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Rabino Sérgio R. Margulies
Considerações sobre a fé
rabino sérgio r. margulies
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Decidir gerar um filho ou uma filha é um ato de fé. Talvez a maior demonstração de fé possível. Exige orientar a vida em prol de um novo ser. Requer ter fé na capacidade de prover e educar. Demanda fé no mundo que recebe este novo ser. Se for colocado na balança da racionalidade e da ponderação calculista, talvez a tendência fosse optar por não ter filhos em função dos vários elementos tangíveis e intangíveis necessários para prover uma criação adequada, sem contar o imprevisível.
Ainda assim, o desejo de ter filhos impera sobre a racionalidade, tal como a fé prevalece sobre as ponderações da razão. Fé é uma emoção de difícil – senão de impossível – definição que nos mobiliza a realizar atos transcendentes. Trazer a este mundo uma geração futura é um ato transcendental. Fé é a confiança em que, nos passos rumo ao futuro, as circunstâncias da vida, se forem favoráveis, serão bem aproveitadas e, se forem desfavoráveis, serão superadas.
Traço marcante do ser humano contemporâneo é a busca do controle. Deste modo, aprimora a manipulação dos vários fatores que podem influenciar o destino da vida. Sapiens é o ser humano que, ao buscar o controle, reconhece os limites deste controle. Nem a tudo, muito menos a todos, podemos controlar. Fé é o reconhecimento deste limite. Constitui-se no ato de maravilhar-se com dimensões da vida que atuam além de nossa compreensão. Assim, através da fé, o caminhar que enseja o controle segue paralelamente à jornada de admiração do mistério.
O controle dá sensação de poder. Supremacia. Neste sentido, poder-se-ia afirmar que a fé, como estado espiritual que reconhece os limites humanos, traria uma sensação de inferioridade. Porém, ao contrário, permite nos revestirmos O ser humano de fé, ao compreender seu limite, poderá utilizar seu potencial de modo mais apropriado. A fé permite enxergar além do conflito, do confronto e da competição. A fé absorve o complemento, inclui o contraditório, abrange o aparentemente oposto.
Ilustrações: Myriam Glatt
de grandeza. A genuína grandeza é derivada tanto do potencial a ser desbravado quanto do reconhecimento dos limites impostos a este potencial. O ser humano de fé, ao compreender seu limite, poderá utilizar seu potencial de modo mais apropriado. O ser humano de fé entende que a expansão do seu potencial não é limitada ou ameaçada pela expansão do potencial dos outros. A fé permite enxergar além do conflito, do confronto e da competição. A fé absorve o complemento, inclui o contraditório, abrange o aparentemente oposto.
A fé não foca na ameaça externa, embora não deva ser cega às forças insanas que desdenham a existência do diferente. O foco da fé é o ato de transformar-se e aceitar-se. A partir daí, a fé favorece uma convivência interna entre o potencial e o limite. Quem coexiste consigo conseguirá mais facilmente estabelecer parcerias. Fé é a ponte construída através de vigas espirituais que superam o abismo que separa cada um de si e cada um do outro. Enquanto frequentemente associada ao fanatismo, a fé é justamente a reversão deste. O fanatismo rejeita os limites que a fé nos mostra.
O ser humano de fé não se frustra com os limites. Através da fé, ao invés de focar no limite imposto pela finitude, fazemos emergir a infinitude de cada finito. Explicando: os recursos – humanos, tempo, dinheiro, natureza – são limitados. A fé percebe os efeitos que os recursos limitados podem proporcionar. Estes efeitos podem, ao serem exponencializados com o tempo, ter repercussão infinita.
O imediatismo pode não enxergar isto, porém a visão moldada pela fé vislumbra mais adiante. Para que dos recursos finitos sejam extraídos efeitos permanentes além do aqui e agora, é crucial utilizá-los corretamente. Assim, a fé é tanto a relação transcendental com uma dimensão maior quanto uma relação fundamentada na concretude dos princípios que norteiam os vínculos sociais.
