Devarim 18 (Ano 7 - Agosto 2012)

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Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 7, n° 18, Agosto de 2012 devarim Um olhar sobre a “Dhimmitude” Entrevista com Nathan Weinstock A visão de Herzl e os desafios atuais de Israel David Breakstone Estes homens fizeram o judaísmo Rabino Sérgio Margulies Torá: a cultura dos pactos Rabino Dario Bialer Cócegas no Raciocínio Paulo Geiger Caminhos Cruzados: Clarice e Elisa Lispector Berta Waldman O Kadish Rabino Leonardo Alanati Entrevista com Sergio Della Pergola, demógrafo do judaísmo Gabriel Mordoch Dilemas da educação judaico-sionista no Rio de Janeiro Michel Gherman Entrevista com David Broza sobre identidade e música Ricardo Gorodovits

Quando vier a Primavera,/ Se eu já estiver morto,/ As flores flori rão da mesma maneira/ E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada./ A realidade não precisa de mim.

Aestrofe é de um poema de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, talvez o maior poeta que a língua portuguesa conheceu até hoje. A estrofe tem o poder de despertar um turbilhão de pen samentos, alguns sobre o contraste entre a constância da natureza e a transitoriedade dos humanos, outros sobre a inutilidade dos esforços do homem no modelo de Kohe let/Eclesiastes, e certamente muitos outros, conforme o leitor e seu momento.

Para mim, judeu brasileiro e sionista, o poema tem re metido ultimamente ao contraste entre o que a imprensa noticia e o que sabemos de Israel.

Sabemos que, independentemente do que diz a im prensa, o Estado de Israel é democrático, pacífico e de dicado ao bem-estar de todos os seus cidadãos, inclusive as minorias. Sabemos também que suas ações militares –sempre retratadas com forte dedo acusador – são impostas ao Estado por grupos que não admitem sua existência, em nenhuma configuração de fronteiras. Que não impera em Israel nem a violência nem o racismo.

E que não obstante a parcialidade das análises, Israel é um país igualitário que se desenvolveu espetacularmente graças à tenacidade, à inovação e à ciência, sendo que estas últimas só prosperam em ambientes de absoluta liberdade de pensamento e instituições sólidas e justas. Ou seja, Is rael não é o país mais inovador (com a maior proporção de patentes per capita) do planeta porque os judeus são mais inteligentes, mas sim porque criou um ambiente propício ao florescimento da criatividade produtiva.

Parafraseando o poeta, “a realidade não precisa dos jor nalistas”, mas mesmo assim ficamos perplexos – como é possível que não entendam?

Talvez a resposta esteja no fato de que o mundo não esteja, neste momento, equipado para entender. Acredita-se hoje, quase com fé religiosa, que todas as ações hu manas sejam fruto do interesse. Que por trás de tudo –

desde os menores atos de cada um até as decisões nacio nais da maior relevância – esteja o interesse de se tornar mais poderoso e de esmagar os concorrentes que não con seguiram se fortalecer de forma comparável. Quando o interesse não está evidente inventam-se mirabolantes teo rias conspiratórias para chegar à conclusão que já se havia concluído de partida.

Acredita-se também que o ser humano é igual em to das as partes. Que os valores fundamentais da democracia – a igualdade, o respeito à vida, o direito de escolha – se jam universais. Que as diferenças culturais estejam restri tas hoje a questões periféricas tais como o vestuário, a co mida, a música e assim por diante. Que por baixo de gos tos e paisagens diferentes bate sempre um mesmo cora ção, respeitador da alteridade, que reconhece o direito de escolha individual e que tem a vida como valor supremo.

E efetivamente, visto sob estes dois parâmetros, a rea lidade do Estado de Israel assume uma aparência trágica. Colocado sob a luz única do interesse econômico, o apoio dos Estados Unidos à única minúscula e desprovida de re cursos naturais democracia do Oriente Médio só pode ser explicado pela força do poderoso (não importa que os ju deus sejam míseros 1,9% da população!) lobby judaico.

Assumindo que a democracia e o respeito ao próximo são valores universais, só é possível entender o conflito que impede, há quase cem anos (ou seja, muito antes de 1967), a coexistência de judeus e árabes como parceiros no desen volvimento da região pela ótica da brutalidade gratuita.

A natureza é imbatível. Certamente as flores e a prima vera continuarão a existir num mundo com menos compreensão. Porém, somos judeus religiosos e, como tal, as sumimos a tarefa do “tikun olam”, a tarefa de tentar tornar o mundo um lugar melhor. E é por isso que abraçamos o projeto Devarim. Um projeto fundado no idealismo, fruto de trabalho voluntário e que é distribuído gratuitamente.

O que vocês têm em mãos neste momento desafia a visão predominante no mundo atual. Convidamos você a continuar prestigiando a revista com a sua leitura e a con tribuir de todas as formas – inclusive financeira – com este projeto.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 1 editorial

Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 7, n° 18, Agosto de 2012

P R es I dente d A ARI evelyn Freier Milsztajn

R A b I nos d A ARI sérgio R. Margulies dario e bialer

dIR eto R d A Rev I stA Raul Cesar Gottlieb

Conselho e d I to RIA l beatriz bach, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio Margulies.

e d I ção

Roney Cytrynowicz (editora narrativa Um) e d I ção de A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) tainá nunes Costa • Sebastian Ribeiro

F oto GRAFIA s e I l U st RA ções istockphoto.com (capa: Peter Zelei)

t RA d U ção teresa Roth

Rev I são de t exto Mariangela Paganini (libra Produção de textos)

Colaboraram neste número: berta Waldman, Rabino dario e. bialer, david breakstone, Gabriel Mordoch, Rabino leonardo Alanati, Michel Gherman, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Rabino sérgio R. Margulies e Ricardo Gorodovits.

os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista devarim ou da ARI.

os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

A revista devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br devarim@arirj.com.br

Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ biblioteca virtual devarim: www.docpro.com.br/devarim

A contracapa de devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

sumário

Estes homens fizeram o judaísmo Rabino Sérgio R. Margulies 3

Torá: a cultura dos pactos Rabino Dario E. Bialer 9

A visão de Herzl: o nosso desafio, uma entrevista com o fundador de Israel David Breakstone 14

Quantos somos, onde estamos, aonde vamos? Entrevista com o professor Sergio Della Pergola, por Gabriel Mordoch 23

Um olhar sobre a “Dhimmitude” – Entrevista com Nathan Weinstock 31

A identidade cultural israelense em formação Entrevista com David Broza por Ricardo Gorodovits 38

Dilemas e questões da educação judaico-sionista no Rio de Janeiro Michel Gherman 46

Caminhos Cruzados: Clarice e Elisa Lispector Berta Waldman 51

Em Poucas Palavras 58

O Kadish Rabino Leonardo Alanati 62

Cócegas no Raciocínio Paulo Geiger......................................................................................... 64

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e stes homens fizeram o judaísmo

rabino sérgio r. margulies

Uma geração que cria e renova evita que a herança das gerações passadas vire pó Berl Katznelson (1887-1944)

Amensagem judaica começa antes do surgimento do próprio judaísmo. Começa com a narrativa bíblica da criação do mundo, os episódios de Adam [Adão], Chava [Eva] e seus filhos. Prossegue com a geração de Noach [Noé], que é prévia ao primeiro judeu – ou mais precisamente hebreu –, Avraham [Abraão].

Destas narrativas aprendemos sobre o cuidado que devemos ter com o mun do a nós confiado, a origem similar – da qual denota o conceito de igualda de – de todo ser humano, os impulsos da conduta humana e a importância da ação responsável. Por que estas mensagens, sendo parte da Torá, não brotaram já dentro do próprio judaísmo e por que a história judaica não retroagiu sua origem a estas mensagens?

Porque assim o judaísmo afirma não ser o supremo detentor de toda sabe doria. Há ensinamentos válidos que podem ser extraídos de outras fontes, pes soas, credos e crenças. Porque, assim, o judaísmo pode ensinar seus valores com a humildade necessária de ser também capaz de aprender. Porque, assim, o ju daísmo não autoriza o saber monolítico. O pacto estabelecido pelo povo judeu com Deus é um pacto particular inserido no contexto de outros pactos parti culares igualmente pertencentes ao pacto maior de Deus com a humanidade. A diversidade da humanidade é substanciada.

A criação divina não é um evento estanque, mas um processo contínuo. A renovação do compromisso –do pacto – assegura que os ideais da criação não sejam lembranças ou parábolas infantis, e sim impulso vital e atuação responsável real.

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Ao ser o nascimento judaico posterior a algumas mensagens que adotou, o ju daísmo centra-se no elemento humano como força transformadora. O judaísmo nasce através do ser humano, de sua ca pacidade – inicialmente de Avraham – de ouvir uma convocação para agir com res ponsabilidade. Se retroagisse seu nasci mento à mensagem que não proferiu se ria subserviente a esta mensagem.

O judaísmo incentiva a capacidade humana de atuar em liberdade e em res peito ao outro. Assim, o judaísmo nas ce através do ser humano. São os homens e mulheres que fazem o judaísmo. Cada homem e mulher de cada geração recebe – num ciclo de transmissão da tradição – ensinamentos, incorporando-os, am pliando-os, reformulando-os para trans miti-los novamente com o sentido que cada época exige.

O judaísmo incentiva a capacidade humana de atuar em liberdade e em respeito ao outro. Assim, o judaísmo nasce através do ser humano. Cada homem e mulher de cada geração recebe – num ciclo de transmissão da tradição – ensinamentos, incorporando-os, ampliando-os, reformulando-os para transmiti-los novamente com o sentido que cada época exige.

Deste modo nasce primeiro o povo. Depois este povo se consolida através da prática de uma fé. A primazia é do povo. O povo não é fanaticamente sub misso à fé e pode lapidar a maneira de expressá-la. Tam pouco o povo é dono da fé. Não pode submetê-la aos seus interesses, descaracterizando-a de sua essência. Fé não é posse. É vínculo manifestado entre os elementos consti tuintes do povo. A fé não existe sem o povo. O povo, por sua vez, encontra substância na fé. Assim, com interação, funcionam os pactos.

O judaísmo dos judeus

Quem fez o judaísmo? O ser humano que aprende uma mensagem e decide colocá-la em prática. Judaísmo é von tade de aprender e é decisão em praticar. E quem continua fazendo o judaísmo? O ser humano que se dispõe, se ne cessário for, a transformar a mensagem para que ela tenha impacto na vida e seja transmitida com relevância, não so mente com elementos simbólicos alheios à realidade.

O judaísmo começa com seres humanos – Avraham e Sara – e prossegue através de sucessivos seres humanos por contínuas gerações. Chega à nossa geração. Os seres huma nos de nossa geração também fazem o judaísmo. Não sim

plesmente mantêm; fazem. Mamutes são mantidos em museus. Fósseis no subsolo. Sarcófagos nas pirâmides. Nenhum des tes respira, ainda que sejam mantidos. O judaísmo respira. Não é mantido. É feito. Vivenciado. Respira. Inspira o ar que re cebe – a tradição que lhe vem – e expira um novo ar – a tradição que irá.

Moshé [Moisés] não manteve o juda ísmo de Avraham, o fez, acrescentando a mensagem que o próprio Avraham não tinha, a Torá. Profetas como Ieshaihau [Isaías], Irmiahu [Jeremias], entre outros, não mantiveram o judaísmo de Moshé, o fizeram.

Indaga a literatura rabínica: “Por que Deus criou o trigo e o barro?”, sugerindo a seguinte resposta: “Para que os seres humanos os transformassem em pão e tijo los”. De modo similar é possível pergun tar: Por que o pacto que Deus estabele ceu com a humanidade não veio pronto?

Para que – igualmente é possível sugerir – cada povo pu desse construir seu pacto constituindo vínculos. E por que o pacto do povo judeu é um contínuo processo de renova ção? Para que seja constituída uma parceria permanente. A parceria reverencia Deus. A parceria é, de acordo com a literatura rabínica, um dos propósitos do processo da cria ção divina ao criar o ser humano. Parceria requer engaja mento. O judaísmo enseja um ser engajado.

Através do ato de engajar-se e da atitude de transfor mação o judaísmo é feito. O pacto é renovado. Não é um novo pacto, não há ruptura. Há criação a partir do ontem para o hoje e deste para o novo hoje que o amanhã será, tal como há criação do trigo para o pão, do barro para o tijolo. A criação divina não é um evento estanque, mas um processo contínuo. A renovação do compromisso – do pacto – assegura que os ideais da criação não sejam lem branças ou parábolas infantis, e sim impulso vital e atua ção responsável real.

O judaísmo não é mantido. Se mantido fosse, seria es tático, estaria congelado, permaneceria estratificado. Ao ser feito, seres humanos irrigam o judaísmo com dinamismo. Homens e mulheres fazem o judaísmo ser sempre atual e presente, não caduco e passado. Tal como rabi Iehudá

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[Judá] – o editor do código de leis Mishná no século 2 – não manteve o judaísmo de Moshé e dos profetas, ainda que por eles inspirados, os rabinos como Ashi da Gue mará (discussões rabínicas compiladas no século 5) fizeram seu judaísmo à luz de suas questões. Questões renovadoras sem rompimento, por isso Mishná e Guemará juntas formam o Talmud; por outro lado, sem estas questões da Guemará, a Mish ná perderia sua relevância.

O judaísmo nos convoca para a vida. A Torá é denominada de Torá da vida. O sagrado está em trazer a Torá para a vida e a vida para a Torá, num diálogo criativo que fortalece o pacto.

De Avraham a Moshé, de Irmiahu a Iehudá e deste a Ashi, todos fizeram o judaísmo prosseguir. O que não caminha, sucumbe; sendo sempre feito, o judaís mo tem sua vitalidade assegurada. O paradigma segue com

os intérpretes do Talmud e seus comen taristas, como Rashi (século 12), evitan do que o Talmud se tornasse peça literá ria descaracterizado de dimensão sagrada. Para que a relevância do judaísmo seja – esta sim – mantida, o judaísmo requer ser feito. Vivenciado e não simplesmen te visitado, seja em museus, seja até mes mo em eventuais idas a sinagogas, como se fosse estranho à vida cotidiana. O ju daísmo nos convoca para a vida. A Torá é denominada de Torá da vida. O sagrado está em trazer a Torá para a vida e a vida para a Torá, num diálogo criativo que fortalece o pacto. Como o leitor/es tudioso da Torá nunca é o mesmo, seja porque são pessoas

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distintas, seja porque cada pessoa modifica-se ao longo do tempo, a Torá é sempre feita. De seu texto vem o trigo e o barro. De nós o pão e o tijolo. O ato de transformação é o que dá sentido, alimenta e abriga. No caso, alimenta e abriga o espírito e a mente judaica.

De Avraham, o patriarca há quatro mil anos, a Avraham Heschel, no século 20, intitulado o profeta contemporâ neo, uma sucessão de gerações de homens e mulheres fize ram e fazem o judaísmo o ensinando. Quem ensina requer um aluno. O discípulo viabiliza o mestre. Sem o apren diz não há professor. Sem quem receba a mensagem não há mensageiro. Assim, os que fizeram o judaísmo e con tinuam a fazê-lo são todos os que se dispuseram e se dis põem a aprender, refletir, compreender e entender uma mensagem. São nomes não registrados nos anais, nos tratados dos estudos judaicos, porém são estes que, em sua ânsia pelo estudo, em sua vontade de adquirir conheci mento, em seu afã de praticar uma mensagem e vivenciar um legado, que dão vida ao judaísmo. São estes – de cer to modo todos os judeus e judias – que fazem e fizeram o judaísmo. São estes – cada judeu e judia – que dão vida a Avraham, Moshé, Ieshaiahu, Iehudá, Ashi, Heschel, en tre tantos outros.

Os judeus do judaísmo

Certa vez um rabino levantou em seu púlpito o ques tionamento que chocou a congregação: “E se ficar prova do que Avraham, o patriarca, ou Moshé, não existiram? Se de fato as descobertas arqueológicas trouxerem irrefutáveis provas de que não existiram?” O rabino sugeriu: “Mesmo diante desta hipótese continuaria acreditando que existi ram”. Continuaria acreditando, explicou, não porque ne garia a arqueologia, mas simplesmente porque eles existem dentro de mim e dentro de nossa comunidade como para digmas para nossas vidas.

A provocação potencialmente herética do rabino se re veste de profunda sacralidade. O sagrado está na transcen dência da mensagem judaica. O mensageiro, seja quem

for, mesmo que da envergadura de um Moshé ou Maimô nides, não é sagrado. São seres humanos. Sagrada é a men sagem que deixam. Sagrada torna-se a mensagem enquan to relevante para a vida de cada judeu e judia. Relevante permanece a mensagem enquanto renovada pela vida dos que fazem e vivenciam o judaísmo. A mensagem acompa nha a fé. Molda a conduta.

A finalidade da vida espiritual no judaísmo não é des cobrir a maneira como o desígnio divino se manifesta nes te mundo. O judaísmo incentiva não o controle do incom preensível, mas a reverência ao Eterno, que revela uma misteriosa e majestática grandeza. A reverência implica em aperfeiçoar o ser. O espírito move-se nesta busca. A men sagem judaica acompanha este movimento. Caso contrá rio, se distanciaria do espírito de cada um. Teríamos, as sim, um judaísmo distante, anacrônico, afastado do espíri to dos judeus. Faltaria a sincronia entre o judaísmo e o ser judeu. Diante da falta de sincronia, não tardaria em não ser judeu. Mas a sincronia ocorre porque, através dos ho mens e mulheres que o fazem, o judaísmo se move em di reção à inquietude dos espíritos que buscam se aperfeiçoar.

O judaísmo enseja aperfeiçoar a conduta humana. Por isso, já nasceu com a necessidade de assumir sua imper feição e de aprender. Se se julgasse ser perfeito, o judaís mo estagnaria. O que estagna desintegra. Se se conside rasse perfeito, a busca cessaria. Se se proclamasse perfeito, não admitiria seres humanos o fazendo, pois são os huma nos inevitavelmente falíveis. Se fosse perfeito, o povo seria secundário diante de um ideal inalcançável que não lhes seria significante para moldar a jornada da vida. Buscar a perfeição implica, ainda que aparentemente de modo paradoxal, aceitar que a perfeição não acontecerá. Pouco importa que não venha a acontecer, importa a busca constante imbuída do espírito judaico de sermos fazedo res do judaísmo.

Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union Colle ge (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

O título deste artigo vem do livro publicado pela Editora Documentário (co-edição com a B’nai B’rith) em 1974, Estes homens fizeram o judaísmo, vários autores, editado por Marcos Margulies z´l, pai do autor deste artigo. O artigo o homenageia pela pas sagem do 30º iartzeit (aniversário de falecimento). O fato de o livro e o artigo terem tratamentos distintos demonstra a relevân cia do primeiro ao ser fonte de inspiração de uma mensagem renovada.

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torá: a cultura dos pactos

Precisamos acreditar de alguma forma que a nossa felicidade – agora ou mais tarde – está garantida. A alma gêmea é uma ideia simplista, imatura no fundo, que parte do princípio que o amor é incondicional e para sempre. A inconsistência da teoria é proporcional ao desespero diante das incertezas e daí parte a necessidade de acreditar que Deus tem um plano perfeito para nós.

Quando alguns anos atrás um público composto por pessoas em torno dos 20 anos de idade me pediu para dar uma aula sobre o conceito de “alma gêmea” no judaísmo, fiquei bastante intrigado. Aqueles jovens estavam formulando algo tão misterioso e inexplicável como o amor no formato de uma equação matemática. E todos sabem que os vínculos hu manos são muito mais complexos do que isso.

Eu sei que muitos, quando falam de “alma gêmea”, a entendem como uma metáfora, mas, mesmo assim, não me parece ser a metáfora mais bem escolhi da. Alma gêmea significa que existe alguém igual a mim. O conceito subjacente é que existe apenas uma única pessoa em todo o planeta destinada a correspon der o meu amor e que um vínculo pleno e verdadeiro só é possível com aquela pessoa, que foi escolhida por Deus.

E a questão fica ainda mais curiosa quando projetamos o conceito ao lon go dos tempos. Como funcionou a teoria da alma gêmea nos últimos milênios, quando o mundo ainda não estava interconectado pela internet? Curiosamente essa alma gêmea nascia sempre na mesma cidade e, na maioria das vezes, tam bém no mesmo bairro que o nosso.

Mas hoje em dia vemos casais de todas as nacionalidades, culturas e cores. Será que Deus, conhecedor de tudo – inclusive do que registra a nuvem virtual –, e influenciado pelo sucesso do Facebook e do Skype, mudou de estratégia e passou a dispersar as almas gêmeas por todo o mundo, mas sempre tomando o cuidado de fazê-las acessar as mesmas redes sociais?

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A necessidade de manter viva a esperança de que existe alguém destinado a es tar comigo por toda a vida, estabelecen do um vínculo eterno de amor – plane jado cuidadosamente por Deus –, leva as pessoas a acreditar que há alguém idênti co a elas lá fora (como se a igualdade fos se uma virtude e o enriquecimento pe las diferenças fosse negativo), procuran do-as. E também que existe uma única chance de ser completamente feliz com a única pessoa capaz de preencher a nossa vida por completo.

A inconsistência da teoria é propor cional ao desespero diante das incertezas e daí parte a necessidade de acredi tar que Deus tem um plano perfeito para nós. Precisamos acreditar de alguma for ma que a nossa felicidade – agora ou mais tarde – está garantida. A alma gêmea é uma ideia simplis ta, imatura no fundo, que parte do princípio que o amor é incondicional e para sempre.

A milá é a primeira ação carregada de amor e de dor, com a qual o pai mostra a seu filho os pactos que se estabelecem ao longo da vida. E os filhos respondem ao ideal bíblico conforme dois modelos: com honra, conforme o livro do Shemot/Êxodo, e com temor, conforme os ensinamentos do livro do Vaikrá/Levítico.

uma afirmação muito perigosa, pois nos leva de volta à ideia de alma gêmea e de que existe uma garantia de eternidade nas relações, o que não é verdade. Não existe amor incondicional, nem nos casais nem em quaisquer outros vínculos, inclusive os biológicos.

Vamos analisar o vínculo que se acre dita mais forte: o que une pais e mães aos seus filhos e filhas (para simplificar vou mencionar a seguir o gênero masculino: “pais” e “filhos”, mas estarei sempre me re ferindo a qualquer um dos dois gêneros). Uma pessoa tem um filho e só por isso já ganhou o amor dele para sempre? Não importa o que acontece ao longo da vida nesse relacionamento? O nascimento de um ser é inexplicável e sem dúvida algo miraculoso. Mas a partir daí você tem que construir a relação, ela não acontece sozinha. Pois relações humanas não são naturais.

Jura-se amor eterno com muita frequência. Mas é ob vio que não existem garantias de que essa promessa será cumprida. Podemos nos comprometer a ser fiéis e manter diligentemente esse juramento, mas não podemos garan tir que não vamos deixar de amar, pois os sentimentos não são delineáveis. Se fossem, seríamos seres formatados desde o nascimento, sem autodeterminação nem livre arbítrio.

Acreditar em relacionamentos predeterminados, sem responsabilidade nas decisões que tomamos, sem escolha individual, visto que tudo já está definido, é não acreditar no amor real. Em vez de jurar amor eterno, deveríamos, isto sim, nos comprometer a dotar nossos vínculos do má ximo de amor possível.

