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Raul Cesar Gottlieb

a questão da KasHerut

raul Cesar gottlieb

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“Permita que em nossos corações possamos entender e avaliar; apreender, estudar e ensinar; proteger e cumprir e apoderar-nos de todas as palavras da tua Torá, com amor.” (Bircat Ahavá, a benção do amor das orações matutinas)

Apalavra “kasher” remete diretamente às restrições alimentares prescritas pela tradição judaica a partir de mandamentos inscritos na Torá – o código fundante do judaísmo – que proíbem o consumo de determinados alimentos, além da ingesta simultânea de carne com leite.

A palavra em si não é citada na Torá, que contém as injunções básicas sem rotulá-las. Ou seja, a Torá não diz, por exemplo: “Estas são as leis da kasherut”, seguindo uma lista a partir daí. As leis estão espalhadas ao longo do texto, apenas mais tarde elas foram catalogadas e reunidas.

O uso de “kasher” como rótulo para as restrições alimentares se deve ao seu significado original: “adequado”, “próprio”. Assim, o código que evoluiu a partir daqueles mandamentos passou a ser denominado de “kasherut” (a qualidade de ser “kasher”), pois suas regras indicam o que é adequado ao consumo pelos judeus.

E como os idiomas estão em constante evolução, “kasher” passou também a significar “legal”, “legítimo”, inclusive em contextos que não o alimentar. Em certos lugares o uso da palavra neste sentido transbordou dos círculos judaicos a tal ponto que você pode falar hoje que certo procedimento tributário não é kosher (a forma iídiche de pronunciar a palavra) para parceiros de negócios nova-iorquinos sem medo de não ser entendido.

A Torá, que é a fonte das regras de kasherut, não traz justificativa alguma para a maior parte delas.

Ilustrações: Myriam Glatt

Outra evolução da palavra, já no hebraico falado em Israel, enriqueceu o seu sentido com o conceito de “aprimorar” (talvez a partir da noção de que a kasherut é um refinamento do processo alimentar), significado que se aplica inclusive à forma física das pessoas. Em Israel os ambientes de ginástica são chamados de “cheder (sala, quarto) kosher”, o que normalmente desafia a compreensão dos visitantes – “o que pode haver de kasher ou não kasher numa aula de Pilates?”, se pergunta o turista desavisado.

Justificativas para a kasherut

A Torá, que é a fonte das regras de kasherut, não traz justificativa alguma para a maior parte delas. Vejam alguns poucos exemplos (as traduções não são literais, porém mantêm o sentido do texto bíblico):

“Podereis comer todo animal da terra que tem o casco fendido e a unha separada em dois, de cima até em baixo, e que rumina”. (Vaikrá/Levítico 11:3).

“Dos animais que estão nas águas dos mares e dos rios podereis comer todos os que têm barbatanas e escamas”. (Vaikrá/Levítico 11:9).

“Não comereis nenhum animal que morreu por si [ou seja, que não foi abatido especificamente para o consumo humano]” (Devarim/Deuteronômio 14:21).

Existem apenas dois casos excepcionais onde as regras são justificadas. A proibição do consumo de sangue, “pois a alma da criatura está no seu sangue” (Vaikrá/Levítico 17:11) e a interdição do consumo do nervo ciático, que é atribuída ao toque do anjo que lutou com Jacó na junção de sua coxa (Bereshit/Genesis 32:25-33).

A partir da lacuna de justificativas brotaram fecundas especulações. É muito popular a noção de que elas foram ditadas pela higiene, mas esta suposição deixa de explicar porque não se pode ingerir carne de porco que é semelhante em teor de gordura da permitida carne de carneiro.