Ter fé é lidar com o medo. O ser humano receia o desconhecido. Teme pelo que pode acontecer. Apavora-se diante de consequências indesejadas. Tenta, para lidar com este medo, desenvolver tecnologias que aumentam a capacidade de antecipar o imponderável. A fé não é uma vestimenta de ilusão. Ainda que sejam desenvolvidas – e é
A fé não é um salutar que assim seja – técnicas apuradas mecanismo de negociação com Deus. de previsão nos vários âmbitos da vida, a fé reconhece que nem tudo pode ser previsto ou antecipado. Aceitar esta negociação Diante do medo do desconhecido seria um ato de o ser humano vislumbra um poder que desconfiança para com transmite uma sensação de tranquila in-
Deus. A fé é um ato vulnerabilidade. A fé reconhece a fragilidade do ser humano. Não importa o de confiança absoluta, quanto poderosos somos ou nos julguesem necessidade de mos, somos inevitavelmente vulneráveis garantia. A própria fé é a inúmeros dissabores e intempéries. A fé a garantia. busca de reverter o desespero diante da constatação da fragilidade. É a força que visa impedir sermos arrastados pela correnteza como náufragos sem boia. Convoca-nos para extrair do âmago do ser e dos vínculos sagrados de convívio familiar a energia que nos reconecta a uma vida plena. Talvez esta plenitude renovada seja distinta da de antes, mas nem por isso desprovida de bênção. Outra maneira de lidar com o temor perante o desconhecido é se agarrar numa religiosidade envolta de barganha com a força divina. A fé não é um mecanismo de negociação com Deus. Aceitar esta negociação seria um ato de desconfiança para com Deus. A fé é um ato de desconfiança absoluta, sem necessidade de garantia. A própria fé é a garantia. A fé não exige que os clamores sejam respondidos, por mais que gostaríamos que fossem. A possibilidade de externalizar estes clamores já é um passo importante. Em acréscimo, a resposta pode vir de uma forma que não percebemos. O nosso limite humano não necessariamente capta a maneira como as injunções divinas se manifestam. A fé não anula o medo, mas nos encoraja a não ficarmos paralisados, inertes, desconcentrados. Convoca-nos a prosseguirmos com o vigor possível, com a tenacidade viável, com o resgate das bênçãos. A fé apura nossa percepção e nossa ação para que resgatemos as centelhas de bênçãos que pairam à nossa volta. Centelhas que pareciam evaporar e bênçãos que pareciam se esvair são potencialmente resgatadas para nutrir nosso espírito e irrigar nossa alma. A fé atiça o sentimento de solidão. Da fé emergem perguntas: Quem está comigo? Quem me acompanha? Cadê Deus? Onde estão a bondade e a misericórdia? Em seu resgate pelas bênçãos, o ser humano, impulsionado pela fé, apura sua sensibilidade e vê devassidão e devas-
tação. A fé pode conduzir à decepção. A decepção, por sua vez, transportaria o espírito contrito à reclusão. É a solidão da fé. Seríamos como ursos que optam por hibernar nas cavernas do isolamento por entender que no mundo prevalece somente um tenebroso inverno. Ainda que o retiro possa ser circunstancialmente válido para o escrutínio da alma, a fé é mobilizada por um chamado:
“Se não há um ser humano, que ele seja você”, conforme sugere o Talmud no capítulo da Ética dos Pais. A fé resgata a mensagem dos que se calam em desprezo e dos que ensurdecem no descaso. “Vocês são testemunhas” – ensina o texto bíblico. A fé é um testemunho à vida. Estabelece uma parceria com o Criador da vida. Assim, a fé modifica a pergunta “onde está Deus?” para “onde deixamos a mensagem divina ir?”. A fé transforma o solitário estupefato com os acontecimentos em solidário. Acredita que o sopro do espírito solidário prevalece sobre o vendaval do abandono que um ser humano pode relegar ao outro.
A fé é um convite para assegurar nossas convicções e para fortalecer nossas certezas, mas a fé traz para cada ponto de exclamação um de interrogação. Fé é ter a capacidade de confrontar as certezas até então julgadas inabaláveis. É a capacidade de provocar turbulência para que a aceitação das proclamadas verdades não seja isenta do pensar, refletir e analisar. A fé provoca um turbilhão na calmaria das posições confortavelmente incorporadas. Com isto, a fé nos convoca para sermos timoneiros da nau de nossas vidas. A fé visa evitar que sejamos sugados pelos maremotos da passividade e do desinteresse. A fé que rejeita a dúvida é como um pássaro que nega o seu ninho. Só quer voar, mas não há onde se revigorar
Assim, a fé modifica para então voar novamente. A fé requer a a pergunta “onde está Deus?” para “onde dúvida para que o espírito inquieto possa encontrar seu ninho de aconchego a fim de voar novamente para a vida. A fé deixamos a mensagem não pressupõe seguir pela vida numa esdivina ir?”. A fé trada perfeitamente pavimentada e reta, transforma o solitário mas proporciona a compreensão de que estupefato com os os solavancos fazem parte desta estrada repleta de sinuosidade, aclives e declives acontecimentos em em meio aos trechos em linha reta. solidário. Acredita que A fé em sua transcendência permio sopro do espírito te habitar simultaneamente em nosso essolidário é mais forte pírito o tempo do passado, o presente e do que o vendaval do o futuro. Não somos donos da história, mas tampouco seus servos. Pertencemos abandono que um ser a uma história, mas a história também humano pode relegar nos pertence. Por isso, o futuro também ao outro. nos pertence. Através da fé reconhecemos fatores que impossibilitam precisar qual será o futuro, mas permite afirmarmos que este futuro nos pertence e por nós pode ser construído. A construção do futuro tem uma viga: a esperança. A esperança é a chama que faz a fé brilhar e resplandecer. Construir o futuro é criar vidas ou propiciar um mundo melhor para as novas vidas. Ou ambos. Esta construção anseia transformar pântanos em terras áridas e desertos em bosques, tal qual almeja irrigar o espírito atormentado, semear o coração apequenado e fazer florescer na mente ofuscada a admiração pelo encanto da vida. Em fé perguntamos: acontecerá? Em fé honesta respondemos: acreditamos que sim, mas não sabemos por certo! E em fé plena afirmamos: seja como for, estaremos juntos e isto já será uma bênção. Fé é estar junto: consigo próprio, com os outros, com Deus. Sérgio R. Margulies é rabino e serve a Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro (ARI).
Myriam Glatt, cujo trabalho ilustra os artigos do Rabino Sergio Margulies e de Raul Gottlieb, estudou no Colégio Barilan, graduouse em arquitetura nos anos 1980 e depois viajou para a Califórnia para estudar Artes Aplicadas. Nos anos 1990 trabalhou com cenografia em vários segmentos, tais como teatro, TV, vitrine e fotografia. A partir de 2008 se voltou para as Artes Plásticas e estudou cinco anos no Parque Lage, de 2008 a 2012. Em paralelo desenvolve um trabalho de arte judaica, ligada às suas raízes e em diálogo com a arte contemporânea. Atualmente mantém um atelier no Rio de Janeiro, cursa pósgraduação em Arte e Filosofia na PUCRJ e prepara uma exposição na Galeria Tac.