Os vínculos do amor real são constituídos pela matu ridade, eles não necessitam de juramentos. Nutrem-se da forma como as pessoas se escutam, se falam e se susten tam umas às outras. De como crescem juntos e indivi dualmente e de como levam adiante seus propósitos co muns. São esses relacionamentos os que definitivamente dão eternidade ao amor.

Muitas vezes dizemos que o amor num determinado vínculo é tão poderoso que suporta qualquer tempesta de. Esse é um sentimento bonito, mas ao mesmo tempo

Os sucessos que fazem parte do mundo social, diferen temente dos que fazem parte do mundo natural, guardam entre si relações de significância que os tornam relevantes para os grupos humanos. Não é o biológico e sim o social que vai marcar o rumo do relacionamento.

Diz Vincent Marques, um grande teórico da sociologia existencialista, que, desde que nasce, o homem está expos to ao processo de socialização. Este processo está relacio nado com a influência e com o conhecimento que o ho mem incorpora através da sociedade e que se assume como natural. Porém, o social não é natural: “Há que desnatu ralizar o social”. E para fazê-lo é necessário problematizar o óbvio das ações e dos comportamentos das pessoas. Por exemplo: os irmãos têm que se gostar, mesmo quando um abusa do outro? O pai que não respeita o filho pode, mes mo assim, exigir respeito dele?

Amor e respeito não são hereditários ou biológicos e sim ações humanas, construídas conscientemente, mesmo que a partir de uma centelha inexplicável de amor impos sível de controlar ou dissimular, que desborda nosso corpo e nossas barreiras. Esse impulso vital mantém viva a espe rança de alcançar a compreensão do mistério de nossa exis tência. Aferramo-nos a esses impulsos, faíscas de luz divi na que nos inspiram a construir vidas em que o amor pos

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sa se manifestar e multiplicar, o que certamente não tem nada de natural. Natural é nascer, crescer e morrer. Mas, além disso, nós temos a capacidade de sentir e a necessi dade de ser valorizados. Precisamos pensar, trabalhar, pro gredir e aumentar nossos conhecimentos. Nada disto é na tural, são circunstâncias sociais nas quais somos educados.

A transcendência que um pai aspira a alcançar com seu filho se materializa na vontade de estabelecer um pac to e não num vínculo biológico. Trata-se de afinidade, de cultura, de valores e de permitir a manifestação do poten cial divino verbalizando o amor, num vínculo íntimo a ser aprofundado em cada novo encontro.

Mas rabino, vocês devem estar me perguntando agora, o que nos fala o judaísmo a respeito disso tudo?

O pacto é feito de palavras. Brit Milá. Para inserir ao filho dentro de seu povo e de sua família, com a palavra como elemento primordial para criar cultura e iniciar a so cialização desse filho. A milá é a primeira ação carregada de amor e de dor, com a qual o pai mostra a seu filho os pac tos que se estabelecem ao longo da vida. E os filhos respon dem ao ideal bíblico conforme dois modelos: com honra, conforme o livro do Shemot/Êxodo, e com temor, confor me os ensinamentos do livro do Vaikrá/Levítico. São dois modelos para estabelecer o primeiro vínculo que consti tuímos na vida, o relacionamento com os nossos pais.

Nos dez mandamentos (livro de Shemot/Êxodo) en contramos o preceito mais conhecido: “Honrarás a teu pai e a tua mãe”. Tão importante é respeitar aos pais que o judaísmo fez disso um dos pilares que sustentam toda a cultura ocidental. Muitos imaginam esse mandamento como uma voz invisível falando a uma criança pequena,

que lembre sempre respeitar a papai e mamãe. Mas não é esta a forma como os rabinos entenderam o mandamento – ele não se refere a jovens, mas sim a pessoas de 40, 50 ou 60 anos, que devem se ocupar de prover sustento e com panhia aos seus pais já idosos.

Desta perspectiva, a tradição judaica funda uma ci vilização fortalecendo a família e os vínculos que dela se originam, com valores elevados como a honra e o respei to. Filon de Alexandria, o principal pensador do primei ro século da era comum, destaca que honrar aos pais ocu pa uma posição estratégica. É o quinto dos dez manda mentos, situado bem no centro, pois funciona como uma ponte entre Deus e os seres humanos. Nos primeiros pre ceitos, o homem aprende a se relacionar com Deus, nos últimos, com seus semelhantes, e no centro, a honra aos pais até evoluir ao nível mais transcendente do ideal bí blico, que é honrar e obedecer a Deus.

Da honra e da obediência deriva a autoridade

A autoridade é um atributo que permite marcar limi tes, fazer cumprir normas e transmitir propósitos. Para que isso aconteça se parte de uma interação assimétrica, que só é possível a partir do respeito. Quando se desvaloriza o res peito, some a autoridade e fica um perigoso vazio que mui tas vezes é ocupado pelo autoritarismo.

Os termos autoridade e autoritarismo apenas parecem ser próximos. A autoridade é produto de um vínculo sus tentado no reconhecimento do outro. Opostamente, au toritarismo é a sentença de morte da aceitação da diversi dade e a imposição da força como argumento. A autorida

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de e o autoritarismo são termos próximos apenas na sono ridade. Existem muitos pais que de fato confundem autoridade com autoritarismo. Esse desvio começa a se pro duzir quando nos esquecemos de que a honra surge a par tir do amor existente nesses vínculos, e começa a se insta lar a ideia que para honrar (aos pais ou a Deus) é necessá rio sentir temor.

Sutilmente, então, a honra dá lugar ao temor, configu rando a segunda forma de vínculo entre pais e filhos. O livro de Vaikrá/Levítico expressa isto, quando, depois de anunciar o famoso “Santos sereis, pois santo sou Eu, vos so Deus”, prossegue definindo esse vínculo com o sagrado a partir da imposição do temor: “Cada um a sua mãe e a seu pai temerá...” (19:2).

A honra é um vínculo positivo que enriquece os rela cionamentos. O temor é embasado em proibições impostas sob a ameaça de castigos. Ensinaram nossos rabinos: O que é temor (mora) e o que é honra (kavod)? Temor significa que ele [o filho] não deve nem se colocar em seu [do pai] lugar, nem se sentar em seu lugar, nem contradi zer suas palavras, nem se colocar contra ele [em argumen tações com terceiros]. Honra significa que ele deve dar-lhe comida e bebida, vesti-lo e agasalhá-lo, acompanhá-lo ao chegar e ao sair.

As duas são obrigações do filho, mas com motivações muito diferentes. Isso me lembra o que o judaísmo cha ma de “ol malchut shamaim” e “ol a mitzvot” (a submissão aos céus e a submissão às mitzvot). A primeira repre senta obedecer a Deus por temor e a segunda, cumprir as mitzvot (ou seja, obedecer a Deus) por amor.

Quando se faz as coisas por amor não se espera nada em troca. Não se espera uma recompensa futura, nem pa

rabéns pelo bom comportamento. Atua-se de forma posi tiva conforme o amor que impulsiona essa ação. Isso é o que a tradição pós-bíblica chama de “lishmá”, conforme detalhado por Maimônides, que afirma ser o comporta mento desejável de uma pessoa, achar sentido no que está fazendo pelo valor do próprio comportamento e não pela promessa de uma gratificação.

Os comportamentos por temor sempre encerram im plicitamente um castigo no caso de não se obedecer à or dem. Assim fala um pai quando ameaça a seu filho se este não se comportar bem ou se não parar de chorar. Assim fala Deus reiteradas vezes na Torá quando adverte o que acontecerá de ruim se seus preceitos não forem obedecidos.

Quem interpreta o judaísmo dessa forma estabelece um vínculo utilitário. Se obedeço, Deus me enviará chu va abundante, que representa prosperidade e uma gran de descendência. Se transgrido, receberei terríveis castigos.

O mesmo acontece dentro de casa. Existem famílias que constroem seu lar com os pilares do amor, e outras que só sabem se relacionar com a violência das ameaças e o temor. A Torá sabe dessa dualidade e em suas linhas con templa esses dois modelos. E ao escolher entre um e outro, ela não vacila, escolhe o amor.

Basta verificar no principal documento de fé do ju daísmo, o Shemá Israel. “Amarás a Adonai, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com to das as tuas forças.” Não se promete nada em troca desse amor e não existe nenhuma punição aos que não o cum prem. É um imperativo que encontra sua validade na pró pria ação de amar.

Eu gosto desse conceito de amor desinteressado, em bora acredite que o mandamento de amar a Deus, ou a

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um filho, ou a um pai, ou a uma namorada ou a qualquer outra pessoa, é impos sível enquanto ordem imperativa, pois o amor não pode ser imposto. O amor não se presenteia, se conquista. Talvez por isto a Torá não fale muito do amor. Fala de pactos e de obrigações. De amor fala mui to pouco. Ou por acaso o nosso patriarca Itzhak amava? O texto diz que a um dos seus gêmeos ele amava. “E Isaac gostava de Esaú, porque comia de sua caça” (Bereshit/ Gênesis 25:28).

Ao outro não amava! E o amor que tinha era meramente utilitário. Amava a quem o alimentava. Assim sendo não é de se espantar que a Esaú, a quem su postamente amava, ele deixou sem nada. Vejam que dramático o diálogo, quando o filho descobre o engano do irmão e a imensa dificuldade de amar de seu pai:

A autoridade e o autoritarismo são termos próximos apenas na sonoridade. Existem muitos pais que de fato confundem autoridade com autoritarismo. Esse desvio começa a se produzir quando nos esquecemos de que a honra surge a partir do amor existente nesses vínculos, e começa a se instalar a ideia que para honrar (aos pais ou a Deus) é necessário sentir temor.

E quando Isaac terminou de abençoar a Jacob e assim que Jacob saiu de diante de seu pai Isaac, Esaú, seu irmão, chegou de sua caçada. E ele fez também manjares e os trouxe ao seu pai, e disse a seu pai: Levanta-te, meu pai, e come da caça de teu filho, para que tua alma me abençoe. E Isaac, seu pai, disse-lhe: Quem és tu? – e disse: Eu sou teu fi lho, teu primogênito, Esaú. E Isaac estremeceu um grande tre mor e disse: Quem é e onde está aquele que caçou uma caça e trouxe para mim, e comi de tudo antes que viesses, e o aben çoei? Também será bendito!

Quando Esaú escutou essas palavras, soltou um grito mui to grande e amargo, e disse a seu pai: Abençoa-me também a mim, meu pai! ... certamente reservaste também para mim uma benção! E Isaac respondeu e disse a Esaú: Eis que o pus por senhor sobre ti... E a ti, então, que darei meu filho? – e Esaú disse a seu pai: Porventura tens uma única bênção, meu pai? Abençoa-me também a mim, meu pai! – e Esaú levan tou sua voz e chorou. (Bereshit/Gênesis 27:30-38).

Esse texto sintetiza a tragédia em que a vida se converte quando se carece de suficiente amor. A pessoa que foi edu cada no temor vai ter muita dificuldade em multiplicar seu amor. Ele pensa que como já deu a um já não tem mais o que oferecer ao outro, quando na lógica do amor, quan

to mais damos, mais recebemos e mais te mos para continuar dando.

Esse amor sem limites não está garan tido quando nascemos, ele é construído pelas famílias saudáveis que vivenciam o vínculo com generosidade e sensibilida de. Quem não recebeu isso em casa, não está condenado a repetir a história, mas terá uma marca indelével em sua alma, e magoas que o acompanharão para sem pre. Isso está presente em Gênesis, onde as angústias familiares se transmitem de pais a filhos.

A repetição anual da leitura do tex to bíblico é uma transferência que pro cura transformar. Não se está recordan do, senão revivendo aqui e agora, posto que aquilo que não se supera, se repete.

Assim Jacob repete com seus filhos o que ele sofreu. Ele também amou mais a um do que aos outros. E Yossef sofreu as consequências de uma família aonde o amor não fluía de forma saudável e harmoniosa, com pais que desejam desesperadamente ter uma descendência, mas quando os filhos chegam não sabem como se relacionar com eles. Não há ciência, não há religião, não há receita mágica que garantam o amor ou relacionamento bem sucedidos.

A novidade que a cultura dos pactos da Torá traz para a humanidade é afirmar que nada é permanente. Que o su cesso dos relacionamentos depende da vontade íntima de cada um, independentemente do destino, das almas gême as. Em cada gesto de amor e em cada discussão estamos in clinando a balança para um lado ou para o outro.

A liberdade do ser humano aprofunda a possibilidade de obedecer (seja por amor, seja por temor) ou de transgredir. Independentemente de qualquer prêmio ou de qual quer castigo que alguém possa nos proporcionar. Pois, defi nitivamente, não existe castigo pior do que viver a vida que outra pessoa imaginou para nós, sem consideração para com os nossos sonhos, sentimentos, esperanças e busca de realização. Assim como não existe prêmio maior do que a vida com vínculos cheios de amor, de alegria e de encanto.

Rabino Dario E. Bialer serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

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a visão de h erzl, o nosso desafio

Uma entrevista com o fundador de Israel

Criei o ritual de visitar o túmulo de Herzl todos os anos por ocasião do aniversário dele, quando Israel celebra oficialmente a vida e os feitos de seu fundador. Vou me deixando ficar por ali depois que a multi dão se dispersa ao final da cerimônia na esperança de vislumbrar este nosso herói da moderna autodeterminação judaica e talvez de poder trocar algumas palavras com ele. Este ano, dei sorte. Concordou em conceder-me uma entrevista completa, por estar preocupado com o atual estado de coisas no Estado de Israel.

DB: Já se passaram 64 anos do nascimento do Estado judaico dos seus so nhos. Dado que...

Herzl: Desculpe-me, mas preciso corrigir o que disse. Este não é o Estado judaico dos meus sonhos.

DB: Como assim?

Herzl: Há mais de um século eu declarei no Congresso Sionista: “Todos aqueles que hoje estão preparados para arriscar suas vidas pela causa se arrepende rão de terem levantado um simples dedinho caso não sejamos capazes de organi zar nada além de um novo sistema social, ao invés de um que seja mais íntegro”.

DB: E não foi isto que fizemos?

Herzl: Por onde gostaria que eu começasse? Pelas 400.000 famílias que so frem de “insegurança nutricional”, o eufemismo para “fome” na sua Israel? Se gundo o último relatório do Instituto Nacional de Seguros, 24% dos cidadãos e uma de cada três crianças vivem abaixo da linha de pobreza. Ou quem sabe “Tudo o que cultivarem não terá qualquer valor e seus campos voltarão a ser estéreis, caso não cultivem também a liberdade de pensamento e expressão, a generosidade de espírito e o amor pela humanidade. São estas as coisas que devem ser amadas e protegidas.” (Theodor Herzl)

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pelas crianças que não são cidadãs? Existem centenas, fi lhas de trabalhadores estrangeiros, correndo risco de serem deportadas.

DB: Mas entraram aqui ilegalmente...

Herzl: E o que dizer das crianças árabes que não são ilegais, são cidadãs do país e, portanto, têm total igualda de de direitos garantida por lei? Como é que você me ex plica que elas frequentem um número menor de horas es colares que as crianças judias da mesma idade, em salas de aula com um número muito maior de alunos, o que leva a uma evasão escolar proporcionalmente muito mais alta que a média nacional?

DB: Mas elas vêm de uma cultura diferente, com neces sidades diferentes...

Herzl: Tenho conhecimento destas necessidades. Mas e quanto ao fato de que vocês gastam per capita nos ser viços sociais para crianças árabes a metade do que gastam para crianças judias? Vocês estão muito distantes de criar o tipo de sociedade no qual um ministro árabe no gover

no israelense poderia fazer um pronunciamento semelhan te ao de Reishid Bey, o ministro árabe que eu criei no meu livro Altneuland¹: “Os judeus nos enriqueceram. Por que deveríamos ter raiva deles? Vivem entre nós como irmãos. Por que não deveríamos amá-los?” Entendo que existem razões para as desigualdades e seria muita presunção da mi nha parte sugerir como vocês poderiam resolver todos es ses problemas, mas nem por isto vou deixar de dizer o que estou vendo e nem vou hesitar em lembrar a vocês quais foram as instruções explícitas que formaram o meu lega do: “O povo judeu, ao recuperar a sua antiga terra pátria, deverá estender direitos civis, humanos, sociais e políticos ao povo que ali já se encontrar”. Eu, de verdade, reconhe ço e aprecio muito o que vocês incluíram em sua Decla ração de Independência a este respeito, afirmando que o Estado de Israel “assegurará completa igualdade de direitos sociais e políticos a todos os seus habitantes, qualquer que seja sua religião, raça ou sexo”, mas eu não estaria sen do honesto se não lhe dissesse que fico perturbado ao ver o abismo existente entre as suas proclamações e a realida de que salta aos olhos.

As fotografias deste artigo são da inauguração da ala audiovisual do Museu e Centro Educacional Herzl, localizado no Monte Herzl, em Jerusa lém, Israel.
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DB: Mas é que esta realidade é tão complexa. Nós... Herzl: Longe de mim tecer julgamentos, mas pre ciso dizer-lhe que não é só a minoria árabe que se sente privada de seus direitos civis. Observe o que está aconte cendo neste exato momento em alguns dos bairros mais pobres de suas cidades. Os refugiados e ilegais que che gam do Sudão e da Eritréia têm medo de sair de suas ca sas. Eu me solidarizo com os problemas que a presença deles causa a vocês, mas não posso perdoar o preconcei to que veio à tona. Mais de um século atrás deleguei ao povo judeu a seguinte tarefa: “Formem o seu Estado de tal maneira que o estrangeiro se sinta confortável entre vocês”. Não foi isto o que vocês fizeram. Já era bastante ruim quando estes migrantes vinham sendo explorados por empreiteiros inescrupulosos, mas agora eles também enfrentam discriminação virulenta e até violência nas mãos dos seus vizinhos judeus. Vocês ainda têm muito trabalho pela frente antes que possamos dizer que alcan

çaram os padrões fundamentais da nossa tradição. Meu sonho nada mais era do que uma articulação contempo rânea do antiquíssimo decreto de Levítico: “Quando um estrangeiro residir contigo em tua terra, não o prejudicarás. O estrangeiro que reside contigo será para ti como um dos teus cidadãos”.

DB: Mas preste atenção no que conseguimos fazer. As inovações tecnológicas, os notáveis avanços médicos, os progressos na agricultura, a transformação do de serto em...

Herzl: Eu me orgulho tanto quanto você de todas es tas conquistas, mas a mensagem que a minha visão ideali zara para os habitantes da Nova Sociedade era bem explí cita: “Tudo o que cultivarem não terá qualquer valor e seus campos voltarão a ser estéreis, caso não cultivem também a liberdade de pensamento e expressão, a generosidade de espírito e o amor pela humanidade. São estas as coisas que

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devem ser amadas e protegidas”. Eu acreditava nisto naquela época e ainda acredi to nisto agora.

DB: Eu pensava que a sua preocupação fosse que nós simplesmente estabelecês semos um lugar seguro para os judeus viverem...

Herzl: Não, não, não! Realmente isto era parte do meu plano, mas só uma par te. O sonho era muito maior do que isto. Uma das últimas coisas que escrevi antes de falecer foi que “verdadeiramente creio que, mesmo depois de tomarmos posse de nossa terra, o sionismo não deixará de ser um ide al, pois o sionismo engloba não só o desejo de um pedaço de terra prometida legalmente adquirida para o nosso povo exausto como também o desejo de realização ética e espiri tual”. Confesso que esperava muito mais de vocês.

“O povo judeu, ao recuperar a sua antiga terra pátria, deverá estender direitos civis, humanos, sociais e políticos ao povo que ali já se encontrar.” (Theodor Herzl)

pela paz e contribuindo para que o mun do se torne melhor”. Isto não é visão?

DB: Fantasia descreve melhor. Acha que estamos à altura do desafio?

Herzl: “Todos os feitos do homem começaram com um sonho, e sonhos tornar-se-ão”.

DB: Perdão. Isto foi uma resposta à minha pergunta?

Herzl: Olhe à sua volta, veja todas estas realizações de que você tanto se orgulha. São uma transposição colorida e vibrante do meu sonho em branco e preto. Mas como realizações acabarão sendo coisa alguma se não se transfor marem na base dos novos sonhos de vocês.

DB: Está sugerindo que o sionismo falhou e que deverí amos abandonar o esforço?

Herzl: Deus nos livre! Posso estar desapontado, mas não sou derrotista. Agora não é o momento de abandonar o ideal e sim de abraçá-lo, de inspirar a próxima geração para que assuma a tarefa de seus antepassados. Eu já disse isto antes e vou repetir: “Uma comunidade precisa ter um ideal, porque é isto que nos impulsiona. O ideal está para a comunidade como o pão e a água estão para o indivíduo. E o nosso sionismo, que nos trouxe até aqui e vai continuar nos levando até alturas desconhecidas, nada mais é que um ideal, infinito e interminável”.

DB: Acha que temos a capacidade de trazer de volta este sentido de sonho?

Herzl: Os líderes da Organização Sionista Mundial já fizeram isto. Quero lembrá-lo que por ocasião do cen tésimo aniversário da minha morte foi adotado um novo Programa de Jerusalém, uma revisão contemporânea do manifesto sionista publicado no primeiro Congresso Sio nista, em 1897. O ponto principal é que lutemos pelo “fortalecimento de Israel como um Estado judaico, sio nista e democrático, e o formemos como uma sociedade exemplar, dotada de um caráter moral e espiritual singular, marcado pelo respeito mútuo diante do multifaceta do povo judeu, enraizado na visão dos profetas, lutando

DB: Nós temos sonhos sim senhor, só que não são do tipo que você está descrevendo. Os nossos estão mais para pesadelos, cheios de escândalos e corrupção. No momen to temos um ex-presidente preso por estupro, um ex-primeiro ministro sendo julgado por uso inapropriado de fundos públicos, dois ex-ministros na cadeia por roubo e abuso da confiança pública, e quem sabe quantos ou tros membros do Knesset sendo investigados. Consegui ram que toda a próxima geração ficasse cínica. Sexo. Di nheiro. Poder. Eu me sinto como se estivesse no palco de uma novela ruim, mais do que nas páginas de um roman ce utópico. Nossos políticos...

Herzl: Ah, políticos. Eis aí o problema de vocês. No Estado judaico cuja existência eu imaginei eu poderia di zer: “A política não é um negócio e nem uma profissão. Nós conseguimos nos manter livres das manchas desta pra ga. As pessoas que tentam viver à custa de vomitar suas opiniões ao invés de viver do seu trabalho são rapidamen te reconhecidas pelo que são. São desprezadas e acabam sem chance de fazer o mal. Nossos tribunais repetidamente sentenciam em processos de calúnia e difamação nos quais a expressão ‘político profissional’ é um insulto...”

DB: Antes que você me faça ficar ainda mais deprimido permita-me mudar um pouco de assunto. Algum conse lho com referência a Jerusalém?

Herzl: Evidentemente. Comece lendo o meu diário, onde eu escrevi: ”Se algum dia Jerusalém viesse a nos per

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tencer”, eu escrevi, “começaria fazendo uma faxina”. Mas em meus sonhos eu fui muito além disto e sugeriria ao seu pre feito que ele fizesse o mesmo. Na minha Cidade Velha de Jerusalém “todas as edi ficações eram dedicadas a propósitos reli giosos e de beneficência. Instituições as sistenciais muçulmanas, judaicas e cris tãs, hospitais e clínicas estariam umas ao lado das outras. E no centro de uma gran de praça encontrava-se o esplêndido Palá cio da Paz, onde aconteceriam congressos internacionais de cientistas e amantes da paz, já que então Jerusalém seria o centro de todos os melhores esforços do espírito humano: pela Fé, Amor, Conhecimento”.

