
10 minute read
Rabino Sérgio R. Margulies
estes homens fizeram o judaísmo
rabino sérgio r. margulies
Advertisement
Uma geração que cria e renova evita que a herança das gerações passadas vire pó Berl Katznelson (1887-1944)
Amensagem judaica começa antes do surgimento do próprio judaísmo. Começa com a narrativa bíblica da criação do mundo, os episódios de Adam [Adão], Chava [Eva] e seus filhos. Prossegue com a geração de Noach [Noé], que é prévia ao primeiro judeu – ou mais precisamente hebreu –, Avraham [Abraão].
Destas narrativas aprendemos sobre o cuidado que devemos ter com o mundo a nós confiado, a origem similar – da qual denota o conceito de igualdade – de todo ser humano, os impulsos da conduta humana e a importância da ação responsável. Por que estas mensagens, sendo parte da Torá, não brotaram já dentro do próprio judaísmo e por que a história judaica não retroagiu sua origem a estas mensagens?
Porque assim o judaísmo afirma não ser o supremo detentor de toda sabedoria. Há ensinamentos válidos que podem ser extraídos de outras fontes, pessoas, credos e crenças. Porque, assim, o judaísmo pode ensinar seus valores com a humildade necessária de ser também capaz de aprender. Porque, assim, o judaísmo não autoriza o saber monolítico. O pacto estabelecido pelo povo judeu com Deus é um pacto particular inserido no contexto de outros pactos particulares igualmente pertencentes ao pacto maior de Deus com a humanidade. A diversidade da humanidade é substanciada. A criação divina não é um evento estanque, mas um processo contínuo. A renovação do compromisso – do pacto – assegura que os ideais da criação não sejam lembranças ou parábolas infantis, e sim impulso vital e atuação responsável real.
Ao ser o nascimento judaico posterior a algumas mensagens que adotou, o judaísmo centra-se no elemento humano como força transformadora. O judaísmo nasce através do ser humano, de sua capacidade – inicialmente de Avraham – de ouvir uma convocação para agir com responsabilidade. Se retroagisse seu nascimento à mensagem que não proferiu seria subserviente a esta mensagem.
O judaísmo incentiva a capacidade humana de atuar em liberdade e em respeito ao outro. Assim, o judaísmo nasce através do ser humano. São os homens e mulheres que fazem o judaísmo. Cada homem e mulher de cada geração recebe – num ciclo de transmissão da tradição – ensinamentos, incorporando-os, ampliando-os, reformulando-os para transmiti-los novamente com o sentido que cada época exige.
Deste modo nasce primeiro o povo. Depois este povo se consolida através da prática de uma fé. A primazia é do povo. O povo não é fanaticamente submisso à fé e pode lapidar a maneira de expressá-la. Tampouco o povo é dono da fé. Não pode submetê-la aos seus interesses, descaracterizando-a de sua essência. Fé não é posse. É vínculo manifestado entre os elementos constituintes do povo. A fé não existe sem o povo. O povo, por sua vez, encontra substância na fé. Assim, com interação, funcionam os pactos.
O judaísmo dos judeus
Quem fez o judaísmo? O ser humano que aprende uma mensagem e decide colocá-la em prática. Judaísmo é vontade de aprender e é decisão em praticar. E quem continua fazendo o judaísmo? O ser humano que se dispõe, se necessário for, a transformar a mensagem para que ela tenha impacto na vida e seja transmitida com relevância, não somente com elementos simbólicos alheios à realidade.
O judaísmo começa com seres humanos – Avraham e Sara – e prossegue através de sucessivos seres humanos por contínuas gerações. Chega à nossa geração. Os seres humanos de nossa geração também fazem o judaísmo. Não sim-
O judaísmo incentiva a plesmente mantêm; fazem. Mamutes são capacidade humana de atuar em liberdade e mantidos em museus. Fósseis no subsolo. Sarcófagos nas pirâmides. Nenhum destes respira, ainda que sejam mantidos. O em respeito ao outro. judaísmo respira. Não é mantido. É feito.
