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Paulo Geiger

este ano, em jerusalém paulo Geiger

Há muitos anos, numa atividade de um dos grupos comunitários, levantei uma questão como pura provocação intelectual. Como a revolta dos macabeus tinha sido não só contra a dominação dos invasores helênicos e sua repressão aos costumes religiosos judaicos, inclusive com a conspurcação do Templo, mas também contra a propagação do helenismo dentro da população judaica, fiz a pergunta: os macabeus teriam lutado por nós ou contra nós? Porque, argumentei, para todos os efeitos somos ‘helenistas’ contemporâneos, em nosso hedonismo, em nossa permeabilidade a culturas universais, em nosso comportamento conciliatório com padrões não previstos nas mitsvot, para dizer o mínimo. E perguntei, então, se a comemoração de Chanuká pela maioria de nós não seria de certa forma uma hipocrisia, pois na qualidade de helenistas não seríamos os redimidos pelos macabeus, mas os vencidos por eles.

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Embora ainda hoje me dê o que pensar, era pura provocação diletante. O que já não posso dizer da questão que levanto agora, que não é um exercício de diletantismo, mas uma dúvida real, que em minha opinião exige reflexão, e uma resposta adequada, não só no plano conceitual e teórico, mas na condução de nosso modelo contemporâneo de inserção e de comportamento no judaísmo e em sua relação com o mundo e com a história.

Durante séculos, e dezenas de gerações, os judeus dispersos pelo mundo sentiram, e cultivaram, a ideia de que estavam no exílio, numa diáspora compulsória, mas temporária, que chegaria ao fim com o Retorno à Terra Prometida. A tensão do retorno, mística, messiânica, escatológica, alimentada pela fé no destino de netsach Israel, manteve o povo judeu como um povo só, centralizado em Sion, sempre se preparando para a volta a Sion. Uma fé explícita e enunciada em textos que se repetem em forma de oração várias vezes por dia, ao final do seder de Pessach, e em todas as simbologias da religião e da cultura judaicas. Por dois mil anos um povo sem terra manteve sua unidade pela expectativa e pelo projeto de voltar a ter a terra ligada à sua origem como a terra de seu destino e território de sua identidade.

Há mais de cem anos os caminhos de volta a essa terra se abriram não só por meio de orações e esperanças, mas por ações que hoje é moda chamar de ‘afirmativas’. O movimento sionista moderno, apoiado no direito de autodeterminação dos povos e na busca de uma solução para o antissemitismo que não cedera à Emancipação, deu ao sonho messiânico o status de direito, ético e jurídico, não menor que o de qualquer outro povo. Há sessenta e quatro anos a Terra Prometida se transformou, por essas ações, num Estado não só capaz de receber o povo disperso, mas também voltado conceitual e juridicamente para isso. O retorno a Sion deixou de ser místico, deixou de ser messiânico, deixou de ser escatológico, passou a ser uma possibilidade real, prática, ao alcance de todo judeu que o queira ou que disso necessite.

Mas hoje, ao contrário da definição de Herzl – um dos que abriram esse caminho contemporâneo da volta a Sion – de que ‘sionismo é o povo judeu em marcha’, as comunidades judaicas espalhadas pelo mundo não ‘estão em marcha’. A metade do povo judeu que hoje vive fora do Estado judeu vive em sociedades teoricamente democráticas, de direito, não opressoras. Hoje convivem no mundo um povo judeu disperso, e firmemente ancorado nessa dispersão, e um Estado judeu soberano, capaz de recebê-lo e reuni-lo, como sonhado, orado, durante 2.000 anos. Se é assim, se podemos realizar a aspiração milenar e não o fazemos, se não estamos fazendo as malas, se não pensamos em fazê-las, devemos suprimir alguns textos de nossas orações, deixar de fechar o seder com Leshaná habaá beIerushalaim? Estaremos sendo hipócritas, nossos textos teriam se tornado vazios e sem sentido? E para os judeus do Estado judeu, a vivência de cidadão de um Estado moderno já não é mais significativa em sua identidade do que o fato de terem ‘voltado a Sion’, de serem a vanguarda do povo inteiro? O sonho do retorno transformou-se tão somente na realidade do dia a dia?

Como criar um modelo, no conceito e na prática, que concilie o vetor milenar da história judaica – voltar a ser um povo só em Sion – com a realidade de nossos tempos, sem hipocrisia e sem artifícios retóricos? Como, com os pés na realidade contemporânea, ter um sonho ainda a realizar? Como alimentá-lo? E isso é possível?

Eu tenho uma proposta, que se baseia numa conceituação contemporânea do sionismo, que nos permite a todos sermos sionistas sinceros, atuantes e proativos, dentro e fora de Israel. Essa conceituação se constrói em quatro axiomas: 1) continuamos a ser um povo só, e queremos continuar a ser, onde quer que estejamos; 2) o centro desse povo continua a ser, como já há três mil anos, Sion; 3) em Sion existe um Estado judaico livre e soberano, capaz de receber todo judeu que assim queira ou disso necessite; 4) para isso, as pontes entre esse Estado e o povo judeu devem estar sempre abertas e sempre iluminadas, e num trânsito intenso, e este processo não tem data para terminar. Se assim vislumbramos o conceito de nossa vivência judaica contemporânea, estaremos não na pós-história da visão sionista, mas numa nova etapa de sua concretização. E sem hipocrisia poderemos até dizer Bashaná hazot beIerushalaim, ‘Este ano, em Jerusalém’.

Tal Guterman / iStockphoto.com

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