DB: Um tanto universalístico, não lhe parece?

“Uma comunidade precisa ter um ideal, porque é isto que nos impulsiona. O ideal está para a comunidade como o pão e a água estão para o indivíduo. E o nosso sionismo, que nos trouxe até aqui e vai continuar nos levando até alturas desconhecidas, nada mais é que um ideal, infinito e interminável.” (Theodor Herzl)

Herzl: Com toda certeza. Mas tam bém muito judaico. Considero muito im portantes a tradição e o sentido de perti nência judaicos. “O sionismo é a volta ao rebanho judaico antes até de ser uma vol ta à terra judaica”, declarei por ocasião do 1º Congresso Sionista, acrescentando que “é verdade que aspiramos por uma volta à nossa antiga terra, mas o que queremos ver naquela terra é um novo florescer do espírito judaico”.

DB: Receio vê-lo desapontado com o que aconteceu em vez disto. Tem algu ma ideia do que está acontecendo no seu assim chamado Estado Judeu? Mulheres que se recusam a sentar na parte de trás dos ônibus sofrendo abusos por parte dos ultraortodoxos, os mesmos ultraor

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todoxos atacando fisicamente meninas que, segundo eles, não estão vestidas com a devida modéstia para irem à es cola, as cortes rabínicas recusando-se a converter cente nas de milhares de imigrantes russos que desejam deses peradamente fazer parte do povo judeu, a continuada ne gação da legitimidade do judaísmo liberal e conservador praticado pela vasta maioria dos judeus da Diáspora...

Herzl: Vocês deveriam ter seguido meus conselhos. Na primeira vez que abordei por escrito o assunto de um Estado Judeu, eu preveni sobre este problema que já estava prevendo em um horizonte distante. “Será que vamos acabar tendo uma teocracia?”, perguntava eu. “Não, de jeito nenhum. A fé nos une, e o conhecimento nos dá a liber dade. Portanto, impediremos quaisquer tendências teocrá ticas por parte de nosso rabinato de virem à tona. Mante remos nossos rabinos dentro dos limites de suas sinagogas

da mesma maneira que manteremos nosso exército profis sional dentro dos limites de suas casernas. Exército e rabi nato receberão as altas honras que suas funções valorosas merecem. Mas não devem interferir na administração do Estado que lhes confere tais distinções, sob pena de causa rem dificuldades internas e externas.”

DB: Então o que dizem a seu respeito é verdade, você realmente não queria um Estado judaico, e sim um Esta do para os judeus.

Herzl: Não, é muito mais complicado do que isto. Concedo-te que Der Judenstaat², o manifesto sionista que eu escrevi, traz ambos os significados, contudo, muito mais importante do que entender o que eu realmente queria é tratar de entender o que vocês realmente que rem. Nunca percam de vista que, em Altneuland, bem ao

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lado do Palácio da Paz que descrevo, eu também recons truo o Templo em toda a sua glória – e até me asseguro de que ele seja bem frequentado. E o que experimentou o protagonista de minha novela na primeira sexta-feira que passou aqui? “As ruas que ao meio dia estavam vivas e cheias de movimento agora estavam subitamente para lisadas. Muito poucos carros podiam ser vistos e todas as lojas estavam fechadas. Lenta e pacificamente o shabat foi descendo sobre a movimentada cidade. Multidões de fieis buscavam o seu caminho até o Templo e até às muitas si nagogas da Cidade Velha e da Cidade Nova, onde reza riam ao Deus cuja bandeira Israel carregou pelo mundo por milhares de anos.”

DB: Então a sua Jerusalém permaneceu unida.

Herzl: Unida, sim. Mas eu também estava preparado para internacionalizá-la assegurando a sua estatura e con seguindo que o Estado judeu fosse aceito dentro da famí lia das nações.

DB: Esta seria a solução recomendável hoje em dia?

Herzl: As soluções que propus foram aquelas que acreditei serem as adequadas para o meu tempo. Cabe a vocês a proposta de soluções adequadas para agora.

DB: Que me diz de outras áreas? Algum conselho para o nosso primeiro-ministro?

Herzl: Ele precisa aumentar a prioridade dada à agen da social. A minha Altneuland deveria se tornar o modelo para a sua Tel Aviv que, como você talvez saiba, foi a ma neira brilhante como Nahum Sokolov traduziu o nome do meu romance. Consideremos a saúde pública como um exemplo. Na sociedade que eu criei “deveríamos ter ver gonha de mandar um paciente de um hospital para outro como se costumava fazer nos velhos tempos. Se não hou vesse vaga em um hospital, uma ambulância saindo do seu próprio pátio levaria imediatamente o paciente para um outro onde houvesse disponibilidade de leitos”.

DB: Será que estamos fazendo ao menos alguma coisa certa?

Herzl: Bem, a decisão do seu ministro da Educação de

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exigir uniformes escolares foi certamente um passo na direção certa – saiu di reto do Altneuland. Eu escrevi que “não recompensaremos e nem puniremos nos sas crianças pelas transações e negócios de seus pais. Cada geração recebe um novo começo. Assim, todas as nossas institui ções educacionais são gratuitas, do ensino elementar até a Universidade Sion. Todos os alunos devem usar o mesmo tipo de roupa simples... Consideramos pouco éti co identificar as crianças de acordo com a posição social ou financeira de seus pais. Seria prejudicial para todos. As crianças de famílias mais privilegiadas se tornariam preguiçosas e arrogantes, e as outras amarguradas”.

“No centro de uma grande praça encontrava-se o esplêndido Palácio da Paz, onde aconteceriam congressos internacionais de cientistas e amantes da paz, já que então Jerusalém seria o centro de todos os melhores esforços do espírito humano: pela Fé, Amor, Conhecimento.” (Theodor Herzl)

DB: Mas, olhando o quadro total, será que ainda seria possível consertarmos as coisas?

Herzl: Claro que sim. Vocês já fizeram coisas ótimas, e têm o potencial de fazer muito mais. “Porém”, citando as palavras que usei para terminar o meu romance e que vou usar para fechar esta entrevista, “se não houver a von tade da realização, tudo o que acabo de descrever é e con tinuará sendo uma lenda”.

E aqui Herzl teve que ir-se, e assim eu não pude pedir -lhe uma recomendação sobre como deveríamos proceder, mas imagino a continuação da nossa conversa assim:

DB: Então que caminho seguimos daqui para frente?

Herzl: O primeiro passo é verdadeiramente querer criar aquela sociedade exemplar cuja existência eu imaginei.

DB: E o segundo?

Herzl: Não ter medo das críticas daquilo que vocês criaram no lugar daquela sociedade exemplar. Vocês só vão conseguir resolver os seus problemas depois que consegui rem reconhecê-los.

DB: Então você acha que os judeus da Diáspora têm di reito legítimo de expressar sua desaprovação quanto ao que vem ocorrendo em Israel? Eles têm o direito de agir assim e continuar considerando-se bons sionistas?

Herzl : Eu iria um passo à frente disto e viraria a sua pergunta de cabe ça para baixo. Considerando-se a trapa lhada em que vocês se meteram, como poderiam eles ser bons sionistas se não criticassem?

DB: Nenhum limite?

Herzl: Não foi isto que eu disse. É preciso que eles sigam aquilo que eu cha mo de o A, B, C da crítica responsável. “A” vem de afirmação. O crítico precisa afirmar constantemente o direito que Is rael tem de existir e proclamar orgulho samente a legitimidade fundamental da ideia sionista. ”B” é de balanceamento.

Não é aceitável criticar Israel sem reco nhecer suas realizações extraordinárias, o idealismo que permeia a sociedade e a sua pertinaz bus ca da democracia. Temos dois “C”. O primeiro vem de contexto. É preciso que se veja e julgue Israel à luz das circunstâncias extraordinariamente difíceis em que nas ceu e com as quais teve que lidar através de sua exis tência, assim como com referência à situação geográfica na qual sempre teve que lutar para sobreviver. O segun do “C” vem de construtivo. Criticar Israel só por criti car não é aceitável. Quaisquer acusações lançadas devem emanar de um desejo de melhorar as coisas, não de pio rá-las. Sigam estas regras e quem sabe no ano que vem, quando nos encontrarmos, Israel vai estar um pouquinho mais perto de ter se tornado aquele Estado judeu com o qual eu sonhei, e pelo qual você estava me perguntando lá no começo.

Notas

1. Altneuland – Velha Nova Terra

2. Der Judestaat – O Estado Judeu

David Breakstone é vice-presidente da Organização Sionista Mun dial e diretor fundador do Museu e Centro Educacional Herzl em Jerusalém. As opiniões aqui expressas são pessoais suas – e tam bém de Theodor Herzl, de cujas obras as citações neste artigo fo ram extraídas.

Traduzido por Teresa Roth

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Quantos somos, onde estamos, aonde vamos? entrevista com o professor sergio della Pergola, demógrafo do judaísmo contemporâneo

Mais de 80% dos judeus do mundo vivem em Israel e nos Estados Unidos, enquanto que mais de 95% se concentram em um pouco mais de dez países, incluindo o Brasil, que ocupa a posição de número dez no ranking quantitativo das comunidades judaicas mundiais.

Onome Sergio Della Pergola é praticamente sinônimo de demografia judaica. Professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém, Della Pergola já palestrou em mais de cinquenta universidades e centros de pesquisa ao redor do mundo, recebeu diversos prêmios, atuou como consultor político do presidente de Israel, entre várias outras atividades.

O World Jewish Population, 2010 é um dos resultados de cinquenta anos de dicados ao tema. Trata-se do mais atualizado e completo relatório sobre a demo grafia judaica contemporânea, cujas 71 páginas apresentam dados sumamen te interessantes – como, por exemplo, o número de judeus no mundo, estima do em 13 milhões e meio (http://www.jewishdatabank.org/Reports/World_ Jewish_Population_2010.pdf).

Encontramo-nos com o professor Della Pergola em Jerusalém, numa en solarada tarde de inverno, para uma entrevista concedida com exclusividade a Devarim sobre os rumos da demografia judaica.

Devarim: Conte-nos um pouco sobre sua biografia e como surgiu seu inte resse pela demografia judaica.

Pergola: Nasci na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, em 1942. Meus pais conseguiram fugir a pé para a Suíça em 1943 e assim sobrevivemos ao Holocausto. Em 1945 voltamos para a Itália, moramos em Milão, estudei numa escola judaica e fui ativo em movimentos juvenis judaicos, mas também tinha muitos amigos não judeus. Fui estudar Ciências Políticas na universida

Gabriel mordoch
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de, eu já me interessava então por estatística social. Numa ocasião um amigo e eu conduzimos um trabalho sobre a comu nidade judaica italiana e para tanto fomos nos aconselhar com o professor ítalo-is raelense Roberto Bachi, que era o prin cipal demógrafo e estatístico de Israel. Após terminar minha tese de mestrado, em dezembro de 1966, vim para Israel com o propósito de vivenciar um ano na Universidade Hebraica de Jerusalém. Fiz meu doutorado sobre a demografia dos judeus da Itália e, após terminá-lo, come cei a trabalhar como assistente de pesqui sa na Universidade Hebraica, no Instituto de Judaísmo Contemporâneo. O pro fessor Bachi, juntamente com o professor Moshe Davis, fundaram esse instituto em 1959. Ativo até os dias de hoje, o institu to lida com questões ligadas ao universo judaico desde a perspectiva de diferentes disciplinas, tais como História, estudos do Holocausto, Li teratura, Sociologia, Demografia e Ciências Políticas, reu nindo especialistas em diferentes regiões, como o professor Chaim Avni, que se dedica à América Latina. Com o pas sar dos anos eu avancei, virei professor associado e depois chefe do Instituto de Judaísmo Contemporâneo. Há um ano me aposentei como professor emérito, mas continuo pesquisando, publicando e lecionando. Minha vida profissional foi inteiramente dedicada à investigação das co munidades judaicas. São 50 anos de dedicação. Meu foco de interesse abrange os Estados Unidos e a América Lati na, visitei Brasil, Argentina, Uruguai, Venezuela, México e publiquei pesquisas sobre estes países. Enfim, eu me inte

A maioria da população judaica está concentrada num pequeno número de cidades grandes. 50% vive em cinco regiões metropolitanas, Tel Aviv, Jerusalém e Haifa, em Israel, e Nova Iorque e Los Angeles, nos Estados Unidos; 75% da população judaica mundial vive em 17 cidades, entre elas Buenos Aires, na Argentina.

resso pela perspectiva mundial. O World Jewish Population, 2010 é uma síntese de muitos anos de trabalho, nosso e de ou tros, que trata de apresentar um quadro da situação de maneira objetiva e investi gativa sobre a demografia judaica. As di ferentes comunidades e também o Estado de Israel e a Agência Judaica devem en tender as transformações e tendências do povo judeu a fim de refletir sobre o futu ro e planejar suas ações. Também traba lhamos muito com assessoria a entidades governamentais e públicas em nossas pes quisas. Sempre surgem novas questões e reflexões.

Devarim: Qual é o poder político da pesquisa demográfica?

Pergola: É importante conduzir as pesquisas de forma científica, com meto dologias adequadas, de maneira que seja sempre possível examiná-las e avaliar se os resultados es tão corretos. É necessário que haja o máximo de transpa rência para que qualquer um possa examinar o que foi fei to e como foi feito. Geralmente os dados ideais não estão disponíveis, muitas vezes há pouca informação. O Brasil é um país relativamente desenvolvido nesse quesito porque há um censo populacional a cada dez anos. É necessário, no entanto, entender as limitações destes dados. Além dis so, a comunidade judaica, principalmente em São Paulo, realiza um grande esforço para localizar os seus judeus, na quilo que foi chamado de cadastro da comunidade. Sempre há questões e dúvidas, portanto as ponderações do pesqui sador são influentes e ele precisa observar os dados de ma

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neira crítica. Não há dúvida que o fato de não haver dados completos possibilita a politização dos dados. Há pessoas que desejam obter determinados resultados e ao recebe rem resultados um pouco diferentes dizem que talvez haja erros. Certa vez um político israelense me disse: “Não nos aborreça com teus dados, nós conhecemos a realidade”. Há temas politicamente sensíveis, como as questões ligadas ao Estado de Israel e sua maioria ou minoria judaica, territó rios, fronteiras e administração. Todos esses temas geram grandes discussões. Também há uma grande discussão so bre os termos quantitativos da comunidade judaica dos Es tados Unidos. Há os que apontam para um número um pouco menor, como é o meu caso, e há os que pensam que o número é um pouco maior. É interessante notar que o número aparentemente influencia de maneira significativa o ego da comunidade judaica, há a tendência de pensar que “quanto maior melhor” tanto pelo ego comunitário em si como também pela necessidade de parecer mais po deroso aos olhos dos governos locais e assim afastar o medo de ser desprezado. Há uma conexão entre os números e a autoconfiança da comunidade. Há um exemplo engraça do: o presidente da comunidade judaica do México estava sentado ao lado de um importante ministro num jantar. O ministro perguntou amigavelmente: “Vocês, os judeus mexicanos, são muito bem sucedidos... quantos judeus há no México? Um milhão? Ou mais de um milhão?”. O pre sidente da comunidade respondeu “não, caro ministro, so mos menos de um milhão”. Ele não mentiu, mas também não disse 50 ou 60 mil, o que poderia soar desastroso. Todos voltaram para suas casas sem ter mentido e tendo es cutado aquilo que queriam.

Visitei dezenas de países mundo afora e em cada um deles encontrei interesses e necessidades em apresentar nú meros maiores do que os existentes. É uma situação deli cada, que eu entendo e não desprezo, mas por outro lado, como cientistas, temos a obrigação de realizar um traba lho sério.

Devarim: Como são desenvolvidas as previsões para os cenários populacionais futuros?

Pergola: A Demografia é de certa maneira uma dis ciplina muito simples, uma vez que lida com um núme ro reduzido e determinado de acontecimentos e processos: no aspecto biológico, nascimentos e mortes; no aspecto so cial, emigrações e imigrações; no aspecto cultural identitá

rio, adesão à ou abandono da comunidade. São apenas seis variáveis e nós sabemos que elas funcionam de um modo muito tradicional, as mudanças ocorrem de maneira len ta e gradativa. Mas às vezes acontecem fenômenos que causam um salto significativo dentre as seis variáveis. Portanto nunca há uma previsão única. Um bom investiga dor prepara uma série de previsões, considerando sempre a combinação de diferentes hipóteses plausíveis, e assim são construídos cenários. Fizemos isso várias vezes, tanto em relação aos judeus da Diáspora quanto a Israel e seu entor no, e obtivemos muito bons resultados. É necessário ser cauteloso, uma vez que se trata de previsão e não profecia, sempre pode haver erros, mas de todo modo as previsões indicam os prováveis desdobramentos das situações vigen tes. Fica difícil acertar nos casos em que há, por exemplo, uma revolução total, muito embora não possamos culpar o demógrafo nestes casos. O esfacelamento da União So viética, por exemplo, foi um fenômeno que transformou significativamente a demografia judaica – já que envolveu um milhão e meio de pessoas, judeus e seus familiares não judeus – e influenciou não somente a situação na própria União Soviética, mas também em Israel, e em certa medida nos Estados Unidos e em outros lugares também. Quem poderia prever que a União Soviética, a grande potência atômica, iria ruir? O professor Shlomo Avineri, veterano do departamento de Ciências Políticas da Universidade Hebraica, fez essa previsão em maio de 1991; a União So viética caiu em agosto de 1991. Quando a ordem mundial ou mesmo a ordem regional se transforma radicalmente,

Sergio Della Pergola, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.
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a previsão demográfica feita anteriormente dificilmente se provará correta. No entanto, esse tipo de previsão é tarefa do cientista social e não do demógrafo.

A imprensa fala muito sobre o peso do voto judaico nos Estados Unidos. Como é possível atribuir tanta importância ao voto judaico quando os judeus constituem menos de 2% da população do país?

As comunidades judaicas dos Estados Unidos estão geograficamente concentradas em lugares específicos. Além disso, no sistema eleitoral dos Estados Unidos o can didato que vence as eleições em um determinado Estado ganha todas as vagas no Colégio Eleitoral. Em Estados que possuem muitas vagas no Colégio Eleitoral, como Nova Iorque ou Califórnia, mesmo uma pequena porcentagem de votos pode decidir o resultado no Estado, influencian do enormemente a eleição nacional. Podemos dizer que o voto judaico foi determinante em algumas eleições, prin cipalmente aquelas decididas por uma pequena diferença de votos. As eleições de 1960, disputadas entre Nixon e Kennedy, são um exemplo clássico. Kennedy venceu por uma pequena diferença de votos. Graças ao voto judaico ele venceu em vários grandes Estados, o que foi fundamen tal para ele ganhar a presidência. No entanto, a proporção de cidadãos judeus nos Estados Unidos vem diminuindo

e, além disso, há hoje em dia maior tendência à dispersão dos judeus pelo país, de modo que a influência numérica do voto judeu é cada vez menor. Por fim, os judeus se des tacam na academia e nas profissões liberais, portanto, ape sar de serem tão somente 2% da população, sua presença nos âmbitos formadores de opinião alcança altas porcen tagens. Na Universidade de Harvard, por exemplo, 25% dos professores e alunos são judeus. A influência intelectual, social e política dos judeus americanos é muito maior do que 2%, logo o chamado voto judeu é mais ideológi co que demográfico.

Devarim: Conte-nos um pouco sobre as conclusões do último relatório, lançado em 2010, relativo à demogra fia judaica mundial.

Pergola: O relatório aponta algumas grandes tendên cias, como, por exemplo, o fato de o mundo judaico es tar altamente concentrado. Mais de 80% dos judeus do mundo vivem em Israel e nos Estados Unidos, enquan to que mais de 95% se concentram em um pouco mais de dez países, incluindo o Brasil, que ocupa a posição de número dez no ranking quantitativo das comunidades judaicas mundiais. A maioria da população judaica está con centrada num pequeno número de cidades grandes. 50%

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vive em cinco regiões metropolitanas, Tel Aviv, Jerusalém e Haifa, em Israel, e Nova Iorque e Los Angeles, nos Estados Uni dos; 75% da população judaica mundial vive em 17 cidades, entre elas Buenos Ai res, na Argentina. Essa concentração in dica que a vida judaica contemporânea se conduz em grandes espaços urbanos, ca racterizando-se por uma intensa atividade econômica e pela possibilidade do esta belecimento de organizações judaicas que inclusive competem entre si. Essa situa ção difere muito da realidade de há cem anos, quando a maioria dos judeus ainda vivia em pequenas cidades, muitos na Europa oriental e também em países árabes. A paisagem era totalmente diferente, por vezes todos os habitantes da cidadezinha eram judeus, e os laços sociais muitas ve zes não extrapolavam as fronteiras da ci dade. Houve uma transição de pequenos lugares onde os judeus eram maioria para grandes lugares onde os judeus são mino ria. Isso, evidentemente, favorece os ca samentos mistos. Nos Estados Unidos, por exemplo, um pouco mais de 50% dos judeus se casa com não judeus atualmente, e em muitos outros países também. Nestes ca sos a questão é a abordagem dos pais quanto à identidade dos filhos, quer dizer, se os pais querem ou não estimular a identidade judaica dos filhos.

É difícil hoje em dia encontrar uma ideia original, do ponto de vista de conteúdo judaico, que não tenha nascido nos Estados Unidos ou em Israel. Contudo, posso dizer que o conceito dos grandes clubes esportivos e culturais, que constituem um ponto de encontro judaico significativo, é uma das contribuições das comunidades judaicas latino-americanas, inclusive do Brasil.

a investir o dinheiro necessário para uma pesquisa de qualidade.

Devarim: Quais são as consequências do fato de os judeus de hoje em dia esta rem tão concentrados em somente dois países?

Essas são as questões fundamentais da demografia ju daica. Em minha pesquisa eu descrevo as diferentes ten dências, aponto as diferenças em relação aos anos ante riores e também explico quais são as fontes de dados, que em certos casos são bastante confiáveis, como no Canadá, por exemplo. No Brasil, o censo populacional proporcio na uma base de dados bastante interessante e que permi te analisar da década de 1940 em diante. Em certos países não há censos populacionais, portanto somos obrigados a levantar dados através de estudos financiados pela comu nidade judaica ou por outras instituições de pesquisa. Tra ta-se de um procedimento muito caro, o qual levamos a cabo em alguns países, no México, por exemplo, e em Buenos Aires, onde foi realizado um grande estudo conduzido pelo Joint. Mas nem todo líder comunitário está disposto

Pergola: A concentração gera o do mínio destes dois atores ante os atores menores. A maioria das novas ideias, das ideologias que competem entre si, das po líticas, do dinheiro, vem dos Estados Uni dos e de Israel – os grandes “exportado res” em relação ao resto do mundo judai co. Usando uma palavra um tanto for te, pode-se dizer que essas potências qua se “colonizam” o que seria um terceiro mundo no qual se situam as outras co munidades. Interessante notar que fato res americanos, como o Movimento Re formista, o Chabad, e o Joint, por exemplo, são muito bem sucedidos em países da América Latina e da Ex-União Sovié tica. Por outro lado, o Estado de Israel, a Agência Judaica e determinados partidos políticos sionistas também participam da educação judaica, da vida pública judaica e da política comunitária. É difícil hoje em dia en contrar uma ideia original, do ponto de vista de conteú do judaico, que não tenha nascido nos Estados Unidos ou em Israel. Contudo, posso dizer que o conceito dos gran des clubes esportivos e culturais, que constituem um pon to de encontro judaico significativo, é uma das contribui ções das comunidades judaicas latino-americanas, inclusi ve do Brasil. A Hebraica de São Paulo, o Centro Deporti vo do México, ou o HaKoach e o Macabi de Buenos Aires são exemplos muito bem sucedidos. Nas comunidades judaicas europeias não há clubes como esses e nos Estados Unidos eles não chegam ao mesmo nível.

