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Rabino Dario E. Bialer
o Profeta elias: PaCtos, alianças e ruPturas, desde a éPoCa bíbliCa até os nossos dias
rabino dario e. bialer
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Oprofeta Elias é uma das figuras mais conhecidas e enigmáticas de toda a literatura bíblica. Quase todos os judeus, sejam mais ou menos estudiosos e praticantes da lei, costumam deixar-lhe uma taça de vinho e manter a porta aberta de suas casas para que ele lhes visite na noite do Seder de Pessach, bem como uma cadeira reservada para ele em cada brit-milá. E semanalmente, na Havdalá (cerimônia que marca a finalização do Shabat), lembramo-nos dele cantando: “Elihau ha navi, Elihau ha tishbi, Elihau ha guiladi, bimera beiamenu iavo elenuim Mashiach ben David.”
Ou seja, a cada semana declaramos que ele vai voltar para anunciar a chegada do Messias. O que faz um homem, por mais profeta que seja, junto com o Messias? É bastante simples de entender. Elias, de acordo com o que está documentado na Bíblia, não morreu e sim ascendeu ao céu, como está escrito: “Enquanto [Elias e Elishá, seu discípulo] andavam e conversavam, eis que uma carruagem de fogo com cavalos de fogo surgiu entre eles, e Elias ascendeu ao céu num redemoinho.” (Reis II, 2:11). Quer dizer, é um ser que não está nem vivo entre nós nem morto. Ele está junto de Deus e lá ficará até que lhe seja indicado voltar junto com o Messias.
Sua morte foi sobrenatural da mesma forma que sua vida também o foi. Sua missão profética não foi a de uma profecia tradicional, de chegar junto ao povo e anunciar a palavra de Deus.
Ele foi um profeta fortemente vinculado à magia, como vemos em Reis I, capítulo 17: “Ele se jogou sobre o menino [morto] três vezes e clamou ao Eterno dizenEm tempos de crise espiritual ou econômica, o número de candidatos potenciais às tarefas proféticas aumenta drasticamente. A popularidade do profeta Elias é consequência da fragmentação social no reino de Israel que foi bem capitalizada por ele.
do: Oh Eterno, meu Deus, por favor, faça com que a alma desta criança volte a ele. O Eterno atendeu ao pedido de Elias e a alma do menino retornou a ele e ele ressuscitou”. Além da magia, Elias também se caracterizou pelo temor que despertava, tanto entre os seus seguidores como, especialmente, ao poder político que enfrentava. Na concepção bíblica a dupla Achab-Jezabel foi a dinastia real mais pecaminosa, aquela que mais desafiou a sobrevivência espiritual de Israel. Foi no tempo deles que viveu Elias e marcante foi seu furor contra eles.
A riqueza e o êxito político de Achab se manifestaram no desenvolvimento das cidades com um magnífico programa de edificações. Somos informados a respeito disto tanto pela narrativa bíblica (Reis I 16:34 e 22:39) como pelos restos arqueológicos achados em Samaria, Megido, Siquem e Jericó. A Bíblia registra a construção em Samaria de uma imponente casa de Baal para atender as necessidades rituais da rainha Jezabel (Reis I 16:32). Um rei de Israel construindo um templo pagão!
Em tempos de crise espiritual ou econômica, o número de candidatos potenciais às tarefas proféticas aumenta drasticamente. Nesse contexto, explica o rabino Felipe Yafe em sua tese de doutorado1, a grande popularidade do profeta Elias é consequência da profunda fragmentação social no reino de Israel que foi bem capitalizada por ele, ao ponto de constituir um poderoso exército de seguidores.
A divisão do povo se dava por duas linhas principais: por um lado havia aqueles que se instalaram em Canaã, tornaram-se camponeses e construíram suas casas no país. Em paralelo havia os homens que continuavam vivendo como pastores e que almejavam continuar a vida como era antes da conquista, da mesma forma como os arameus antepassados de Israel.
