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Rabino Dario E. Bialer

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Paulo Geiger

Paulo Geiger

torá: a cultura dos pactos

Precisamos acreditar de alguma forma que a nossa felicidade – agora ou mais tarde – está garantida. A alma gêmea é uma ideia simplista, imatura no fundo, que parte do princípio que o amor é incondicional e para sempre. A inconsistência da teoria é proporcional ao desespero diante das incertezas e daí parte a necessidade de acreditar que Deus tem um plano perfeito para nós.

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rabino dario e. Bialer

Quando alguns anos atrás um público composto por pessoas em torno dos 20 anos de idade me pediu para dar uma aula sobre o conceito de “alma gêmea” no judaísmo, fiquei bastante intrigado. Aqueles jovens estavam formulando algo tão misterioso e inexplicável como o amor no formato de uma equação matemática. E todos sabem que os vínculos humanos são muito mais complexos do que isso.

Eu sei que muitos, quando falam de “alma gêmea”, a entendem como uma metáfora, mas, mesmo assim, não me parece ser a metáfora mais bem escolhida. Alma gêmea significa que existe alguém igual a mim. O conceito subjacente é que existe apenas uma única pessoa em todo o planeta destinada a corresponder o meu amor e que um vínculo pleno e verdadeiro só é possível com aquela pessoa, que foi escolhida por Deus.

E a questão fica ainda mais curiosa quando projetamos o conceito ao longo dos tempos. Como funcionou a teoria da alma gêmea nos últimos milênios, quando o mundo ainda não estava interconectado pela internet? Curiosamente essa alma gêmea nascia sempre na mesma cidade e, na maioria das vezes, também no mesmo bairro que o nosso.

Mas hoje em dia vemos casais de todas as nacionalidades, culturas e cores. Será que Deus, conhecedor de tudo – inclusive do que registra a nuvem virtual –, e influenciado pelo sucesso do Facebook e do Skype, mudou de estratégia e passou a dispersar as almas gêmeas por todo o mundo, mas sempre tomando o cuidado de fazê-las acessar as mesmas redes sociais?

A necessidade de manter viva a esperança de que existe alguém destinado a estar comigo por toda a vida, estabelecendo um vínculo eterno de amor – planejado cuidadosamente por Deus –, leva as pessoas a acreditar que há alguém idêntico a elas lá fora (como se a igualdade fosse uma virtude e o enriquecimento pelas diferenças fosse negativo), procurando-as. E também que existe uma única chance de ser completamente feliz com a única pessoa capaz de preencher a nossa vida por completo.

A inconsistência da teoria é proporcional ao desespero diante das incertezas e daí parte a necessidade de acreditar que Deus tem um plano perfeito para nós. Precisamos acreditar de alguma forma que a nossa felicidade – agora ou mais tarde – está garantida. A alma gêmea é uma ideia simplista, imatura no fundo, que parte do princípio que o amor é incondicional e para sempre.

Jura-se amor eterno com muita frequência. Mas é obvio que não existem garantias de que essa promessa será cumprida. Podemos nos comprometer a ser fiéis e manter diligentemente esse juramento, mas não podemos garantir que não vamos deixar de amar, pois os sentimentos não são delineáveis. Se fossem, seríamos seres formatados desde o nascimento, sem autodeterminação nem livre arbítrio.

Acreditar em relacionamentos predeterminados, sem responsabilidade nas decisões que tomamos, sem escolha individual, visto que tudo já está definido, é não acreditar no amor real. Em vez de jurar amor eterno, deveríamos, isto sim, nos comprometer a dotar nossos vínculos do máximo de amor possível.

Os vínculos do amor real são constituídos pela maturidade, eles não necessitam de juramentos. Nutrem-se da forma como as pessoas se escutam, se falam e se sustentam umas às outras. De como crescem juntos e individualmente e de como levam adiante seus propósitos comuns. São esses relacionamentos os que definitivamente dão eternidade ao amor.