Assim, o judaísmo Vivenciado. Respira. Inspira o ar que renasce através do ser cebe – a tradição que lhe vem – e expira humano. Cada homem e um novo ar – a tradição que irá. Moshé [Moisés] não manteve o judamulher de cada geração ísmo de Avraham, o fez, acrescentando a recebe – num ciclo de mensagem que o próprio Avraham não transmissão da tradição tinha, a Torá. Profetas como Ieshaihau – ensinamentos, [Isaías], Irmiahu [Jeremias], entre outros, incorporando-os, não mantiveram o judaísmo de Moshé, o fizeram. ampliando-os, Indaga a literatura rabínica: “Por que reformulando-os para Deus criou o trigo e o barro?”, sugerindo transmiti-los novamente a seguinte resposta: “Para que os seres hucom o sentido que cada época exige. manos os transformassem em pão e tijolos”. De modo similar é possível perguntar: Por que o pacto que Deus estabeleceu com a humanidade não veio pronto? Para que – igualmente é possível sugerir – cada povo pudesse construir seu pacto constituindo vínculos. E por que o pacto do povo judeu é um contínuo processo de renovação? Para que seja constituída uma parceria permanente. A parceria reverencia Deus. A parceria é, de acordo com a literatura rabínica, um dos propósitos do processo da criação divina ao criar o ser humano. Parceria requer engajamento. O judaísmo enseja um ser engajado. Através do ato de engajar-se e da atitude de transformação o judaísmo é feito. O pacto é renovado. Não é um novo pacto, não há ruptura. Há criação a partir do ontem para o hoje e deste para o novo hoje que o amanhã será, tal como há criação do trigo para o pão, do barro para o tijolo. A criação divina não é um evento estanque, mas um processo contínuo. A renovação do compromisso – do pacto – assegura que os ideais da criação não sejam lembranças ou parábolas infantis, e sim impulso vital e atuação responsável real. O judaísmo não é mantido. Se mantido fosse, seria estático, estaria congelado, permaneceria estratificado. Ao ser feito, seres humanos irrigam o judaísmo com dinamismo. Homens e mulheres fazem o judaísmo ser sempre atual e presente, não caduco e passado. Tal como rabi Iehudá
[Judá] – o editor do código de leis Mishná no século 2 – não manteve o judaísmo de Moshé e dos profetas, ainda que por eles inspirados, os rabinos como Ashi da Guemará (discussões rabínicas compiladas no século 5) fizeram seu judaísmo à luz de suas questões. Questões renovadoras sem rompimento, por isso Mishná e Guemará juntas formam o Talmud; por outro lado, sem estas questões da Guemará, a Mishná perderia sua relevância.
De Avraham a Moshé, de Irmiahu a Iehudá e deste a Ashi, todos fizeram o judaísmo prosseguir. O que não caminha, sucumbe; sendo sempre feito, o judaísmo tem sua vitalidade assegurada. O paradigma segue com
O judaísmo nos convoca os intérpretes do Talmud e seus comenpara a vida. A Torá é denominada de Torá da taristas, como Rashi (século 12), evitando que o Talmud se tornasse peça literária descaracterizado de dimensão sagrada. vida. O sagrado está Para que a relevância do judaísmo seja em trazer a Torá para – esta sim – mantida, o judaísmo requer a vida e a vida para ser feito. Vivenciado e não simplesmena Torá, num diálogo te visitado, seja em museus, seja até mesmo em eventuais idas a sinagogas, como criativo que fortalece se fosse estranho à vida cotidiana. O juo pacto. daísmo nos convoca para a vida. A Torá é denominada de Torá da vida. O sagrado está em trazer a Torá para a vida e a vida para a Torá, num diálogo criativo que fortalece o pacto. Como o leitor/estudioso da Torá nunca é o mesmo, seja porque são pessoas

distintas, seja porque cada pessoa modifica-se ao longo do tempo, a Torá é sempre feita. De seu texto vem o trigo e o barro. De nós o pão e o tijolo. O ato de transformação é o que dá sentido, alimenta e abriga. No caso, alimenta e abriga o espírito e a mente judaica.
