade, que, muitas vezes, critica suas instituições por falta de informação.
No caso específico de todas as escolas judaicas, deveríamos olhar para elas como
Seguindo uma linha pedagógica voltada para uma educação de valores éticos e morais, temos trabalhado a área judaica como referência em projetos de cunho social. O “Projeto Dorot” leva os ensinamentos judaicos para fora do âmbito da sala de aula, reforçando o judaísmo como parte de nossas vidas cotidianas.
um patrimônio especial de nossa comuni dade, uma vez que, há décadas, elas vêm nos oferecendo um serviço não só de or dem judaica e acadêmica, mas também de formação geral, muito respeitado no meio educativo. Nossas instituições deveriam ser mais valorizadas por nós mesmos.
Na qualidade de profissionais ativos em educação judaica, convidamos histo riadores, filósofos, sociólogos, jornalistas, a visitar as nossas instituições, para que sejamos parceiros no desenvolvimento de nosso trabalho.
Rafael Bronz e Anita Goldberg são coordena dores da Área Judaica do Colégio Israelita Bra sileiro A. Liessin Scholem Aleichem.
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adversus iudaeos i sidoro de s evil H a
“Não há documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie” – Walter Benjamin, Teses sobre filosofia da história - VII
Os historiadores do antissemitismo moderno, que grassou na Europa a partir da segunda metade do século XIX e atingiu sua culminância com o advento da barbárie nazista, costumam contrastá-lo com o an tissemitismo religioso, em voga desde o período patrístico, que avan çou pela Idade Média e se estendeu até o início da Idade Moderna; enquanto aquele tem caráter racial, este se caracterizaria por sua natureza religiosa.
A Península Ibérica, no início do domínio visigodo1, adotava a variante ária do cristianismo2, e a situação dos judeus era considerada relativamente benévo la; na Alta Idade Média, porém, os monarcas converteram-se à variante católi ca, o que criou sérios problemas internos para o estado, fraco e pouco centra lizado, pois a nobreza não aderiu muito prontamente a esta mudança, exigin do fortes esforços da realeza em prol da construção de uma identidade nacio nal e religiosa que resultasse em unidade; estes esforços construíram um clima muito desfavorável para os judeus, que foi aliviado pela conquista muçulmana, mas acabou retornando e atingindo sua culminância com a expulsão em 1492.
Em meio a um processo de lutas internas e de reformulações ideológicas, como explicam Eva Castro Caridad e Francisco Peña Fernández, a comunida de judaica hispânica dos séculos VI e VII foi vítima expiatória de um desejo de consolidação da monarquia ao redor do catolicismo, configurando um capítu lo de especial radicalização da identidade cristã que teve efeito imediato e dra mático sobre a comunidade judaica.
O antissemitismo religioso, que em São Paulo e nos padres da Igreja tinha caráter “defensivo”, buscando diferenciar o cristianismo do judaísmo e permitir-lhe sobreviver à animosidade do Império Romano, passa a servir a partir da Alta Idade Média aos interesses do estado na construção de uma identidade nacional. Paisagens e construções da cidade de Sevilha, Espanha, ilustram este artigo.
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O espaço dedicado pelos historiadores ao exame das condições de vida dos judeus na Espanha, no período an terior à invasão árabe, em 711, é muito pequeno, compa rado com o que recebem os quase oito séculos cobertos pe los períodos árabe e cristão subsequentes, que se estendem até 1492. Existem fontes especializadas no período dos vi sigodos3, mas nos textos de maior circulação as informa ções são escassas.
Colhendo dados esparsos, aqui e ali, verifica-se que em 589, no III Concílio de Toledo, o rei Recaredo (586-601) se converteu ao catolicismo e foram adotadas severas me didas antijudaicas4; em 613, o rei Sisebuto (612-621) exigiu que todos os judeus da Espanha aceitassem o batismo, num sinistro prenúncio da tragédia que recairia sobre o ju daísmo espanhol oito séculos depois, forçando muitos judeus ao que no século XV viria a ser denominado “marra nismo”, ou seja, conversões fictícias, enquanto o judaísmo continuava a ser professado às ocultas.
A situação se agravou sob Recesvinto, que governou de 653 a 672, e chegou a seu clímax em 695, no XVII Concí lio de Toledo, quando o rei Égica (687-702) acusou os ju deus de conspiração contra a coroa e foram aprovadas leis
que ordenavam o confisco de todos os bens judeus, a se paração dos filhos de seus pais, para que fossem educados na religião cristã, e a proibição da prática de suas crenças, tornando a situação desesperadora5.
Ainda que não tenha existido uma linha exata de pro gressão nas medidas dos reis visigodos católicos contra os judeus, em geral houve uma tendência constante e clara mente ascendente, que se radicalizou no início do século VIII e nos momentos próximos ao desaparecimento da he gemonia goda na península.
Praticamente nada, porém, é dito do trabalho intelec tual, do desenvolvimento das concepções antijudaicas no plano ideológico6. O antissemitismo religioso, desde São Paulo, suscitou o aparecimento de uma ampla literatura, conhecida genericamente como Adversus Iudaeos; assim, podem-se citar, entre outros, Adversus Iudaeos (escrito em 198), de Tertuliano; Ad Quirinum (247), de Cipriano de Cartago; Tractatus Adversus Iudaeos (428), de Agostinho de Hipona; De fide catholica ex ueteri et nouo testamento contra Iudaeos (614-615), Allegoriae quaedam sacrae scrip turae (~630) e Questiones adversus Iudaeos et ceteros infide les seu quos libet haereticos iudaizantes (data incerta) de Isi
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doro de Sevilha. Deu origem, também, às célebres disputas entre autoridades católi cas e sábios judeus em torno do Talmud7, que frequentemente resultaram na quei ma pública de exemplares dessa obra. De fato, as violências que resultam das deci sões de governantes, de detentores de car gos eclesiásticos ou de massas incontrola das se amparam, inspiram e apoiam em uma extensa tradição intelectual cristã.
Antijudaísmo e questões políticas
O objetivo deste artigo é o de oferecer uma exposição preliminar, tornar um pouco mais conhecidos os funda mentos dessa literatura antijudaica de cunho religioso e seus vínculos com as questões políticas da época em que foram compostas, a partir, principalmente, da obra de Isi doro de Sevilha.
Santo Isidoro (560-636), bispo de Sevilha a partir do ano 600, é tido como um dos maiores pensadores de sua época. Teólogo, matemático, foi canonizado em 1598 e declarado Doutor da Igreja em 1722. Sua obra principal, Etimologias, é uma verdadeira enciclopédia do conheci mento de sua época; compõe-se de 20 livros, cada um elucidando as etimologias das palavras de um determina do campo do saber. A importância e abrangência desta obra, verdadeiro banco de dados, valeram-lhe a indicação para santo protetor dos usuários da internet. Exerceu for te influência sobre todos os intelectuais católicos que vieram depois dele, até o século XV, como Tomás de Aquino.
Membro de uma família influente, Isidoro teve parti cipação crucial, juntamente com seu irmão Leandro, nas manobras político-religiosas que levaram à conversão dos reis visigodos ao catolicismo. Sua irmã Teodora foi rainha da Espanha visigoda por seu casamento com o rei Leovi gildo; assim, Isidoro era tio de Recaredo, o rei que se con verteu ao catolicismo. Isidoro foi, também, um dos mais importantes polemistas antijudaicos da Alta Idade Média.
Em 2012, sua principal obra neste gênero, De fide ca tholica ex ueteri et nouo testamento contra Iudaeos8 (escrita por volta de 614-615), foi pela primeira vez traduzida para uma língua moderna, o espanhol, permitindo sua circu lação fora do âmbito estrito dos especialistas em literatura latina medieval e teologia. Aqui, faço amplo uso da “Intro dução” elaborada pelos tradutores da publicação.