Para estes últimos, os padrões de vida de Israel deveria ser o dos nômades e não o dos agricultores sedentários, como o explica Fohrer: “O homem verdadeiro, o crente verdadeiro é o nômade. Portanto Israel deveria ter permanecido na montanha de Deus no deserto, daquela montanha que o Eterno os expulsou, sem o desejar, devido à sua maldade. O território em que edificaram seus santuá-
Devemos ser autênticos rios é apenas um substituto imperfeito do e fazer o nosso próprio caminho em vez verdadeiro lar de Israel: no deserto com a montanha de Deus. Os israelitas desertaram do Eterno no momento exato em de tentar trilhar os que se instalaram num território”.2 caminhos do passado. Já o reino via a cidade como o cenHoje é o presente, um tro da sociedade israelita e a idealização tempo que ainda não foi da vida nômade era uma clara oposição retrógrada ao processo de modernização vivenciado, que está em que estava tendo lugar. Esse contexto popermanente construção lítico-social impactou no fervor religioso e, portanto, merece que o povo rapidamente começou a deuma resposta inédita de monstrar. nossa parte. Elias alimentou esses sentimentos de raiva e frustração para minar a posição real que decidiu introduzir o culto de Baal e o consequente abandono dos caminhos de Deus. Elias reuniu àqueles que preferiam servir ao Deus do Sinai e do deserto como sendo a única expressão de suas lealdades religiosas, introduzindo uma espécie de “luta de classes” (nômades x sedentários) na luta contra a idolatria e a corrupção do rei. Assim se origina o episódio do Monte Carmel no qual, ante as exigências do comandante-profeta-militar-revolucionário, os homens imbuídos pela causa do Eterno mataram 750 profetas de Baal e Asherá (Reis I 18:40). Ele é apresentado como um herói. Aquele que salvou o pacto de Deus com o seu povo. Como um homem ao qual todos temiam. Isto também pode explicar as vezes que se atreveu a desafiar publicamente o rei em mais de uma oportunidade (ver entre outros exemplos Reis I 18:18-21 e 20:24). No Monte Carmel, onde David havia levantado um altar em honra a Deus, é Elias quem o recupera e salva um pacto que está se extinguindo. Essa atitude é interpretada por Murphy3 entre outros autores como a pretensão de Elias a se elevar como um novo e segundo Moisés. Essa ideia me lembrou que, no relato seguinte ao da matança para preservar o pacto, Elias definitivamente assume querer ocupar o lugar vazio deixado pelo grande libertador do povo no Êxodo do Egito. Elias embrenha-se no deserto, como era de se esperar, pois esse é o seu lugar, mas com um propósito que surpreende. Está escrito no texto: “Levantou-se, comeu e bebeu; e com a força daquela comida caminhou quarenta dias e quarenta noites até Horeb [mais conhecido como Sinai], a mon-
tanha de Deus. E quando chegou, subiu na montanha (...) e eis que nesse momento passava o Eterno, como também um forte vento que fendia os montes e quebrava os penhascos; porém Deus não estava no vento; e depois do vento um terremoto; também o Eterno não estava no terremoto; E depois do terremoto um fogo; porém o Eterno também não estava no fogo; e depois do fogo, uma voz suave e delicada, que num sussurro lhe diz: Que fazes aqui, Elias?”.
Subir a montanha, o vento forte, a terra tremendo e o fogo, a que se assemelha este relato? Vejam em Shemot / Êxodo 19:16-18:
“Ao terceiro dia, ao amanhecer, houve um forte vento, trovões, relâmpagos, e uma nuvem espessa sobre o monte; e ouviu-se um shofar muito forte, e todo o povo estremeceu (...) todo o monte Sinai fumegava, porque Deus tinha descido sobre ele em fogo; (...) e o monte tremia fortemente”.
