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Michel Gherman
dilemas e Questões da educação judaicosionista no rio de janeiro
Meu intresse neste artigo é fazer uma análise introdutória acerca da educação judaica na cidade do Rio de Janeiro, tomando como referência fundamental as escolas judaicas que existem nesta cidade. Esta presente reflexão teve como origem as pesquisas sobre educação judaico-sionista que venho realizando para obtenção de meu título de doutoramento em curso no Programa de História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Apesar de tal pesquisa ter como escopo os desenvolvimentos da educação sionista ocorridos entre os anos 1920 e 1960 na cidade do Rio de Janeiro, me parece um desafio interessante refletir também sobre a situação das escolas judaicas cariocas na contemporaneidade. Proponho que as referências ideológicas e pedagógicas das escolas judaicas no Rio estejam baseadas, de maneira geral, no que diz respeito à formação de identidade judaica de seus alunos em três pontos básicos: • Combate ao antissemitismo, a partir de uma perspectiva martiriológica da história judaica. • Relação acrítica com o Estado de Israel, na qual vínculos com Israel reproduzem dimensões mais imaginárias do que reais, vinculadas mormente a narrativa de grupos fundadores do sionismo. • Relação “essencial e primordial” entre identidade judaica e Holocausto, a partir do currículo de história judaica e de programas de viagem aos guetos e campos de concentração e campos de extermínio da Polônia.
Antes de pensar sobre a educação judaica carioca nos dias de hoje, acredito ser importante fazer uma pequena análise sobre o próprio papel da escola desde a realidade social na qual estão inseridas as instituições educacionais judaicas na cidade. Acredito que o locus da escola judaica deve ser entendido em perspectiva comparativa a outras escolas, que não as judaicas, na cidade. Assim, cabe aqui perguntar quais as demandas sociais e culturais não somente da educação na comunidade judaica, mas também qual o lugar da escola e da educação como um todo nas sociedades carioca e brasileira.
Ao lado de escolas com características similares e um público semelhante (escolas na zona sul da cidade, com público de classe média alta e majoriatariamente branco), as escolas judaicas despontam como uma alternativa para famílias que querem dar a seus filhos maior formação de judaísmo e uma identidade judaica fortalecida pela formação pedagógica e acadêmica do cotidiano escolar. A estrutura escolar aqui não pode ser entendida como produtora autônoma de conhecimento. Ao contrário, ela é estabelecida a partir de “outras” referências sociais e culturais.
As escolas apropriam diversos debates políticos, tais quais aqueles sobre identidades e formação de cidadania, menos produzindo em seus currículos e mais reproduzin-
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do tensões e disputas sociais, políticas e ideológicas ocorridas em outros campos de atuação social.1 Aqui, seguindo as propostas analíticas de Pierre Bordieu, escolas e educação não são um tema somente em si, mas a compreensão de questões sociais que aparecem em outras áreas de prática política e social e se reproduzem em dimensões curriculares e pedagógicas típicas da cultura escolar.
Assim sendo, o estudo e a análise da cultura escolar nos dá condições para avaliarmos outros lugares de atuação e de produção de políticas. Portanto, o estudo de currículos e práticas escolares das escolas jucaicas no Rio aponta para uma compreensão social mais ampla da comunidade judaica como um todo, de suas relações com outros agentes produtores de políticas e identidades, sejam elas judaicas, ou mais gerais.
Entre eles há, como apontamos no início, três pontos que nos interessam nesta atual reflexão: o “Estado de Israel” ou, para ser mais preciso, as apropriações acerca do Estado de Israel, produzidas pelas comunidades brasileiras e reproduzidas como prática educacional das escolas judaico-brasileiras, o pretenso combate ao antissemitismo, elemento constante em uma narrativa judaico-sionista clássica, e a centralidade do estudo e da vivência do Holocausto que serviria como possibilidade de fortalecimento identitário e compreensão definitiva da experiência histórica judaica.2
Além dos pontos acima há um elemento que perpassa os pontos propostos: a preocupação comunitária com a chamada “assimilação”, ou seja, a perda iminente de quadros para uma sociedade maior, não judaica.
O pós-guerra e as novas diretrizes da educação judaica
Para avançar no debate acerca dos currículos judaicos contemporâneos é interessante fazer uma pequena análise da origem histórica desta realidade curricular. A educação judaica encontrada hoje em escolas judaicas cariocas se desenvolve a partir dos anos 1940 e ganha cores de hegemonia política nas décadas seguintes que estão ligadas à chamada “educação judaico-sionista”, que hoje delimita as estratégias educacionais de judaísmo presentes nas três grandes escolas judaicas na cidade.
Podemos apontar a descoberta dos resultados humanos do Holocausto e a construção do Estado de Israel como sinais fundamentais para a consolidação deste discurso sionista clássico, antidiaspórico e martiriológico nas escolas judaicas de linha sionista no Rio de Janeiro.