O elemento comum a toda literatura Adversus Iudaeos, e também à de Isi doro, é a explicação cristológica do An tigo Testamento. O cristianismo, que se apresenta como o novo Verus Israel e co loca a Cristo como chave interpretativa de uma tradição baseada na exegese ale górica e tipológica9, somente consegui rá ver-se a si mesmo e definir-se como uma religião homogênea quando se en frentar e opuser “àquela fé que os judeus se negam a aceitar”.
Trata-se, portanto, como informa Isidoro, de ler o An tigo Testamento para lá encontrar profecias sobre Jesus, com o objetivo de afiançar a graça da fé sob a autoridade dos profetas, bem como provar a ignorância dos judeus in fiéis. Sua obra somente começou a ser deixada de lado no século XV, no momento em que os polemistas cristãos co meçaram a tomar em consideração o Talmud e a literatu ra rabínica, textos completamente desconhecidos por ele.
Note-se também que, ao restringir-se a citações escri turais, Isidoro assume uma tradição exegética fundada so bre um desconhecimento consciente do “outro”10 sobre o qual a autoridade religiosa está refletindo para afiançar e individualizar o cristianismo. As afirmações e descri ções de Isidoro sobre o judaísmo, em consequência, incidem sobre concepções errôneas e não respondem nem ao judaísmo contemporâneo do bispo nem a qualquer ju daísmo anterior.
O antissemitismo religioso, desde São Paulo, suscitou o aparecimento de uma ampla literatura, conhecida genericamente como Adversus Iudaeos.
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Os textos polêmicos cristãos contra os judeus, como o De fide catholica de Isidoro, geralmente se organizaram em torno de quatro pontos (apenas para ilustrar, incluo alguns exemplos tirados de De fide, em tradução minha do espanhol):
1) a caducidade da lei mosaica, que se põe de manifes to pela inferioridade da lei e do culto judaicos, razão pela qual se criticam práticas judaicas como a circuncisão, o sá bado, o calendário lunar, a dependência cósmica da litur gia judaica, as festas, o jejum, as regras de alimentação, os sacrifícios e o Templo.
“Nesta obra, venerável irmã”, diz Isidoro no proêmio do livro 2, “poderás compreender em poucas palavras quantas coisas auguraram as vozes dos profetas a respeito da decadência do povo judeu e de suas cerimônias, e quan tas se entoaram em louvor do povo do Novo Testamento”.
A caducidade da lei mosaica, segundo Isidoro, pode ser mostrada em diversas profecias; por exemplo, a de Je remias: “Eis que vem o tempo, diz o Senhor, em que farei uma nova aliança com a casa de Israel e a casa de Judá, não um segundo pacto, como o que contraí com vossos pais quando os tomei pela mão para tirá-los da terra do Egito,
pacto que eles invalidaram e eu tive que exercer meu do mínio sobre eles, diz o Senhor. Mas este é o pacto que fa rei com a casa de Israel, diz o Senhor: Imprimirei minha lei em suas entranhas e a gravarei em seus corações (Jer. 31,31-33)”. Pois as promessas do Antigo Testamento [de natureza carnal], “excetuados os sentidos sagrados, são de caráter temporal [e, portanto, podem ser revogados]; ou seja, o sábado, a circuncisão, a multiplicidade de ritos sa crificiais, a observância de alimentos e as cerimônias diá rias” (lv. 2, cap. 14,4-5). “A circuncisão é interior, não um corte na carne, mas uma limpeza de coração. E o sábado é interior, não porque não se trabalhe, mas porque não se cometem pecados” (lv. 2, cap. 14,6).
2) A rejeição dos judeus e a eleição dos gentios, que se convertem no verdadeiro Israel, o que se expressa median te a análise da transferência da Aliança.
Para afirmar essa transferência, Isidoro se vale, entre muitas outras, da profecia de Jeremias: “Quem me dará na solidão uma pousada de viajantes? Abandonarei meu povo e me apartarei deles porque são todos adúlteros, reunião de prevaricadores, e estendem sua língua como se fosse seu arco para disparar mentiras e não verdades (Jer. 9,2-3)”,
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explicando que “esta é a voz de Cristo, o qual, após abandonar o povo dos judeus, construiu na solidão uma pousada para os gentios, ou seja, a Igreja, na qual se reuni rão os errantes”; e também da profecia de Malaquias: “Meu afeto já não é para vós, diz o Senhor dos Exércitos, nem aceita rei de vossa mão qualquer oferenda; des de o oriente até o poente é grande o meu nome entre os gentios (Mal. 1,10)”, para concluir que “Deus esteve antes com eles, mas depois foram excluídos devido aos pecados cometidos, então o Redentor do mundo se dirigiu ao povo dos gentios” (lv. 2, cap. 7,2-3).
Isidoro assume uma tradição exegética fundada sobre um desconhecimento consciente do “outro” sobre o qual a autoridade religiosa está refletindo para afiançar e individualizar o cristianismo.
3) O messianismo de Jesus, o que explica o tema da interpretação do Antigo Testamento a partir de uma exegese cristológica espiritual e messiânica e que se manifesta me diante a exposição de temas como a angelologia, a leitu ra alegórica, a preexistência do Filho e as mitsvot (“manda mentos”) como castigo de Israel.
No livro 1, cap. 1,4, por exemplo, Isidoro diz que “Sa lomão, enquanto procurava conhecer o nome do Pai e o mistério da natividade de Cristo segundo sua divinda de, canta com estas palavras em Provérbios dizendo assim: ‘Quem subiu ao céu e desceu? Quem amarrou as águas como em um manto? Quem assentou todos os confins da terra? Qual é o seu nome e qual o nome de seu filho, se o sabes? (Prov. 30,4)’”. E, após mais alguns exemplos, con clui (lv. 1, cap. 1,8): “Por meio de todos estes testemunhos o infiel se vê obrigado a escolher entre estas duas posturas: ou crer que Cristo é Filho de Deus, ou pensar que os pro fetas, que fizeram estes vaticínios, são mentirosos”.
4) as consequências negativas que sofre o povo judeu, devido à culpabilidade dos judeus na paixão de Jesus, a re pressão romana, sinal da reprovação divina, a hostilidade contra os cristãos, a falsificação das Escrituras ou as sei tas judaicas.
Assim, no livro 1, cap. 5, 8, Isidoro utiliza a profecia de Daniel “E se tirará a vida ao Cristo [ao Messias] e um povo junto com seu caudilho virá e destruirá a cidade e o san tuário, e seu fim será a devastação, e após o final da guer ra ficará estabelecida a desolação (Dn. 9,26)”, para afirmar que “após a paixão de Cristo veio Tito, venceu aos judeus, destruiu a cidade e o templo, e deixaram de ser feitos ofe rendas e sacrifícios. A partir deste momento já não pude
ram ser realizados, para que se cumpris se assim o que havia sido antes anuncia do pelo profeta”.
Como mostraram os autores da “In trodução” a De Fide, Isidoro de Sevilha, que recolheu a mais relevante tradição po lêmica antiga – desde São Paulo –, converteu-se em uma das principais fontes a que, necessariamente, tiveram que re correr os apologistas antijudaicos durante boa parte da Idade Média, ainda que as circunstâncias históricas tenham sido diferentes. A obra de Isidoro permite, as sim, estabelecer a conexão, dentro do âmbito europeu, en tre a tradição polêmica patrística antijudaica antiga e a li teratura medieval deste gênero. Com relação à motivação, é possível que Isidoro tenha decidido redigir essa obra ten do em vista que a situação dos judeus era uma questão que estava preocupando o rei Sisebuto11, o qual, poucos anos depois, decretaria a conversão e o batismo forçado dos ju deus de seu reino.
Em sua qualidade de “ponte” entre duas tradições, a antiga e a medieval, os escritos do metropolitano de Se vilha não só tiveram uma evidente influência na política de seu tempo, nas medidas tomadas contra os judeus pe los monarcas visigodos católicos, mas também, e dadas a altura intelectual e fortaleza das ideias de Isidoro, manti veram um marcado protagonismo em épocas posteriores.
