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Orna Messer Levin
as sinagogas CarioCas na visão de João do rio
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orna messer levin
O cronista da Belle Époque
Quem lê os jornais diários poderia imaginar que o Brasil é um país essencialmente católico ou positivista” anotou em 1905 Paulo Barreto, vulgo João do Rio, na apresentação ao livro As religiões no Rio. Entretanto, completou, a capital do País pulula de religiões. E concluiu: em cada rua há um templo, em cada homem uma crença diferente e ainda ignorada pela maioria. Foi pensando em diminuir o que diagnosticava como sendo um desconhecimento absoluto a respeito da fé religiosa de seus contemporâneos que ele publicou na Gazeta de Notícias, a partir de 22 de fevereiro de 1904, as célebres reportagens mais tarde reunidas no livro com selo da Editora Garnier. Durante aproximadamente um mês, após o carnaval de 1904, João do Rio fez circular entre os assinantes da Gazeta, um dos mais importantes matutinos do período, matérias de caráter informativo nas quais tratava das crenças populares e das organizações religiosas da cidade.
No cabeçalho da Gazeta de Notícias havia sempre uma chamada com as principais manchetes do dia. Ali os editores do jornal lançaram as reportagens classificando-as como um inquérito. Diariamente uma chamada publicitária anunciava o tema da próxima edição, num claro empenho promocional destinado a atrair os leitores para um assunto até então inédito na imprensa. Não é preciso dizer que as reportagens sobre as religiões fluminenses fizeram um sucesso enorme. As vendas da folha, comercializada a 100 réis, aumentaram e o nome do jovem Paulo Barreto, que há pouquíssimo tempo tinha adotado o pseudônimo de João do Rio, ganhou projeção nas rodas literárias e nos cafés do centro. Como consequência, a primeira edição em livro logo se esgo-
tou. A obra ganhou oito tiragens sucessivas, alcançando, por volta de 1910, a soma extraordinária de 8.000 exemplares vendidos. Nesse ano João do Rio também conseguiu realizar o sonho dos bacharéis e ingressou na Academia Brasileira de Letras.
Tamanha notoriedade decorria, em parte, do fato dele ter sido o primeiro a realizar incursões nos territórios frequentados pela parcela menos privilegiada da sociedade, à cata de assuntos para compor suas crônicas. Para escrevê-las, perambulava, vagueando ao estilo do flâneur, por redutos sinistros, regiões escuras da metrópole, que constituíam a contraface da visão luminosa do progresso republicano. Algumas dessas reportagens foram reunidas no livro A alma encantadora das ruas (1908), no qual há retratos da tragédia diária experimentada por imigrantes, trabalhadores da estiva, operários, ambulantes e marginais. O volume contém registros curiosos do modo de ser e de pensar de um contingente crescente de populares subempregados, biscateiros e pessoas que sobreviviam atuando em ofícios ilegais, como tatuadores, fumadores de ópio e curandeiros. A existência dessa população carioca representava um mistério para a maioria dos leitores instruídos que, por isso, buscavam avidamente as informações veiculadas na imprensa.
João do Rio, partindo da ideia de que a vida social equivaleria a um palco de teatro onde as pessoas desfilam máscaras cotidianas, tentava perseguir os segredos que, a seu ver, se encontravam guardados nos esconderijos mais recônditos das almas. Interrogava trabalhadores e ouvia relatos de gente das ruas, anônimos do bas-fond, tentando compreender o submundo da contravenção e do crime. Quanto a isso, compartilhava das noções que norteavam a linhagem do esteticismo decadentista de Oscar Wilde, autor em quem se espelhou e de quem, aliás, traduziu o livro de ensaios Intenções, o romance O retrato de Dorian Gray e a peça Salomé. Atualmente, João do Rio é apontado como o pioneiro do jornalismo moderno no Brasil. Suas crônicas contribuíram para a reformulação do exercício tradicional da profissão, a partir do qual surgiram os princípios da reportagem moderna, que continuam em vigor até hoje. No lugar do escritor recluso das redações, renovou a figura do jornalista, saindo às ruas para colher in loco os dados com que redigia suas matérias.1 Interessou-se pelo estudo dos fenômenos psicossociais, aproximan-
João do Rio partia da ideia de que a vida social equivaleria a um palco de teatro onde as pessoas desfilam máscaras cotidianas.