Devarim: Quais são as perspectivas para a América Lati na de modo geral e para o Brasil em particular?

Pergola: Na América Latina há muitos países, por tanto devemos tomar cuidado com as generalizações. Mas em geral eventos negativos causaram ondas de emigra ção judaica. Por exemplo, muitos judeus deixaram a Ar

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gentina em 2002, ano da bancarrota do governo argentino. No ano seguinte, no entanto, a economia começou a se recu perar e muito menos judeus deixaram o país. Há uma grande sensibilidade a si tuações instáveis. Os judeus venezuela nos têm vivido muita pressão nos últimos anos e muitos têm deixado esse país. No caso do Brasil, isso aconteceu uma vez, em 1970. De um modo geral, o Brasil é um dos países mais estáveis da Améri ca Latina e o número de judeus no Brasil tem sido estável durante os últimos qua renta anos, sendo que em outros países, como Uruguai, Argentina e Venezuela, o número tem diminuído. Entretanto, a população geral do Brasil cresceu, de modo que a proporção judaica em relação à população geral tem dimi nuído. O Brasil vem conseguindo oferecer aos judeus um modelo melhor do que o apresentado por parte dos países

O Brasil é um país em ascensão em termos de influência econômica e geopolítica. A prosperidade e o desenvolvimento econômico, a abertura e o respeito aos direitos civis melhora a situação dos judeus.

vizinhos. Espera-se que este modelo continue existindo, isto é, oferecendo estabi lidade econômica e, portanto, atividade cultural, educação, os clubes esportivos já mencionados, as variadas sinagogas exis tentes. Devemos considerar também que o Brasil é um país em ascensão em termos de influência econômica e geopolítica. A prosperidade e o desenvolvimento eco nômico, a abertura e o respeito aos direi tos civis melhora a situação dos judeus. Mas essa análise geral ainda é superficial e muitas dimensões podem ser acrescen tadas. Se o Brasil hoje é o país com a décima maior po pulação judaica do mundo, pode ser que dentro de algumas décadas a comunidade judaica brasileira venha a ser a oitava ou a sétima maior do mundo. Outra grande ques tão é a capacidade de manutenção da identidade judaica. Eu conheço um pouco o Brasil, que é um país bonito, jo

o censo do I b G e Daniel Sasson

Oestudo

da demografia judaica tem por objetivo permitir aos dirigentes o co nhecimento da realidade comunitária, com vistas à definição e ao planejamento de me tas e estratégias de atuação, em bases téc nicas, para a condução da política desta co letividade. O pleno conhecimento da estru tura, das necessidades e dos costumes da comunidade torna possível a elaboração de projetos para sua valorização, do ponto de vista social, cultural, religioso e identitário.

Muitos projetos e atividades têm se de dicado a atrair jovens para as escolas ju daicas, movimentos juvenis ou sinagogas, sem o conhecimento da dimensão deste público-alvo. Entende-se, também, como fundamental o atendimento às necessida des da população judaica menos favoreci da. Mais do que apenas cumprir recomen dações ou preceitos religiosos, suprin do as necessidades através do exercício da caridade, deve-se tentar resolver esse problema de forma duradoura, oferecendo,

por exemplo, condições e oportunidades de inserção no mercado de trabalho. Para a concretização destes projetos é funda mental o conhecimento da amplitude e das características do problema.

A informação sobre religião da popula ção vem sendo coletada regularmente des de 1940 nos censos demográficos brasi leiros realizados pelo IBGE. Até o fecha mento desta edição, não haviam sido di vulgados os dados do último levantamen to, realizado em 2010.

O item “religião” é apenas mais um en tre dezenas de características pessoais le vantadas e segue o mesmo critério úni co de autodeclaração. Assim, a resposta à pergunta “Qual é a sua religião ou cul to?” tem o mesmo tratamento de “Qual sua data de nascimento?”, “Qual seu estado ci vil?” ou “Qual seu rendimento?” e sua vera cidade depende exclusivamente da dispo sição do entrevistado em responder.

Esta pergunta não foi formulada para to

dos, mas, como acontece na maior parte do questionário, apenas para uma amostra de aproximadamente 11% dos domicílios brasileiros. A questão era aberta, ou seja, não eram apresentadas opções de respos ta e os PDAs (computadores de mão) dos recenseadores do IBGE tinham armazena dos mais de 2.000 declarações para as di ferentes religiões de modo a facilitar o pre enchimento desse quesito nas entrevistas com a população. No caso do judaísmo, o IBGE agrupou todos aqueles que respon deram de alguma das 23 seguintes formas: Beith-Aaron, Congregação de Israel, Con gregação Israel de Deus, Cripto Judaísmo, Doutrina de Israel, Hebraica, Hebreu, Isra elismo, Israelita, Israelita Mosaica, Judaica, Judaica Cabalista, Judaica Conservadora, Judaica Laica, Judaica Ortodoxa, Judaísmo, Judeu, Judia, Mosaica, Semita, Sinagoga, Sionismo, Universal de Israel.

As limitações citadas por Della Pergo la podem ser de ordem metodológica (da

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Devarim: Quais são hoje em dia os outros investigado res destacados na área de demografia judaica?

Pergola: Temos no Instituto de Judaísmo Contem porâneo o professor Uzi Rebhun, especializado no ju daísmo dos Estados Unidos, e na sociedade israelense, o doutor Marc Tolts, especializado no judaísmo soviético e em demografia geral, e a doutora Shlomit Levi, especiali zada em psicologia social e nas dimensões da identidade judaica. Nos Estados Unidos os estudos de demografia judaica são liderados pelo professor Len Saxe e seu gru po de investigadores, que trabalham no âmbito do Stei nhardt Social Research Institute da universidade Brandeis. Na Europa também há alguns investigadores, contudo eles estão de fato concentrados em Israel e nos Estados Unidos. A disciplina, no entanto, está envelhecendo, nós

gostaríamos que mais jovens se interessassem pelo tema. Na Argentina, Ezequiel Erdei foi um dos organizadores da investigação conduzida com a colaboração do Joint. No México temos dados bastante precisos sobre a comunidade judaica. Na Inglaterra há um departamento res ponsável pela coleta de dados. Um levantamento esta tístico, por meio das diferentes federações israelitas, dos nascimentos, falecimentos e casamentos no âmbito da comunidade judaica brasileira seria muito bem-vindo e acrescentaria importante informação aos dados apresen tados pelo IBGE. Também seria bom conduzir uma pes quisa sobre a qualidade e o conteúdo da identidade ju daica brasileira. Com exceção do trabalho realizado por Henrique Rattner no passado, não há muitas pesquisas atualizadas sobre o tema.

Entrevista conduzida, transcrita, traduzida do hebraico ao português e editada por Gabriel Mordoch, mestre em Humanidades pela Uni versidade Hebraica de Jerusalém.

dos amostrais envolvem probabilidade de erro, que podem ser relevantes quando os números são pequenos) ou de não respos ta (muitos judeus se sentem inseguros em declarar sua religião).

O número de judeus residindo no Bra sil é uma questão recorrente e sempre con troversa. O IBGE divulgou que em 2000 eram 86 mil judeus no Brasil (42 mil em São Paulo e 26 mil no Rio de Janeiro). Es tes números quase nunca são aceitos, em bora muito poucas sejam as iniciativas para que se obtenha uma contagem que seja considerada “real”.

Como alternativa a essa escassez de in formações demográficas propõe-se a uti lização de fontes secundárias de dados, provenientes de registros administrativos. Entre eles podemos destacar:

• Cadastro das entidades com relações de sócios, contribuintes, pais de alunos, be neficiários de programas assistenciais,

entre outras, podem servir de primeira aproximação do número de judeus por meio da elaboração de um grande cadas tro. Ficam de fora nesta primeira aproxi mação famílias que não mantêm vínculo com qualquer uma das instituições.

• Sociedades funerárias, tais como Che vra Kadisha, possuem registros de óbi tos onde, em geral, constam informa ções sobre data e local de nascimento, data, local e motivo do óbito. Esta pare ce ser uma fonte que abrange boa par te do universo desta população e a par tir da qual se podem estimar parâmetros de mortalidade.

• Com informações das escolas judaicas, cuja maioria expressiva é de judeus, po dem-se aferir estimativas de população judaica na faixa etária escolar. A parti cipação de estudantes judeus que não frequentam escolas judaicas pode ser estudada por meio de pesquisas com plementares.

• Das sinagogas podem-se utilizar regis tros de eventos religiosos tais como aqueles por ocasião do nascimento (brit milá para meninos e simchat bat para meninas) para estimar o número de nas cimentos na comunidade. Também da dos de bar ou bat mitzvá podem ser uti lizados como parâmetros das estimati vas populacionais. As sinagogas tam bém possuem registros de casamentos e conversões.

A produção de informações confiáveis é, portanto, também uma tarefa comunitá ria. Envolve técnicos e especialistas, mas também dirigentes dispostos a reconhecer a importância da informação para o plane jamento comunitário e a contribuir para esta complexa tarefa.

Daniel Sasson é estatístico e demógrafo. Traba lhou no Cide, instituição responsável pela estatísti ca oficial do Estado do Rio de Janeiro. Atua desde 2005 na Agência Nacional de Saúde Suplementar. vial, agradável, onde é muito fácil se assimilar. Isso implica num certo risco de declínio do conteúdo e intensidade da identidade judaica.

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u m olhar so B re a “ d himmitude” entrevista de nathan Weinstock a devarim por e-mail

Devarim: O que é um “dhimmi”?

Weinstock: Quando os muçulmanos conquistaram o Oriente Mé dio no sétimo século enfrentaram um problema grave: como governar uma população muito numerosa (principalmente cristãos e judeus) enquanto eram – naquele momento – uma pequena minoria? Eles resolveram este problema criando a doutrina do dhimma, isto é, oferecendo sua proteção à população monoteísta, que foi autorizada a praticar sua fé e organizar suas comunidades sem interferência exterior, desde que acei tasse a completa hegemonia do Islã e se submetesse sem reservas à autoridade de seus membros. Dhimma significa “proteção” e os dhimmis (pessoas sujeitas ao estatuto dhimma) foram efetivamente protegidos pelo poder islâmico ao mesmo tempo em que eram obrigados a pagar uma taxa especial per capita, além de outras obrigações vexatórias, que muito frequentemente assumiram um papel muito humilhante (por exemplo, no Marrocos, até o século 20 os judeus eram obrigados a andar, quando fora do bairro judaico, descalços sobre o chão escaldante). De um lado a dhimma ofereceu uma proteção real e efetiva às populações não muçulmanas (pelo menos enquanto o sistema de poder era estável: conflitos dinásticos e o consequente enfraquecimento do poder central normalmente acarretava uma erupção de sublevações antijudaicas). Por outro lado, ele as aprisionou num status discriminatório. Contudo, penso que seja correto afirmar que até à emergência do Iluminismo o regime dhimma era mais favorável aos judeus do que sua situação na Europa Cristã.

Antes de 1947 as minorias judaicas no mundo árabe representavam 900 mil almas. Hoje, estas outrora florescentes comunidades minguaram até menos de 4.500 pessoas, o que significa que 99,5% dos judeus foram expulsos ou forçados a deixar sua terra natal. A própria existência da comunidade judaica virou passado.

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Devarim: A dhimma é um fenômeno do passado, ou ainda está viva hoje?

Weinstock: Antes de 1947 as mino rias judaicas no mundo árabe represen tavam 900 mil almas. Hoje, estas outro ra florescentes comunidades minguaram até menos de 4.500 pessoas, o que sig nifica que 99,5% dos judeus foram ex pulsos ou forçados a deixar sua terra na tal. Neste sentido, nos países árabes, não é apenas a dhimma, mas também a própria existência da comunidade judaica que vi rou passado. A Turquia, que tinha orgu lho de seu perfil secular, está derivando fortemente em direção ao Islamismo e no Irã a comunidade judaica é forçada a as sumir uma atitude muito discreta. Esta evolução não é – como frequentemente imaginado – uma mera consequência do conflito israelense-palestino. O êxodo em massa das minorias cristãs do Iraque, do Egito, da Turquia e do Líbano (além da quele dos Hindus do Paquistão em 1947) – sem mencio nar a repressão anticristã atualmente em curso no Sudão e na Nigéria – aponta para o fato de que estamos diante de uma tendência: quer gostemos ou não, a assertividade na cional no mundo muçulmano é seguida pela expulsão ou submissão maciça das minorias não muçulmanas. O ex termínio dos armênios e a expulsão dos gregos na Turquia “secular” são indicativos desta regra genérica, que está lon ge de se enfraquecer.

Uma das características do relacionamento dhimmi é que os muçulmanos tendem a desconsiderar a humilhação que ele provoca nos membros não muçulmanos da população enquanto que os dhimmis em si experimentam alguma dificuldade em admitir que este relacionamento seja uma forma de opressão mascarada sob o disfarce da tolerância.

Devarim: Quais as características principais da dhimmi tude?

Weinstock: Conforme ordena um verso do Corão, um dhimmi tem que sentir que está sendo humilhado. E este é provavelmente o fundamento do estatuto da dhim ma, que apresenta inúmeras variações, conforme o local, período histórico e a classe em questão. Geralmente as elites sociais das minorias eram dispensadas dos aspectos mais humilhantes, mas mesmo assim era proibido a qual quer dhimmi montar um animal “nobre”, como um cava lo ou um camelo, ou portar armas. Os arquivos da Genizá do Cairo revelam que havia um razoável nível de respeito nas relações entre judeus e muçulmanos no Cairo duran

te a Idade Média. Mas esta situação favo rável não durou: tanto no Egito como no Norte da África e na Andaluzia, elemen tos fanáticos logo ganharam o controle. Pogroms e assassinatos em massa irrom peram em Fez, Granada e em outros lu gares. Maimônides teve que fugir para salvar sua vida e em um de seus poemas em hebraico, Yehuda Halevi (século 12) la menta o “heregadati”, o massacre da mi nha comunidade... Durante o século 19, como as potências ocidentais frequente mente protegeram as minorias judaicas locais, os judeus acabaram sendo perce bidos como peões do imperialismo oci dental (este também foi o destino dos ar mênios e dos gregos no império Otoma no). Isto – junto com a importação da cultura Ocidental, incluindo infelizmen te o antissemitismo – levou a um agrava mento na relação da maioria muçulmana e da minoria judaica. Uma das carac terísticas do relacionamento dhimmi é que os muçulma nos tendem a desconsiderar a humilhação que ele provo ca nos membros não muçulmanos da população enquan to que os dhimmis em si experimentam alguma dificulda de em admitir que este relacionamento seja uma forma de opressão mascarada sob o disfarce da tolerância. Falando de forma geral, a relação entre a maioria muçulmana e a minoria judaica sempre foi permeada pelo medo. A me lhor ilustração disto talvez seja uma lenda popular judaica do Marrocos que eu devo a um amigo de Marrakesh: Cer ta vez, o sultão do Marrocos decidiu presentear seus súdi tos judeus com uma raridade preciosa: um elefante branco. No começo os judeus ficaram encantados com a distinção. Mas eles descobriram rapidamente que não tinham como sustentar a alimentação necessária para manter o suntuo so animal – o elefante branco arruinaria a comunidade em pouco tempo. Então uma delegação de judeus pediu uma audiência com Sua Majestade. “O que vocês têm a dizer?”, o sultão rugiu para eles. “Sua Majestade, é sobre o elefan te branco...”, disse cuidadosamente o chefe da delegação. “E o que vocês têm a dizer sobre aquele maravilhoso ani mal?”, tonitruou o sultão, com um olhar maligno faiscan do na face. O chefe da delegação perdeu completamente

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a coragem e balbuciou: “Sua Majestade, o elefante branco está tão solitário que ele precisa de uma fêmea para lhe fazer companhia...”.

Devarim: Muitos se referem à “Idade de Ouro da Cul tura Judaica” na Espanha medieval para demonstrar que não havia antissemitismo nas terras árabes do século 19 e 20. Algum ouro daquela era ainda reluz hoje?

Weinstock: A Andaluzia abrigou, sem dúvida, uma Era de Ouro da Cultura Judaica na Idade Média. No en tanto, a realidade foi dourada de forma um tanto artifi cial pelos historiadores judaicos do século 19, que preten diam mostrar à Europa que ela não tinha razão de se or gulhar de seu passado. O aspecto mais marcante deste pe ríodo foi a simbiose intelectual alcançada entre as civilizações islâmica e judaica, tanto em hebraico como em árabe. Importantes obras religiosas foram escritas por luminares judeus – tal como Maimônides – em árabe. Sufismo e ra cionalismo árabe influenciaram profundamente o pensa mento judaico do período e alguns tratados religiosos ju daicos podem ser confundidos por tratados muçulmanos. Mas apesar desta interpenetração cultural, a cultura mu çulmana nunca foi livre de correntes antijudaicas e estas

finalmente ganharam supremacia depois que os fanáticos da dinastia Almóada chegaram ao poder e lançaram uma campanha de conversões forçadas. No entanto, uma me dida de tolerância subsistiu no Norte da África, sempre sujeita a variações conforme o período e o local. Judeus do Marrocos abrigam carinhosas lembranças de seus vizinhos trazendo o primeiro pão fresco ao final do Pessach e os ju deus de Túnis falam que os muçulmanos visitavam a sina goga em Shavuot para ouvir o chazan entoar o comentá rio sobre os dez mandamentos escrito por Saadia Gaon (sé culo 10) num primoroso árabe clássico. Mas estes autên ticos símbolos de convívio e respeito mútuo foram triste mente ultrapassados pela evolução política. O nacionalis mo árabe e o renascimento muçulmano vieram impregna dos por ódio aos judeus, uma tendência claramente per ceptível muito antes do nascimento da questão sionista.

Devarim: O fato de os judeus serem considerados dhim mi no mundo muçulmano tem um papel relevante no conflito árabe-israelense? Caso positivo, qual é este papel?

Weinstock: Apesar de este assunto ser largamente ignorado ou subestimado, eu penso que a dhimmitude contribuiu de forma decisiva para a configuração atual

do conflito. Lidaremos com as raízes do movimento nacional palestino e israelen se mais adiante. No entanto, é da maior relevância o fato de que, aos olhos de seus vizinhos muçulmanos, a minoria judai ca na Palestina – assim como em todo o mundo árabe – sempre foi considera da como merecedora de desprezo. Todos os relatórios consultares do século 19 re tratam a inacreditável opressão que os ju deus sofriam na Terra Santa. Quando um muçulmano encontrava um dhimmi (ju deu ou cristão) em seu caminho, ele gri tava: “Cachorro, ande pelo meu lado es querdo!” (o lado direito é o lado nobre na cultura árabe). Até mesmo Karl Marx, que como sabemos não via os judeus de forma muito favorável, declarou em “O Estourar da Guerra da Criméia – Muçulmanos, Cristãos e Judeus no Império Otomano”, New York Daily Tribune, 15 de abril de 1854, que “nada se compara à miséria e ao so frimento dos judeus de Jerusalém que moram no bairro mais imundo da cidade e são objeto de constante opressão e into lerância por parte dos muçulmanos, de insultos por parte dos gregos, perseguições pelos latinos, e que vivem exclusivamente das esmolas dos seus irmãos europeus”. Muito além da ques tão Sionista, o tradicional desprezo e os maus tratos infli gidos à comunidade judaica explicam porque todas as ten tativas da comunidade judaica local (o “Yishuv antigo”) para obter algum grau de autogoverno ao final do sécu lo 19 foram recebidas com hostilidade. A população mu çulmana da Palestina não estava pronta para garantir ne nhuma medida de autonomia aos dhimmis. Ao lado disso, o movimento nacional palestino sempre esteve mergulha do numa certa medida de sentimento antijudaico, como é claramente distinguível na imprensa árabe. A mais signi ficativa demonstração da rejeição palestina ao Yishuv é o fato de que as primeiras rebeliões árabes-palestinas foram dirigidas contra os ortodoxos antissionistas de Jerusalém em 1920 (e mais tarde em 1921 contra os judeus de Jaffa e mais uma vez em 1929 em Hebron). Aliás, é bom notar que os 1.500 judeus que fugiram angustiados de suas ca sas em Jaffa para encontrar abrigo nas tendas de Tel Aviv são de fato os primeiros refugiados palestinos... Duran te essas revoltas, especialmente em 1920, o grito de guer

A Andaluzia abrigou, sem dúvida, uma Era de Ouro da Cultura Judaica na Idade Média. No entanto, a realidade foi dourada de forma um tanto artificial pelos historiadores judaicos do século 19, que pretendiam mostrar à Europa que ela não tinha razão de se orgulhar de seu passado.

ra dos perpetradores do pogrom não foi – como seria de se esperar – “Abaixo o Sionismo” ou “Fora colonos britânicos”, mas “Al yahudnakalabna!”, isto é, “Os ju deus são nossos cães”. O movimento que impulsionou esta revolta não foi a hosti lidade ao Sionismo, mas a recusa cabal de aceitar que os vizinhos judeus tinham agora um status mais elevado que seu sta tus anterior de “cachorros” (aliás, o grito de batalha “Al yahudnakalabna!” conti nuou muito popular anos depois...).

Devarim: Quais as raízes do nacionalis mo israelense e palestino?

Weinstock: É importante ter em mente que o nacionalismo palestino é um desenvolvimento relativamente re cente (e, por favor, note que ao fazer esta afirmação não estou de forma alguma tentando deslegitimizar este fenô meno histórico: praticamente todos os movimentos nacionais africanos, por exemplo, nasceram muito recentemen te). Mas o fato é – conforme notado pelo eminente erudi to islamicista e grande amigo da causa palestina, Maxime Rodinson – que até o século 20 os habitantes da Palestina se viam como parte de Balad al-Shams (isto é, Síria) e não tinham nenhuma demanda de identidade específica. De fato, o território que foi nomeado “Palestina” pelos britâ nicos e pela Liga das Nações não tinha nenhum status es pecial: não havia nenhuma província, região ou instituição “Palestina”. É verdade que os cidadãos começaram a sentir que faziam parte de uma cultura árabe singular, mas não havia o mínimo sinal de uma tendência nacional especifi camente palestina antes dos últimos anos do século 19. É particularmente significativo a este respeito que o feito de Ahmed al-Jazzar, que conseguiu fazer Bonaparte abando nar o cerco à Acre em 1799, infligindo uma grande der rota ao futuro Napoleão, nunca foi registrado ou percebi do pelos palestinos como uma vitória nacional. De fato, o palestino surgiu como o resultado do nascimento do ju daico na Terra Santa. Ao final da primeira década do sé culo 20 o surgimento do palestino já estava óbvio para to dos. Pessoalmente, eu caracterizaria 1911 como o ano fun damental: foi neste ano que Issaal-Issa de Haifa fundou o jornal Filastin (um título muito significativo, pois signifi

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ca “Palestina”). Mas é importante ter em mente que o na cionalismo palestino nasceu como uma reação e uma res posta aos esforços dos judeus locais de obter certo grau de autodeterminação e de autogoverno. Quanto ao naciona lismo judaico na Palestina, eu me pergunto se não tende mos a dar um peso exagerado ao Sionismo. Ou, colocan do a questão de outra forma, se o não disfarçado desprezo que muitos historiadores sionistas expressaram a respeito do “Antigo Yishuv” não nos levou a subestimar e reduzir suas notáveis realizações (espero publicar em alguns meses um livro dedicado a este assunto). Claro que seria ridículo negar o tremendo impulso dado pelos pioneiros sionistas ao autogoverno da comunidade judaica na Palestina. No entanto, uma cuidadosa pesquisa das circunstâncias que levaram ao renascimento da comunidade judaica na Terra Santa compele o observador a reconhecer que a fundação das primeiras colônias agrícolas, a fundação das primeiras escolas técnicas judaicas, a tentativa inicial de formar uma indústria judaica, o estabelecimento dos primeiros bairros judaicos fora da Cidade Velha de Jerusalém, os esforços pioneiros de estabelecer uma imprensa judaica, os sindicatos de trabalhadores judeus e até mesmo o renascimen to do hebraico como um idioma vivo antecedem a chega da da primeira aliá (onda de imigração judaica) em 1882. O que nos leva à conclusão que, ao contrário do que diz a sabedoria popular, a autodeterminação judaica na Pales

tina e a emergência de uma nação hebraica na Terra San ta foram em larga escala o resultado de um movimento es pontâneo de renascimento.