De Avraham, o patriarca há quatro mil anos, a Avraham Heschel, no século 20, intitulado o profeta contemporâneo, uma sucessão de gerações de homens e mulheres fizeram e fazem o judaísmo o ensinando. Quem ensina requer um aluno. O discípulo viabiliza o mestre. Sem o aprendiz não há professor. Sem quem receba a mensagem não há mensageiro. Assim, os que fizeram o judaísmo e continuam a fazê-lo são todos os que se dispuseram e se dispõem a aprender, refletir, compreender e entender uma mensagem. São nomes não registrados nos anais, nos tratados dos estudos judaicos, porém são estes que, em sua ânsia pelo estudo, em sua vontade de adquirir conhecimento, em seu afã de praticar uma mensagem e vivenciar um legado, que dão vida ao judaísmo. São estes – de certo modo todos os judeus e judias – que fazem e fizeram o judaísmo. São estes – cada judeu e judia – que dão vida a Avraham, Moshé, Ieshaiahu, Iehudá, Ashi, Heschel, entre tantos outros.
Os judeus do judaísmo
Certa vez um rabino levantou em seu púlpito o questionamento que chocou a congregação: “E se ficar provado que Avraham, o patriarca, ou Moshé, não existiram? Se de fato as descobertas arqueológicas trouxerem irrefutáveis provas de que não existiram?” O rabino sugeriu: “Mesmo diante desta hipótese continuaria acreditando que existiram”. Continuaria acreditando, explicou, não porque negaria a arqueologia, mas simplesmente porque eles existem dentro de mim e dentro de nossa comunidade como paradigmas para nossas vidas.
A provocação potencialmente herética do rabino se reveste de profunda sacralidade. O sagrado está na transcendência da mensagem judaica. O mensageiro, seja quem for, mesmo que da envergadura de um Moshé ou Maimônides, não é sagrado. São seres humanos. Sagrada é a mensagem que deixam. Sagrada torna-se a mensagem enquanto relevante para a vida de cada judeu e judia. Relevante permanece a mensagem enquanto renovada pela vida dos que fazem e vivenciam o judaísmo. A mensagem acompanha a fé. Molda a conduta.
A finalidade da vida espiritual no judaísmo não é descobrir a maneira como o desígnio divino se manifesta neste mundo. O judaísmo incentiva não o controle do incompreensível, mas a reverência ao Eterno, que revela uma misteriosa e majestática grandeza. A reverência implica em aperfeiçoar o ser. O espírito move-se nesta busca. A mensagem judaica acompanha este movimento. Caso contrário, se distanciaria do espírito de cada um. Teríamos, assim, um judaísmo distante, anacrônico, afastado do espírito dos judeus. Faltaria a sincronia entre o judaísmo e o ser judeu. Diante da falta de sincronia, não tardaria em não ser judeu. Mas a sincronia ocorre porque, através dos homens e mulheres que o fazem, o judaísmo se move em direção à inquietude dos espíritos que buscam se aperfeiçoar.
O judaísmo enseja aperfeiçoar a conduta humana. Por isso, já nasceu com a necessidade de assumir sua imperfeição e de aprender. Se se julgasse ser perfeito, o judaísmo estagnaria. O que estagna desintegra. Se se considerasse perfeito, a busca cessaria. Se se proclamasse perfeito, não admitiria seres humanos o fazendo, pois são os humanos inevitavelmente falíveis. Se fosse perfeito, o povo seria secundário diante de um ideal inalcançável que não lhes seria significante para moldar a jornada da vida. Buscar a perfeição implica, ainda que aparentemente de modo paradoxal, aceitar que a perfeição não acontecerá. Pouco importa que não venha a acontecer, importa a busca constante imbuída do espírito judaico de sermos fazedores do judaísmo.
Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union College (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
O título deste artigo vem do livro publicado pela Editora Documentário (co-edição com a B’nai B’rith) em 1974, Estes homens fizeram o judaísmo, vários autores, editado por Marcos Margulies z´l, pai do autor deste artigo. O artigo o homenageia pela passagem do 30º iartzeit (aniversário de falecimento). O fato de o livro e o artigo terem tratamentos distintos demonstra a relevância do primeiro ao ser fonte de inspiração de uma mensagem renovada.