do-se dos métodos de investigação utilizados à época por médicos e etnógrafos, tais como Nina Rodrigues, autor de Os africanos no Brasil, que empreenderam pesquisas de campo inovadoras.2
Na imprensa brasileira reproduzia-se o padrão gráfico e editorial dos jornais franceses. De Paris vinham os tipos gráficos, as informações enviadas pelas agências telegráficas e os clichês das litogravuras. Chegou-nos da imprensa parisiense a moda de publicar inquéritos, enquetes e entrevistas com personalidades. João do Rio abriu esse filão entre nós ao propor a publicação de entrevistas. O primeiro conjunto realizou com diplomatas que opinaram a respeito da questão da imigração. Essa consulta, de teor político, antecedeu o inquérito sobre as religiões publicado na Gazeta, motivando, por sua vez, uma terceira série com medalhões da intelectualidade brasileira. Publicadas entre março e maio de 1905, as entrevistas com escritores se intitularam Momento Literário. As perguntas enviadas foram feitas por escrito e especulavam a respeito da concorrência entre o jornalismo e a literatura. O assunto causou irritação e desconfiança em alguns acadêmicos. Da mesma forma, causaram confusão as cinco reportagens religiosas da Gazeta que versaram sobre os cultos afro-brasileiros. A divulgação aberta de detalhes da hierarquia sacerdotal e de endereços onde os ritos se realizavam não agradou nem um pouco a comunidade negra, que temia a ação repressiva da polícia. Apesar de a liberdade religiosa estar garantida na Constituição da República, a perseguição a pais-de-santo negros era frequente. Muitos vinham sendo detidos sob a acusação de prática de exploração da credulidade pública.3 Por isso, quiseram identificar quem havia servido de guia e informante a João do Rio.
O Inquérito
Acredita-se que para montar o plano de As religiões no Rio, João do Rio tenha tirado inspiração no inquérito publicado por Jules Bois no jornal Le Figaro e editado no volume Les petites réligions de Paris, em 1898. Há semelhanças na concepção geral e nas religiões apresentadas aos lei-
Ele foi o primeiro a tores. Em ambas o jornalista visita igrejas, realizar incursões nos territórios frequentados conversa com sacerdotes e desvenda seitas minoritárias na cidade. Algumas coincidem, como é o caso da Igreja da Hupela parcela menos manidade, que corresponde à Igreja Poprivilegiada da sitivista existente no Brasil. A Igreja era sociedade, à cata frequentada pela família de João do Rio, de assuntos para cujo pai, Alfredo Coelho Barreto, nascido em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, compor suas crônicas. bacharelou-se em Engenharia pela Escola
Para escrevê-las, Politécnica do Rio de Janeiro onde travou perambulava, vagueando contato com a filosofia de Comte. Militaao estilo do flâneur, res e matemáticos como ele, lente no Gipor redutos sinistros, násio Nacional, atual Colégio Pedro II, foram os primeiros entusiastas do pensaregiões escuras mento científico que começou a ser divulda metrópole, que gado no país em 1864 com o livro Escraconstituíam a contraface vidão no Brasil, do dr. Brandão. Na década visão luminosa do progresso republicano. da de 1880, Ferreira de Araújo iniciou a divulgação nas páginas da Gazeta de Notícias com a coluna Centro Positivismo. O templo que João do Rio visitou localizava-se à Rua Benjamin Constant. Assim como os filhos de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, que ainda faziam ali as prédicas dominicais, João do Rio recebera sacramentos nessa Igreja. O Centro dos positivistas fora o responsável pela organização de procissões cívicas e tivera uma intervenção enorme no início da República. Durante a visita de João do Rio, o entrevistado citava exemplos da colaboração dos positivistas na definição da bandeira nacional, na separação entre a Igreja e o Estado e na reforma do Código Civil, especificamente no caso da tutela dos filhos. Ao todo, afirmava ele, havia no Brasil 700 filiados, sem contar os incontáveis simpatizantes. Não deixa de ser interessante que João do Rio tenha se interessado em catalogar e descrever atentamente diferentes dogmas e crenças da população fluminense numa época em que o pensamento científico era tomado como uma espécie de bandeira civilizatória. Familiarizado com a religião católica, afinal recebeu educação teológica no Colégio de São Bento, reduto da elite carioca, e também com a filosofia positiva, por influência do pai, mostrou-se determinado a fazer uma imersão etnográfica pelo universo de outras ortodoxias.4 Depois de visitar pessoalmente os ambientes devocio-
(Continua na p. 34)
Revista Devarim chega à 20a edição

Chegamos ao vigésimo número de Devarim. No conjunto publicamos centenas de textos, em sua grande maioria originais e escritos especialmente para a revista por pessoas de todas as partes do mundo, mas principalmente do Brasil, com predominância de autores que não escrevem profissionalmente. Provamos que os judeus do Brasil são intelectualmente ativos, criativos e interessados na vida religiosa moderna e em suas questões.