Muitas vezes dizemos que o amor num determinado vínculo é tão poderoso que suporta qualquer tempestade. Esse é um sentimento bonito, mas ao mesmo tempo

A milá é a primeira uma afirmação muito perigosa, pois nos ação carregada de amor e de dor, com a leva de volta à ideia de alma gêmea e de que existe uma garantia de eternidade nas relações, o que não é verdade. Não existe qual o pai mostra a seu amor incondicional, nem nos casais nem filho os pactos que se em quaisquer outros vínculos, inclusive estabelecem ao longo os biológicos. da vida. E os filhos Vamos analisar o vínculo que se acredita mais forte: o que une pais e mães aos respondem ao ideal seus filhos e filhas (para simplificar vou bíblico conforme dois mencionar a seguir o gênero masculino: modelos: com honra, “pais” e “filhos”, mas estarei sempre me reconforme o livro do ferindo a qualquer um dos dois gêneros). Shemot/Êxodo, e com Uma pessoa tem um filho e só por isso já ganhou o amor dele para sempre? Não temor, conforme os importa o que acontece ao longo da vida ensinamentos do livro nesse relacionamento? O nascimento de do Vaikrá/Levítico. um ser é inexplicável e sem dúvida algo miraculoso. Mas a partir daí você tem que construir a relação, ela não acontece sozinha. Pois relações humanas não são naturais. Os sucessos que fazem parte do mundo social, diferentemente dos que fazem parte do mundo natural, guardam entre si relações de significância que os tornam relevantes para os grupos humanos. Não é o biológico e sim o social que vai marcar o rumo do relacionamento. Diz Vincent Marques, um grande teórico da sociologia existencialista, que, desde que nasce, o homem está exposto ao processo de socialização. Este processo está relacionado com a influência e com o conhecimento que o homem incorpora através da sociedade e que se assume como natural. Porém, o social não é natural: “Há que desnaturalizar o social”. E para fazê-lo é necessário problematizar o óbvio das ações e dos comportamentos das pessoas. Por exemplo: os irmãos têm que se gostar, mesmo quando um abusa do outro? O pai que não respeita o filho pode, mesmo assim, exigir respeito dele? Amor e respeito não são hereditários ou biológicos e sim ações humanas, construídas conscientemente, mesmo que a partir de uma centelha inexplicável de amor impossível de controlar ou dissimular, que desborda nosso corpo e nossas barreiras. Esse impulso vital mantém viva a esperança de alcançar a compreensão do mistério de nossa existência. Aferramo-nos a esses impulsos, faíscas de luz divina que nos inspiram a construir vidas em que o amor pos-

sa se manifestar e multiplicar, o que certamente não tem nada de natural. Natural é nascer, crescer e morrer. Mas, além disso, nós temos a capacidade de sentir e a necessidade de ser valorizados. Precisamos pensar, trabalhar, progredir e aumentar nossos conhecimentos. Nada disto é natural, são circunstâncias sociais nas quais somos educados.

A transcendência que um pai aspira a alcançar com seu filho se materializa na vontade de estabelecer um pacto e não num vínculo biológico. Trata-se de afinidade, de cultura, de valores e de permitir a manifestação do potencial divino verbalizando o amor, num vínculo íntimo a ser aprofundado em cada novo encontro.

Mas rabino, vocês devem estar me perguntando agora, o que nos fala o judaísmo a respeito disso tudo?

O pacto é feito de palavras. Brit Milá. Para inserir ao filho dentro de seu povo e de sua família, com a palavra como elemento primordial para criar cultura e iniciar a socialização desse filho. A milá é a primeira ação carregada de amor e de dor, com a qual o pai mostra a seu filho os pactos que se estabelecem ao longo da vida. E os filhos respondem ao ideal bíblico conforme dois modelos: com honra, conforme o livro do Shemot/Êxodo, e com temor, conforme os ensinamentos do livro do Vaikrá/Levítico. São dois modelos para estabelecer o primeiro vínculo que constituímos na vida, o relacionamento com os nossos pais.

Nos dez mandamentos (livro de Shemot/Êxodo) encontramos o preceito mais conhecido: “Honrarás a teu pai e a tua mãe”. Tão importante é respeitar aos pais que o judaísmo fez disso um dos pilares que sustentam toda a cultura ocidental. Muitos imaginam esse mandamento como uma voz invisível falando a uma criança pequena, que lembre sempre respeitar a papai e mamãe. Mas não é esta a forma como os rabinos entenderam o mandamento – ele não se refere a jovens, mas sim a pessoas de 40, 50 ou 60 anos, que devem se ocupar de prover sustento e companhia aos seus pais já idosos.

Desta perspectiva, a tradição judaica funda uma civilização fortalecendo a família e os vínculos que dela se originam, com valores elevados como a honra e o respeito. Filon de Alexandria, o principal pensador do primeiro século da era comum, destaca que honrar aos pais ocupa uma posição estratégica. É o quinto dos dez mandamentos, situado bem no centro, pois funciona como uma ponte entre Deus e os seres humanos. Nos primeiros preceitos, o homem aprende a se relacionar com Deus, nos últimos, com seus semelhantes, e no centro, a honra aos pais até evoluir ao nível mais transcendente do ideal bíblico, que é honrar e obedecer a Deus.