O alinhamento da comunidade judaica no Brasil com um “sionismo clássico” significava, fundamentalmente, a disseminação de uma representação política do Estado de Israel baseada nos “mitos de fundação”3 estabelecidos pelas correntes que hegemonizavam as estruturas colonizadoras e representativas do chamado Sionismo Político. Na narrativa desses grupos havia a ideia de que o Estado de Israel expressaria possibilidades de sobrevivência do povo judeu, perspectiva que se agudiza após o Holocausto.
Desta forma, enquanto o Holocausto aponta para o esgotamento da Diáspora, para o sionismo hegemônico, ele também afirma o Estado de Israel como única resposta legítima para o mundo judeu pós 1945. Se a memória de comunidades judaicas era de martírio e perseguições, ou seja, uma história de exílio e sofrimentos, ela deveria ser apagada e superada com o advento do Estado de Israel. Assim, a “sionistificação” do judaísmo diaspórico está construída por sobre a aniquilação quase completa do judaísmo europeu.
Espelhando os processos de consolidação da hegemonia sionista nas entidades judaicas, as escolas judaicas do Rio de Janeiro também adotam currículos judaicos de caráter sionista clássico, dotados assim de perspectivas martiriológicas e antiassimilacionistas. Esta prática educacional chama a atenção em uma situação nacional onde o antissemitismo não é de fato uma experiência cotidiana para grande parte dos membros da comunidade judaica e onde
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dimensões “angustiantes e de temor pelo futuro”, típicas da tradição judaica pós-Holocausto, contradizem tendências de “voluntarismo otimista” e confiança no futuro típicos da sociedade brasileira.4
A partir do momento em que a memória do Holocausto se estabelece e ganha espaços no mundo judaico, ela se estabelece como referência definitiva na cultura escolar brasileira. Mais do que perseguições e preconceito, somos vítimas de uma ameaça constante, o Holocausto. Nada menos relevante em uma realidade judaico-brasileira onde o otimismo com relação ao futuro contradiz tais perspectivas acima colocadas.
A educação judaica na contemporaneidade: educando para Auschwitz?
A partir da segunda metade dos anos 1950 a memória do Holocausto é uma das mais fortes referências da memória nacional em Israel. Assim, superar a Diáspora significava superar Auschwitz, porém sem descartá-lo politicamente. Ele seria, ao contrário, mantido como parte de uma espécie de reserva política israelense. Como exemplo claro desta utilização podemos citar a comparação feita pelo ministro das Relações Exteriores de Israel, Aban Eban, de que o retorno às fronteiras de antes de 1967, antes da Guerra dos Seis Dias, significariam “o retorno às fronteiras de Auschwitz”.
O Holocausto remarca as fronteiras políticas em Israel sendo uma referência para decisões políticas cotidianas e fazendo de Auschwitz um ator político relevante no cenário decisório israelense. Se a história da Diáspora deveria ser apagada, ou pelo menos diminuída na narrativa finalista e teleológica do sionismo clássico, Auschwitz não.
As escolas judaicas cariocas gradativamente incorporam tais propostas políticas educacionais. Em realidade, o idioma de Israel (o hebraico), a literatura judaica e israelense (em grande medida críticas e reflexivas) eram menos relevantes na perspectiva educacional judaico-sionista do que a díade luta contra a assimilação e o antissemitismo. A formação pedagógica em tais escolas não fortalecia referências identitárias positivas (idioma para se comunicar e como referência de uma produção cultural contemporânea e não somente entendido como cultura litúrgica), música judaica contemporânea e outras dimensões culturais, mas tinha vínculos fortes com a cultura do medo e da possibilidade do desaparecimento, fosse físico ou cultural. Nada mais contraditório com relação ao que acontecia fora dos muros da escola.
Em conjunto a uma realidade curricular que se consolida efetivamente no Brasil a partir dos anos 1980, e que apreende a educação judaica a partir da memória do Holocausto, vê o antissemitismo como referência constante na história judaica e percebe Israel a partir de lógicas acríticas e de apoio automático; há um afastamento entre o que se produz em termos educacionais brasileiros e a própria realidade israelense, de fato, muito mais crítica e reflexiva.
Com relação, por exemplo, ao estudo da Shoá, há um relevante debate sobre a utilização da memória do Holocausto em Israel que ocorre paralelamente à popularização no Brasil de programas como a “Marcha da Vida”, de viagens à Polônia, a seus campos de extermínio e de concentração. Tal debate está centrado no sentido pedagógico e identitário de uma viagem que pode, segundo alguns autores, consolidar uma identidade judaica baseada na experiência do Holocausto e uma prática política calcada em expressões ultranacionalistas e xenófobas.