O antissemitismo religioso, que em São Paulo e nos pa dres da Igreja tinha caráter “defensivo”, buscando diferen ciar o cristianismo do judaísmo e permitir-lhe sobreviver à animosidade do Império Romano, passa a servir a partir da Alta Idade Média aos interesses do estado na construção de uma identidade nacional, que é vista como indispen sável para a obtenção da unidade política, pois se entende que, para isso, é essencial a unidade religiosa. Incluir im plica excluir. Para falar como Castoriadis, “a instituição das outras [sociedades] e suas significações são sempre ameaça mortal para as nossas: nosso sagrado é para eles abomina ção, nosso sentido, o próprio rosto do contra-senso” (Castoriadis, 2006, p. 129).
O sentimento de rejeição ao judaísmo, como assinalam os autores da “Introdução”, presente na literatura cristã an tiga, se reproduziu e retroalimentou em escritos posterio res, e se materializou em numerosos episódios da história
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europeia, que se expressaram com maior dramaticidade a partir dos séculos XI e XII. Os argumentos empregados nos es critos têm em comum a apresentação do “problema judaico” como uma questão de negociação impossível, já que colocam acusações de natureza ou princípio inso lúveis. A primeira delas é a de uma obs tinação congênita do povo judeu, junto com sua impiedade e ignorância, condi ção que lhe impossibilitaria aceitar since ramente a verdade cristã.
As afirmações de Isidoro sobre o judaísmo incidem sobre concepções errôneas e não respondem nem ao judaísmo contemporâneo do bispo nem a qualquer judaísmo anterior.
Um segundo nível de acusações é re presentado por sua condição semissatânica12, que se de monstraria pelo fato de terem sido repudiados pela divindade ao longo de sua história, e que os colocaria como ini migos sempiternos do cristianismo. O terceiro e mais irre conciliável ou incendiário nível de acusações é, sem dúvi da, o que deriva da culpa coletiva do povo judeu de deicí dio. À medida que as relações com os cristãos se deterio ravam, os judeus espanhóis, em uma última tentativa de provar sua inocência, tentaram mostrar que seus antepas sados tinham deixado a Palestina muito antes da época de Jesus, e, portanto, não podiam ter participado da crucifi cação. Naturalmente, argumentos desta espécie não aju daram em nada.
Estas posições da Igreja Católica, na verdade, se man tiveram até o século XX. Finalmente, no Concílio Vatica no II, o Papa Paulo VI proclamou a declaração Nostra ae tate em 28/10/1965, afirmando que “o que se fez na Pai xão de Cristo não pode ser imputado, nem indistintamen te a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus de hoje, ainda que as autoridades judaicas, com seus seguido res, tenham reclamado a morte de Cristo”.
Notas
1. Os visigodos se estabeleceram na península ibérica por volta de 418, nos esterto res do Império Romano.
2. Seguidores do pensamento de Arius, presbítero de Alexandria, propagado por vol ta de 319. Foi a religião oficial do reino visigodo de 507 até 586.
3. Paul Johnson (1988:177), por exemplo, cita uma obra de S. Katz, The Jews in the Visigothic Kingdoms of Spain and Gaul, publicada em Cambridge em 1937; Luis Suárez Fernández (1988:36) menciona La legislación antijudía de los visigodos, de J. L. Lacave Riaño, publicado nas atas do Simpósio Toledo Judaico I, em 1973 e El fin del reino visigótico de Toledo, de L. Garcia Moreno, publicado em Madri em 1975. Há também ensaios recentes de pesquisadores brasileiros, que podem ser en contrados na internet.
4. Entre outras, foi concedida liberdade aos escravos de pro priedade de judeus que se fizessem cristãos ou que fossem circuncidados; na sequência, os judeus foram proibidos de ter servidores cristãos livres, os convertidos foram obrigados a não se relacionar com seus parentes, a celebração do Pes sah foi proibida.
5. A componente política das medidas antijudaicas fica mais evidente quando se leva em conta que Égica, ao assumir o trono, adotou medidas contra a família de seu antecessor (e sogro), Ervígio, o que provocou um confronto com a nobreza e o clero, a ponto de em 692 ter sido forçado a debelar uma rebelião; depois, buscou o apoio da Igreja para evitar que, após sua morte, sua família sofresse perseguição semelhante, e, finalmente, em 700 nomeou sucessor seu filho Vitiza, com quem estabeleceu um “governo conjunto”.
6. Afinal, como indicou Cornelius Castoriadis, “para cima do monopólio da violência legítima, há o monopólio da palavra legítima; e este, por sua vez, é ordenado pelo monopólio da significação válida. O Dono da significação reina acima do Dono da violência” (CASTORIADIS, Cor nelius – As encruzilhadas do labirinto, III: o mundo fragmentado (trad. Rosa Maria Boaventura). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p. 132).
7. Uma das mais importantes, presidida pelo rei Jaime 1º, de Aragão, ocorreu em Barcelona, em 1263, e contrapôs o rabino Moisés ben Nah’man (Nah’manides) ao convertido Paulo Christiani e ao inquisidor Raymond de Pennafort.
8. Isidoro de Sevilha – Sobre la fe Católica contra los judios. (trad. Eva Castro Caridad e Francisco Peña Fernández) Sevilla: Universidad de Sevilla, 2012.
9. Que consiste, basicamente, em interpretar personagens, acontecimentos e institui ções do Antigo Testamento como antecipação, tipo ou figura, dos do Novo Testa mento, prefigurando a vinda de Cristo. Assim, por exemplo, o fato de Isaac, con duzido por seu pai como vítima, ter levado ele mesmo a madeira para o sacrifício, prefigura a paixão de Cristo, que carregou ele mesmo a madeira de sua paixão (De fide lv. 1, cap. 34,2).
10. É importante observar que em nenhum momento Isidoro faz qualquer referência aos judeus de carne e osso que viviam ao seu redor.
11. Pois, apesar da repressão, o judaísmo mantinha seu poder de atração sobre os cris tãos. Veja-se o comentário de Blumenkranz, citado por Riccardo Calimani (tradu ção minha): “Os cristãos continuavam, com efeito, a ser atraídos por certas práti cas ou crenças judaicas, sem, no entanto, aceitar o judaísmo inteiramente. Há cer tamente uma censura nesta constatação de Isidoro de Sevilha de que eles não se tornam inteiramente judeus: [...] Eles caem nos erros dos judeus descrentes, diz ele, e assim mancam dos dois pés: não são mais verdadeiros cristãos, nem são in teiramente judeus; na verdade, são piores do que maus cristãos e judeus” (CALI MANI, Riccardo – L’Errance Juive: La Dispersion, L’Exil, La Survie (trad. Maurice Darmon). Paris: Diderot Editeur, Arts et Sciences, 1996, p. 328, nota 11). Suárez lembra que desde o Concílio de Elvira, entre 303 e 309, a Igreja Católica começa ra a preocupar-se com os judeus e com o efeito que sua convivência com os cris tãos poderia exercer sobre a fé destes (SUÁREZ Fernández, Luis – Judíos españoles em la Edad Media. Madrid: Ediciones Rialp, 1998, p. 18).
12. Isidoro insiste nesta acusação em diversas passagens. No livro 2, cap. 6,2, por exemplo, afirma que “[o]s judeus seguem dizendo até hoje o mesmo em relação a Jesus, ‘Não é ele’, porque estão esperando outro, que na realidade é o Anticristo”. Deste gênero de acusações resultarão sequelas durante séculos. No final da Idade Média e começo da Idade Moderna, especialmente em épocas de epidemias de pes te, os judeus foram identificados como “agentes de Satã”, como “o mal absoluto”, autorizando a ocorrência de pogroms. A respeito, ver a importante obra de Jean De lumeau, História do medo no Ocidente
Saul Kirschbaum é Doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultu ra Judaicas pela USP, pós doutorado na Unicamp sobre Poesia He braica na Península Ibérica Medieval.
