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Rabino Sérgio R. Margulies
elegendo a democracia
rabino sérgio r. margulies
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Osse shalom bimromav hu iasse shalom aleinu vê-al kol Israel vê-al kol ioshvei tevel. Aquele que estabelece a paz nas alturas celestiais que derrame a paz sobre nós, todo o povo de Israel e todo habitante da Terra.
Milenarmente o judaísmo expressa em suas orações a vontade de moldar a realidade deste mundo com os ideais simbólicos das alturas celestiais. A missão é diminuir a distância entre os ideais e a realidade a fim de que a paz simbolicamente sob a guarda divina também encontre no ser humano um guardião.
Caminha o povo judeu entre o ideal e a realidade, entre o anseio milenar e o entendimento do momento, entre a preservação da sacralidade e a compreensão do profano. Caminha com as pernas no chão reconhecendo as vicissitudes da realidade, mas com as mãos para o céu no intento de abraçar os ideais. Caminha em peregrinação não porque se desloca de um lugar para outro, mas sim porque no lugar em que está almeja provocar o encontro entre o ideal e a realidade. Para quem? Para cada um de nós, para todo o povo de Israel e também para o mundo inteiro.
A reza originalmente não menciona ‘‘todos os habitantes da Terra’’, mas a tradição judaica é aberta, criativa e vibrante. Fosse estratificada teria desaparecido. A tradição judaica é a marca do povo: está em movimento. Olha para o amanhã ao mesmo tempo em que resgata o ontem. Do ontem aprendemos o relato bíblico da criação de um único ser humano do qual somos todos igualmente descendentes. Preconiza o amanhã: a paz é para todos. O fato de ser absoluto não isenta Deus de crítica, como fez já o primeiro hebreu, Abrahão. Todo e qualquer poder – independentemente de sua magnitude – está sujeito a crítica. Isto não enfraquece o poder, o fortalece desde que seja capaz de ouvir.
A partir da história do filósofo Baruch Spinoza, pode-se dizer que heresia é estigmatizar a continuada renovação da vida religiosa.
A separação entre o poder secular e o poder religioso, que evita a teocracia, permitiu que o profeta Natan repreendesse o Rei David por usurpar do poder.
Eu sou o Eterno teu Deus que te tirei da terra do Egito (Torá – Shemot/Êxodo 20:2)
O pensamento rabínico preserva todas as opiniões,
Com a lembrança da liberdade e do li- sejam majoritárias bertador começam os dez mandamentos, ou minoritárias. Tal corolário dos princípios éticos. A liberda- como não há espaço de pressupõe tornar-se livre para realizar um propósito. Deste modo, a menção de para partido único no Deus na liberdade nos direciona para san- sistema político que tificar a vida de cada ser humano, pois to- prega a democracia, dos são a imagem de Deus. No intento de não há espaço para alcançar este propósito ocorreu uma das um único e exclusivo primeiras eleições. Foi eleito – pelo eleitor divino – o povo judeu. entendimento da
O paradigma se aplica às eleições rea- prática religiosa numa lizadas sob princípios democráticos. Elas comunidade que preza visam resgatar um ideal para implemen- por sua vitalidade. tá-lo neste mundo. Ser eleito não é adquirir prerrogativas, não é ser imbuído de um status especial. A honra deve recair na mensagem e não no mensageiro.1 Ao mensageiro cabe a satisfação de servir e buscar valorizar a mensagem. Isto vale tanto para os que ocupam as tribunas quanto para os que ocupam os púlpitos.