Mais de meio milhão de palavras foram impressas em Devarim nestes oito anos. Destas, selecionamos as duas mil mais frequentes (eliminando artigos e preposições) e criamos, com a ajuda da ferramenta “Wordle”, a nuvem desta página. Nela é possível identificar quais temáticas nos mobilizam. O destaque ficou com a pertinência judaica, tipificada pela palavra “ser” acompanhada pela série de palavras que remetem à nossa identidade: “Israel”, “judeus”, “judaísmo”, “Brasil” e outras. Divirtamse com a análise da nuvem, muitas conclusões podem emanar dela.

nais, recolher informações com membros das seitas, interrogar interlocutores selecionados espontaneamente e mostrar curiosidade pelos depoimentos, redigiu 23 crônicas consideradas pioneiras, seja em razão do tema, seja pelo método adotado. O caráter histórico e documental dessas crônicas reside na observação criteriosa de dados acerca dos fundadores, dos líderes em atividade, dos recursos financeiros, dos rituais, da difusão em outros Estados da federação, da manutenção ou não de escolas e publicações, bem como de questões referentes à governança das sociedades religiosas. Ainda que se possa verificar certa dose de invenção nas descrições, os textos são essencialmente fiéis ao que existia no Rio de Janeiro no início do século XX.
No livro, as religiões foram ordenadas segundo suas origens e similaridades. No grupo relativo às igrejas evangélicas, subdivididas em seus diversos ramos, João do Rio se ocupou das sociedades presbiterianas, batistas, metodistas e adventistas. Visitou a Igreja Fluminense, fundada em 1858 pelo médico escocês Robert Reid Kalley, que chegou ao Brasil vindo da Ilha da Madeira para pregar o amor a Cristo e esteve na Igreja Presbiteriana na Rua Silva Jardim no 15, que havia sido fundada em 1861 por missionários americanos. Ao contrário da Igreja Fluminense, enfatizou, a propagação dos puritanos contou com recursos transferidos do exterior. Por esse motivo, a Igreja Presbiteriana já possuía um salão espaçoso e reluzente, no qual cabiam 800 pessoas. Na Igreja Metodista da Praça José de Alencar, João do Rio pôde assistir a uma cerimônia de casamento. Esclareceu que se tratava de um desdobramento da Igreja Episcopal, cujas atividades se iniciaram 27 antes em uma pequena casa da Rua do Catete. Outro ramo da Igreja protestante americana que se instalou no Brasil em 1884 aparece representado no templo Batista, situado à Rua Santana. Destaca-se ainda a visita à Associação Cristã de Moços.