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o a lef- b et da P olíti C a israelense
Até os dias de hoje, o presidente jamais deixou de escolher o líder do partido com mais assentos conquistados para chefiar o novo governo. E o líder do partido escolhido tem três semanas para organizar a coalizão governista.
Fotografias: Bruno Gottlieb
João Koatz miragaya
No dia 22 de janeiro deste ano ocorreram em Israel as eleições para a 19ª Knesset. O sistema israelense é distinto do brasileiro e é dotado de algumas peculiaridades e detalhes simples, mas que aparentam ser complexos, principalmente para os brasileiros não acostumados ao regime parlamentar. Quem elege o presidente? Quem elege o primeiro -ministro? Quem comanda o poder executivo em Israel? Qual a diferença entre o poder legislativo no parlamentarismo israelense e no presidencialismo bra sileiro? Quem, afinal, vence as eleições? E de quanto em quanto tempo estas devem ser realizadas? Tentaremos responder a estas perguntas dentro do texto a seguir, incluindo uma breve análise sobre como vota a população israelense dentro das suas divisões regionais, religiosas e sociais.
Distinto do modelo brasileiro de presidencialismo, Israel adota o sistema político parlamentarista. Segundo este modelo, o poder executivo está direta mente submetido ao legislativo: a população vai às urnas votar única e exclusi vamente para o parlamento, e este se encarrega de formar o governo e a oposi ção. Os israelenses não votam diretamente em candidatos, mas sim em parti dos. Estes devem entregar à comissão eleitoral uma lista fechada de candidatos em ordem numérica, que serão eleitos de acordo com os votos recebidos porcada partido proporcionalmente. O voto não é obrigatório, diferentemente do que ocorre no Brasil. Em Israel, votar é um direito, não um dever.
Israel também tem um presidente. A eleição para o cargo ocorre de for ma indireta (os parlamentares o fazem) a cada sete anos. Ao presidente confe rem poucas funções, em sua maioria protocolares de representação do Estado.
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Israel se caracteriza por ser uma democracia com características ocidentais em meio a uma cultura mesclada.
Dentre os seus deveres está o de indicar o líder do partido com mais chances de formar a coalizão governista, após as eleições para o cargo de primeiro-ministro. Em outras pa lavras, o presidente aguarda os números finais do pleito, observa a configuração da Knesset e escolhe o candidato “mais capaz” de formar uma coalizão governista.
Até os dias de hoje, o presidente jamais deixou de es colher o líder do partido com mais assentos conquistados para chefiar o novo governo. E o líder do partido escolhi do tem três semanas para organizar a coalizão governista. Nas eleições anteriores às deste ano o candidato do parti do com mais votos – Kadima, liderado por Tzipi Livni –teve a oportunidade de formar a coalizão, mas não conse guiu e então o partido segundo colocado – Likud, liderado por Benyamin Netaniahu – foi chamado e logrou for mar o governo. Ou seja, nem sempre o mais bem votado forma o governo, mas estes casos são bem raros.
As eleições diretas em Israel ocorrem a cada quatro anos. Ou melhor: ocorrem no máximo a cada quatro anos.
Desde 1988 um governo não termina o seu mandato. Por que isto ocorre? O sistema parlamentarista israelense exi ge que o governo de coalizão seja formado por, no mínimo, 61 representantes das 120 cadeiras da Knesset. É exi gida a maioria absoluta dos parlamentares fazendo parte do bloco governista. Se algum partido decide abandonar a coalizão durante a cadência do governo, e este deixa de contar com maioria absoluta no parlamento, o presidente dá ao primeiro-ministro em exercício as mesmas três sema nas para reorganizar a sua coalizão. Se este não logra atin gir este objetivo, são convocadas eleições.
Outra razão pela qual podem ser marcados novos plei tos é a não aprovação do orçamento do governo pela Knes set. Ao final de cada ano de governo, o poder executivo deve prestar contas ao poder legislativo. Se este não apro va o orçamento, imediatamente são convocadas novas elei ções. Uma terceira causa para que a escolha dos parlamentares seja adiantada é a dissolução do parlamento. Outra causa é a aprovação pelo Congresso de um voto de des
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confiança ao governo, isto já aconteceu em Israel.
O primeiro-ministro também tem o poder de dissolver o Parlamento e con vocar novas eleições quando julgar ne cessário (desde que a maioria da Knes set esteja de acordo), justamente como ocorreu em 2012. Binyamin (Bibi) Ne tanyahu decidiu desintegrar o parlamen to julgando o momento adequado para que fosse realizado um novo pleito que formasse um governo mais homogêneo. Parte da oposição o acusou de aproveitar -se do seu poder a fim de escapar de ter o orçamento reprovado pela Knesset. A crítica da oposição faz sentido, assim como o argumento do primeiro-ministro. De qualquer forma, a ampla maioria dos partidos estava a favor de que fossem realizadas novas eleições no momento.
Engana-se quem pensa que partidos de ideologias distintas, ou às vezes até opostas, não fazem parte das mesmas coalizões. Os trabalhistas e o Likud já formaram em conjunto a coalizão governista em três oportunidades, e mais outras três em situação de emergência.
Ministério da Habitação saiam das mãos dos ortodoxos. O mais comum é a troca da entrada de um partido na coalizão em troca de um número predefinido e pré-qualificado de ministérios.
Cada partido, então, decide por um processo próprio a formação da sua lista de parlamentares em ordem de prefe rência e a envia à comissão eleitoral. Há partidos que rea lizam primárias internas, com a participação aberta a to dos os filiados (como o Likud e o Partido Trabalhista). Há partidos que formam uma comissão especial para decidir quem participará e em que posição na lista (como o Israel Beiteynu e o Shas). Há partidos que elegem uma comis são, ou seja, um meio termo entre os dois formatos acima (como o Meretz). A forma como cada partido organiza a sua lista é singular e não obedece a nenhuma ordem pre determinada. E assim é dada a largada para que os eleito res decidam como será formada a Knesset.
A coalizão
Após o pleito há uma expectativa em torno da compo sição da coalizão governista. As negociações se dão, sobre tudo, entre os líderes dos partidos envolvidos, e envolvem todo o tipo de exigências bilaterais. Em janeiro de 2013, por exemplo, Yair Lapid, líder do recém-fundado partido Yesh Atid (o segundo mais votado na última Knesset) ha via dito, dois meses antes das eleições, que não faria parte de uma coalizão governista que incluísse o partido religio so Shas. Após certificar-se de que o resultado muito lhe fa vorecia, Lapid passou a cogitar formar sim um governo ao lado do Shas, mas desde que a Comissão de Finanças e o
Engana-se quem pensa que parti dos de ideologias distintas, ou às vezes até opostas, não fazem parte das mesmas coalizões. Os trabalhistas e o Likud, tra dicionais rivais em um modelo “ex-bi polar”, já formaram em conjunto a coa lizão governista em três oportunidades, e mais outras três em situação de emer gência1. Até mesmo o Meretz chegou a fazer parte de uma coalizão com o Likud, quando Ariel Sharon necessitava de apoio para que seu Plano de Desconexão2 se tornasse rea lidade. Religiosos ortodoxos e laicos, conservadores e so cialistas, ashkenazim e mizrachim 3, todas estas dicoto mias constam frequentemente no histórico das coalizões da Knesset.
O único grupo social representado por um ou mais partidos políticos que jamais fez parte de nenhuma coali zão são os árabes. Os partidos árabes e o partido Chadash4 nunca fizeram parte de nenhum governo, por opção das duas partes. Isto não impede, no entanto, que parlamentares árabes já tenham composto o governo israelense em determinadas ocasiões, inclusive como ministros. A popu lação árabe, inclusive, se caracteriza por baixos índices de comparecimento às urnas em comparação com os judeus, e os que votam nem sempre apoiam os partidos árabes.