O texto bíblico relata que Rehavam/Roboão, filho do rei Shelomo/Salomão, ao assumir o poder, não considerou o alerta de tratar o povo com dignidade (Melachim alef/I Reis: 1-17). A consequência foi a cisão do reino. O ensinamento é contundente: não há margem para o poder absoluto e indiscriminado. Por isto Deus também é chamado de melech, rei, pois é o único soberano atemporal e absoluto. Ainda assim, o fato de ser absoluto não O isenta de crítica, como fez já o primeiro hebreu, Abrahão. Todo e qualquer poder – independentemente de sua magnitude – está sujeito a crítica. Isto não enfraquece o poder, o fortalece desde que seja capaz de ouvir. Desviam o caminho dos humildes (Tanach, Neviim/Profetas – Amós 2:7)
O profeta bíblico critica a outra forma de poder: a dos sacerdotes, líderes espirituais do povo judeu até a destruição do Templo em Jerusalém no início da era comum. Uma vez que sua função era transmitida hereditariamente, o sacerdote estaria imune ao escrutínio da escolha e não necessariamente representaria o povo. O término do sacerdócio – ainda que associado à destruição do templo e, portanto, marco triste de nossa história – foi uma oportunidade de renovação e de democratização na vida religiosa. Nas palavras do rabino contemporâneo Jonathan Sacks: “Um triunfo de renovação em meio à tragédia... [em que] cada judeu se torna um sacerdote”.2 Assim surge a liderança do rabino que é eleito por sua congregação. Diferentes congregações elegem diferentes rabinos. Não há a centralização do Templo [em Jerusalém]. A escolha de cada grupamento comunitário não anula a escolha de outro. São escolhas distintas fruto de anseios parcialmente diferentes, mas todas legítimas. O pensamento rabínico preserva todas as opiniões, sejam majoritárias ou minoritárias. Tal como não há espaço para partido único no sistema político que prega a democracia, não há espaço para um único e exclusivo entendimento da prática religiosa numa comunidade que preza por sua vitalidade. Por isso o judaísmo é pluralista. Todas as expressões do judaísmo em suas várias linhas e correntes são pluralistas. Ou ao menos deveriam ser. Se deixarem de ser pluralistas, deixarão de ser judaicas porque rechaçariam o outro. Tanto uma opinião quanto a outra são palavras do Deus da vida (Talmud, tratado Eruvin 13b)
Não permitir que as diferenças – por mais gritantes que sejam – motivem a exclusão do outro tem sido um condutor do elemento pluralista judaico em que a unidade não é preservada pela uniformidade e sim pela diversidade. A uniformidade enquadra o pensar, engessa o questionar e provoca o murchar da criatividade. A diversidade possibilita o expandir das ideias, incentiva o refletir e irriga a inventividade.
Em alguns momentos esta postura de respeito à diversidade foi posta em xeque. Os escritos de Maimônides (1135-1204) foram condenados por setores da comunidade que, de modo inacreditável, pediram para que fossem
queimados pelas fogueiras inquisitórias. O movimento chassídico ao surgir no século 18 na Europa Oriental foi execrado a ponto de ter sido falsamente acusado e delatado ao governo do czar russo hostil aos judeus. No entanto, as obras de Maimônides tornaram-se referências para o estudo da Torá, filosofia e prática religiosa; e o movimento chassídico tem atuação vibrante em comunidades nos quatro cantos do mundo.3
Heréticos, assim, não são Maimônides, nem os chassídicos ou mesmo Baruch Spinoza excomungado na Holanda no século 17. Heresia é estigmatizar a contínua renovação da vida religiosa, esquecendo que a prática de hoje já foi nova no ontem. Heresia é o fundamentalismo ao querer impor o conformismo. Heresia é o fundamentalismo que anula ideias, concepções e expressões. O conformismo serve ao poder absoluto. Ao domínio e à manipulação das mentes tal como ambicionado pelas seitas e partidos com pretensão totalitária.
O objetivo de uma seita é, eliminando o potencial de reflexão, incutir valores que induzem à aceitação automática e exaltada da liderança imposta.4 Ao contrário do líder eleito, a seita tem o guru. Ao invés do líder a ser escolhido por suas virtudes o guru é seguido. O líder escolhido tem discípulos, o guru tem seguidores. Filho do homem, põe-te de pé e Eu te falarei (Tanach, Neviim/Profetas-Ezequiel 2:1)
Segundo o profeta, Deus dirigirá sua palavra ao ser humano na condição de pôr-se de pé, isto é, levantar-se, assumir-se e valorizar-se. Ao submisso que se agacha e se encolhe esta palavra não vem. Não se trata tanto da palavra efetiva de Deus ou não, quanto do que se espera do ser humano: pôr-se sobre seus pés, caminhar e não seguir automaticamente, escolher e não se deixar levar. Isto implica em assumir responsabilidade pela sua vida, pela construção de seu próprio destino. Isto significa, sugere o filósofo Lévinas (1906-1995), ser sujeito de sua vida e não refém dela.5 Refém do autoritarismo que sequestra a chance de elegermos o destino de nossas vidas. O psica-