Devarim: Muitos dizem que o Sionismo é uma expres são tardia do colonialismo. O senhor pode comentar so bre isto?

Weinstock: O Sionismo pode ser mais bem compa rado com as tentativas dos antigos escravos negros dos EUA e dos impérios britânico e francês no século 19 de retornar à sua terra de origem para criar novas instâncias nacionais na terra de seus pais. Libéria – com seu lema “O amor à liberdade nos trouxe aqui” –, Freetown (em Serra Leoa) e Libreville (no Gabão) são exemplos destas tentativas. Note em cada caso a ênfase ao conceito de li berdade (Libéria, Freetown, Libreville...), assim como no Hatikva, o hino nacional de Israel: lihiot am chofshi be artzeinu (“sermos um povo livre em nossa terra”). A si milaridade é impressionante. De fato, em sua novela fu turista Altneuland, Theodor Herzl, o pai do Sionismo, expressa que chegará o tempo para resolver o problema dos negros de forma similar ao judaico. No entanto, em cada um dos casos que eu citei, apesar da generosidade dos ideais que permeavam a visão dos colonos, as tentativas de recriar uma nova sociedade livre levaram a confli tos inevitáveis com a população nativa. Então a questão

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não é o colonialismo, pois o objetivo dos colonos sionistas nunca foi de subjugar a população ou de explorar as (não exis tentes) riquezas naturais do país. Claro que não se pode negar o fato de que os esforços sionistas foram conduzidos (da mesma forma que o do movimento ne gro “de volta à África”) numa atmosfe ra política carregada de uma mentalida de colonial. Porém, os pioneiros da se gunda aliá (1904-1914), imbuídos por seus ideais socialistas, insistiram que a terra fosse trabalhada pessoalmente por trabalhadores judeus.

De fato, o movimento nacional Palestino surgiu como o resultado do nascimento do movimento nacional judaico na Terra Santa. Ao final da primeira década do século 20 o surgimento do movimento nacional palestino já estava óbvio para todos.

Devarim: Por que o Estado Palestino não foi fundado em 1948, seguindo a resolução 181 da ONU de novembro de 1947?

Weinstock: A tragédia da nação palestina de 1948 é a sua liderança. Enquanto que a minoria judaica da Pa lestina dedicou quase 30 anos preparando-se metodica mente para o autogoverno e para a autonomia nacional (organizando um arcabouço social, cultural, econômico e político – inclusive com unidades de autodefesa), de forma tal que já havia construído a essência de um Es tado antes da questão da independência ser levantada, o único objetivo da liderança árabe palestina foi de embar car numa luta militar contra os povoados judaicos e de senraizar seus habitantes. Ela nem ao menos considerou instituir alguma forma de autogoverno, preparando-se para a independência. Seu líder, o Mufti, era profunda mente corrupto e um traidor da causa palestina (ele traía seus oponentes políticos, denunciando-os às autoridades britânicas), que mandou assassinar todos os seus rivais em potencial. Os líderes palestinos eram desprovidos de qualquer habilidade política e fugiram para o exterior as sim que suas milícias foram derrotadas, abandonando a população à sua própria sorte, disparando assim um êxo do em massa. O simples fato de os árabes palestinos te rem aceitado a liderança do Mufti – que havia sido com pletamente desacreditado após a Segunda Guerra Mun dial, por sua aliança com Hitler – foi por si só uma in dicação de sua incompetência política. Ao que se deve acrescentar que a delegação palestina recusou-se a tomar parte nas deliberações da ONU e rejeitou não apenas a

partição da Palestina, mas a própria ideia de um Estado binacional, uma solução que tinha apoio de partes do Yishuv. Tão extremistas eram o Mufti e seus acólitos que eles se recusaram subscrever até mes mo a solução favorecida pela Liga Ára be, na qual a minoria judaica (um terço da população) teria garantido o direito de praticar sua religião e falar hebraico, mas nada além disso!

Devarim: Quarenta anos atrás você era causticamente antissionista. O que fez o senhor mudar de ideia?

Weinstock: Bem, como membro veterano da ala esquerda do movimento ju venil Hashomer Hatzair (que apoiou a ideia de uma Pales tina binacional até 1947 e continua a lutar por uma solu ção pacífica), eu fiquei muito preocupado com o desastre que se abateu sobre os árabes em 1948. E fiquei realmen te chocado pela consequente falta de interesse de muitos israelenses, sionistas e judeus a respeito disto. Isto me le vou, obviamente, a posições e declarações extremadas, ain da mais no candor revolucionário da minha juventude. Sonhei com uma revolução árabe global que inauguraria uma nova era de justiça social e autodeterminação para as comunidades nacionais e religiosas no Oriente Médio e na África do Norte. Evidentemente, quando eu mencio no isto agora, as pessoas caem, com toda a razão, numa risada incontrolável. Mas naqueles dias a minha persua são trotskista realmente me levou a acreditar nesta possi bilidade. Foi necessária a segunda Intifada para eu perce ber quão inocente tinha sido...

Nathan Weinstock é membro do conselho científico do Instituto de Estudos Judaicos da Universidade de Bruxelas, Bélgica, e no tadamente autor de livros sobre a vida dos judeus no mundo ára be: Histoire de chiens: la dhimmitude dans le conflit israélo-pales tinien (Mille et Une Nuits, 2004), Une si longue presence: comment lemond árabe a perduses Juifs (Plon, 2008). Também escreveu li vros sobre os judeus na Europa: Le pain de lamisère: histoire du mouvement ouvrier Juif em Europe (La Decouverte, 2002), Le Yi ddish telqu’onl’oublie: regards sur une culture engloutie (Metropo lis, 2004) e outros. Entrevista realizada e traduzida do inglês por Raul Cesar Gottlieb.

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a identidade cultural israelense em formação

entrevista com david broza

“A oração é como uma poesia que conduz sua imaginação a lugares diferentes; as palavras escolhidas para os livros de reza, em geral têm um efeito que provoca uma ligação consigo mesmo, você se aproxima de sua alma e se integra aos seus pensamentos.”

Um belo dia de sol e a vista da praia de Copacabana serviram de cenário para um encontro com o músico israelense David Broza, que esteve no Brasil há alguns meses.

A primeira vez que assisti a um de seus shows, no longínquo ano de 1981, ele era um jovem de vinte e poucos anos, de farta cabeleira e voz mar cante, cuja composição Ihie Tov (“Será bom” ou “Ficará bem”), criada com o poeta Yonatan Guefen, servia de hino, simultaneamente esperançoso e cético, aos que viam oportunidades para a paz que não deveriam ser desperdiçadas. Ao mesmo tempo, sua interpretação de Shir Ahavá haBedui (Canção de Amor Be duína) arrebatava corações, com o vigor de seus acordes e o romantismo de sua letra, trazendo para a moderna música israelense uma batida nova, um quê do flamenco, com sua história árabe e cigana.

Apresentado pelo empresário do artista, Jaime Barzellai, sempre tão ami go de Devarim, David Broza é hoje um cinquentão que não aparenta a idade, simpático e solícito, sem deixar de ser profundo e às vezes duro em suas respostas e comentários. É um ícone da música israelense com projeção mundial, compondo e cantando em espanhol, inglês e hebraico, misturando influências e experiências de vida para nos trazer o melhor do universo musical e poético.

Tendo composto e cantado com Noa (Achinoam Nini, ver entrevista em Devarim 13), Broza foi e é parceiro de alguns mitos como Mercedes Sosa e Jor

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ge Drexler, tendo também um trabalho consistente e contínuo com músicos árabes e palestinos, que ele vê como fundamentais para sua construção harmônica e, por que não, como contribuição para o estímulo ao diálogo políti co, animado pelo viés cultural.

Mas vamos conversar com ele...

Devarim: Comecemos com um pouco da história da sua vida. Seu avô foi um dos fundadores de Neve Shalom.1 Isso te influenciou de alguma forma?

Broza: Claro, isso me mostrou o caminho... não é ne cessário repetir Neve Shalom no sentido mais estrito, mas entender sua percepção de mundo, na direção da solução de conflitos. Acredito ser impossível viver num mundo sem guerras. É impossível que existam dois seres humanos que não briguem, mas por outro lado é proibido deixar que pensem que podem viver em conflito sem conversar um com o outro. É preciso educá-los, mostrar que pode -se brigar e, em seguida, reconciliar-se. Depois podem bri gar novamente e mais uma vez se reconciliar. Não se pode

ter uma situação onde seja necessária a escolha: ou você ou eu. Ou seja, uma situação em que nós dois, juntos, não po derá ser. E isso não se refere apenas a Israel, isso vale tam bém para cá, no Rio, em qualquer lugar. Neve Shalom me causa tristeza e também orgulho. Tristeza porque não há outros lugares como esse no mundo e porque o caminho para o qual aponta raramente é seguido. E orgulho porque o meu avô, que tanto amei, um homem tão sábio e espe cial, foi um dos seus pioneiros, esse lugar tão importante no Oriente Médio.

Devarim: Você esteve muito tempo morando fora de Israel. Alguma vez pensou em não retornar, simplesmente morar em algum outro lugar?

Broza: Veja, eu morei dos 12 aos 18 anos em Madri, morei uns 17 anos nos Estados Unidos, depois morei mais 3 anos na Espanha, mas sempre voltei... Em primeiro lu gar, algo que sempre me fez retornar é a música, eu canto em hebraico e com isso eu sempre preciso voltar a Israel. Em segundo lugar, minha viagem em 1984 para os Esta

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dos Unidos não foi uma fuga de Israel; tinha por objetivo conhecer a música com a qual eu cresci, a cultura com a qual fui educado, a cultura do rock’n’roll, a cultura do jazz, a vanguarda sobre a qual não tive tanta informação antes quanto gostaria.

Devarim: Para ampliar seus horizontes musicais, então?

Broza: Exato. Da mesma forma que os pintores israelenses nos anos 1950 buscavam Paris, para conhecer as fontes do cubismo, dadaísmo e tudo o mais. E voltaram. Zaritsky, Steimatsky, Aroch, Rafi Lavi, eles todos, moraram na França, em Paris, durante um tempo. E para mim, viajar quando tinha 26 anos, com meus filhos ainda bem pequenos, fazer essa pesquisa, como você fez quando via jou para seu shnat2, ou como quem vai fazer uma espe cialização em Harvard por três anos, esse é o momento de fazê-lo, você não faz isso quando tem 40 anos, quan do já tem uma família com crianças mais velhas, como você pode deixar tudo para trás? Não dá. Eu vejo minha vida de forma bem pragmática, ainda que eu seja tam bém um sonhador.

“Minha viagem em 1984 para os Estados Unidos tinha por objetivo conhecer a música com a qual eu cresci, a cultura com a qual fui educado, a cultura do rock’n’roll, a cultura do jazz, da mesma forma que os pintores israelenses nos anos 1950 buscavam Paris, para conhecer as fontes do cubismo, dadaísmo e tudo o mais.”

Broza: Sim, uma sinagoga conser vadora, um pouco como a BJ em Nova York, o mesmo tipo de visão de mun do, que de forma muito concreta define a identidade judaica, dá sentido às ora ções, dentro de um momento de integra ção pessoal. Muitos não percebem isso, que a oração traz integridade.

Devarim: Você vê alguma ligação en tre rezar e cantar? Você disse que, em es pecial quanto aos shows em Metzadá3, cada vez que você canta algo, a canção parece diferente. Ainda que letra e me lodia sejam as mesmas, você a sente de forma diferente. A mim parece que nas orações acontece o mesmo, pronunciam -se as mesmas palavras, mas a sensação é sempre diferente...

Devarim: E quanto à educação das crianças, por exem plo. Sempre imaginou-as morando em Israel?

Broza: Acho que a educação das crianças começa em casa, e a minha casa por um lado é israelense e por outro é muito ligada à cultura mais ampla, sofrendo as influ ências espanholas que eu tive. Também é uma casa mui to assimilacionista, no sentido de que nós queremos li dar com o que nos cerca. Quando viajei para Nova York, para Nova Jersey, minha ideia era que meus filhos se en riquecessem disso, mas quando em casa, sempre preser vamos nossa cultura: sexta-feira à noite acendíamos velas, fazíamos uma refeição especial, para a qual convidávamos muitos amigos, judeus e não judeus, comíamos uma ótima comida, falávamos hebraico, cantávamos canções, ría mos, conversávamos...

Devarim: Você frequenta uma sinagoga em Tel Aviv, certo?

Broza: A oração é como uma poesia que conduz sua imaginação a lugares diferentes; as palavras escolhidas para os livros de reza, em geral elas têm um efeito que provoca em você uma ligação consigo mesmo, você se aproxima de sua alma e se integra aos seus pensamentos. E isso é algo que hoje em dia é muito difícil de acontecer. Ou seja, se você define para você mesmo que três vezes ao dia você vai parar, é importante que exista uma moldura, como um si nal de trânsito, vermelho, dizendo: não prossiga, pare ago ra tudo e reze. Há nisso uma questão de disciplina e uma questão de limites. Eu, na minha vida como artista, defi no esses lugares onde quero parar para me encontrar e me unificar, isso é da natureza da minha personalidade e tam bém da minha profissão. Minha religião não é o judaísmo de uma linha religiosa específica ou de um grupo em par ticular. Mas quando me dá vontade no shabat de partici par do serviço religioso, ouvir os comentários do rabino, tenho a minha sinagoga e gosto muito.

Devarim: Existe hoje em Israel um problema com o fun damentalismo religioso judaico, que pretende influir cada vez mais na sociedade, nas decisões do governo. Como você se sente em relação a estas questões? Há algo que possa ou deva ser feito para evitá-la?

Broza: Todo o mundo atravessa hoje um processo de “fundamentalização”. É parte da evolução natural da civi

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lização, sem dúvida. O fundamentalismo sumiu, desapa receu durante algum tempo, com a modernização, com a facilidade de acesso às coisas em geral e a qualquer assunto. O mundo ficou realmente muito superficial e materialis ta. E não sei onde a ordem se encontra de fato. Alguns di zem que está com Deus nos céus (risos), mas eu não posso dizer que penso assim, quer dizer, eu acredito no conceito “Deus”, mas não dessa forma. E no processo evolutivo de repente apega-se de forma radical ao fundamento básico, gerando fundamentalismo. De um lado está o Islã, de ou tro, os evangélicos radicais, de outro, os conservadores da igreja católica e entre os judeus temos os ortodoxos. Vemos por exemplo partidos que se estabelecem no congresso e propõem verbas para suportar suas soluções fundamentalistas. Paciência, isso faz parte da evolução, do desenvolvi mento. Agora, a sociedade laica procura todo o tempo no vos caminhos para estabelecer seus valores. Por exemplo, o movimento de protesto das tendas no verão4, o que acon teceu também nos Estados Unidos, ou o 15-M da Espa

nha, é uma busca de valores novos para a sociedade secular, uma divisão mais igualitária, organizada, dos recursos do país para as classes média e baixa, um cuidado maior com as questões de saúde e educação, uma divisão da riqueza do país. Isso sem abrir mão do modelo capitalista, não se quer comunismo ou socialismo, ainda que haja muito dos prin cípios marxistas nisso tudo, mas, na prática, é um modo novo e estamos apenas no início do percurso. Então esses temas não me assustam de forma alguma. Isso não quer di zer que se deva sentar e dizer: bem, isso vai passar. A evo lução exige que as forças se confrontem.

Devarim: Você esteve nas passeatas?

Broza: Claro!

Devarim: E se apresentou cantando também?

Broza: Sim, escrevemos, Yonathan Gefen e eu, uma nova letra para Ihié Tov, está no YouTube. Busque por “David Broza Ihié Tov 2011” (ver box).

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Devarim: Vamos falar um pouco sobre música. Você transparece em seu traba lho todo o tipo de influências musicais: folk5, country, flamenco, jazz, e você é um músico israelense, um dos mais im portantes. Como fica e onde se encontra a música israelense? Existe algo que se possa chamar de música israelense?

Broza: Ainda não temos isso em Isra el. É um país que se descobre a cada dia, que vem se descobrindo há 63 anos. Vêm brasileiros morar em Israel, vêm france ses, argelinos, egípcios, iraquianos, russos, cada um trazendo sua própria cultura, e vai levar muito tempo até que isso tudo se funda. Nesse meio tempo brotam todo tipo de artistas, como Shalom Hanoch, HaTarnegolim, Naomi Shemer, Mati Caspi, Shlomo Gronich, Ehud Ma nor, David Broza, Yehudit Ravitz, Ioni Rechter, eles são a música israelense. Então, se eu for para os Estados Unidos e compuser, como fiz durante muitos anos, sobre a poesia

“Israel é um país que se descobre a cada dia, que vem se descobrindo há 63 anos. Vêm brasileiros morar em Israel, vêm franceses, argelinos, egípcios, iraquianos, russos, cada um trazendo sua própria cultura, e vai levar muito tempo até que isso tudo se funda.”

americana, e pego Walt Whitman, Eliza beth Bishop, Anne Sexton, todos poetas conhecidos, a música de referência vem de Israel, é lá que meu ouvido está ancorado, cresci com aquela música, sorvi dela como do seio materno, como o leite ma terno. Essa é a minha fonte, meu catálo go musical. Leio Anne Sexton e entendo sobre o que ela fala. Ela é americana, de Massachussets. Quando escreve embaixo de uma árvore, ela está ali, enquanto eu me transporto para algum lugar do Galil ou na Arava. Mantenho assim uma sinto nia, há uma fusão.

Devarim: Isso foi o que você fez com o seu disco sobre a poesia de Townes Van Zandt... Broza: Exatamente. Ou, por exemplo, Brakim Ureamim, uma das primeiras músicas que fiz quando eu tinha uns 22 anos, é uma música country, uma melodia total mente americana, mas o contexto é israelense.

Ricardo Gorodovits (à esq.) em entrevista exclusiva com David Broza no Rio de Janeiro.
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A nova letra de um hino

Yonatan Gefen reescreveu a letra da música Ihié Tov especificamente como apoio ao protesto das tendas do verão de 2011, em versão que foi gravada por David Broza e que se encontra no YouTube, no site http://www.youtube. com/watch?v=wHTmMcQXl8s. Abaixo, segue a nova letra em hebraico, com sua tradução: calamos por muitos a nós, ninguém contou. Não, a pobreza não é crime, E nós não vamos descansar עשרה ןוטלש דריש דע Até que o governo cruel desça .םילהואל םילדגממ Das torres para as tendas. בור היהנשכ ,בוט היהיו E ficará bem, quando formos maioria רוצח דעו תליאמ De Eilat a Chatzor ךרדה הכורא םא םג E ainda que seja longo o caminho .רוצענ אל ,נצעד Seguiremos, não pararemos. םיגוגמדל בישקנ אל Não ouviremos os demagogos דיחפי אל ונתוא שיא Ninguém nos amedrontará םולכ ול ןיאש ימל יכ Porque para aquele que nada tem .דיספהל המ ןיא םג Também não há nada a perder. תחלשנ התא תולקב Quão fácil foi nos mandar תומל תומחלמב Morrer nas guerras התיבה רוזחת יח םא ךא Mas voltando vivo para casa, .תוריד ןיאו םייח ןיא Não haverá nem vida nem onde morar. בור היהנשכ ,בוט היהיו E ficará bem, quando formos maioria ארומ אלל דעצנו E seguiremos sem medo להואל םיחא תובבר Inúmeros irmãos para a tenda .הרירב ןיא תמחלמב Numa guerra não temos escolhas.

Devarim: Você esteve na escola de Jorge Drexler, que, aliás, foi do movimento juvenil do qual fiz parte, a Cha zit. E você tem um histórico familiar de ligação com o Ichud Habonim e veio agora numa turnê organizada pelo Habonim Dror. Você tem alguma atividade com jovens?

Broza: Sempre que me pedem. Em especial quando viajo tento me encontrar com jovens em escolas, fico uma hora, hora e meia conversando com os alunos e com pro fessores, um pouco eu falo, depois fazemos rodadas de per guntas e respostas. Não estou ali para ensinar, o importan te é o encontro, a troca. Meu ofício é a música e o que que

ro é trazer a música e a arte, a partir da qual também há uma aproximação com a ideologia que é muito importan te para o meu público, principalmente o público judaico. Isso não é explícito, mas está lá.

Devarim: Um pouco sobre a música Belibi, que você compôs e toca com Said Murad, do grupo palestino Sa brin. Você faz ou fez shows com ele?

Broza: Não. Já trabalhamos juntos desde 1999. Somos amigos muito próximos, gravamos, escrevemos coisas jun tos, nos divertimos juntos, mas no que tange aos shows, ele

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ונקתש תובר םינש רבכ Já nos
anos רפע דע ונלפשוהו E fomos humilhados até as cinzas ףסכ’ת ורפס תולשמממ Governos contabilizaram dinheiro רפס אל ונתוא שיא Mas
,עשפ אל אוה ינועה, אל
םילשנ אל ונחנאו

não pode ainda subir no palco comigo de forma tranquila; no futuro próximo isso vai acontecer, eu acho. Não é uma ques tão como a de Mira Awad (ver entrevis ta em Devarim 13), ainda que eu acredi te que se ele fizesse os shows comigo não iria acontecer nada. Mas ele é da comu nidade palestina, está ligado à Ramallah. Mira Awad é uma árabe cidadã israelen se. Mira tem muita coragem, uma perso nalidade fantástica, e ela diz: se for neces sário quem precisa me defender é a polí cia israelense. Said não é israelense e ele não será israelense jamais, ele é palestino. Então eu preciso respeitar esse fato e por isso não há pressão. Ele não pode se apresentar em shows comigo? Ok, não faremos shows juntos, então. Se acessar mos a internet, veremos um vídeo onde aparecemos jun tos, no fundo não há diferença, todos podem nos ver jun tos ali. Já trabalhamos juntos há bastante tempo: com ele, os irmãos dele, os amigos dele...

“Os palestinos nos territórios não ouvem em hebraico, pelo gosto pessoal deles, mas a música Belibi sim, ouvem, inclusive na rádio Hamas de Gaza! Há um público ali. O que espero é receber licença para shows em Ramallah. Os palestinos virão.”