A necessidade de se formar um governo de maioria é analisada por alguns cientistas políticos como uma espé cie de defeito da democracia israelense. Os partidos pe quenos, segundo esses, teriam uma força desproporcio nal, pois percebem a dificuldade que têm os partidos gran des para formar a coalizão. Isto explica a força e a pereni dade dos partidos religiosos em governos dos mais diver sos partidos, por vezes com composições totalmente an tagônicas a eles.
Um dos carros-chefes do partido Yesh Atid é aumen tar a cláusula da barreira mínima (de 2%) para eleger um parlamentar para 6% dos votos. Isto eliminaria da Knes set diversos partidos que hoje transitam pela casa, ou tal vez os fizessem concorrer em lista conjunta, estratégia ado
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tada desde 2006 pelos partidos árabes Raam e Ta’al, segui da em 2013 por Likud e Israel Beiteynu.
Os partidos
O espectro ideológico-político israelense pode ser es miuçado de distintas formas. É uma tarefa extremamen te complexa categorizar a grande maioria dos partidos de acordo com as tradicionais classificações “direita”, “cen tro” e “esquerda”. O sionismo, ao longo dos anos, produ ziu muitas esquerdas, centros e direitas, e dentro de cada temática presente na Knesset os partidos podem transitar por estas categorias.
Apesar de aparentemente complicadas, as divisões partidárias e ideológicas israelenses são lógicas, sem deixar de serem complexas. Cito as três principais formas de anali sar como se posiciona cada partido referente aos três principais assuntos políticos deste momento: a ótica das nego ciações por paz (1); a ótica da política econômico-social (2); e a ótica da relação entre religião e Estado (3).
Entende-se como pomba um partido que defende a tro ca de territórios em prol da paz.5 Mesmo entre os partidos
considerados pombas, encontra-se relativas disparidades. Um exemplo claro são as diferentes percepções dos trabalhistas e do Meretz. Enquanto esse se baseia em uma pos tura pragmática (admite-se trocar territórios, mas não to dos e imbuídos de exigências), este adota uma perspectiva mais romântica, baseada na moral e na justiça (de que os palestinos devem ter um Estado por merecimento), atu ando de forma mais flexível e admitindo ceder mais ter ritórios.
Por outro lado, entende-se como falcão um partido que adota a filosofia de paz por paz, ou seja, os inimigos te rão paz quando nos derem o mesmo. Dentro deste grupo há partidos, como o Israel Beiteynu, que não se opõem à criação de um Estado palestino, por exemplo, até o Ha Bait HaYehudi, que se posiciona de forma frontalmen te contrária.
A ótica econômico-social é mais simples, pois obede ce relativamente às mesmas regras em todo o mundo. Se de um lado há a filosofia (apontada como ‘esquerda’) de que o Estado deve participar ativamente da economia, re distribuindo impostos e mobilizando parte do setor pú
As divisões partidárias e ideológicas israelenses são lógicas, sem deixar de serem complexas.
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blico a fim de distribuir riqueza e reduzir as desigualdades sociais, por outro lado há outra filosofia (vista como liberal, ou ‘direita’) que prega a menor influência do Es tado, julgando-o como produtor de burocracia e inefi ciente, e admitindo a maior capacidade do setor privado em gerar empregos e desenvolver a livre competição em uma sociedade meritocrática. Em Israel isto não é sui ge neris. Partidos como Meretz, Chadash, trabalhistas e até o Shas defendem, cada um da sua forma e intensidade, maior influência do Estado na economia, enquanto Li kud, Israel Beiteynu e Yesh Atid optam por uma políti ca de mínima influência do poder público no desenvol vimento da economia.
A relação entre religião e Estado em Israel sempre foi um tema controverso, e vem se tornando cada vez mais devido ao crescimento populacional dos ortodoxos. Se gundo o censo israelense de 2009, os autodeclarados re ligiosos (ortodoxos) são 15% da população israelense, so mados aos 7% ultraortodoxos chegam a 22%. O número é sugestivo, principalmente considerando que em 1949 eles eram menos que 10%. Assim como em Israel há partidos
religiosos, também há partidos laicos. Parte destes, entre tanto, não compõe uma frente secular a fim de impedir o crescimento dos ortodoxos. É o caso do Likud e dos traba lhistas, tradicionalmente os dois grandes partidos do país.
Os partidos laicos atuantes são, principalmente, Me retz, Chadash, Israel Beiteynu e os recém-criados HaT nua e Yesh Atid. Todos estes promovem debates e proje tos de lei que visam, ora integrar o público ultraortodoxo na sociedade, ora separar por completo religião e Estado.
Os partidos religiosos, significativamente distintos en tre si, são principalmente os nacionalistas-religiosos Ha Bait HaYehudi (ex-Mafdal), os ultraortodoxos Yahadut HaTora e o sincrético Shas. O primeiro é formado pelos conhecidos kipá de crochê, judeus ortodoxos, que seguem a halachá6, mas sem abdicar de um convívio social com o mundo secular. O HaBait HaYehudi conta com parlamen tares do sexo feminino e apoiam o serviço militar universal (seu líder, Naftali Bennet, inclusive, é ex-oficial do exérci to), por exemplo, mas são, em sua maioria, contra o trans porte público no shabat e creem que quanto mais a religião judaica influenciar o dia a dia dos cidadãos, melhor. O
Os diretamente em candidatos, mas sim em partidos.
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israelenses não votam
Yahadut HaTora é um clássico representante dos ultraortodoxos. Vindo de uma fusão entre o Deguel HaTora e o tradicio nal Agudat Israel em 1992, o partido não se considera sionista e por isso não indi ca ministros, apenas vice-ministros (o que me parece uma forma curiosa de se defi nir, usando linguagem musical, “sionista ma non troppo”) e tem como única causa lutar por seus eleitores charedim7. O Yaha dut HaTora divide votos com o Shas, que também conta com eleitores não ortodo xos, em sua grande maioria judeus mizra chim de classes sociais mais humildes.
O Shas foi criado em 1984 pelo ex-Rabino-chefe Sefaradita Ovadia Yossef, com o objetivo de atender às demandas dos judeus mizrachim, sobretudo os reli giosos. Em pouco mais de dez anos o partido cresceu as sustadoramente e hoje, apesar de ser tratado como um par tido religioso, se vê também como apoiador das causas so ciais, que ajuda os judeus pobres, enfim, que faz tzdaká8 Na prática, no entanto, a política do Shas favorece a um público restrito de mizrachim religiosos, habitantes de ci dades em desenvolvimento e bairros pobres das grandes cidades.
A necessidade de se formar um governo de maioria é analisada por alguns cientistas políticos como uma espécie de defeito da democracia israelense. Os partidos pequenos teriam uma força desproporcional, pois percebem a dificuldade que têm os partidos grandes para formar a coalizão.
çados pelos religiosos Shas (15,6%), Yaha dut HaTora (22,2%) e HaBait HaYehu di (11,78%) em Jerusalém, todos acima de suas médias nacionais. Os trabalhistas sacaram péssimos resultados nas chama das cidades em desenvolvimento e, juntos ao Yesh Atid, obtiveram uma alta votação no centro do país (região que concentra população laica e de classe média). Perce bemos que a população israelense ainda procura votar de acordo com a sua iden tidade, apesar da decadência dos grandes partidos.
A grande maioria dos israelenses que comparece às urnas9 sabe que participa de uma manifestação democrática dentro de um Estado judaico. Os eleitores judeus dão grande importância ao sionismo no momento em que escolhem seu partido, inclusive quando optam por um partido não sionista, como o Chadash ou o Yahadut HaTora. E o voto antiortodoxo tem cada vez conquistado mais adeptos.
Considerações finais
Israel se caracteriza por ser uma democracia com ca racterísticas ocidentais em meio a uma cultura mesclada. Devido ao conflito, a relação entre democracia e sociedade torna-se mais complexa e dificulta a compreensão de quem a percebe de fora. Questões como a disputa entre ashkena zim e mizrachim ou os conflitos existentes entre os distin tos grupos religiosos judaicos só agravam as particularida des políticas do país. As cidades, bastante distintas entre si, são a prova viva da disparidade israelense.