O relato acima é o da subida de Moshé ao Monte Sinai para receber as tábuas da lei. As histórias de Elias e de Moshé parecem ser exatamente a mesma! Os dois andam no deserto por quarenta dias, ambos sobem ao Monte Sinai para encontrar a Deus, com idêntica descrição dos fenômenos que aconteceram quando da revelação. Tudo igual, mas com uma diferença fundamental, que se revela sutilmente: enquanto que com Moshé todo o impressionante cenário vai crescendo, até chegar ao momento culminante em que ele efetivamente se encontra com Deus e recebe a Torá, com Elias parece que Deus quer fugir da situação. Há o vento, mas Deus não está no vento. Vem um terremoto, mas Deus não está no terremoto. Um fogo desce do céu, mas Deus não está no fogo. Deus não está em nenhum desses grandes acontecimentos, mas num sussurro, uma voz suave, que não lhe revela a Torá, mas lhe questiona delicadamente: O que você está fazendo aqui?
O que o texto, cheio de sutil ironia nos transmite, é uma mensagem muito importante: que não podemos viver a vida do outro. Que devemos ser autênticos, e fazer o
nosso próprio caminho em vez de tentar trilhar os caminhos do passado. Que os acontecimentos históricos não podem ser revividos porque os entornos evoluem e as circunstâncias já não são as mesmas. Hoje é o presente, um tempo que ainda não foi vivenciado, que está em permanente construção e, portanto, merece uma resposta inédita de nossa parte.
O que pensava Elias? Provavelmente que chegaria ao Sinai e Deus iria lhe parabenizar pela luta contra a idolatria e contra os desmandos do rei e entregar outra Torá para ele? Que o iria nomear um segundo Moisés, fundando através dele novamente o povo de Israel?
Talvez Elias imaginasse o que muitos de nós alguma vez fantasiamos: poder voltar o tempo atrás e, desde esse passado imaculado e perfeito (porque idealizado), apagar a transgressão e as imperfeições (porque real) do tempo presente. Mas Deus rejeita Elias, e com isto rejeita a volta aos formatos da geração do êxodo, pois a realidade não pode se negar, a realidade deve se abraçar, vivenciar e transformar.
Elias rejeita a transformação social de sua geração e pretende voltar ao passado copiando exatamente o que Moisés fez. Se aquilo fez sucesso no passado, por que não copiar a mesma fórmula no presente? Mas esta atitude faz dele uma caricatura.
E é esta caricatura que o texto sagrado descreve na delicada pergunta divina sussurrada a Elias: “O que fazes aqui?”, pois o judaísmo sempre foi, e continua sendo, a tentativa de acrescentar nossa narrativa aos textos sagrados, inscrevendo neles nossas ações e não falsificando o presente (por exemplo, copiando o relato do Sinai e mudando o nome do seu protagonista) tentando acomodá-lo aos entornos do passado. Nada mais antijudaico e nada mais absurdo que isto. O afastamento do mundo nunca foi o ideal da Torá.
Fugir ao deserto ou a Mea Shearim são duas tentativas idênticas de deixar tudo como alguma vez foi. Isso rompe com o vínculo que o judaísmo sempre teve com as mudanças e com o mundo. Quando o homem deixa de criar

e começa a copiar o passado a resposta divina (também aos Elias da nossa geração) não demora a exclamar: O que estão fazendo aqui?
Moisés e a entrega de Torá no Sinai, com uma reveladora mensagem atemporal, são o produto de um contexto determinado. Existe um Moisés porque existe a necessidade de criar um padrão comportamental de liberação da opressão e existe nesse momento a Torá, porque existe a necessidade de mostrar o caminho para a construção de uma sociedade justa e igualitária.
Mas não era essa a realidade na qual vivia o profeta Elias, da mesma forma que a vestimenta dos Chassidim – que com uma visão profundamente inovadora realizaram uma transformação cultural e religiosa sem precedentes na modernidade – era funcional no contexto em que eles surgiram, porém não faz mais sentido hoje.