Devarim: Você tem ideia se os palestinos ouvem a sua música, por exemplo?

Broza: Eles não ouvem em hebraico, pelo gosto pessoal deles, mas a música Be libi sim, ouvem, inclusive na rádio Ha mas de Gaza! Há um público ali. O que espero é receber licença para shows em Ramallah. Eles virão ouvir.

Devarim: Você já fez shows ali, nos ter ritórios, de forma geral?

Broza: Sim, já fiz alguns, apenas ain da não com Said.

Devarim: Algo que eu não tenha perguntado e que você gostaria de comentar, algo que em geral não perguntam...

Devarim: Então é algo que terá sequência...

Broza: Eu espero que o meu próximo disco vá ser gra vado lá, junto com minha banda, Gadi e Alon6, e com a banda dele também.

Broza: No meu último disco, Safa Shilishi (Terceira Língua), foi a primeira vez que escrevi todas as letras tam bém, não somente as músicas; resolvemos comercializar via internet, não por meio de uma gravadora. Por incrí vel que pareça, 80% das compras vieram da América do Sul e dos Estados Unidos, gente que quer ouvir um disco em hebraico!!! Isso foi uma coisa nova. O jeito que o fize mos, com tecnologia e modelo inovadores, recebemos até um certificado pelo movimento financeiro dos mais altos

no mundo digital. Isso foi incrível, se ainda fosse um dis co em inglês, mas todo em hebraico, foi mesmo incrível. A música é uma linguagem universal.

A ótima conversa poderia se estender por muitas horas, mas chegou o momento de encerrá-la. Mais tarde, a ideia da música como linguagem universal ecoava, se alternan do com a visão de um país ainda em formação, buscando uma linguagem própria, que o representasse e identificas se. Lembro-me de quando criança ouvir um disco de Ya ffa Yarkoni, recentemente falecida, com músicas folclóri cas judaicas (algumas em ídiche), a maioria composta ain da antes da criação do Estado de Israel. Recordo o impacto que tive ao ouvir o grupo liderado por Arik Einstein, Cha lonot Hagvohim, no final da década de 1960. Seguiram -se a anarquia musical do Caveret, a força do rock do Ta muz, a qualidade do jazz do Platina, ainda em meados da década de 1970. Este cenário que não parou de crescer e evoluir foi somando estilos e tendências e aos poucos tem criado uma personalidade que, como deixou claro David Broza, gira em torno da língua e das vivências que Israel propicia aos seus artistas. A música é universal, mas já se distingue um sotaque israelense.

Notas

1. Neve Shalom – Sob o nome “Oasis de Paz” a vila foi fundada ainda nos anos 1970 pelo padre Bruno Hassar, sendo Wellesley Aron, avô de Broza, um de seus pionei ros. Neve Shalom é referência como centro de convivência entre árabes e judeus e ali vivem hoje cerca de 60 famílias.

2. Shnat Hachshará (ano de preparação) nome que se dá à experiência de passar um ano em Israel promovida para jovens de movimentos juvenis. O autor do texto fez shnat pela Chazit Hanoar, em 1978.

3. Shows em Metzadá – David Broza protagoniza há anos shows em Metzadá, que se iniciam de madrugada e vão até o nascer do sol. Diversos destes shows podem ser acessados pelo YouTube e pelo menos um deles foi gravado num espetacular DVD: “David Broza The Sunrise Concert at Masada”.

4. Protesto das Tendas – Ao longo do verão do ano passado, Israel assistiu a uma de suas maiores manifestações populares, à qual se denominou “movimento das ten das” por manter seu núcleo em tendas colocadas em praça pública, em Tel Aviv, por pessoas que protestavam contra as dificuldades de obter moradia. O movi mento se expandiu para tornar-se um apelo por uma sociedade mais preocupa da com a solidariedade e o bem-estar de seus membros. Uma passeata com cer ca de 500 mil participantes em Tel Aviv e em diversas outras cidades em toda Israel marcou o auge do movimento, em setembro passado. Hoje ainda estuda -se o impacto gerado sobre o ambiente político-econômico israelense, sem estar claro que ganhos efetivamente foram gerados a partir das inúmeras pautas rei vindicatórias apresentadas.

5. Folk – Sharona Aron, mãe de David Broza, foi uma das primeiras cantoras de mú sica folclórica israelense nas décadas de 1940 e 1950.

6. O percussionista Gadi Seri e o baixista Alon Nadel tocam habitualmente com Da vid Broza e vieram ao Brasil para acompanhá-lo em seus shows.

Ricardo Gorodovits faz parte do grupo editorial da Devarim, é mem bro do Conselho da ARI e ex-boguer da Chazit Hanoar. Nickolay Vinokurov / iStockphoto.com
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d ilemas e Q uestões da educação judaicosionista no r io de j aneiro

Meu intresse neste artigo é fazer uma análise introdutória acerca da educação judaica na cidade do Rio de Janeiro, tomando como re ferência fundamental as escolas judaicas que existem nesta cidade. Esta presente reflexão teve como origem as pesquisas sobre educação judaico-sionista que venho realizando para obtenção de meu título de doutoramento em curso no Programa de História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Apesar de tal pesquisa ter como escopo os desenvolvi mentos da educação sionista ocorridos entre os anos 1920 e 1960 na cidade do Rio de Janeiro, me parece um desa fio interessante refletir também sobre a situação das escolas judaicas cariocas na contemporaneidade. Proponho que as referências ideológicas e pedagógicas das escolas judaicas no Rio estejam baseadas, de maneira geral, no que diz res peito à formação de identidade judaica de seus alunos em três pontos básicos:

• Combate ao antissemitismo, a partir de uma perspec tiva martiriológica da história judaica.

• Relação acrítica com o Estado de Israel, na qual vínculos com Israel reproduzem dimensões mais imaginárias do que reais, vinculadas mormente a narrativa de grupos fundadores do sionismo.

• Relação “essencial e primordial” entre identidade ju daica e Holocausto, a partir do currículo de história judai

ca e de programas de viagem aos guetos e campos de con centração e campos de extermínio da Polônia.

Antes de pensar sobre a educação judaica carioca nos dias de hoje, acredito ser importante fazer uma pequena análise sobre o próprio papel da escola desde a realidade social na qual estão inseridas as instituições educacionais judaicas na cidade. Acredito que o locus da escola judaica deve ser entendido em perspectiva comparativa a outras es colas, que não as judaicas, na cidade. Assim, cabe aqui per guntar quais as demandas sociais e culturais não somente da educação na comunidade judaica, mas também qual o lugar da escola e da educação como um todo nas socieda des carioca e brasileira.

Ao lado de escolas com características similares e um público semelhante (escolas na zona sul da cidade, com público de classe média alta e majoriatariamente branco), as escolas judaicas despontam como uma alternativa para famílias que querem dar a seus filhos maior formação de judaísmo e uma identidade judaica fortalecida pela for mação pedagógica e acadêmica do cotidiano escolar. A es trutura escolar aqui não pode ser entendida como produ tora autônoma de conhecimento. Ao contrário, ela é esta belecida a partir de “outras” referências sociais e culturais.

As escolas apropriam diversos debates políticos, tais quais aqueles sobre identidades e formação de cidadania, menos produzindo em seus currículos e mais reproduzin

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do tensões e disputas sociais, políticas e ideológicas ocorridas em outros campos de atuação social.1 Aqui, seguindo as propostas analíticas de Pierre Bordieu, escolas e educa ção não são um tema somente em si, mas a compreensão de questões sociais que aparecem em outras áreas de prá tica política e social e se reproduzem em dimensões curri culares e pedagógicas típicas da cultura escolar.

Assim sendo, o estudo e a análise da cultura escolar nos dá condições para avaliarmos outros lugares de atuação e de produção de políticas. Portanto, o estudo de currícu los e práticas escolares das escolas jucaicas no Rio aponta para uma compreensão social mais ampla da comunidade judaica como um todo, de suas relações com outros agen tes produtores de políticas e identidades, sejam elas judai cas, ou mais gerais.

Entre eles há, como apontamos no início, três pontos que nos interessam nesta atual reflexão: o “Estado de Isra el” ou, para ser mais preciso, as apropriações acerca do Es tado de Israel, produzidas pelas comunidades brasileiras e reproduzidas como prática educacional das escolas judai co-brasileiras, o pretenso combate ao antissemitismo, ele mento constante em uma narrativa judaico-sionista clás sica, e a centralidade do estudo e da vivência do Holo causto que serviria como possibilidade de fortalecimento identitário e compreensão definitiva da experiência histó rica judaica.2

Além dos pontos acima há um elemento que perpas sa os pontos propostos: a preocupação comunitária com a chamada “assimilação”, ou seja, a perda iminente de qua dros para uma sociedade maior, não judaica.

O pós-guerra e as novas diretrizes da educação judaica

Para avançar no debate acerca dos currículos judaicos contemporâneos é interessante fazer uma pequena análi se da origem histórica desta realidade curricular. A educa ção judaica encontrada hoje em escolas judaicas cariocas se desenvolve a partir dos anos 1940 e ganha cores de he gemonia política nas décadas seguintes que estão ligadas à chamada “educação judaico-sionista”, que hoje delimita as estratégias educacionais de judaísmo presentes nas três grandes escolas judaicas na cidade.

Podemos apontar a descoberta dos resultados humanos do Holocausto e a construção do Estado de Israel como si nais fundamentais para a consolidação deste discurso sio

nista clássico, antidiaspórico e martiriológico nas escolas judaicas de linha sionista no Rio de Janeiro.

O alinhamento da comunidade judaica no Brasil com um “sionismo clássico” significava, fundamentalmente, a disseminação de uma representação política do Estado de Israel baseada nos “mitos de fundação”3 estabelecidos pelas correntes que hegemonizavam as estruturas colonizadoras e representativas do chamado Sionismo Político. Na nar rativa desses grupos havia a ideia de que o Estado de Israel expressaria possibilidades de sobrevivência do povo judeu, perspectiva que se agudiza após o Holocausto.

Desta forma, enquanto o Holocausto aponta para o esgotamento da Diáspora, para o sionismo hegemônico, ele também afirma o Estado de Israel como única respos ta legítima para o mundo judeu pós 1945. Se a memória de comunidades judaicas era de martírio e perseguições, ou seja, uma história de exílio e sofrimentos, ela deveria ser apagada e superada com o advento do Estado de Isra el. Assim, a “sionistificação” do judaísmo diaspórico está construída por sobre a aniquilação quase completa do ju daísmo europeu.

Espelhando os processos de consolidação da hegemo nia sionista nas entidades judaicas, as escolas judaicas do Rio de Janeiro também adotam currículos judaicos de caráter sionista clássico, dotados assim de perspectivas mar tiriológicas e antiassimilacionistas. Esta prática educacio nal chama a atenção em uma situação nacional onde o an tissemitismo não é de fato uma experiência cotidiana para grande parte dos membros da comunidade judaica e onde

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dimensões “angustiantes e de temor pelo futuro”, típicas da tradição judaica pós-Holocausto, contradizem tendên cias de “voluntarismo otimista” e confiança no futuro tí picos da sociedade brasileira.4

A partir do momento em que a memória do Holo causto se estabelece e ganha espaços no mundo judaico, ela se estabelece como referência definitiva na cultura es colar brasileira. Mais do que perseguições e preconceito, somos vítimas de uma ameaça constante, o Holocausto. Nada menos relevante em uma realidade judaico-brasilei ra onde o otimismo com relação ao futuro contradiz tais perspectivas acima colocadas.

A educação judaica na contemporaneidade: educando para Auschwitz?

A partir da segunda metade dos anos 1950 a memória do Holocausto é uma das mais fortes referências da me mória nacional em Israel. Assim, superar a Diáspora sig nificava superar Auschwitz, porém sem descartá-lo politi camente. Ele seria, ao contrário, mantido como parte de uma espécie de reserva política israelense. Como exem plo claro desta utilização podemos citar a comparação fei ta pelo ministro das Relações Exteriores de Israel, Aban Eban, de que o retorno às fronteiras de antes de 1967, antes da Guerra dos Seis Dias, significariam “o retorno às fronteiras de Auschwitz”.

O Holocausto remarca as fronteiras políticas em Israel sendo uma referência para decisões políticas cotidianas e fazendo de Auschwitz um ator político relevante no ce nário decisório israelense. Se a história da Diáspora deve ria ser apagada, ou pelo menos diminuída na narrativa fi nalista e teleológica do sionismo clássico, Auschwitz não.

As escolas judaicas cariocas gradativamente incorpo ram tais propostas políticas educacionais. Em realidade, o idioma de Israel (o hebraico), a literatura judaica e israe lense (em grande medida críticas e reflexivas) eram menos relevantes na perspectiva educacional judaico-sionista do que a díade luta contra a assimilação e o antissemitismo. A formação pedagógica em tais escolas não fortalecia referências identitárias positivas (idioma para se comunicar e como referência de uma produção cultural contemporânea e não somente entendido como cultura litúrgica), música judaica contemporânea e outras dimensões culturais, mas tinha vínculos fortes com a cultura do medo e da possibi

lidade do desaparecimento, fosse físico ou cultural. Nada mais contraditório com relação ao que acontecia fora dos muros da escola.

Em conjunto a uma realidade curricular que se conso lida efetivamente no Brasil a partir dos anos 1980, e que apreende a educação judaica a partir da memória do Holo causto, vê o antissemitismo como referência constante na história judaica e percebe Israel a partir de lógicas acríti cas e de apoio automático; há um afastamento entre o que se produz em termos educacionais brasileiros e a própria realidade israelense, de fato, muito mais crítica e reflexiva.

Com relação, por exemplo, ao estudo da Shoá, há um relevante debate sobre a utilização da memória do Holo causto em Israel que ocorre paralelamente à popularização no Brasil de programas como a “Marcha da Vida”, de via gens à Polônia, a seus campos de extermínio e de concen tração. Tal debate está centrado no sentido pedagógico e identitário de uma viagem que pode, segundo alguns autores, consolidar uma identidade judaica baseada na expe riência do Holocausto e uma prática política calcada em expressões ultranacionalistas e xenófobas.

Como exemplo dessa postura crítica em relação a tais viagens podemos citar o livro de Avraham Burg, que car rega o sugestivo título O Holocausto Acabou, Nós Deve mos Nos Levantar de Suas Cinzas. 5 Nesta obra, Burg não tem dúvidas em se opor às viagens ao estilo ‘Marcha da Vida’ ao chamá-las de “Viagens de Auschwitz” (Auschwitz Trips). Denominando tais viagens com o nome do maior campo de extermínio da história, Burg deixa claro o moti vo de sua oposição; segundo ele, a tendência é de “culto a Auschwitz e ao Holocausto” em tais viagens, além de no tar uma “preocupante tendência no fortalecimento da me mória do Holocausto como formador de identidade judai ca nos últimos anos”. Segundo Burg, tais viagens deman dam que os jovens estudantes do ensino médio israelense retornem das viagens à Polônia sendo “novos israelenses”, o que coloca o regime de Hitler, segundo Burg, como um “parceiro na formação da identidade judaica de jovens do mundo inteiro”.

Enquanto isso, as escolas judaicas no Rio de Janeiro permanecem, em grande medida, fortalecendo as perspec tivas de identidade judaica construída a partir do Holo causto e gradativamente incorporam, já no século 21, pro jetos de viagens a Auschwitz e a Israel como forma central de educação judaica e reprodução identitária.

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Tais viagens encerram em sua prática educacional potencial vínculo entre identidade judaica e antissemitismo, relacionam a experiência do Holocausto como referência fundante da identidade judaica contemporânea, além de promover a ideia de um Estado de Israel redentor e salva dor, onde há a função de abrigo contra todos os males da história, promoção essa que vai obstruir quaisquer possi bilidades de análises de uma realidade complexa de uma sociedade em profundas transformações.

As escolas judaicas e as mudanças na educação sionista

As escolas judaicas devem passar por uma transforma ção curricular se quiserem continuar sendo relevantes nas próximas décadas. Ao contrário do que se pode imaginar, não considero que o tripé proposto acima como referência de educação judaico-sionista do século 20, constituído por antissemitismo, memória do Holocausto e relação com Is rael, deva ser superado nos próximos tempos. Ao contrá rio, acredito que ele deva ser atualizado para voltar a ser re levante e ajudar a produzir novas identidades judaicas nas escolas de linha sionista.

Se a relação com o antissemitismo deva ser superada como referência única de história judaica, acredito que se deva utilizar a experiência histórica judaica para se relativi zar todas as formas de discriminação e preconceito existentes hoje na realidade brasileira. Em relação ao Holocaus to, acredito justamente que se deva fortalecer o ensino des ta matéria, invertendo, porém, os sinais. Ao vincularmos a história da Shoá ao seu legado e não somente à sua me mória, poderemos passar para o aluno uma nova percep ção da Shoá mais universalista e conectada com a história do século 20, que contenha lições a ser aprendidas por to dos no século 21, não tendo relação somente como cons trutor de identidade judaica.

Finalmente proponho que haja um vínculo ainda mais forte com Israel e com a sociedade israelense, não com suas perspectivas mitificadas, acríticas e imaginárias, mas com a realidade atual de uma sociedade em constante modifi cação, crivada de crises e dilemas, mas possuidora de uma dinâmica social rica e interessante como poucas no mun do. É importante, neste sentido, que o idioma e a cultu ra hebraicos sejam valorizados e estudados e não sacralizados e cultuados.

Acredito que a partir das mudanças propostas acima

poderemos construir uma educação judaica ao mesmo tempo universalista e local, comprometida com o futuro e vinculada ao passado, profundamente atualizada em rela ção à cultura israelense e radicalmente comprometida com a sociedade brasileira.

Bibliografia

Burg, Avraham. The Holocaust is Over: We Must Rise from its Ashes. Pal grave MacMillan, 2008.

Louro, L. Guacira. Gênero, Sexualidade e Educação: Uma Perspectiva Pós-Estruturalista. Petrópolis. Rio de Janeiro: 2ª ed. Vozes, 1998. Sorj, Bernardo. Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica: As Origens de uma Cultura não Antissemita. In: http://www.bernardosorj.com/ pdf/sociabilidadebrasileiraeidentidadejudaica. Sternhell, Zeev. The Founding Myths of Israel. Princeton. Princeton Uni versity Press. 1999.

Notas

1. Ver: Louro, L. Guacira. Gênero, Sexualidade e Educação: Uma Perspectiva Pós-Es truturalista. Petrópolis. Rio de Janeiro: 2ª ed. Vozes, 1998, pp. 52-57.

2. Ver site Marcha da Vida Brasil, hospedado em: http://fundocomunitario.org.br/ express/index.php/site/marcha_vida_objetivo/.

3. Sternhell, Zeev. The Founding Myths of Israel, Princeton. Princeton University Press, 1999, p. 22.

4. Ver: Sorj, Bernardo. Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica: As Origens de uma Cultura não Antissemita. In: http://www.bernardosorj.com/pdf/sociabilidadebrasi leiraeidentidadejudaica.pdf

5. A tradução é minha, o título em inglês é: Burg, Avraham. ‘The Holocaust is Over: We Must Rise from its Ashes’, Palgrave MacMillan, 2008.

Michel Gherman é co-coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ, diretor acadêmico do Hillel, Rio de Ja neiro e coordenador de Cultura Judaica do Colégio Eliezer-Max.

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c aminhos c ruzados: c larice e e lisa l ispector

Enquanto Elisa Lispector trabalha com a narrativa linear e onisciente (apesar das quebras na sequência do romance), em Clarice, a experiência interior ocupa o primeiro plano e traz como resultados a narrativa fragmentada, a perda da onisciência, o apoio em algum fio de imagem a partir do qual o sujeito possa vir a construir um percurso.

“Meu livro se chamará O Lustre. Está terminado, só que falta nele o que eu não posso dizer.”1

“O que não sei dizer, é mais importante do que o que eu digo. Cada vez escre vo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever.”2

Otítulo deste trabalho sugere a intersecção de duas linhas que se unem e se separam para figurar os caminhos literários percorridos pelas irmãs Clarice e Elisa Lispector.

Ambas começaram a escrever na década de 40 do século XX. En tretanto, a competição desigual entre o talento natural de uma e o esforço mul tiforme de outra se revela de imediato. O estilo de Clarice nasce pronto. Seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1944), é feito de fragmentos. A autora abandona a retórica convencional e segura para entrelaçar a emoção a uma intuição fulgurante. Em vez do enredo com começo, meio e fim, ela elege o inacabamento; em lugar da tradição, o dilaceramento e a busca.

Já Elisa Lispector publica seu primeiro livro – Além da fronteira – em 1945,3 marcando desde o início sua predileção pelo romance filosófico, que se desen volve em torno da indagação do sentido da vida. Sua produção segue até 1985, tendo a escritora conquistado alguns prêmios literários no Brasil.4 É, entretan to, seu romance épico No Exílio (1948) que nos interessa mais de perto anali sar, porque nele está contido um relato de matiz autobiográfico da vinda da fa mília Lispector ao Brasil.

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O romance inicia com a protagonista Lizza saindo de um sanatório, depois de se restabelecer de uma possível cri se de melancolia. No percurso, ela toma ciência, através de notícias de jornal, da fundação do Estado de Israel (em 1948).

Em seguida, há um flashback e tem iní cio a apresentação dos rumos empreen didos pela família composta de pai, mãe e três filhas na Europa e de sua travessia em fuga da Ucrânia. Conta-se o casamen to arranjado dos pais, Pinhas e Marim, a obediência aos princípios da tradição ju daica, o nascimento das três filhas – Lizza, Ethel e Nina e os primeiros pogroms, em 1905.5

Percursos a pé, acampamentos, fronteiras, viagem de trem, extorsões, associam-se ao esforço em deixar de pensar na vida que ficava para trás e ao impulso voltado para a nova vida que os esperava.

recebe essa missão de fazer a suplência da mãe e depois do pai.

A estrutura do livro é documental por excelência. Abre-se com a fundação do Es tado de Israel e prossegue com o flashback do drama da família na Europa Oriental, Ucrânia, em fuga durante a revolução russa. Um capítulo datado de 1929 aponta os conflitos no Oriente Médio, a Decla ração Balfour, o levante de árabes toma dos de violenta cólera contra os judeus. O capítulo seguinte focaliza a Alemanha na zista, a ascensão de Hitler, a expansão do nazismo e seus ecos no Brasil e, em seguida, sua derroca da, tendo como sequência a fundação do Estado de Israel.

Os ecos da Revolução de 1917 soavam em dupla dire ção: de um lado, os “vermelhos” tentavam vencer as difi culdades da fome; de outro, os “brancos” procuravam su focar a revolução e promoviam pogroms, isto é, violentas perseguições aos judeus, com estupros, saques, assassina tos, pelos territórios que iam ocupando. Tendo sido obri gados a abandonar Moscou, dominada pelos comunistas, os “brancos” alojam-se na Ucrânia, tornando-a inóspita aos judeus. Assim, com a Revolução bolchevique, a situa ção continua difícil para os judeus perseguidos por um antissemitismo ancestral, submetidos a massacres e humilhações de toda ordem. O pai decide que a família segui rá para a América. Percursos a pé, acampamentos, frontei ras, viagem de trem, extorsões, associam-se ao esforço em deixar de pensar na vida que ficava para trás e ao impulso voltado para a nova vida que os esperava.