Nestas eleições de 2013, em Tel Aviv, por exemplo, os esquerdistas do Meretz obtiveram 14,3% dos votos (bem mais do que a média nacional, de 4,5%). O Likud-Beiteynu, partido mais votado, na mesma cidade obteve 17,5% dos votos, baixo percentual em comparação à sua média nacional (23,3%), ou em relação ao que o partido con quistou na pobre Beer Sheva (38% dos votos).
Curiosamente percebemos os altíssimos índices alcan
No entanto, sabemos que todos os partidos judaicos podem compor uma coalizão governista, enquanto ne nhum partido árabe (ou de maioria árabe) o fará. Se há uma certeza, esta é a de que há uma grande diferença entre os partidos que desejam construir um Estado judeu, e ou tros que têm como intuito boicotá-lo. E as disputas acon tecem dentro da democracia.
Notas
1. Às vésperas da Guerra dos Seis Dias (1967), da Guerra de Yom Kippur (1973) e durante a 2ª Intifada (2001-2005).
2. Projeto levado a cabo por Sharon a fim de retirar os colonos e o exército israelen se da Faixa de Gaza em 2005.
3. Judeus europeus e judeus orientais.
4. Partido de eleitorado predominantemente árabe, resultado da junção do Partido Comunista Israelense com outros partidos menores.
5. Visão de mundo que surge somente após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, quan do Israel conquista os territórios do Sinai, Colinas do Golã, Faixa de Gaza e Cisjor dânia (incluindo Jerusalém Oriental).
6. Lei religiosa judaica que emana do Talmud.
7. Tementes, em hebraico, forma como são chamados os ultraortodoxos.
8. Justiça ou esmola, dependendo da interpretação que se dê ao complexo termo.
9. Nestas eleições votaram 67,5% dos eleitores aptos a votar.
João Koatz Miragaya é mestrando em História Geral pela Univer sidade de Tel Aviv e trabalha no Machon Le Madrichim da Agên cia Judaica.
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Fotografias: Bruno Gottlieb
Quando o silêncio é uma virtude
O Pirke Avot possui algumas passa gens sobre a importância do silêncio, enaltecendo a capacidade da escuta e a necessidade da reflexão com a finalida de de evitar ofensas. Isso não significa, é claro, abster se da expressão oral, mas, apenas, utilizá la com sábia parcimônia.
Um ótimo exemplo do valor do silên cio foi gerado involuntariamente pelo Ra bino Shlomo Aviner quando declarou que as mulheres não deveriam se candidatar ao Knesset, o Parlamento israelense. Até aí nada demais, todos têm o direito a ter opiniões, mesmo que insensatas.
Porém, ele vai além ao justificar sua recomendação como sendo originada na lei religiosa judaica. Aqui ele conse gue, a partir de uma interpretação ten denciosa dos nossos textos, simultanea mente ofender as mulheres e prejudicar o povo de Israel. O rabino cita um verso do Salmo 45: “kol kevudá bat melech pni ma”, que pode ser traduzido como “toda a glória da princesa está dentro”, sendo o “dentro”, segundo o rabino, entendido como o interior da casa. Desse trecho, ele deduz que nenhuma mulher pode, ja mais, expor se em público.
Contudo, o Salmo é um belo poema que retrata em cores vivas um casamen to real e esta frase pode ser interpreta
da de várias maneiras, desde a literal que impacta apenas àquele casamento até a que glorifica a riqueza interior, ética e mo ral, da princesa, sem impor nenhuma limi tação física às mulheres em geral. E é cla ro que muitas outras interpretações po dem surgir deste Salmo, que não impõe lei alguma.
do é cada vez mais utilizado para avan çar uma agenda política que ofende e prejudica.
Ofende porque atribui um papel restri to à mulher na sociedade obrigando a à subserviência ao homem, uma vez que se encontra impedida de fazer se represen tar politicamente. E prejudica a todo Isra el por inibir a contribuição das mulheres, inclusive as ortodoxas, na vida pública, li mitando assim a capacidade de desen volvimento do país. Em síntese, o rabino perdeu uma ótima chance de seguir o Pi rke Avot e brilhar pelo silêncio...
Rav Avineri baseia sua argumentação na manipulação da leitura do Tanach, fin cando o pé na compreensão mais lite ral quando conveniente, ou buscando um entendimento alternativo quando este for mais adequado. Infelizmente este méto e m Pou C as Palavras
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A coleção de DVD
Com a aparente falência da solução do conflito entre israelenses e palestinos através da fórmula “dois Estados para dois povos”, que advoga a criação de um Estado Palestino ao lado do Estado de Is rael, começam a surgir vozes que suge rem a solução “um Estado para dois po vos” para resolver a situação.
A primeira fórmula é maciçamente aceita pela comunidade internacional, tem o apoio decidido da maioria das duas po pulações e de todos os governos eleitos por Israel e estabelecidos pelos palesti nos nos últimos 20 anos. Apenas o Ha mas e alguns grupos marginais se opõem à divisão do território do antigo Mandato Britânico entre dois Estados soberanos.
Com tanto apoio é de surpreender que a divisão ainda não tenha acontecido
e isto dá espaço às especulações con tidas na segunda proposta, na qual pa lestinos e israelenses seriam cidadãos de um mesmo país, que não seria, em teoria, nem judeu nem árabe.
Há quem reduza os conflitos interna cionais às dimensões dos conflitos do mésticos e diga que os israelenses e os palestinos se debatem como duas pesso as que não se gostam, mas que, por cir cunstâncias históricas, têm que dividir o mesmo pequeno apartamento.
Seria o caso, então, de comparar me taforicamente a proposta de “um Estado para dois povos” a um casal de antigos namorados que não consegue se colo car de acordo sobre a divisão da coleção de DVD. Um conselheiro dá então a sur preendente solução “mágica” aos dois: “casem se!”.
Monumento vivo do jornalismo
No dia 1º de fevereiro passado a man chete principal do caderno “Mundo” da Folha de S.Paulo estampava: “Síria ameaça retaliar Israel com ataque”. Logo abai xo uma grande foto de um ponto turístico das colinas de Golã, envolto em névoa, com o perfil de dois soldados em poses hollywoodianas – um apontando um rifle e o outro perscrutando o horizonte num binóculo. A legenda conectava a imagem com o texto: “Nas colinas do Golã, solda dos israelenses se posicionam”.
A matéria relatava o silêncio de Israel sobre um suposto ataque que teria rea lizado em território sírio, atingindo alvos não muito bem definidos até hoje, tendo em vista a ausência completa de jornalis mo independente na Síria, desde sempre. E alertava que Damasco ameaçava revi dar ao suposto ataque.
Até aí tudo muito razoável. Uma su posta ameaça para um suposto ataque se equivalem, mesmo quando o assun to é uma sonolenta reprise de ameaças vãs dos países árabes, que, se tivessem realizado uma fração de um por cento do que apregoam, já teriam varrido Israel do mapa há muitas décadas. Mas o desta que dado ao assunto ganha um ar bufo, ou tragicômico, quando se constata que, na fotografia, os dois “soldados” que evi denciariam a preocupação militar de Israel com o revide sírio são, de fato, duas estátuas, folhas de aço recortadas no perfil clássico do militar em ação, coloca das num monumento para turistas...
Olhando pelo buraco da fechadura
O rabino Seth Farber está furioso. E com toda razão. Ele é o diretor da orga nização Itim, um grupo de advocacia que ajuda as pessoas a navegar pelos mean dros da burocracia israelense, e está cho cado com a atitude do Rabinato de Israel de não reconhecer algumas conversões feitas nos Estados Unidos.