Da honra e da obediência deriva a autoridade

A autoridade é um atributo que permite marcar limites, fazer cumprir normas e transmitir propósitos. Para que isso aconteça se parte de uma interação assimétrica, que só é possível a partir do respeito. Quando se desvaloriza o respeito, some a autoridade e fica um perigoso vazio que muitas vezes é ocupado pelo autoritarismo.

Os termos autoridade e autoritarismo apenas parecem ser próximos. A autoridade é produto de um vínculo sustentado no reconhecimento do outro. Opostamente, autoritarismo é a sentença de morte da aceitação da diversidade e a imposição da força como argumento. A autorida-

Steven Allan / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 11

de e o autoritarismo são termos próximos apenas na sonoridade. Existem muitos pais que de fato confundem autoridade com autoritarismo. Esse desvio começa a se produzir quando nos esquecemos de que a honra surge a partir do amor existente nesses vínculos, e começa a se instalar a ideia que para honrar (aos pais ou a Deus) é necessário sentir temor.

Sutilmente, então, a honra dá lugar ao temor, configurando a segunda forma de vínculo entre pais e filhos. O livro de Vaikrá/Levítico expressa isto, quando, depois de anunciar o famoso “Santos sereis, pois santo sou Eu, vosso Deus”, prossegue definindo esse vínculo com o sagrado a partir da imposição do temor: “Cada um a sua mãe e a seu pai temerá...” (19:2).

A honra é um vínculo positivo que enriquece os relacionamentos. O temor é embasado em proibições impostas sob a ameaça de castigos. Ensinaram nossos rabinos: O que é temor (mora) e o que é honra (kavod)? Temor significa que ele [o filho] não deve nem se colocar em seu [do pai] lugar, nem se sentar em seu lugar, nem contradizer suas palavras, nem se colocar contra ele [em argumentações com terceiros]. Honra significa que ele deve dar-lhe comida e bebida, vesti-lo e agasalhá-lo, acompanhá-lo ao chegar e ao sair.

As duas são obrigações do filho, mas com motivações muito diferentes. Isso me lembra o que o judaísmo chama de “ol malchut shamaim” e “ol a mitzvot” (a submissão aos céus e a submissão às mitzvot). A primeira representa obedecer a Deus por temor e a segunda, cumprir as mitzvot (ou seja, obedecer a Deus) por amor.

Quando se faz as coisas por amor não se espera nada em troca. Não se espera uma recompensa futura, nem parabéns pelo bom comportamento. Atua-se de forma positiva conforme o amor que impulsiona essa ação. Isso é o que a tradição pós-bíblica chama de “lishmá”, conforme detalhado por Maimônides, que afirma ser o comportamento desejável de uma pessoa, achar sentido no que está fazendo pelo valor do próprio comportamento e não pela promessa de uma gratificação.

Os comportamentos por temor sempre encerram implicitamente um castigo no caso de não se obedecer à ordem. Assim fala um pai quando ameaça a seu filho se este não se comportar bem ou se não parar de chorar. Assim fala Deus reiteradas vezes na Torá quando adverte o que acontecerá de ruim se seus preceitos não forem obedecidos.

Quem interpreta o judaísmo dessa forma estabelece um vínculo utilitário. Se obedeço, Deus me enviará chuva abundante, que representa prosperidade e uma grande descendência. Se transgrido, receberei terríveis castigos.

O mesmo acontece dentro de casa. Existem famílias que constroem seu lar com os pilares do amor, e outras que só sabem se relacionar com a violência das ameaças e o temor. A Torá sabe dessa dualidade e em suas linhas contempla esses dois modelos. E ao escolher entre um e outro, ela não vacila, escolhe o amor.

Basta verificar no principal documento de fé do judaísmo, o Shemá Israel. “Amarás a Adonai, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças.” Não se promete nada em troca desse amor e não existe nenhuma punição aos que não o cumprem. É um imperativo que encontra sua validade na própria ação de amar.