Especula-se também que elas tenham o objetivo de manter o indivíduo num entorno edificante, coisa que o consumo de aves de rapina não propiciaria, mas esta suposição não explica a proibição de consumo dos animais marinhos sem escamas, por exemplo. Outro princípio judaico Talvez não haja um único motivo para que teve impacto forte nas regras da kasherut todas as regras e sim que cada regra tenha o seu motivo singular. Talvez também, como observa um bom amigo, a razão e trata da prevenção o sentido destas leis foi tão somente o de de causar sofrimento “criar leis” para alicerçar o ordenamento desnecessário aos civilizatório que permite a vida em grupo. seres vivos, incluindo E, neste caso, quanto mais concretas, cotidianas e introjetadas fossem maior seria os animais. Os animais a sua eficácia. podem servir de Mas ainda assim é certo que tudo o alimento e sua pele que existe são especulações, visto que o pode servir de abrigo, texto da Torá não indica os motivos, salcontudo, existem regras vo nos dois casos acima relatados. A especulação que mais me agrada estritas sobre como propõe que as regras alimentares foram abater o animal para feitas para afastar os hebreus dos povos evitar que ele sofra. canaanitas no meio dos quais habitavam. Assim a proibição de cozinhar o cabrito no leite de sua mãe seria o repúdio a um popular ritual canaanita que usava este prato para invocar a fertilidade dos rebanhos – uma das grandes preocupações das sociedades agropastoris, seja ela hebreia ou canaanita. Evidências arqueológicas mostram que os hebreus não consumiam carne de porco enquanto que entre os canaanitas esta era uma dieta popular. Proibir a ingesta da iguaria do vizinho seria inegavelmente um fator de forte diferenciação que ainda evitaria o congraçamento entre eles, visto que desde os tempos imemoriais os seres humanos celebram os seus encontros em torno de comida. No entanto, a hipótese da diferenciação é apenas mais uma especulação, tão boa ou tão ruim como todas as demais. O certo é que a racionalidade das leis não é conhecida. Mesmo assim elas foram meticulosamente seguidas desde os tempos bíblicos, o que me leva a crer, em mais uma conjectura, que as pessoas da época conheciam os seus motivos e é justamente por serem muito evidentes para os antigos que não foi considerado necessário registrá-los por escrito.

Das frases da Torá até as regras da Kasherut

O princípio básico da atuação dos rabinos que formularam o judaísmo a partir das concisas frases da Torá está registrado no primeiro versículo da Ética dos Pais: “Façam uma cerca em torno da Torá”. Este princípio os levou a

normatizar condutas que impossibilitassem (ou no mínimo tornassem muito improvável) desobedecer aos mandamentos da Torá, ainda que involuntariamente.

Um bom exemplo deste processo é a questão da carne e do leite. A Torá diz “Não cozinharás o cabrito no leite de sua mãe” (Shemot/Êxodo 23:19, 24:26 e Devarim/Deuteronômio 14:21) e a partir daí se estabeleceu uma separação completa de consumo de qualquer tipo de leite com qualquer tipo de carne. E também foi estabelecido um limite de tempo entre a ingesta de um e de outro, afastando o risco dos alimentos se misturarem no estômago.

Assim que é proibido comer queijo de minas com frango, independentemente da total impossibilidade de uma galinha gerar um bezerro, ou vice-versa. Esta lei até pode parecer ridícula, mas ela ganha coerência à luz do princípio que norteou a legislação. Muitas pessoas têm dificuldade de diferenciar, por exemplo, leite de vaca de leite de cabra e carne de carneiro de carne de boi. Desta forma a separação total constitui-se numa cerca adequada ao mandamento da Torá.

Um segundo princípio que norteou os rabinos está baseado na percepção histórica que os não judeus cultivam

um interesse perene em prejudicar os judeus, até mesmo no nível das menores picuinhas. Esta percepção colocou sob suspeição qualquer tipo de manipulação dos alimentos por não judeus. E, aplicando-se o princípio da cerca à Torá, a mera suspeita é motivo mais que justificado para o afastamento.

O vinho kasher é um produto exatamente igual ao vinho não kasher, o leite kasher é exatamente igual ao leite não kasher e assim por diante, numa série grande de alimentos processados. A única diferença entre estes produtos é o fato dos primeiros serem manipulados ou por judeus ou sob rigorosa supervisão de judeus, mas os processos e os ingredientes são os mesmos.