Como exemplo dessa postura crítica em relação a tais viagens podemos citar o livro de Avraham Burg, que carrega o sugestivo título O Holocausto Acabou, Nós Devemos Nos Levantar de Suas Cinzas. 5 Nesta obra, Burg não tem dúvidas em se opor às viagens ao estilo ‘Marcha da Vida’ ao chamá-las de “Viagens de Auschwitz” (Auschwitz Trips). Denominando tais viagens com o nome do maior campo de extermínio da história, Burg deixa claro o motivo de sua oposição; segundo ele, a tendência é de “culto a Auschwitz e ao Holocausto” em tais viagens, além de notar uma “preocupante tendência no fortalecimento da memória do Holocausto como formador de identidade judaica nos últimos anos”. Segundo Burg, tais viagens demandam que os jovens estudantes do ensino médio israelense retornem das viagens à Polônia sendo “novos israelenses”, o que coloca o regime de Hitler, segundo Burg, como um “parceiro na formação da identidade judaica de jovens do mundo inteiro”.
Enquanto isso, as escolas judaicas no Rio de Janeiro permanecem, em grande medida, fortalecendo as perspectivas de identidade judaica construída a partir do Holocausto e gradativamente incorporam, já no século 21, projetos de viagens a Auschwitz e a Israel como forma central de educação judaica e reprodução identitária.
Tais viagens encerram em sua prática educacional potencial vínculo entre identidade judaica e antissemitismo, relacionam a experiência do Holocausto como referência fundante da identidade judaica contemporânea, além de promover a ideia de um Estado de Israel redentor e salvador, onde há a função de abrigo contra todos os males da história, promoção essa que vai obstruir quaisquer possibilidades de análises de uma realidade complexa de uma sociedade em profundas transformações.
As escolas judaicas e as mudanças na educação sionista

As escolas judaicas devem passar por uma transformação curricular se quiserem continuar sendo relevantes nas próximas décadas. Ao contrário do que se pode imaginar, não considero que o tripé proposto acima como referência de educação judaico-sionista do século 20, constituído por antissemitismo, memória do Holocausto e relação com Israel, deva ser superado nos próximos tempos. Ao contrário, acredito que ele deva ser atualizado para voltar a ser relevante e ajudar a produzir novas identidades judaicas nas escolas de linha sionista.
Se a relação com o antissemitismo deva ser superada como referência única de história judaica, acredito que se deva utilizar a experiência histórica judaica para se relativizar todas as formas de discriminação e preconceito existentes hoje na realidade brasileira. Em relação ao Holocausto, acredito justamente que se deva fortalecer o ensino desta matéria, invertendo, porém, os sinais. Ao vincularmos a história da Shoá ao seu legado e não somente à sua memória, poderemos passar para o aluno uma nova percepção da Shoá mais universalista e conectada com a história do século 20, que contenha lições a ser aprendidas por todos no século 21, não tendo relação somente como construtor de identidade judaica.
Finalmente proponho que haja um vínculo ainda mais forte com Israel e com a sociedade israelense, não com suas perspectivas mitificadas, acríticas e imaginárias, mas com a realidade atual de uma sociedade em constante modificação, crivada de crises e dilemas, mas possuidora de uma dinâmica social rica e interessante como poucas no mundo. É importante, neste sentido, que o idioma e a cultura hebraicos sejam valorizados e estudados e não sacralizados e cultuados.
Acredito que a partir das mudanças propostas acima poderemos construir uma educação judaica ao mesmo tempo universalista e local, comprometida com o futuro e vinculada ao passado, profundamente atualizada em relação à cultura israelense e radicalmente comprometida com a sociedade brasileira.
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Bibliografia
Burg, Avraham. The Holocaust is Over: We Must Rise from its Ashes. Palgrave MacMillan, 2008. Louro, L. Guacira. Gênero, Sexualidade e Educação: Uma Perspectiva
Pós-Estruturalista. Petrópolis. Rio de Janeiro: 2ª ed. Vozes, 1998. Sorj, Bernardo. Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica: As Origens de uma Cultura não Antissemita. In: http://www.bernardosorj.com/ pdf/sociabilidadebrasileiraeidentidadejudaica. Sternhell, Zeev. The Founding Myths of Israel. Princeton. Princeton University Press. 1999.
Notas
1. Ver: Louro, L. Guacira. Gênero, Sexualidade e Educação: Uma Perspectiva Pós-Estruturalista. Petrópolis. Rio de Janeiro: 2ª ed. Vozes, 1998, pp. 52-57. 2. Ver site Marcha da Vida Brasil, hospedado em: http://fundocomunitario.org.br/ express/index.php/site/marcha_vida_objetivo/. 3. Sternhell, Zeev. The Founding Myths of Israel, Princeton. Princeton University Press, 1999, p. 22. 4. Ver: Sorj, Bernardo. Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica: As Origens de uma
Cultura não Antissemita. In: http://www.bernardosorj.com/pdf/sociabilidadebrasileiraeidentidadejudaica.pdf 5. A tradução é minha, o título em inglês é: Burg, Avraham. ‘The Holocaust is Over:
We Must Rise from its Ashes’, Palgrave MacMillan, 2008.
Michel Gherman é co-coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ, diretor acadêmico do Hillel, Rio de Janeiro e coordenador de Cultura Judaica do Colégio Eliezer-Max.