Eu gosto desse conceito de amor desinteressado, embora acredite que o mandamento de amar a Deus, ou a

um filho, ou a um pai, ou a uma namorada ou a qualquer outra pessoa, é impossível enquanto ordem imperativa, pois o amor não pode ser imposto. O amor não se presenteia, se conquista. Talvez por isto a Torá não fale muito do amor. Fala de pactos e de obrigações. De amor fala muito pouco. Ou por acaso o nosso patriarca Itzhak amava? O texto diz que a um dos seus gêmeos ele amava. “E Isaac gostava de Esaú, porque comia de sua caça” (Bereshit/ Gênesis 25:28).

Ao outro não amava! E o amor que tinha era meramente utilitário. Amava a quem o alimentava. Assim sendo não é de se espantar que a Esaú, a quem supostamente amava, ele deixou sem nada. Vejam que dramático o diálogo, quando o filho descobre o engano do irmão e a imensa dificuldade de amar de seu pai:

E quando Isaac terminou de abençoar a Jacob e assim que Jacob saiu de diante de seu pai Isaac, Esaú, seu irmão, chegou de sua caçada. E ele fez também manjares e os trouxe ao seu pai, e disse a seu pai: Levanta-te, meu pai, e come da caça de teu filho, para que tua alma me abençoe. E Isaac, seu pai, disse-lhe: Quem és tu? – e disse: Eu sou teu filho, teu primogênito, Esaú. E Isaac estremeceu um grande tremor e disse: Quem é e onde está aquele que caçou uma caça e trouxe para mim, e comi de tudo antes que viesses, e o abençoei? Também será bendito!

Quando Esaú escutou essas palavras, soltou um grito muito grande e amargo, e disse a seu pai: Abençoa-me também a mim, meu pai! ... certamente reservaste também para mim uma benção! E Isaac respondeu e disse a Esaú: Eis que o pus por senhor sobre ti... E a ti, então, que darei meu filho? – e Esaú disse a seu pai: Porventura tens uma única bênção, meu pai? Abençoa-me também a mim, meu pai! – e Esaú levantou sua voz e chorou. (Bereshit/Gênesis 27:30-38).

Esse texto sintetiza a tragédia em que a vida se converte quando se carece de suficiente amor. A pessoa que foi educada no temor vai ter muita dificuldade em multiplicar seu amor. Ele pensa que como já deu a um já não tem mais o que oferecer ao outro, quando na lógica do amor, quan-

A autoridade e o to mais damos, mais recebemos e mais teautoritarismo são termos próximos apenas mos para continuar dando. Esse amor sem limites não está garantido quando nascemos, ele é construído na sonoridade. Existem pelas famílias saudáveis que vivenciam o muitos pais que de fato vínculo com generosidade e sensibilidaconfundem autoridade de. Quem não recebeu isso em casa, não com autoritarismo. Esse está condenado a repetir a história, mas terá uma marca indelével em sua alma, e desvio começa a se magoas que o acompanharão para semproduzir quando nos pre. Isso está presente em Gênesis, onde esquecemos de que a as angústias familiares se transmitem de honra surge a partir do pais a filhos. amor existente nesses A repetição anual da leitura do texto bíblico é uma transferência que provínculos, e começa a cura transformar. Não se está recordanse instalar a ideia que do, senão revivendo aqui e agora, posto para honrar (aos pais que aquilo que não se supera, se repete. ou a Deus) é necessário sentir temor. Assim Jacob repete com seus filhos o que ele sofreu. Ele também amou mais a um do que aos outros. E Yossef sofreu as consequências de uma família aonde o amor não fluía de forma saudável e harmoniosa, com pais que desejam desesperadamente ter uma descendência, mas quando os filhos chegam não sabem como se relacionar com eles. Não há ciência, não há religião, não há receita mágica que garantam o amor ou relacionamento bem sucedidos. A novidade que a cultura dos pactos da Torá traz para a humanidade é afirmar que nada é permanente. Que o sucesso dos relacionamentos depende da vontade íntima de cada um, independentemente do destino, das almas gêmeas. Em cada gesto de amor e em cada discussão estamos inclinando a balança para um lado ou para o outro. A liberdade do ser humano aprofunda a possibilidade de obedecer (seja por amor, seja por temor) ou de transgredir. Independentemente de qualquer prêmio ou de qualquer castigo que alguém possa nos proporcionar. Pois, definitivamente, não existe castigo pior do que viver a vida que outra pessoa imaginou para nós, sem consideração para com os nossos sonhos, sentimentos, esperanças e busca de realização. Assim como não existe prêmio maior do que a vida com vínculos cheios de amor, de alegria e de encanto. Rabino Dario E. Bialer serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

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