Outro princípio judaico que teve impacto forte nas regras da kasherut trata da prevenção de causar sofrimento desnecessário aos seres vivos, incluindo os animais. Este princípio não emana de uma frase pontual da Torá, mas da convergência de uma coleção delas. Os animais podem servir de alimento e sua pele pode servir de abrigo, contudo, existem regras estritas sobre como abater o animal para evitar que ele sofra. Um animal, mesmo que tenha seu consumo permitido pela Torá, não é kasher se for abatido de forma que contraria as regras rabínicas.

A superposição das frases objetivas da Torá sobre estes três pilares construiu o grande edifício de regras que compõem a kasherut.

Revisitando a kasherut na atualidade

As culturas que sobrevivem revisitam suas normas constantemente, visto que circunstâncias cambiantes propõem novos desafios, geram novas percepções e necessidades. Culturas que se impõem freios por conta de aderência religiosa ao passado correm sérios riscos de caminhar para a irrelevância.

E é nesta revisita que a kasherut mostra ser problemática nos dias de hoje e merecedora, a meu ver, de uma reforma que a tornaria mais significativa.

Comecemos pela suspeição aos não judeus. É inegável que ela tem fortes justificativas históricas. Mas será que elas ainda se mantêm? Os judeus vivem em Estados democráticos e de direito que lhes garantem cidadania plena e os coloca ao abrigo de perseguições. Além disso, desde que o Estado moderno assumiu o papel de controlador da qualidade e da higiene dos alimentos ofertados ao público, caiu a necessidade do estabelecimento de um controle paralelo para verificar se o alimento segue o que diz seu rótulo.

Tomemos o exemplo da “água mineral kasher”. Pergunto-me como a água mineral vendida nas prateleiras dos supermercados poderia deixar de ser própria ao consumo pelos judeus? Alguém realmente imagina que uma empresa de alimentos venha a dissolver gordura de porco numa das marcas de água mineral que vende, com o objetivo de atormentar os judeus? E na remotíssima hipótese de o fazer, será que os controles das agências governamentais não identificariam o crime e aplicariam pesadas sanções? Então para que serve o certificado de kasherut nas garrafas de água?

O caso da água é bizarro e indolor, apesar de talvez ter um preocupante subtexto comercial (suspeito que os interesses econômicos da florescente indústria de certificados de kasherut expliquem algumas posturas), porém o caso do abate dos animais é dramático.

Durante milênios os judeus estiveram na vanguarda da humanidade ao reconhecer como odiosa a prática de afligir os animais além do necessário. As regras de abate com facas afiadas e sem defeitos, que devem atingir pontos precisos do animal para causar a morte de forma rápida eram o suprassumo da tecnologia do abate indolor. Abatíamos animais de forma menos econômica que os nossos vizinhos, mas de forma muito mais adequada. Podemos nos orgulhar dos nossos antepassados por isto.

No entanto, os processos evoluíram e hoje existem métodos de abate que são cientificamente comprovados como sendo menos traumáticos aos animais que o abate kasher. Deveríamos, então, penso eu, sancionar como kasher os métodos menos dolorosos. Porém, o apego às regras práticas do passado e não aos seus fundamentos impede isto. O abate continua a ser considerado como kasher unicamente se for realizado com os métodos regulamentados há milênios.

Preserva-se o processo ao invés de se preservar o princípio. E com isto esvazia-se o judaísmo de seu conteúdo judaico, reduzindo-o a uma coleção de rituais destituídos de significado.

A situação é grotesca a tal ponto de existirem países (o jornal Haaretz de 28 de novembro de 2012 noticiou o caso da Polônia, que periga se espalhar pela União Europeia) passando legislação que torna o abate kasher fora da lei por causar crueldade desnecessária aos animais. Ou seja, estamos abandonando a vanguarda do humanismo porque,

lamentavelmente, perdemos a capacidade de renovar os nossos costumes.