Ao lado das Igrejas oficialmente estabelecidas, João do Rio identificou um grupo de cultos diabólicos menos visíveis. Nesse elenco incluiu o satanismo, a missa negra e o exorcismo como práticas recorrentes de louvor a satã. Tão
Era Purim quando João surpreendentes quanto estas lhe parecedo Rio visitou uma sinagoga acanhada ram as assim chamadas “sacerdotisas do futuro”, isto é, feiticeiras, videntes, cartomantes, quiromantes, grafólogas e bruem funcionamento no xas que compunham um mundo exótisobrado simples da co de profissionais da sorte. Afirmava ter
Rua d’Alfândega no visitado mais de 80 estabelecimentos da303. Pela descrição quele tipo de exploração do futuro onde se garantia predizer a sorte dos ricos. Faminuciosa que João do zendo-se de oráculos, prometiam curar, Rio nos oferece é fácil salvar, trazer fortuna ou desfazer desgraimaginar o ambiente ças. No entender do cronista, as sacerdono qual ele ouviu, tisas tomavam conta dos bairros e infestanum misto de fascínio vam a cidade enganando os fiéis ignorantes com consultas falsas. Citava a Casa de e estranhamento, a Cartomancia na Rua do Ouvidor, a Celeitura da Meguilat guinha vidente da Rua da Misericórdia, Esther e acompanhou os Rosa, que olhava na água e se dizia astróbatuques alegres. loga atuando numa rua paralela à praia de Botafogo, uma corcundinha instalada na Rua General Câmara e uma tal M.me Mathilde na Rua do Catete. Se na sociedade mais baixa João do Rio havia encontrado essa centena de mulheres que classificou como “traficantes”, pois, na sua opinião, enganavam a credulidade dos ignorantes com uma inconsciente mistura de feitiçaria e catolicismo, entre a gente mais educada constatou, com certa perplexidade, a existência de um número talvez até maior de salas de espiritismo, onde se realizavam estudos do fenômeno psíquico e de adivinhação do futuro “com um ar superiormente convencido”. Verificou que a federação espírita tinha 800 sócios e, em 1903, havia expedido 8.000 receitas de curas mediúnicas, além de manter a publicação de 19 jornais no Brasil. No grupo das correntes religiosas de origem africana, João do Rio revelou aos leitores da Gazeta de Notícias as práticas de feitiçaria e os rituais de possessão de ex-escravos ligados ao candomblé. Percorreu terreiros e casas na Cidade Nova, Gamboa, Santo Cristo e nas redondezas da Praça Tiradentes para encontrar remanescentes africanos, os quais, segundo relatou, se dividiam em três categorias: os alufás ou malês, maometanos habilitados na leitura do Alcorão, originários das etnias haussá e iorubá que seguiam os rituais da fé, não comendo porco e jejuando 40 dias no Ramadã; os orixás pertencentes às etnias gêge e iorubá, que

De acordo com João do Rio havia no Rio de Janeiro cerca de cinco mil maronitas, confundidos com os turcos.
tinham uma hierarquia complexa de divindades misturadas às santidades do catolicismo, correspondente hoje ao candomblé; e os cabindas, que pertenciam às pequenas nações no interior da África, dos quais restaram uns mil negros seguidores da macumba.
Na vertente semita receberam destaque os judeus e os maronitas. Estes últimos eram descendentes dos Aramilos, filhos de Aram. Sua capela ainda se encontrava em construção, em um terreno na Rua Senhor dos Passos, uma vez que a Irmandade havia sido fundada apenas em 1900. Enquanto a edificação não era inaugurada, os cristãos sírios celebravam as missas nos bairros da Saúde e Cascadura. De acordo com João do Rio, havia no Rio cerca de cinco mil maronitas, embora no Brasil eles chegassem a 50 mil. Quase sempre os maronitas eram confundidos com os turcos, porque não dominavam direito o português e trabalhavam no comércio da Rua da Alfândega e dos subúrbios, mesmo quando possuíam instrução superior. Havia, segundo João do Rio, médicos, jornalistas e doutores no comércio. A imagem positiva dos maronitas, segundo se depreende em seu relato, resultava do fato de serem os cristãos sírios hábeis nos negócios e pacifistas.
Pelas sinagogas
Era Purim quando João do Rio visitou uma sinagoga acanhada em funcionamento no sobrado simples da Rua d´Alfândega no 303. Uma parte dessa casa despojada de luxo servia de moradia para o hazan Moisés e sua esposa. Na sala de jantar, o hazan, que tinha feições espanholas, pusera ornamentos representando as 12 tribos de Judá. Na sala da frente, onde funcionava a sinagoga, as paredes eram limpas, só de tábuas de madeira, tendo ao fundo a arca, com cortina de seda, onde se guardava o livro sagrado. O hazan se posicionava sobre o altar de vinhático envernizado para fazer a leitura e cantar.