Caso o rabino Farber fosse Reformis ta ou Conservador não haveria muita no vidade em sua fúria. Não é de hoje que se manifesta a enorme relutância da ul traortodoxia que comanda o Rabinato em aceitar as vertentes liberais da re ligião judaica. Porém, o rabino Farber é ortodoxo e as conversões que estão sen do questionadas foram realizadas por ra
binos ortodoxos, altamente respeitados pelo Conselho Rabínico da América.
Parece então que galgamos mais um degrau na escada da intolerância ultra ortodoxa, Nem mesmo os rabinos orto doxos filiados ao establishment das co munidades de fora de Israel estão sendo respeitados! É evidente que nestes ca sos cai por terra a alegação normalmen te assacada contra os liberais que há dú vidas de que a halachá esteja sendo res peitada. Não resta dúvida que nenhum ra bino ortodoxo realiza atos religiosos que a contrariem.
O que resta, então, é a nua e crua sus peita da disputa pelo poder e pelo dinhei ro. A única razão que resta é que os ul traortodoxos de Israel não respeitam os
ortodoxos de fora de Israel porque estes competem com aquilo que entendem ser o seu mercado.
É provável que ao olhar pelo bura co da fechadura nas decisões reserva das dos chamados “conselhos de sá bios” que compõem o Rabinato israe lense veremos uma organização cuja pri meira prioridade é de se manter no po der a qualquer preço. Uma organização que serve a si mesma a partir da religião e não que serve à religião a partir de si.
Esta atitude é a principal razão de por que é necessário manter o Estado e a Re ligião firmemente afastados. Caso Israel não tome este passo num futuro próxi mo, os prejuízos para o judaísmo serão imensos.
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A relativização da soberania
O circo de horrores disparado após o perverso atentado que destruiu em julho de 1994 a sede da Amia – Associação Mutual dos Judeus da Argentina – em Buenos Aires parece que jamais terá fim.
O horror começou logo no dia se guinte ao atentado, quando o presiden te Carlos Menem apresentou votos de condolência ao primeiro ministro de Isra el. Como se a Amia fosse uma instituição israelense e não de cidadãos argentinos!
A apuração do crime seguiu longos e tortuosos caminhos, mas finalmente con seguiu apontar os culpados. Em 2007 –13 anos após o atentado! – o governo ar gentino solicitou à Interpol a prisão de seis cidadãos iranianos indiciados pela justiça argentina. Ficou sobejamente demonstra do no inquérito que eles agiram conforme instrução e planejamento emanados das autoridades supremas de seu país.
Dentre os acusados estão membros do atual governo do Irã, que se recusou
a cooperar com a justiça argentina, o que era mais do que esperado, visto serem os acusados agentes deste mesmo gover no. Contudo, repentinamente o governo argentino desistiu de perseguir os con denados e em janeiro deste ano – coinci dentemente (será mesmo uma coincidên cia?) no dia universal de lembrança da Shoá instituído pela ONU – anunciou a formação de uma comissão conjunta ira niano argentina para “apurar a verdade sobre o atentado e estabelecer diretrizes de como conduzir o assunto, com base nas leis e regulamentos dos dois países”.
É mais do que evidente que esta co missão da verdade está fadada a revelar a inverdade e não será surpresa se ela con cluir que foram pérfidos judeus ligados ao Mossad a destruir o prédio, talvez com o objetivo de denegrir a imagem do Irã no mundo (como se para isto fosse neces sária a ajuda de terceiros).
Para nós judeus o episódio é tão amar go que qualquer comentário parece fraco
frente ao tamanho da afronta. E para os argentinos deveria ser semelhante. Afinal de contas o dirigente do país abriu mão do princípio básico de sua soberania e da razão de ser do país. Crimes cometidos num país são investigados e julgados por este país e ponto final. É um absurdo ino minável relativizar a soberania!
Imaginem a gritaria que estremece ria qualquer país da América do Sul se o governo fizesse uma parceria com o FBI para apurar um crime cometido na épo ca das ditaduras militares que grassaram no continente. O equilíbrio político seria insustentável.
No entanto, aprendemos que para a Argentina (e talvez para outros países do continente, tendo em vista a placidez com que o desonroso acordo foi recebi do) a soberania é relativa. Interferência ianque jamais! Porém, dos tiranos san guinários de Teerã não há problema al gum. Tristes tempos para a Argentina e para o continente.
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r eformista g raças a d eus
Recentemente, levado por minha curiosidade pelo diferente e inusitado, comprei na Amazon.com um livro que descreve hábitos e costumes de co munidades judaicas espalhadas por lugares exó ticos do mundo. O título do livro é Jewish Communities in Exotic Places1 e conta, em mais de dez capítulos, como os descendentes de nossos antepassados comuns viviam em regiões inóspitas e exóticas, tais como Cáucaso, Índia, Irã e China.
Para acompanhar o que o livro descreve, tive que apro fundar meus entendimentos pela sequência de eventos que levou à Diáspora Judaica. Para aqueles, como eu, que sa bem pouco sobre o que ocorreu, recomendo a Wikipedia em inglês2, que contém um excelente artigo sobre o tema em http://en.wikipedia.org/wiki/Jewish_diaspora. Simpli fico a história a seguir, de forma que você, leitor desconec tado, tenha uma noção básica de como tudo começou e como acabamos vivendo deste lado do Atlântico, capazes de frutificar e agradecer por tudo com a ‘brachá’ que ini cia o presente texto.
Após a destruição do primeiro Templo, por volta do
ano 580 aec, grande parte dos habitantes da Judéia fo ram deportados para a Babilônia, por ordens do Rei Nabucodonosor, enquanto outros fugiram para o Egito e os demais permaneceram na Judéia. Por volta de 530 aec um novo rei, Ciro, o Persa, permitiu a volta dos judeus ao seu território de origem, mas muitos optaram por fi car no que hoje é território tanto do Irã quanto do Ira que (quem diria…).
Um pouco antes da reconstrução do segundo Templo, parte dos emigrados retornou às terras de Israel, e lá per maneceram até a sua destruição, por volta de 70 ec, quan do iniciou-se uma nova dispersão. O livro descreve comu nidades oriundas do êxodo nos três grandes eixos – norte da África, em direção ao Oriente e em direção à Europa.
Talvez o que tenha chamado mais minha atenção, além dos costumes tão diversos encontrados em cada uma destas comunidades, foi a capacidade de adaptação e integração com as comunidades locais. A rotina se repete: (1) êxodo; (2) assentamento em algum local do planeta acolhedor o suficiente para acomodar os ‘judeus errantes’ e suas famí lias; (3) estabelecimento de uma comunidade produtiva e
Paulo Haroldo mannheimer
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vibrante, com grau variável de integração à comunidade local; (4) per seguição e (5) fuga, sempre que pos sível (Be’ezrat Hashem).
O grau de integração depende muito da vontade dos judeus, dos governantes e dos credos locais. Cer tos judeus optavam pelo isolamento, assim como certas comunidades iso lavam os judeus completamente em ‘guetos’ lacrados. Já outras comuni dades permitiam a entrada e saída se letiva de moradores, visitantes, mer cadorias, etc.
Não tenho comprovação científica do que defendo a seguir, mas me pareceu claro ao ler em sequência a história de tantos grupos em cons tantes deslocamentos, que os lugares onde houve tolerância “de” e “para” nossos antepassados, todos se beneficiaram – eles e os locais. Já quando houve isolamento ou perseguição, a comunidade que nos expul sou perdeu materialmente (arrecadação de impostos, co mércio vibrante, artes e ciências) e intelectualmente (ou rives, artesãos, tecelões, médicos e até, recentemente, físi cos nucleares).3 Não sei se o isolamento acarretou perseguição, ou vice-versa (muitas vezes a resposta para este tipo de dicotomia é sim), mas certamente podemos inferir que as comunidades que souberam coexistir eram certamente mais equilibradas, produtivas e, por que não dizer, felizes e mentalmente sãs.