Segundo o profeta, Deus nalista Erich Fromm (1900-1980) afirdirigirá sua palavra ao ser humano na condição ma: “O autoritarismo na religião e ciência, e não menos na política, está sendo cada vez mais aceito não porque tantos de pôr-se de pé, isto é, acreditam nele, mas porque se sentem inlevantar-se, assumir- dividualmente sem poder e ansiosos”.6 A se e valorizar-se. Isto sustentação do autoritarismo exige retiimplica em assumir rar do indivíduo sua capacidade de pôrse em pé a fim de impedir que exerça esresponsabilidade colhas e seja sujeito da vida. pela sua vida, pela construção de seu Um líder não deve ser escolhido sem que próprio destino. Ao a comunidade seja consultada (Talmud, submisso que se tratado Berachot 55a) agacha e se encolhe Por que Moshé/Moisés, o líder que esta palavra não vem. conduziu o povo hebreu da escravidão à liberdade, não entrou na Terra de Israel? Uma possível interpretação: para evitar o acúmulo de poderes. Assim, se num sistema democrático elegemos diferentes ocupantes para os poderes executivo e legislativo, também na estrutura religiosa foi estabelecida uma separação: a Ioshua/Josué da tribo de Efraim o poder político e a Aarão da tribo de Levi a liderança religiosa. Na contemporânea estrutura comunitária o modelo é seguido: a instância executiva política recai sobre leigos e a diretriz religiosa sobre rabinos. Ambos – leigos e rabinos – escolhidos através da consulta à comunidade. No passado – conforme relato bíblico – esta separação permitiu que o rei fosse advertido ao usar indevidamente seu poder como a repreensão do profeta Natan à conduta do Rei David. A fim de satisfazer seu desejo de “possuir” uma mulher, o rei mandou eliminar a vida do marido dela. (Shemuel beit/2 Samuel 12: 1-13). No presente, esta divisão evita a teocracia. A teocracia é uma forma de autoritarismo que apregoa ser inquestionável, pois aplicado em nome de Deus. No fundo, a teocracia quebra o preceito religioso de ‘‘não utilizar o nome de Deus em vão’’ ao usá-Lo para fins de domínio e controle. A teocracia rompe o pacto universal de Deus com a humanidade e somente valida os pactos particulares. A teocracia é contrária à própria mensagem divina ao ser transformada em forma de governo: enquanto o partido político representa parte, a mensagem divina em seu pacto universal, que abrange os

Uma interpretação pode sugerir que Moisés, o líder que conduziu o povo hebreu da escravidão à liberdade, não entrou na Terra de Israel para evitar o acúmulo de poderes; na foto, o local que se acredita ser o Monte Sinai da Bíblia.
particulares, não pode ser fragmentada para que um grupo governe outros.
Voltemos ao início: ‘‘Osse shalom – Aquele que estabelece a paz nas alturas celestiais que derrame a paz sobre nós...” A atuação religiosa almeja trazer para a realidade os valores que, na pureza de seu ideal, simbolicamente habitam nas alturas celestiais. A teocracia atua de modo oposto: molda os ideais ao sabor da realidade. Perde, assim, o afã transformador que emana da religião. Faz com que a religião ao invés de buscar a transformação seja instrumento de conformação.
A aflição e a religião prepararam os judeus para a democracia (Louis Brandeis, 1856-1941)
A aflição, entre outras, do faraó, do império babilônico e romano, da inquisição, dos pogroms, dos nazistas, do império soviético e dos homens-bomba. Quando uma sociedade solapa a dignidade da vida humana e ergue-se sob o ódio, a aflição recai sobre o povo judeu, seja por ser perseguido, seja por temer ser perseguido. Ou por ver o outro perseguido.
Quando a vivência religiosa semeia o questionar, irriga a responsabilidade da escolha e faz brotar a criatividade acaba colhendo uma vida comunitária plena. Então somos mobilizados a trazer um pequeno pedaço de céu para cada ser humano deste mundo em sua busca pela paz. Que para atingir este propósito seja eleita a própria democracia.
Notas
1. Konvitz, M., Judaism and Human Rights. Nova Iorque, B’nai B’rith, 1972. 2. Sacks, J., Uma letra da Torá. São Paulo, Editora Sefer, 2002. 3. Konvitz, M., op. cit. 4. Fillaire, B., As seitas. São Paulo, Ed. Ática, 1997. 5. Derrida, J., Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004. 6. Angel, M., Losing the rat race winning at life. Jerusalém, Urim Publications, 2005.
Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union College (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.