Pela descrição minuciosa que João do Rio nos oferece é fácil imaginar o ambiente no qual ele ouviu, num misto de fascínio e estranhamento, a leitura da Meguilat Esther e acompanhou os batuques alegres. Do teto do salão, segundo suas indicações, pendiam “em correntes brancas
Nas estatísticas de João do Rio havia no Rio de Janeiro dez mil judeus de diferentes segmentos sociais.

grandes vasos de vidro, cheios de água, onde lamparinas colossais queimavam, crepitando”. Sobre o altar, “um lustre de cristal chispava luzes em múltiplos pingentes”, criando uma atmosfera de sonho estranho e fantasia.
Foi nessa sinagoga indicada por um negro falasha que ele presenciou, no dia 14 de Hadar de 5664, as comemorações festivas do “carnaval nas sinagogas da Sion fluminense”, conforme sua expressão. Os divertimentos e as alegrias que Mardocheu (Mordechai) determinou ao triunfar sobre Aman foram celebrados ali com satisfação por cerca de quatro mil judeus. Os perfis morenos indicam a descendência espanhola e árabe dos presentes que estavam, diz o cronista, vestidos “à moda hebraica”, com túnicas e alpercatas mostrando os pés. Os homens usavam chapéus e as mulheres portavam lenços.
Na estatística de João do Rio havia no Rio dez mil judeus festejando a maravilhosa influência da linda Esther sobre o reinado de Assuero, cujo poder se prolongava da Índia até a Etiópia. Esses dez mil judeus divertiram-se, trocaram presentes, cantaram, beberam e ouviram mais uma vez a narrativa exemplar de Purim conduzida pelos hazanim nas várias sinagogas abertas. Nem todos, alertava o cronista, podiam festejar com alegria na alma. Em suas investigações, João do Rio pôde verificar dentro da comunidade distinções que atribuía ao nível econômico das famílias ou às tradições culturais de origem.
Reconhecia a presença de diferentes segmentos sociais, apontando israelitas franceses, russos, ingleses, turcos, marroquinos e árabes. Incorrendo em alguns enganos interpretou de forma equivocada o que supunha ser uma divisão de seitas entre os asquenazis, comuns na Rússia e na Alemanha, os falashas da África, os Rabanitas e os Caraítas. Sua preocupação, no entanto, parece ter sido a de mostrar os contrastes entre as classes sociais dentro da comunidade israelita do Rio. Como de hábito, procurava vasculhar os subterrâneos da fé, tentando jogar luz também sobre a parte “exótica” dos seguidores de Israel, para compreender a psicologia da gente com vida precária.
De um lado, João do Rio enfatizou a riqueza dos judeus ligados ao comércio de luxo, joalheiros que dominavam na cidade a arte dos brilhantes ou investidores da bolsa de valores, negociantes, em geral, ingleses, franceses e alemães. Esses cavaleiros de vida mundana veraneavam em Petrópolis e frequentavam as altas rodas da sociedade carioca, resguardando-se com absoluta discrição. Uns, de acordo com o cronista, praticavam o culto íntimo, outros não precisavam de hazan porque faziam juntos apenas as duas grandes celebrações do calendário anual: Iom Kipur e Rosh Ha Shaná. Com uma ponta de indignação provocativa, João do Rio adicionou o comentário de que os judeus ricos do Rio não tinham ligações com os humildes, nem os protegiam, como em Paris e Londres faziam os banqueiros Hirsch e Rottschild. Tampouco se preocupavam muito com a construção de sinagogas, estabelecendo-as em salas de prédios do centro.
Um outro grupo numeroso era formado, segundo o cronista, por judeus armênios e marroquinos que chegaram ao Brasil em levas recentes de imigração. Os judeus
árabes, na visão do cronista, vieram sem recursos, quase miseráveis, mas estavam prosperando. Começaram a vida como camelôs, ambulantes e empregados de lojas no centro, ao lado dos maronitas, dos turcos maometanos e dos gregos.
Outra parcela numericamente significativa era aquela constituída pela gente ambígua, que morava no centro onde, sob a ótica higienista do repórter, “vicejavam os vícios”. João do Rio refere-se nesse particular às pensões situadas no triângulo central demarcado pela Praça Tiradentes e as Ruas do Núncio, Sete de Setembro, Luís de Camões, Senhor dos Passos, Tobias Barreto, Espírito Santo e as transversais da Rua Conceição. A região era habitada por gente simples e barulhenta, mulheres subjugadas pelos maridos e cáftens que obrigavam moças a entrar no meretrício.
