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Rabino Leonardo Alanati

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Em Poucas Palavras

Em Poucas Palavras

o kadish

Ainda estudante de rabinato, comecei a lecionar para jovens de bar e bat-mitsva em sinagogas reformistas e conservadoras nos EUA. Lá desenvolvi a metodologia de aproveitar o tempo de preparo destes alunos para ensinar o máximo de judaísmo. No que se referia à questão litúrgica, decidi que ensinaria o máximo de orações e o mínimo de leitura da Torá. Queria que meus alunos soubessem bem as orações, inclusive o Kadish, que ouviriam nas sinagogas em qualquer dia do ano, ao invés de aprender um trecho de uma Parashá que só é lida uma vez ao ano.

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Quando comecei a atuar como rabino e a implementar esta metodologia no Brasil, de repente me deparei com pais e meninos muito assustados. Descobri o problema: como eu podia ensinar uma reza dos mortos para os garotos! Ensinar o Kadish para os jovens poderia atrair a morte para suas famílias!

Durante meus primeiros anos como rabino precisei esclarecer que nenhum tipo de Kadish menciona mortos, pelo contrário, alguns pedem a Deus por vida; e que eu estava ensinando aos jovens dois tipos de Kadish que devem ser rezados por qualquer pessoa que lidera a reza.

Infelizmente, hoje em dia esta oração está profundamente ligada ao luto. No entanto, este é um desenvolvimento posterior de uma reza criada originalmente para ser usada após o término de uma prédica ou de uma sessão de estudos na antiguidade.

De acordo com o Talmud1, após a interpretação de um rabino sobre um trecho da Torá, realizada normalmente em aramaico, ele concluía suas explanações com uma oração de louvor neste idioma, iniciando com palavras semelhantes às do profeta Ezequiel2 sobre proclamar a grandeza e a santidade divinas. Vivendo sob domínio estrangeiro, incluía-se também um pedido para o estabelecimento do reino de Deus na terra. Ao ouvir o mestre proclamando a santidade e a grandeza do nome divino, a comunidade respondia com uma variação em aramaico da resposta tradicional em hebraico usada no Templo: “Possa o seu grande nome ser louvado por todo sempre”. Terminava-se, assim, a sessão de estudos.

O atual Kadish De Raban (dos rabinos), que possui um parágrafo especial de pedidos de bênçãos para todos os envolvidos no estudo da Torá, é um desenvolvimento posterior desta antiga prática. Apesar de ser o tipo de Kadish que mais reflete as origens desta oração, este é o menos conhecido e usado.

O Kadish é mencionado como parte integral das orações diárias pela primeira vez no tratado Soferim (escribas).3 No período gueônico4 o Kadish já tinha se tornado uma oração obrigatória e tão sagrada que deveria ser rezada apenas na presença de um minian. Atualmente existem duas principais versões do texto: a Ashkenazi e a Sefaradi. No entanto, na Idade Média havia maior diversidade de textos para esta mesma oração.

No período gueônico decidiu-se terminar o serviço religioso com uma forma longa de Kadish (o completo). Este é geralmente rezado após a principal oração, a Amidá. Ele possui três parágrafos adicionais: um pedido para a aceitação de nossas orações, um pedido de paz e vida e a famosa conclusão com “Osse Shalom”, que afirma Deus como aquele que estabelece a paz nas alturas celestiais5 e que no futuro estabelecerá a paz na Terra. Esta é a

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sua única frase em hebraico. Outra forma curta (o meio Kadish) foi inserida no serviço religioso para separar suas diversas unidades.

Um texto do século 13 nos conta sobre uma lenda que R. Akiva aliviou o sofrimento da alma de um falecido ao ensinar seu filho a rezar o Kadish durante os serviços religiosos diários. Como ocorreram terríveis perseguições e mortes nas comunidades ashkenazitas nos séculos 12 e 13, tornou-se costume que os filhos rezassem Kadish Iatom (dos órfãos) após a morte de seus pais. Na literatura cabalista do século 13 em diante desenvolveu-se a crença de sofrimento da alma por no máximo doze meses após o falecimento.6 Esta crença gerou o costume de rezar-se por 11 meses por todos os falecidos, já que rezar por 12 meses poderia ser interpretado como uma demonstração pública de que aquele indivíduo era tão mau que merecia a pena máxima.

Existe ainda uma forma especial desta oração usada pelos mais tradicionais na hora do enterro: Kadish de Itchadata. Esta versão modifica o primeiro parágrafo para expressar a fé na futura ressurreição dos mortos.

O Kadish tornou-se, desta forma, uma expressão de fé na justiça divina e em um futuro melhor, quando o enlutado está abalado pela sua perda e tende a não ver ordem nem justiça no mundo.

O Kadish possui características das orações do período talmúdico e gueônico. Já que o aramaico era a língua mais usada e conhecida, ele não foi traduzido para o hebraico. Ao invés dos nomes bíblicos para Deus, usam-se expressões como “seu grande nome” ou “Pai nosso que está no céu”.

Essa última expressão nos lembra de algumas semelhanças entre o Kadish e a famosa oração de Jesus. Ambas começam com a santificação do nome de Deus e com o desejo que a Sua vontade seja realizada na Terra. Suas sentenças posteriores abordam assuntos diferentes, porém, não existe nada no “Pai-nosso” que ofenda as crenças básicas judaicas. O “Pai-nosso” é mais uma prova das origens judaicas do cristianismo e é a oração cristã mais semelhante às judaicas.

Antigamente, após adquirir novos conhecimentos religiosos, o judeu sentia-se inspirado e reagia rezando o Kadish. Assim como se louvava e se agradecia a Deus pelo alimento físico, criou-se uma maneira de louvar a Deus após receber o alimento intelectual. Reza-se para que os novos conhecimentos adquiridos possam santificar Deus, Kidush HaShem, e contribuir para a chegada de seu reino através de nossa conduta exemplar em vida. Com o passar do tempo percebeu-se que demonstrar a fé em Deus e em um futuro melhor após a perda de um ente querido também é uma forma de Kidush HaShem.

Notas

1. Sota 49. 2. Ez. 38:23. 3. Um dos pequenos tratados anexados ao Talmud, porém de redação posterior (Israel do século VIII). 4. Babilônia séculos VI ao X. 5. Conforme Jó 25:2. 6. A crença aparece no Talmud (Eduiot 2:10 e R.H. 17a), porém é só na literatura cabalista que ela se tornará comum entre todos os judeus.

Leonardo Alanati é rabino ordenado pelo Hebrew Union College (EUA e Israel) e serve à Congregação Israelita Mineira – CIM.

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