Fixam-se por algum tempo no Nordeste do País, em Maceió, onde tinham família. Ali o pai começa a traba lhar como klientelchik, vendendo, de porta em porta, te cidos e outras mercadorias. Lizza vai estudar português e frequenta cursos para se ambientar à nova realidade. De pois de alguns anos, a família segue para o Recife e mais tarde para o Rio de Janeiro.

A nova terra era cálida e próspera. A mãe, entretanto, manifesta desde a Europa uma doença progressiva, e Lizza vai se responsabilizando pelas irmãs, pela casa. A morte da mãe empossa Lizza definitivamente como a mantenedo ra da família, e a vida torna-se previsível no perímetro doméstico. Assim, é sobre a filha mais velha que se deposi ta o fardo das responsabilidades. De alguma forma, Elisa

Morre o pai com pouco mais de cinquenta anos, e o ro mance termina com as duas filhas menores casadas e uni das entre si, enquanto Lizza mantém-se isolada num mun do de obrigações e responsabilidades.

Em No Exílio, o mais autobiográfico dos romances de Elisa Lispector, mais do que a história de uma família, conta-se a história de um povo marcado por perseguições e deslocamentos. Quantas famílias judias tiveram o mes mo destino e saíram de seus lugares de origem em busca de sobrevivência no Novo Mundo? Assim, o escopo da irmã mais velha de Clarice é, acima de tudo, registrar a luta do povo e da tradição judaica por sua permanência. Ao che gar ao Brasil, Elisa tinha 9 anos, Ethel, 2, e Clarice, 2 me ses. Caberá à filha mais velha manter o judaísmo e registrar a memória da saga familiar, o que de certo modo descom promete as duas outras irmãs de carregar o mesmo fardo. A morte do pai coincide com o final da Segunda Guerra Mundial, e é com as impressões que se seguem a esse mo mento, após a alta do sanatório, que se fecha o romance:

“Lizza cuidava de anunciar a si mesma a grande nova, acalentando-se com o estribilho: Paz, paz, enfim a paz. Mas não conseguia alegrar-se. Uma voz advertia: Belsen, Aus chwitz, Buchenwald, Dachau, Massacres. Morticínios.

– Como encadear a vida depois disso? – perguntava-se. Será possível viver uma vida nova, uma vida normal, e es quecer tudo quanto ficara para trás? Já nem lembrava mais de como se vivia sem a constante ansiedade por notícias dos campos de batalha e o pavor dos relatos das atrocidades nos campos de concentração”.6

É sobre a linearidade episódica dos acontecimentos no

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tempo, que serviu de referência ao realismo, que se constrói a linha narrativa do romance, também apoiada na ex periência do vivido.

Causa estranhamento o fato de o romance suplantar a primeira pessoa para se firmar na neutralidade da tercei ra.7 Por que essa opção se o que está em jogo é a lembran ça de uma saga familiar, que poderia ser contada por um narrador interno à ação? O que esconde esse narrador em terceira pessoa? Talvez o seu uso facilite o distanciamen to do foco e legitime o painel histórico que faz a moldura do deslocamento familiar. Por que mudar ligeiramente os nomes dos membros da família se os dados apresentados correspondem ponto por ponto à história dos Lispector?8 É difícil chegar às respostas.

Se nos ativermos à clássica definição de Philippe Lejeune, a autobiografia propõe um pacto de leitura anco rado no nome próprio, como garantia da identidade en tre narrador e autor, e ancora-se também numa certa in tencionalidade da adequação à verdade dos fatos e de bus ca de sentido da vida.9 Essa posição mostra-se controver tida até pelo próprio Lejeune, que tempos depois amplia o conceito do campo “autobiográfico” e o biográfico em geral, identificando-se mais com o verso de Rimbaud “je est un autre”.10

De qualquer modo, o resultado da escolha da tercei ra pessoa gera, de imediato, a contradição entre a firmeza do discurso e a mobilidade do vivido. A experiência do so frimento se dissolve no relato, forçado a responder a uma convenção da escrita. Por outro lado, qual a garantia de que a primeira pessoa poderia captar um sentido da expe riência? O texto oscila entre a configuração épica em que deve prevalecer uma história (terceira pessoa) e o discurso em que a experiência ganha ênfase (primeira pessoa). A obrigação de contar a história familiar contém embutida a questão: deve-se renunciar àquilo que a experiência guar da de individual? Por outro lado, em que medida e em que circunstância o relato da experiência mantém algo da in tensidade do vivido?

Se bem que a meta da autobiografia seja a construção do “eu”, esse processo em verdade segue o caminho inverso: a autorrepresentação é o produto final, mas é também a figura inicial que rege o desenvolvimento da autobiografia.

Quando o autobiógrafo logra o ponto de vista a partir do qual abarcará retrospectivamente toda uma vida, im põe ao passado a ordem do presente.11 Assim, o começo

de um acontecimento pode ser visto junto com seu resul tado, e o início do que é lembrado adquire um significado que antes não tinha. Por isso, talvez se possa afirmar que a crise de melancolia que finaliza a trajetória da protago nista vale como medida do peso de responsabilidade e de culpa de que é investida pelos laços familiares e pelo lega do que deve manter, unindo o final ao início de sua traje tória num cerco em que está presa.

O legado da memória12, um dos fundamentos do judaísmo, que deve ser assumido coletiva e individualmen te de modo a preservar o passado no presente sob for ma reatualizada,13 encontra na Shoá um lugar privilegia do. Ali, um depósito de lembranças, misto de reminiscên cias individuais, familiares e coletivas de dizimação e ex termínio não podem ser negligenciadas nem esquecidas. Mas a pergunta que fica é: como encarnar a memória de um evento do porte da Shoá ao qual não se presenciou?

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A obrigação de lembrar deve ser cumprida segundo uma forma, um modelo, ou é possível abrir-se para uma multiplicida de de modos de impressão na memória?

A reprodução externa de um modelo de literatura de testemunho não aviva o pe rigo de os sobreviventes serem percebidos como iguais, todos envolvidos na mesma imensa anonímia a que foram lançados pelo nazismo?14

A problematização de como carregar esse legado, ou mesmo se é possível carregá-lo, ou ainda para quê e para quem se deve transmitir a memória da Shoá é qua se sempre silenciada. De quem é essa memória? Trata-se de uma memória que me taforiza a desumanidade que recai apenas sobre os judeus ou ela é de propriedade universal? Deve essa memória incluir a memória de deficientes físicos e mentais, ciganos, homossexuais, prisioneiros políticos e outras vítimas do nazismo? De quem é essa memória, afi nal? A memória coletiva deve ser vista como um instru mento de recuperação ou de reconfiguração do passado?

Em No Exílio, mais do que a história de uma família, conta-se a história de um povo marcado por perseguições e deslocamentos. Quantas famílias judias tiveram o mesmo destino e saíram de seus lugares de origem em busca de sobrevivência no

Novo Mundo?

a narrativa linear e onisciente (apesar das quebras na sequência do romance), em Clarice, a experiência interior ocupa o primeiro plano e traz como resultados a narrativa fragmentada, a perda da onis ciência, o apoio em algum fio de imagem a partir do qual o sujeito possa vir a construir um percurso.

Como se pode depreender, estamos diante de um cruzamento de movimen tos contrários. As irmãs lidam com ima gens contrárias que se recobrem e escon dem e, num certo sentido, são comple mentares.

Essas e outras questões similares, levantadas a propósi to do texto de Elisa, não se colocam em relação à obra de Clarice Lispector, pois a escritora nunca se preocupou em narrar os fatos que a irmã aborda em seu romance, que po deriam ter chegado a ela através dos relatos da família, já que era muito pequena quando deixou a Ucrânia. Também não menciona nada que tenha a ver com judeus, com o nazismo ou com a fundação do Estado de Israel. Refere -se algumas vezes (em crônicas e contos) a episódios vivi dos em sua infância no Nordeste, mas são sempre os efei tos, as impressões gravadas na memória que ganham peso, e não os fatos ocorridos. Isso porque a escritora apreende a realidade a partir de uma posição subjetiva da qual resul ta a prevalência do monólogo interior, a digressão, a frag mentação dos episódios que caracterizam a ficção moder na em geral. Com essa escolha, a experiência interior pas sa para o primeiro plano da criação literária e, com ela, a temática da existência. Assim, a obra de Clarice se deixa reger pela intensidade da experiência do vivido, abrindo mão de qualquer tipo de relato histórico.

Temos aqui uma diferença básica, que funda dois ca minhos narrativos: enquanto Elisa Lispector trabalha com

Se no romance de Elisa o nomadismo e o deslocamento funcionam como nú cleo temático, justificado pela ânsia das personagens de buscar soluções para as rejeições e abando nos sofridos em função de seu judaísmo, na obra de Cla rice Lispector a mobilidade marca os textos como tema, mas, principalmente, como processo compositivo. A relação entre nomadismo e judaísmo não é imediata e clara quando não é determinada pelo autor. Num escritor que não use uma linguagem judaica (ídiche, hebraico, ladino, hakitia), nem descreva um meio tipicamente judeu, ou se filie a tradições literárias que são reconhecivelmente judai cas,15 é complexo avaliar o que é judaico ou não.

No livro Água Viva, 16 um sujeito no feminino se auto define: “Não me posso resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas ma çãs. E não me somo.”

Encontro fortuito de objetos distantes, o conjunto composto de uma cadeira e duas maçãs, ao mesmo tem po que suspende o antropomorfismo, mantém o traço da quilo que suspende, justamente para que sua negatividade trabalhe, tornando possível, assim, identificar uma forma que sugere um corpo de mulher sentada.

O assento sustentado por quatro pés sinaliza a metade inferior do corpo, enquanto as duas maçãs (os dois seios) indiciam a metade superior. Se as maçãs são o fruto da macieira, na cadeira a árvore é invisível, transformada que foi pela mão do homem. Como somar, neste corpo reduzido à condição de matéria perecível e reciclável, natureza e cul tura? Imagem caudatária de uma certa literatura de caráter fantástico do século XIX que alavancou a desarticulação

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da figura humana no surrealismo,17 esse corpo que recusa a unidade pode ser to mado como emblema da obra de Clarice Lispector, uma poética da fragmentação.

É difícil chegar ao judaísmo na escri ta de Clarice Lispector, mas, apesar disso, interessa introduzir ao repertório de lei turas de sua obra um ingrediente a mais: a consideração de seu lado imigrante e a suposição de que esse fato traga conse quências no nível da linguagem.

Em entrevista de 1976 dada a Edil berto Coutinho18, Clarice tenta desven cilhar-se de seu judaísmo:

“Eu sou judia, você sabe – embora não acredite que o povo judeu seja o povo elei to por Deus. Eu enfim sou brasileira, pron to e ponto.”

O legado da memória, um dos fundamentos do judaísmo, que deve ser assumido coletiva e individualmente de modo a preservar o passado no presente sob forma reatualizada, encontra na Shoá um lugar privilegiado. Mas a pergunta que fica é: como encarnar a memória de um evento do porte da Shoá ao qual não se presenciou?

Contrariamente à sua disposição, uma referência judaica – mais abstrata – inscreve-se em seu tex to. Há nele uma busca reiterada (da coisa? do real? do impalpável? do impronunciável? de Deus?) que conduz

a linguagem a seus limites expressivos, atestando, contra a presunção do enten dimento, que há um resto que não é de signável, nem representável. Neste sentido, a escritura segundo Clarice Lispector permanece, talvez inconscientemente, fiel à interdição bíblica judaica de delimitar o que não tem limite, de representar o ab soluto. Um dos grandes “temas” da obra da escritora é, a meu ver, o movimento de sua linguagem, análogo àquele próprio da tradição dos comentários exegéticos pre sos ao Pentateuco, que remetem ao dese jo de se achegar à divindade, tarefa de an temão fadada ao fracasso, dada a particu laridade do Deus judaico de ser uma ins crição na linguagem, onde deve ser bus cado, mas não apreendido, obrigando a retornar sempre. A abertura para uma in terpretação multiplicadora – eis a herança judaica por ex celência, e a ela o texto de Lispector não fica incólume.

O judaísmo, em Lispector, pode ser identificado tan

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to nos movimentos circulares de sua linguagem quanto na maneira estratégica como se inscreve o silêncio em sua obra, e, ainda, na presença constante da referência bíblica, propiciadora de um viés que permite verificar os desdobramentos de uma discussão concernente à lei. Há ainda algu mas obsessões que fazem eco ao texto bíblico e dizem res peito a uma concepção de mundo e de realidade mobili zadora tanto do animal quanto do vegetal. Os animais en tram na obra da escritora como ingredientes de estrutura ção do mundo, e sua normatização em puros e impuros –inventariada em Levítico 11:13 –, permite à autora pôr à prova a lei em alguns textos como A paixão segundo G.H. e “A quinta história”, além de outros.19 Também em seu último romance – A Hora da Estrela20 – é possível identi ficar traços judaicos. Com o nome da protagonista – Macabéa –, Clarice Lispector transpõe para A Hora da Estre la elementos simbólicos de um registro matricial judaico. A referência que se faz é ao Livro dos Macabeus, dois volu mes não canônicos da Bíblia, considerados apócrifos pe los judeus, com os quais o livro de Clarice intertextualiza.

Já no conto “Onde estivestes de noite”,21 um clima fantasmagórico e noturno recobre um mundo às avessas. Nele consta o único personagem judeu na obra de Clarice

Lispector, ao lado da entrevista já citada (Sou judia, você sabe./.../ Eu, enfim, sou brasileira, pronto e ponto22), tam bém a única vez em que a autora alude diretamente à sua origem. Nos dois casos, ela se desvencilha do judaísmo. Na entrevista, imprime um giro tal na frase que acaba negan do a primeira afirmação. Em relação ao conto, dilui o ju daísmo entre outros credos.

Essas formulações sugerem que talvez a forma de Clari ce Lispector operar com seu judaísmo seja tentando se de senlaçar dele. Curiosamente, seus textos têm a marca des sa mesma operação. Ao mesmo tempo, afirmando e ne gando esse traço identitário, faz-se e desfaz-se uma metá fora lábil e trôpega que assim mesmo se dilata múltipla e imprevisível, resistente à unificação, como uma cadeira e duas maçãs.

Enfim, comparando a presença do judaísmo nas obras das duas irmãs, tem-se a dimensão da diferença que existe entre elas. Uma não só aceita esse traço identitário como faz por perpetuá-lo. A outra, sente-se brasileira, russa, mas recalca o traço judaico que, no entanto, aparece em sua obra de forma oblíqua, na massa comum do sincretismo religioso tão afeito ao modo de ser do Brasil.

Distantes, mas complementares, a história une as duas

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irmãs de forma definitiva, já que ambas comparecem lado a lado sempre que se es tuda a biografia da irmã mais destacada. Todas as biografias da escritora baseiam -se obrigatoriamente no livro de Elisa Lis pector, No Exílio.

Não deixa de ser uma ironia que o li vro de Elisa ajude a fazer viver sua irmã, assim como o ficcionista faz viver suas personagens. Em No Exílio, como em todo relato calçado num compromisso com a verdade, esbarra-se na impossibili dade de acesso a uma realidade não adul terada, neutra, e talvez por isso essa au tobiografia se ofereça ao leitor como um romance. E é só nesse romance que as ir mãs, tão diversas e mesmo opostas, man têm-se lado a lado como personagens.

Notas

É difícil chegar ao judaísmo na escrita de Clarice Lispector, mas, apesar disso, interessa introduzir ao repertório de leituras de sua obra um ingrediente a mais: a consideração de seu lado imigrante e a suposição de que esse fato traga consequências no nível da linguagem.

ver: The University Press of New England, 1979 (p. 150).

7. A propósito do emprego da terceira pessoa em lugar da primeira na autobiografia, ver Philippe Lejeune, Le pacte au tobiographique (2ª edição) Paris, Éditions Seuil, 1996, p. 16 e segs.

8. Elisa Lispector dá nomes a seus personagens que se asseme lham foneticamente aos nomes dos membros de sua família.

O pai é Pinkas (Pinkhouss ou Pedro); a mãe é Marim (Ma rian, Mánia ou Marieta); a narradora é Lizza (Elisa); a irmã é Ethel (Tânia). Apenas a caçula, Haia, depois Clarice, se apre senta com nome distinto do que haveria de adotar no Brasil: no romance ela se chama Nina.

9. Philippe Lejeune, Le pacte autobiographique, op, cit 10. Philippe Lejeune, op. cit., p. 67.

11. Cf. de Sylvia Molloy, Acto de Presencia. La Escritura Au tobiográfica en Hispanoamérica. México: El Colégio de Méxi co/Fondo de Cultura Económica, 1996.

12. Cf. Yossef Hayim Yerushalmi, Zakhor: Jewish History and Jewish Memory. Washington: University of Washington Press, 1982.

13. “Memória coletiva”, no sentido que lhe atribui Maurice Halbwachs, isto é, uma corrente de pensamento contínuo, de uma comunidade que não tem nada de artificial, pois não re tém do passado senão aquilo que dele é ainda vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. Vide. M. Halbwachs. La mémoi re collective. 2.éd. revue e augmentée. Paris: PUF, 1968, p. 70.

1. C. Lispector, carta a Lúcio Cardoso. Nápoles, set.-out., 1944. In: Clarice Fotobio grafia (org. Nádia Battella Gotlieb) São Paulo: Edusp, 2008, p. 185.

2. Em Olga Borelli: Clarice Lispector: esboço para um possível retrato, p. 85.

3. Elisa Lispector publicou os seguintes livros: Além da fronteira (romance), [1ª ed. 1945]. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988; No Exílio (romance), [1ª ed. 1948; 2ª ed. Brasília: Ebrasa, 1971]; Muro de pedras (romance). Rio Janeiro: José Olympio, 1963, que conquistou o prêmio José Lins do Rego; Sangue no sol (contos). Brasí lia: Ebrsa, 1970; Inventário (contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1977; O tigre de ben gala (contos). Rio de Janeiro: José Olympio, 1985; Corpo a corpo (romance). Rio de Janeiro: Antares, 1983; O dia mais longo de Thereza (romance). Rio de Janeiro: Record, 1978; A última porta (romance). Rio de Janeiro: Documentário, 1975.

4. Cf. dissertação de mestrado de Fernanda Cristina de Campos, O discurso melancó lico em Corpo a Corpo, de Elisa Lispector. Departamento de Teoria Literária e Li teratura da Universidade de Brasília, Instituto de Letras, 2006, orientada pelo Prof. Dr. Gilberto Figueiredo Martins.

5. Antes de 1905, ocorre o pogrom de Kischinev em 1903, que de tão violento susci ta a organização da primeira unidade de autodefesa dos judeus.

6. No Exílio, op cit., p. 180. A busca por uma vida nova, sem marcas do passado, pa rece ser um questionamento que ronda o inconsciente de todas as personagens de Elisa Lispector, incluindo seus últimos romances, A última porta e Corpo a Corpo. O conflito entre a consciência de finitude e o tédio diante da existência temporal; o desamparo resultante de perdas e carências, que obriga a conviver com um va zio interior; a agonia existencial face à vida e à morte; a solidão; a transitorieda de do tempo; a incomunicabilidade são os temas centrais abordados pela literatu ra de Elisa Lispector. Cf. dissertação de mestrado de Fernanda Cristina de Cam pos, O discurso melancólico em Corpo a Corpo, de Elisa Lispector. Ver nota 3. No ensaio “Breakink Silence: Israel’s Fantastic Fiction of the Holocaust”, Gilead Mo ragh explica assim a disposição dos sobreviventes para esquecer o passado: “Upon their arrival in Israel, the survivors were engulfed by the imperatives of integrating into a society that they were encouraged to call their own, but that regarded their past experience as irrelevant, if not shameful. Their shame of being disdained out siders was often compounded by the guilt evoked by the actual experiences of sur vival. This involved not only the often articulated guilt over having survived when so many others perished, but also the hidden guilt and shame over what often had to be done in order to survive.” In: The boom in contemporary Israeli fiction. Hano

14. No ensaio “Public Memory and Its Discontents”, in The Geoffrey Hartman Rea der (New York: Fordham University Press, 2004), o autor trata da necessidade de resgatar os testemunhos do perigo da anonímia, incluindo traços individualiza dores em registros como vídeo, cinema, proposta que pode ser estendida ao rela to escrito.

15. Robert Alter, “Jewish Dreams and Nightmares”, in What is Jewish Literature? Ed. Hanna Wirth Nesher. Philadelphia/Jerusalem: The Jewish Publication Society, 1994, 5754, pp. 53-61.

16. Clarice Lispector, Agua Viva, 10ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979, p. 75.

17. Cf. a propósito de Eliane Robert Moraes, O corpo impossível. São Paulo: Iluminu ras, 2003.

18. Edilberto Coutinho, “Uma mulher chamada Clarice Lispector”, em Criaturas de Papel: Temas de Literatura&Sexo&Folclore&Carnaval&Televisão&Outros Temas da Vida. Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1980, pp. 165-170. Se gue a citação completa: Sou judia, você sabe. Mas não acredito nessa besteira de ju deu ser o povo eleito de Deus. Não é coisa nenhuma. Os alemães é que devem ser, por que fizeram o que fizeram. Que grande eleição foi essa para os judeus? Eu, enfim, sou brasileira, pronto e ponto.

19. Cf. meu livro Entre Passos e Rastros - Presença judaica na literatura brasileira con temporânea. São Paulo: Perspectiva/Fapesp, 2003, em que trato o judaísmo em Clarice Lispector por diferentes caminhos.

20. Clarice Lispector, A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997. Ver, a propósito, A Expressão Judaica na Obra de Clarice Lispector, de Nelson Vieira, em Remate de Males, nº 9 (org. Vilma Arêas e Berta Waldman), Unicamp, Campi nas, 1989. Em seu livro Jewish Voices in Brazilian Literature: A Prophetic Discourse of Alterity, The University Press of Florida, 1995, o romance A Hora da Estrela é estudado em sua expressão judaica, assim como a obra da autora de modo geral.

21. Conto inserido no livro de mesmo nome: Clarice Lispector, Onde estivestes de noi te. Rio de Janeiro: Artenova SA, 1974, pp. 59-79.

22. Cf. nota 21.

Berta Waldman é professora de Língua e Literatura Hebraica na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universida de de São Paulo.

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e m p oucas palavras

O Protocolo Olímpico

Quarenta anos e dez Olimpíadas atrás, em Munique-1972, teve lugar o ato inaugural do terrorismo moderno, com o assassinato de atletas da delegação isra elense por terroristas palestinos.

As Olimpíadas seguiram seu curso normal, pois o COI (Comitê Olímpico In ternacional) não considerou que o fato fora grave o suficiente para perturbar o espírito olímpico que supostamente im pera nos Jogos e uma parcela significati va dos formadores de opinião encontrou fortes atenuantes para o crime, atribuin do-o a um justificado “desespero” dos palestinos oprimidos.

A partir daí abriu-se a caixa de Pan dora e os assassinatos de civis por con ta de disputas políticas passou a ser vis to como ação legítima. Um “desespera do” tudo pode, não há limite para a sua ação. E os “desesperados” do mundo co meçaram a agir. O mundo piorou muito a partir das Olimpíadas de 1972 e o COI tem uma pequena parcela de responsa bilidade por isto.