Meu ponto: Há quem diga que o reformismo é ruim e que, no limite, ele poderá ser responsável pela extinção de nossa cultura judaica. Aqui defendo exatamente o con trário. Pela diversidade e perseverança dos nossos antepas sados, sou tentado a acreditar que nossa capacidade refor mista e adaptativa – sem perder o cerne de nossa cultura e valores – é justamente o elemento que nos fez sobreviver até a presente época – característica fundamental de nossa resistência e sobrevivência.
Me parece então que um certo grau de interação com a cultura local é bom pois cria um elo entre nossa comunida de e a comunidade que nos acolheu, numa relação mútua de colaboração e interdependência, benéfica para ambas as partes. Já a capacidade reformista nos posiciona como
pessoas questionadoras e flexíveis, nos impulsionando a favor de uma adap tação e reflexão positivas a novos tem pos e ideias. Mito ou fato, a história de Purim só existe porque o assimila do Mordechai, que militava na corte a ponto de vender sua sobrinha para o harém do rei, conseguiu salvar os ju deus justamente porque era ativo na corte e soube da trama de Haman.
Não há o que argumentar com o exemplo da Alemanha, onde algumas correntes defendem que o Holocaus to foi justamente causado pelo exces so de reformas e assimilação (‘os ju deus deixaram de ser judeus, baixa ram a guarda’). Muito pelo contrário, o Holocausto foi tão somente o extremo da intolerância ao estrangeiro – uma escolha dos alemães pelo distanciamento suprema cista (‘a minha nação é melhor que todas’), com enormes perdas humanas, morais e materiais para ambas as partes – a situação-limite onde a intolerância 100% levou à per da 100%. No contexto das nações, a Alemanha foi a prin cipal perdedora de sua escolha ideológica. O Holocausto prova, não nega, que distanciar é ruim e aproximar é bom.
Sem querer ser muito darwinista, não consigo deixar de comparar este comportamento reformista com uma cer ta capacidade adaptativa (‘survivalofthefittest’) encontra da na natureza. Afinal, em um mundo em constante mu dança, o que será que nos é mais favorável – sermos estáti cos ou dinâmicos? Devemos nos agarrar a credos e costumes antigos e fecharmos os olhos para as mudanças à nos sa volta, incapazes de entender e aceitar o diferente? Ou devemos ser tolerantes e flexíveis, aproveitando aquilo de novo que nos é apresentado – um povo capaz de tolerar para ser tolerado e viver por mais milênios.
Notas
1. http://www.amazon.com/Jewish-Communities-Exotic-Places-Blady/ dp/0765761122
2. A Wikipedia é o novo “pai dos burros”.
3. Me arrisco a afirmar que o mesmo ocorre até os dias de hoje – vide Venezuela e Irã, entre outros.
Paulo Haroldo Mannheimer é empresário e sócio da ARI.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 63
sionismo não é P alavrão!
Quando
o primeiro ministro da Tur quia, en passant, se referiu ao sio nismo como um crime contra a humani dade, o de Israel comentou, um tanto in genuamente, que ele tinha pensado que isso já era coisa do passado. O porquê de eu achar isso uma ingenuidade vou comentar adiante. Falemos antes do en passant, e também de que na transcrição oficial das próprias fontes turcas foi omi tida a inclusão do sionismo entre os ou tros crimes: o fascismo, o antissemitismo e o anti islamismo, este o verdadeiro alvo da indignação de Erdogan.
Esta omissão no comunicado oficial lembra o voto antissionista na ONU, em 1975, com maioria esmagadora a favor, e que foi depois revogado e repudiado por uma maioria mais modesta. A revo gação e a omissão de um e de outro não anula o fato de terem existido, e de que se pode distorcer a tal ponto o sentido e o conceito do que representa o sionismo. Difícil, para quem realmente sabe o que é sionismo, conceber qualquer argumen to que justifique qualificá lo como crime de qualquer espécie, ou racista sob qual quer aspecto. (Só como exemplo desta última perplexidade, veja se a foto da re cém eleita miss Israel, uma belíssima ne gra – ou melhor dizer afroisraelense? –que o sionismo trouxe da Etiópia para o Estado sionista.) Entender por que isso acontece impede que sejamos ingênuos e que nos surpreendamos com isso.
O fato de a citação de Erdogan ter sido en passant, quando ele se referia ao anti islamismo, atesta o quanto a vi são distorcida do sionismo já é sublimi nar, autista, estereotipada, independente de argumentação ou lógica. A visão de monizada do sionismo aflora naturalmen te, faz parte da mesma cultura do pala vrão, que é um desabafo de sentimentos íntimos negativos que nada têm de ra cionais ou conceituais. Na verdade, ‘sio nista’ virou adjetivo pejorativo de signifi
cado obscuro, que ninguém precisa sa ber o que é, ao contrário de certos pa lavrões que sabemos muito bem o que querem dizer.
Outro dia, vendo no youtube os posts enviados como comentário a um filme que denunciava o dólar e os banqueiros por desumanidades, alguém condenou ‘esses banqueiros sionistas’ como fon te de todo mal. Perguntem a ele por que os banqueiros são ‘sionistas’, mas com a certeza de que ele não sabe. Saberia Erdogan dar um argumento sequer que explique por que o sionismo é um crime contra a humanidade?
A ingenuidade de Bibi está em pen sar que isso possa ‘passar’ e ser ‘coisa do passado’. Neste mesmo espaço con tei uma vez a história dos judeus como o ‘repolho’ dos povos, aquilo de que não se pode gostar porque seria horrível gostar dele. Não importa se o sionismo é bom ou mau, ele é condenável e é um crime porque se não fosse se correria o peri go de vê lo como ele realmente é: em pri meiro lugar, a percepção dos judeus de que Sion é seu berço, o lugar natural de todo judeu que queira ou precise nele vi ver; segundo, a ideia de que, com base no direito que a modernidade concedeu a todos os povos de terem um Estado
nacional, o conceito de que Sion é o úni co lugar no mundo em que o povo judeu tem direito a existir como nação; terceiro, a constatação de que esse mesmo direi to, reconhecido pelas Nações Unidas, é a base da existência de um Estado judai co contemporâneo, e que a visão e imple mentação desse Estado ‘sionista’ nunca se apoiou na negação dos direitos de ára bes palestinos de terem seu próprio Esta do na Palestina histórica.
Israel é um Estado sionista porque é o único Estado que a nação judaica tem no mundo, e, portanto, o centro históri co, cultural e religioso do judaísmo, o que não contradiz sua condição de ser o Es tado de todos os seus cidadãos, por di reito e não por concessão, e apto a con viver com todas as nações do mundo, in clusive e principalmente seus vizinhos, o que inclui um possível Estado palestino.
Ter um demônio disponível para atri buir a ele a razão de todo mal é uma con veniência milenar na história da humani dade e no dia a dia de nossas decepções e frustrações. O antissemitismo foi duran te séculos a expressão universal dessa conveniência. Por isso ele é duradouro, e resiste ao humanismo e ao iluminismo. A demonização do sionismo e de Israel continua a se manifestar, apesar da sur presa de Bibi, porque é um subproduto do antissemitismo, agora se alimentan do de um conflito em que é fácil demoni zar aquele que, para não ser destruído, é obrigado a fazer o papel de vilão.
Na ONU, no en passant de Erdogan, nos posts dos ignorantes sai como um palavrão, mas, ao contrário do palavrão, sem que se saiba o que significa, ou ig norando intencionalmente o que realmen te significa. Bibi não deveria ser surpreen der. Nem nós. Só que, ao contrário dos palavrões que ouvimos como expletivos e nem ligamos mais, não podemos nos permitir não ligar para isso. Nem nós nem Bibi. Nem ninguém.
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64 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Paulo g eiger cócegas no raciocínio
Há mais de um caminho para ser judeu
Associacão Religiosa do todo judeu
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Israelita
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encontra seu judaismo www.arirj.com.br +55 21 2156-0400 WORLD UNIONFOR PROGRESSIVE JUDAISM Próximo está o Eterno de todos que O buscam, de todos que O buscam com sinceridade. Salmo 145:18