Outra situação ainda mais pungente é a das substâncias tóxicas. No tempo da Torá o ser humano ainda não tinha adquirido o terrível hábito de consumir drogas que matam lentamente, tais como o tabaco, a cocaína e outras. Assim que a Torá não fala nada sobre elas com a consequência que fumar é kasher, assim como injetar heroína. Mas tomar água não certificada pelo Rabinato é completamente proibido!

Isto tudo apesar da Torá proibir o suicídio e ordenar que se cuide muito bem da própria saúde. Fica evidente a urgência da revisita à kasherut. A tecnologia mudou, os hábitos mudaram, os desafios são outros. A preservação dos princípios judaicos obriga a revisão dos métodos. O que acontece hoje com alguns aspectos da kasherut é uma subversão dos nossos princípios fundantes, sob o disfarce do apego à tradição. Ou será que a tradição judaica sanciona o autoenvenenamento?

Por uma Kasherut Reformista

A ausência de justificativas no texto da Torá e a percepção que a kasherut impunha barreiras ao convívio social levou aos primeiros formuladores do movimento Reformista a abolir a prática da kasherut como uma obrigação em suas comunidades.

Porém, como costuma acontecer com os movimentos revolucionários, ao passar dos anos as posições se flexibilizaram e a valorização de “klal Israel”, no sentido do pertencimento ao povo judeu, fez com que muitas comunidades repensassem a sua atitude com relação à kasherut. Assim que hoje em dia é raro encontrar uma comunidade Reformista que admita alimentos proibidos pela Torá em suas dependências. Porém, falta agregar a este movimento em direção às tradições uma revalorização dos princípios básicos do judaísmo, avaliando como eles impactam os alimentos e as substâncias que não existiam na época da formulação da kasherut.

Existem processos modernos nos quais os animais são submetidos a intenso sofrimento durante a sua vida, ainda

As drogas deveriam que sejam abatidos de forma indolor ao ser declaradas inequivocamente final dela. É o caso, por exemplo, da alimentação forçada dos patos e gansos criados para a produção do “foie gras” e dos não kasher e fumar bezerros criados para a produção da vitedeveria ser proibido la. O princípio bíblico que nos impede em todo o entorno das impor sofrimento desnecessário aos aninossas instituições. mais deveria colocar estes alimentos na lista das restrições, independentemente

A preocupação com da omissão dos textos antigos. a sustentabilidade Neste mesmo viés, as drogas deveriam e com a exploração ser declaradas inequivocamente não kado trabalho em sher e fumar deveria ser proibido em todo condições semelhantes o entorno das nossas instituições. A preocupação com a sustentabilidade e com a à escravidão deveria exploração do trabalho em condições seser incluída no rol melhantes à escravidão deveria ser incluídas preocupações da no rol das preocupações comunitárias, comunitárias. com uma coleção de diretrizes a serem agregadas às leis religiosas seguidas pelas instituições e seus membros. Finalmente, o sábio princípio da criação de cercas à Torá deveria ser interpretado conforme o panorama tecnológico atual. Vivemos o desenvolvimento acelerado da Era da Informação, na qual cada um de nós carrega consigo um aparelho leve e pequeno que garante acesso de forma onipresente a uma quantidade gigantesca de informações e serviços. Este aparelhinho não era impensável apenas nos tempos dos sábios do Talmud, ele também era impensável há meros dez anos! A proteção neste contexto deve seguir os princípios do firewall e não o das muralhas de pedra. Ou seja, pela filtragem dos conteúdos através da educação e não pelo isolamento físico. Nossas cercas devem ser erigidas por meio de processos que habilitem as comunidades a tomar decisões judaicas por si só, capacitando-as a olhar através das regras pragmáticas e entender sobre quais princípios repousam, a valorizar adequadamente seus conceitos e a ajustar a sua aplicação. O imobilismo reverente não é, nem nunca foi, uma cerca adequada à Torá. Raul Cesar Gottlieb é diretor de Devarim, membro do conselho da ARI, vicepresidente da WUPJ América Latina e exchaver da Chazit Hanoar Rio de Janeiro.

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