A partir daí começou também a luta dos familiares dos atletas assassinados para que o COI adote um minuto de si lêncio na cerimônia de abertura dos jogos – um dos eventos de maior audiência do planeta – em memória dos atletas mor tos enquanto disputavam os Jogos. Não há dúvida que este ato simbólico teria um

efeito benéfico – mesmo que pequeno –para todos os habitantes do planeta, ao deixar claro quem são as vítimas e quem são os perpetradores nos atentados em que civis pagam com suas vidas reivindi cações políticas de terceiros.

Mas até hoje o minuto de silêncio não houve. As Olimpíadas se sucedem e as desculpas para não recordar os atle tas israelenses mortos em sua abertura também. Estas desculpas variam desde as mais honestas, que reconhecem ser o COI um organismo que olha primeiro para os seus interesses paroquiais e não para o mundo, até as mais hipócritas, que atribuem a ausência da homenagem didá tica a barreiras burocráticas.

Exemplificando: as desculpas variam desde a brutal, porém verdadeira, afir mação que “existem 21 países árabes e apenas um Israel” até a hipocrisia de que “o minuto de silêncio não faz parte do protocolo dos Jogos”.

Como se repatriar atletas dentro de caixões fizesse parte do protocolo...

Salto em distância

Em sua segunda prova nos jogos das Olimpíadas de 1936, Jesse Owens ga nhou a medalha de ouro no salto em dis tância. Com ela, o americano negro fez descer pelo ralo a afirmação da suprema cia racial ariana pregada pelos nazistas, uma situação que só não provocou cons trangimento ainda maior porque os dois corredores judeus da equipe americana do revezamento 4 x 100 (a 4ª medalha de ouro de Owens) foram retirados da pro va por seu técnico, claramente cedendo à pressão política nazista.

Impossível não lembrar desses fatos quando a mais alta corte brasileira definiu, no dia 26 de abril deste ano, por unanimi dade, que o uso de cotas para privilegiar o acesso às universidades públicas pode usar raça como critério eletivo. Conforme afirmou o ministro relator, “se a raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser usada para desconstruí-las”.

A mistura dos termos utilizados nos votos dos diversos ministros, ora men cionando conceitos étnicos, ora abor dando a cor da pele, não impediu que ali se consolidasse a terminologia popu lar “cotas raciais” como um conceito le galmente aceito.

Esta decisão constituiu um salto para bem longe do momento em que o mesmo STF, no qual alguns dos atuais ministros já atuavam, condenou por racismo um

em homenagem ao momento olímpico de 2012, cada tema abordado nesta seção está relacionado com o evento do maior espetáculo esportivo do planeta.
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editor neonazista, em setembro de 2003. Naquela ocasião, afirmava o relator que “Com a definição e o mapeamento do ge noma humano, cientificamente não exis tem distinções entre os homens,... visto que todos se qualificam como espécie humana... Na essência são todos iguais”. A premissa dos votos que apoiaram a condenação era clara: não se pode as sociar homens ao conceito de raça, sob o risco de estimular entendimento diver gente do legalmente aceitável perante a constituição brasileira.

Ao definir cotas para permitir o aces so às universidades de forma preferen cial a pessoas cuja cor da pele seja mais escura que a de outras, estimula-se o uso do mesmo princípio para finalidades nem sempre bem intencionadas. A clas sificação de vínculo étnico, a ser feita pelo próprio candidato, pode provocar dúvidas, levando a um julgamento que, na busca pela objetividade, poderá re sultar em padrões aceitáveis ou não de cor da pele, largura do nariz, tipo de ca belo, entre outros critérios que perme avam livros de antropologia racistas no início do século 20.

Pode ser que o modelo de cotas traga algum benefício para a sociedade brasi leira. Mas o estrago feito pela incorpora ção da legalidade das “cotas raciais” ao nosso dia a dia não será menor. Como ponto de partida para reflexão, sugerimos pensar sobre a pertinência de um Minis tério da Igualdade Racial num país onde, em tese, não se aceita o uso do termo “raça” para diferenciar grupos humanos.

Mergulho – plataforma de 10 metros (ou muito mais)

O jornal israelense Ultraortodoxo Há’edá lamentou a presença da cantora Madonna em Israel, país que ela escolheu para lançar sua mais recente turnê mun

dial. A razão do desconforto com a can tora foi o fato de ela fazer questão de vi sitar os túmulos dos sábios nas proximi dades de Tveria e de Tzfat. Segundo o jor nal, a cantora – uma fiel aderente à Caba la e ao misticismo judaico – “profana lo cais sagrados”.

O jornal tem o cuidado de não chamar Madonna por seu nome – talvez pela for te referência cristã que ele carrega – re ferindo-se a ela por “famosa cantora gen tia” (obviamente seus leitores sabem exa tamente de quem o jornal está falando e desta forma a simbologia do nome che ga às mentes dos leitores da mesma for ma que se tivesse sido escrito) e lamenta a popularidade dos túmulos dos sábios, que estariam se convertendo em “pontos turísticos da moda”.

Em todas as partes monumentos reli giosos têm regulamentos estritos quanto a horários e a vestuário, impostos justa mente para não ofender a sacralidade do local. O mesmo acontece nos monumen tos religiosos em Israel, inclusive nos tú mulos dos sábios do passado. Assim sen do, a ideia que o jornal passa é que a “pu reza” dos locais religiosos só é mantida afastando dele todas as pessoas que não aderem ao código que lhe parece ade quada. O nome desta “pureza” é racismo e fica no ar a dúvida do que diria o Profe ta Bíblico Isaías – autor da frase “A minha casa será casa de oração para todos os povos” (56:7) – se lesse o Há´edá

Suspeito que ele diria que parte do nosso povo não entendeu nada da fra se que formulou – mesmo tendo milênios

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para refletir sobre ela – e que está mer gulhando cada vez mais fundo na piscina da intolerância.

Tiro ao alvo

O senador norte-americano Mark Kirk, republicano pelo Estado de Illinois, está promovendo uma ação para obrigar o De partamento de Estado (no Brasil corres ponde ao Ministério das Relações Exte riores) a definir os refugiados palestinos da mesma forma que a comunidade inter nacional define os refugiados.

A definição geral de “refugiado” inclui a todos os que fugiram de seu país por conta de guerras e perseguições políti cas, excluindo os que foram repatriados e os que encontraram abrigo permanen te em outras nacionalidades.

A definição para “refugiado palestino” tem duas grandes diferenças: os descen dentes dos refugiados continuam a ser considerados como tal, mesmo que te nham nascido em outro país, e os que fugiram de um local do território do anti go mandato da Palestina para outro (por exemplo, de Jaffa para Gaza) são consi derados refugiados, mesmo não tendo ja mais deixado a sua terra.

Pela contagem da regra que é usa da em todos os casos do mundo existem hoje cerca de 30 mil refugiados palesti nos. Pela contagem da definição especí fica dos palestinos o número é de cinco milhões, com uma curva de crescimento ininterrupta, à medida que a população se expande.

Argumenta, com muito bom senso, o senador Mark Kirk que a adoção da defini ção internacional se constituiria num pas so importante para a solução do conflito, pois reparar os direitos de 30 mil pesso as é muito mais simples do que reparar uma situação que, pela natureza da defi nição, ninguém tem interesse em resolver.

Além disso, ele aponta para o fato de que não há sentido aplicar uma regra para os palestinos e outra regra para o restante do mundo. E que o maior con tribuinte para o fundo de apoio aos re fugiados palestinos é o governo dos Es tados Unidos (240 milhões de dólares por ano), assim que a definição igualitá ria de quem é refugiado permitiria aos EUA distribuir com maior justiça seus recursos.

Não há a menor dúvida que o senador Mark Kirk mira para o alvo correto e co loca o dedo no meio da ferida. Resta sa ber se a complexa trama de interesses in ternacionais – que tantas vezes joga para o lixo a justiça e promove simplesmente a lei do mais forte – vai permitir que seu tiro acerte o alvo e contribua para miti gar o conflito.

Maratona

O “Guttman Center for Surveys” abri ga o mais abrangente banco de dados de pesquisas de opinião pública em Is rael. Desde 1947 o Centro aplica mé todos de pesquisas inovadores e meti culosos para medir as atitudes do pú blico israelense em milhares de face tas. Mais de 1.200 estudos já foram re alizados, cobrindo quase tudo: assuntos do cotidiano, política, cultura, ideologia, religião, educação e segurança nacio nal. Sua “pesquisa continuada” permi te perscrutar a evolução de uma imensa variedade de facetas e conduz ao enten dimento dos caminhos trilhados pela so ciedade israelense.

Em 2012 o Centro publicou os re sultados de uma pesquisa realizada em 2009, cujo título traduzido para o portu

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guês é “Um Retrato dos Judeus de Israel – Crenças, Observância e Valores dos Ju deus de Israel em 2009”. Enterrada no meio de uma enorme quantidade de in formações encontramos uma inespera da surpresa: mais pessoas se declaram Judeus Reformistas e Conservadores do que Ultraortodoxos em Israel.

O placar é de 8% para os liberais (Re formistas e Conservadores) contra 7% dos Charedim (que é como os Ultraorto doxos se definem em Israel). Este núme ro representa uma ultrapassagem signifi cativa na verdadeira maratona que está acontecendo há muitos anos. Para apre ciar a relevância destes números basta considerar que há 40 anos o percentu al de judeus que se consideravam reli giosos liberais era nulo, enquanto que os Charedim chegavam próximo dos 10%.

Importante notar que os Charedim são apenas a parte mais extrema do univer so ortodoxo, que continua majoritário, por larga margem, dentro do universo religio so e que a grande maioria dos israelen ses se define como não tendo nenhum viés religioso, mesmo tendo crescido a li gação dos judeus com a religião e com a tradição na última década.

Mediu-se também que a maioria dos israelenses (61%) concorda que os mo vimentos Reformista e Conservador de vem ter o mesmo status atribuído ao mo vimento Ortodoxo em Israel, o que é ade rente com a recente decisão do Estado de conceder à rabina reformista Miri Gold os mesmos benefícios financeiros garan tidos aos rabinos ortodoxos.

Na maratona pela conquista dos cora ções e mentes dos israelenses, o judaís mo religioso liberal – como o vivenciado na ARI – vem ganhando cada vez mais terreno. Este fato tem o potencial de mu dar dramaticamente o panorama judaico no mundo, trazendo maior inclusão e res

peito entre todas as vertentes religiosas, além de legitimar definitivamente a diver sidade de pensamento e de práticas, que sempre foi característico de um povo que nasceu fruto da inquietação intelectual e que ainda a cultiva.

Salto em altura

O jornal Forward publicou no come ço de junho uma pesquisa realizada pela empresa “Phillips and Herman Demogra phic Research” que identificou que o Es tado de Israel é particularmente bem su cedido na retenção de seus cidadãos ju deus no país.

O estudo identificou que apenas 230.000 israelenses judeus vivem per manentemente no exterior, o que repre senta um percentual de 4%, que é a me tade da taxa média de emigração da maioria dos demais países do mundo.

Muitos de nós temos a percepção que existe um êxodo considerável de judeus do Estado de Israel. Esta percepção é plenamente justificada pelo fato de existi rem aproximadamente um milhão de isra elenses vivendo fora do Estado de Israel. No entanto, o estudo chegou à conclusão que três quartos destes pretendem voltar ao seu país após períodos de estudo e de aprimoramento profissional fora das fron teiras. E o estudo da empresa de demo grafia vai mais além: historicamente, os que declararam pretender retornar efeti vamente retornaram.

A aquisição de vivência em outros centros de excelência enriquece tremen damente a sociedade israelense e é um dos motores que impulsiona a formidável economia baseada na inovação de Isra el. O milhão que vive fora de Israel leva o país cada vez mais para o alto.

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o kadish

rabino leonardo alanati

Ainda estudante de rabinato, comecei a lecionar para jovens de bar e bat-mitsva em sinagogas re formistas e conservadoras nos EUA. Lá desenvol vi a metodologia de aproveitar o tempo de prepa ro destes alunos para ensinar o máximo de judaísmo. No que se referia à questão litúrgica, decidi que ensinaria o máximo de orações e o mínimo de leitura da Torá. Queria que meus alunos soubessem bem as orações, inclusive o Kadish, que ouviriam nas sinagogas em qualquer dia do ano, ao invés de aprender um trecho de uma Parashá que só é lida uma vez ao ano.

Quando comecei a atuar como rabino e a implementar esta metodologia no Brasil, de repente me deparei com pais e meninos muito assustados. Descobri o problema: como eu podia ensinar uma reza dos mortos para os garotos! Ensinar o Kadish para os jovens poderia atrair a mor te para suas famílias!

Durante meus primeiros anos como rabino precisei es clarecer que nenhum tipo de Kadish menciona mortos, pelo contrário, alguns pedem a Deus por vida; e que eu es tava ensinando aos jovens dois tipos de Kadish que devem ser rezados por qualquer pessoa que lidera a reza.

Infelizmente, hoje em dia esta oração está profunda mente ligada ao luto. No entanto, este é um desenvolvi mento posterior de uma reza criada originalmente para ser usada após o término de uma prédica ou de uma sessão de estudos na antiguidade.

De acordo com o Talmud1, após a interpretação de um rabino sobre um trecho da Torá, realizada normalmente em aramaico, ele concluía suas explanações com uma ora ção de louvor neste idioma, iniciando com palavras seme

lhantes às do profeta Ezequiel2 sobre proclamar a grandeza e a santidade divinas. Vivendo sob domínio estrangei ro, incluía-se também um pedido para o estabelecimento do reino de Deus na terra. Ao ouvir o mestre proclaman do a santidade e a grandeza do nome divino, a comunida de respondia com uma variação em aramaico da respos ta tradicional em hebraico usada no Templo: “Possa o seu grande nome ser louvado por todo sempre”. Terminava -se, assim, a sessão de estudos.

O atual Kadish De Raban (dos rabinos), que possui um parágrafo especial de pedidos de bênçãos para todos os envolvidos no estudo da Torá, é um desenvolvimento posterior desta antiga prática. Apesar de ser o tipo de Ka dish que mais reflete as origens desta oração, este é o me nos conhecido e usado.

O Kadish é mencionado como parte integral das ora ções diárias pela primeira vez no tratado Soferim (escri bas).3 No período gueônico4 o Kadish já tinha se tornado uma oração obrigatória e tão sagrada que deveria ser reza da apenas na presença de um minian. Atualmente existem duas principais versões do texto: a Ashkenazi e a Sefaradi. No entanto, na Idade Média havia maior diversidade de textos para esta mesma oração.

No período gueônico decidiu-se terminar o serviço religioso com uma forma longa de Kadish (o completo). Este é geralmente rezado após a principal oração, a Amidá. Ele possui três parágrafos adicionais: um pedido para a aceitação de nossas orações, um pedido de paz e vida e a famosa conclusão com “Osse Shalom”, que afirma Deus como aquele que estabelece a paz nas alturas celes tiais5 e que no futuro estabelecerá a paz na Terra. Esta é a

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significado e história das rezas

sua única frase em hebraico. Outra forma curta (o meio Kadish) foi inserida no serviço religioso para separar suas diversas unidades.

Um texto do século 13 nos conta sobre uma lenda que R. Akiva aliviou o sofrimento da alma de um falecido ao ensinar seu filho a rezar o Kadish durante os serviços re ligiosos diários. Como ocorreram terríveis perseguições e mortes nas comunidades ashkenazitas nos séculos 12 e 13, tornou-se costume que os filhos rezassem Kadish Iatom (dos órfãos) após a morte de seus pais. Na literatura caba lista do século 13 em diante desenvolveu-se a crença de sofrimento da alma por no máximo doze meses após o faleci mento.6 Esta crença gerou o costume de rezar-se por 11 me ses por todos os falecidos, já que rezar por 12 meses poderia ser interpretado como uma demonstração pública de que aquele indivíduo era tão mau que merecia a pena máxima.

Existe ainda uma forma especial desta oração usada pe los mais tradicionais na hora do enterro: Kadish de Itcha data. Esta versão modifica o primeiro parágrafo para ex pressar a fé na futura ressurreição dos mortos.

O Kadish tornou-se, desta forma, uma expressão de fé na justiça divina e em um futuro melhor, quando o enlu tado está abalado pela sua perda e tende a não ver ordem nem justiça no mundo.

O Kadish possui características das orações do período talmúdico e gueônico. Já que o aramaico era a lín gua mais usada e conhecida, ele não foi traduzido para o hebraico. Ao invés dos nomes bíblicos para Deus, usam -se expressões como “seu grande nome” ou “Pai nosso que está no céu”.

Essa última expressão nos lembra de algumas seme lhanças entre o Kadish e a famosa oração de Jesus. Ambas começam com a santificação do nome de Deus e com o de sejo que a Sua vontade seja realizada na Terra. Suas senten ças posteriores abordam assuntos diferentes, porém, não existe nada no “Pai-nosso” que ofenda as crenças básicas judaicas. O “Pai-nosso” é mais uma prova das origens ju daicas do cristianismo e é a oração cristã mais semelhan te às judaicas.

Antigamente, após adquirir novos conhecimentos reli giosos, o judeu sentia-se inspirado e reagia rezando o Ka dish. Assim como se louvava e se agradecia a Deus pelo alimento físico, criou-se uma maneira de louvar a Deus após receber o alimento intelectual. Reza-se para que os novos conhecimentos adquiridos possam santificar Deus, Kidush HaShem, e contribuir para a chegada de seu reino através de nossa conduta exemplar em vida. Com o passar do tempo percebeu-se que demonstrar a fé em Deus e em um futuro melhor após a perda de um ente querido tam bém é uma forma de Kidush HaShem.

Notas

1. Sota 49.

2. Ez. 38:23.

3. Um dos pequenos tratados anexados ao Talmud, porém de redação posterior (Is rael do século VIII).

4. Babilônia séculos VI ao X.

5. Conforme Jó 25:2.

6. A crença aparece no Talmud (Eduiot 2:10 e R.H. 17a), porém é só na literatura cabalista que ela se tornará comum entre todos os judeus.

Leonardo Alanati é rabino ordenado pelo Hebrew Union College (EUA e Israel) e serve à Congregação Israelita Mineira – CIM.

Lance Bellers
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este ano, em jerusalém p

Hámuitos anos, numa atividade de um dos grupos comunitários, levantei uma questão como pura provocação intelectual. Como a revolta dos macabeus tinha sido não só contra a dominação dos invasores helênicos e sua repressão aos costumes religiosos judaicos, inclusive com a cons purcação do Templo, mas também contra a propagação do helenismo dentro da popu lação judaica, fiz a pergunta: os macabeus teriam lutado por nós ou contra nós? Por que, argumentei, para todos os efeitos so mos ‘helenistas’ contemporâneos, em nos so hedonismo, em nossa permeabilidade a culturas universais, em nosso comporta mento conciliatório com padrões não pre vistos nas mitsvot, para dizer o mínimo. E perguntei, então, se a comemoração de Chanuká pela maioria de nós não seria de certa forma uma hipocrisia, pois na qualida de de helenistas não seríamos os redimidos pelos macabeus, mas os vencidos por eles.

Embora ainda hoje me dê o que pen sar, era pura provocação diletante. O que já não posso dizer da questão que levan to agora, que não é um exercício de dile tantismo, mas uma dúvida real, que em mi nha opinião exige reflexão, e uma resposta adequada, não só no plano conceitual e te órico, mas na condução de nosso modelo contemporâneo de inserção e de comporta mento no judaísmo e em sua relação com o mundo e com a história.

Durante séculos, e dezenas de gera ções, os judeus dispersos pelo mundo sen tiram, e cultivaram, a ideia de que estavam no exílio, numa diáspora compulsória, mas temporária, que chegaria ao fim com o Re torno à Terra Prometida. A tensão do retor no, mística, messiânica, escatológica, ali mentada pela fé no destino de netsach Is rael, manteve o povo judeu como um povo só, centralizado em Sion, sempre se prepa rando para a volta a Sion. Uma fé explícita e enunciada em textos que se repetem em for ma de oração várias vezes por dia, ao final do seder de Pessach, e em todas as simbo logias da religião e da cultura judaicas. Por dois mil anos um povo sem terra manteve

sua unidade pela expectativa e pelo proje to de voltar a ter a terra ligada à sua origem como a terra de seu destino e território de sua identidade.

Há mais de cem anos os caminhos de volta a essa terra se abriram não só por meio de orações e esperanças, mas por ações que hoje é moda chamar de ‘afirmati vas’. O movimento sionista moderno, apoia do no direito de autodeterminação dos po vos e na busca de uma solução para o an tissemitismo que não cedera à Emancipa ção, deu ao sonho messiânico o status de direito, ético e jurídico, não menor que o de qualquer outro povo. Há sessenta e quatro anos a Terra Prometida se transformou, por essas ações, num Estado não só capaz de receber o povo disperso, mas também vol tado conceitual e juridicamente para isso. O retorno a Sion deixou de ser místico, deixou de ser messiânico, deixou de ser escatológi co, passou a ser uma possibilidade real, prá tica, ao alcance de todo judeu que o queira ou que disso necessite.

Mas hoje, ao contrário da definição de Herzl – um dos que abriram esse caminho contemporâneo da volta a Sion – de que ‘sionismo é o povo judeu em marcha’, as co munidades judaicas espalhadas pelo mun do não ‘estão em marcha’. A metade do povo judeu que hoje vive fora do Estado ju deu vive em sociedades teoricamente de mocráticas, de direito, não opressoras. Hoje convivem no mundo um povo judeu disper

so, e firmemente ancorado nessa dispersão, e um Estado judeu soberano, capaz de re cebê-lo e reuni-lo, como sonhado, orado, durante 2.000 anos. Se é assim, se pode mos realizar a aspiração milenar e não o fa zemos, se não estamos fazendo as malas, se não pensamos em fazê-las, devemos su primir alguns textos de nossas orações, dei xar de fechar o seder com Leshaná habaá beIerushalaim? Estaremos sendo hipócri tas, nossos textos teriam se tornado vazios e sem sentido? E para os judeus do Estado judeu, a vivência de cidadão de um Estado moderno já não é mais significativa em sua identidade do que o fato de terem ‘voltado a Sion’, de serem a vanguarda do povo intei ro? O sonho do retorno transformou-se tão somente na realidade do dia a dia?

Como criar um modelo, no conceito e na prática, que concilie o vetor milenar da his tória judaica – voltar a ser um povo só em Sion – com a realidade de nossos tempos, sem hipocrisia e sem artifícios retóricos? Como, com os pés na realidade contempo rânea, ter um sonho ainda a realizar? Como alimentá-lo? E isso é possível?

Eu tenho uma proposta, que se baseia numa conceituação contemporânea do sio nismo, que nos permite a todos sermos sio nistas sinceros, atuantes e proativos, den tro e fora de Israel. Essa conceituação se constrói em quatro axiomas: 1) continuamos a ser um povo só, e queremos continuar a ser, onde quer que estejamos; 2) o centro desse povo continua a ser, como já há três mil anos, Sion; 3) em Sion existe um Estado judaico livre e soberano, capaz de receber todo judeu que assim queira ou disso ne cessite; 4) para isso, as pontes entre esse Estado e o povo judeu devem estar sempre abertas e sempre iluminadas, e num trânsito intenso, e este processo não tem data para terminar. Se assim vislumbramos o concei to de nossa vivência judaica contemporâ nea, estaremos não na pós-história da visão sionista, mas numa nova etapa de sua con cretização. E sem hipocrisia poderemos até dizer Bashaná hazot beIerushalaim, ‘Este ano, em Jerusalém’.

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aulo Geiger cócegas no raciocínio

Há mais de um caminho para ser judeu

Associacão Religiosa do todo judeu

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Israelita
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