O que se torna interessante é que João do Rio informa haver nessas pensões baratas e sujas uma sala ocupada por modista e outra destinada à sinagoga. As mulheres eram em maioria. Tinham desembarcado no Rio vindas de Marselha, da Rússia e de Buenos Aires. A impressão deixada no repórter é de que essas moças faziam questão de se declarar judias e guardavam a fé. No Dia do Perdão, os prostíbulos se fechavam, pois todas faziam jejum e orações. Da mesma maneira, em Purim, as sinagogas ambulantes funcionavam animando e alegrando as pensões com as cantorias.
Contrastando com essa visão um tanto repulsiva do segmento mais baixo da comunidade, João do Rio fez questão de ressaltar que as levas migratórias de israelitas também fizeram vir ao Brasil homens cultos e inteligentes. Para ilustrar isso, destacou a visita à sinagoga da Rua Luís de Camões. Ali encontrou o hazan David Hornstein, um professor poliglota, correspondente de jornais hebraicos e rabino diplomado pela Universidade Talmúdica. Antes de vir ao Brasil o hazan vivera na Palestina, na histórica colônia que o barão Rottschild instalou em Rishon Le Tzion. Quando ocorreu a sublevação dos colonos, o barão decidiu eliminar o projeto, levando à dispersão dos revoltosos, dentre os quais havia russos niilistas, pelo que consta na crônica de João do Rio. Alguns ex-colonos, como o rabino David, seguiram seu caminho na direção de Beirute, depois Paris e Brasil.
Naquela sinagoga, João do Rio acompanhou a leitura dos rolos da Torá e as bênçãos do hazan. Em suas anotações registrou que o rabino Hornstein já havia oficializado cerimônias de descoberta de 150 sepulturas, cerca de 700 circuncisões, diversos casamentos e conciliações. Sua impressão sobre a figura sóbria e solene daquele culto sacerdote era bastante positiva e contrastava, sem dúvida, com o perfil das damas de “vida airada”.
A essa altura, vale a pena reiterar o caráter informativo das observações de João do Rio sobre a comunidade judaica carioca no alvorecer do século XX. Convém situá-las no conjunto de reportagens cujo intuito era transmitir aos leitores informações obtidas por intermédio de informantes e membros das associações religiosas. É notável o deslumbramento que o cronista da nossa Belle Époque demonstra diante da perspectiva histórica daquelas riquíssimas heranças judaicas. Tal é o fascínio de João do Rio que, ao descrever a festa de Purim, ele cria a sensação de que a leitura da meguilá conseguia impregnar os ouvintes, confundindo passado e presente.
Escritor habilidoso, João do Rio soube manipular estilisticamente a descrição da festividade antiga fazendo com que seus leitores imaginassem que “daquele livro sagrado, entre aquelas iluminações, emanava a suprema delícia; era como se cada palavra recordasse os banquetes dados aos príncipes nos átrios do palácio decorado da cor do céu, da cor do jacinto e da cor da açucena; era como se cada período abrisse a visão das colunas de mármore, dos leitos de prata e ouro e dos pavimentos embutidos, onde esmeraldas rolavam...”
E, por fim, como quem sabe controlar os efeitos inebriantes, arrematou ponderando: “Nós estávamos apenas numa sala estreita que fingia de sinagoga, no fim da Rua da Alfândega”.
Notas
1. Marcelo Magalhães Bulhões – Literatura e jornalismo em convergência. São Paulo:
Ed. Ática, 2007. 2. João Carlos Rodrigues. João do Rio – Uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 3. João Carlos Rodrigues. op.cit., p.52. 4. Julia O’Donnell. De olho na rua, a cidade de João do Rio. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008.
Orna Messer Levin é professora do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL – Unicamp), autora de As figurações do Dandi – um estudo sobre a obra de João do Rio (Campinas, Unicamp, 1996) e organizadora de Teatro de João do Rio. Coleção Dramaturgos do Brasil (S.P., Martins Fontes, 2002).