Portanto, o cartão postal do homem de preto rezando ao pé do muro não deveria ser a imagem paradigmática do judeu. Isso não faz justiça à rica história judaica, pois não faz nenhum aporte original. É uma mera cópia do passado.
A prolífica literatura de relatos chassídicos transcende completamente o entorno onde ocorreram de tal forma que as caricaturas que vemos hoje andando pelas ruas acabam ridicularizando uma cultura de raízes profundas que realmente fez um aporte singular e significativo.
Seguramente a história que mais contraria o Chassidismo atual é o conto sobre a angústia de Rav Zussia4, o célebre mestre chassídico do século XVIII. O conto informa que jamais devemos pretender imitar outra pessoa, mesmo quando esta outra pessoa é um santo homem do passado:
“Chorando na véspera de sua morte, diz Zussia a seus discípulos: – Quando eu morrer e chegar ao tribunal celestial, não tenho medo que me perguntem: Zussia, por que você não foi tão grande quanto Moshé?, pois eu não sou Moshé. Também não tenho medo que me perguntem por que não fui tão fiel como Abraham, pois eu não sou a Abraham. Meu medo é que me perguntem: Zussia, por que você não foi Zussia? Pois aí eu não saberei o que responder!”.
Talvez o ser humano procure um refúgio no passado para garantir a si mesmo que está indo no caminho certo. Talvez a fantasia seja que se outros foram felizes trilhan-
Não há nada de sagrado do esse caminho, ou se uma determinada no passado! O sagrado está na tentativa de proposta religiosa foi satisfatória em algum momento, por que não fazer o mesmo? E a resposta judaica é contundente: buscar o sentido e a não há nada de sagrado no passado! O safelicidade no presente, grado está na tentativa de buscar o sentiatualizando a sabedoria do e a felicidade no presente, atualizandas experiências do a sabedoria das experiências passadas e criando também novas formas e modelos. passadas e criando Quando Rav Kuk, o primeiro grão também novas formas rabino do incipiente estado de Israel e modelos. ensinou: “Ha iashanitchadesh,veha chadashitkadesh – renovar o antigo e santificar o que foi renovado”5 ele, com sabedoria, estava orientando as pessoas na direção do contexto que o jovem estado exigia. Ele era um homem inserido no mundo, por isso ele podia ser chamado de grande rabino, enquanto que os que se autodenominam grandes rabinos na atualidade são percebidos como fanáticos pelo resto da sociedade, porque não enxergam o futuro, apenas o passado que ficou atrás. Eles, como o profeta Elias, confundem a realidade, misturando a justa luta contra a idolatria e a opressão com o ideal de voltar o tempo atrás santificando o passado e desconsiderando o que está nascendo. Sua luta é admirável, mas seu ideal é árido como o deserto, nada novo surgirá dali. É por isso que, por mais que acreditem ser os salvadores do judaísmo e a encarnação mesma de Moshé, se chegarem a subir o monte, Deus lhes perguntará singelamente: “O que vocês estão fazendo?”. Desculpem-me a heresia, mas com essas figuras como porta-vozes e aliados, duvido que o Messias tenha intenções de, por enquanto, chegar.
Notas
1. Yafe, Felipe C. Profetas Reis y Hacendados en la epoca Bíblica. Estudio teológico-sociológico y crítico del Israel preclásico, ed. Lumen, 1997. 2. Fohrer, G. History of Israelite Religion, ed. Nashville, 1972. 3. Ver Murphy, R. The figure of Elias in the Old Testament, Carmelus 15, 1968. 4. Ver em Buber, Martin, Or Ha ganuz, ed. Shoken, 1946. 5. Igrot ha Rav Abrham Itzchak ha Cohen, Jerusalem, 1946. O Rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Israelita – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Aires, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém.