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Edward Hoffman

a comercialização da cabala: qual será o remÉdio?

edward Hoffman

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No mundo moderno, até muito recentemente, a Cabala não passava de um elemento obscuro e esquecido dentro do judaísmo, conhecido quase que exclusivamente por estudiosos eruditos e por isolados grupos chassídicos. Para a maioria dos judeus europeus, norte e sulamericanos a Cabala praticamente não era reconhecida como parte da tradição judaica, e certamente não era tida como algo a ser honrado ou admirado. Desde aproximadamente 1870, e em quase todo o mundo, os judeus cosmopolitas associaram a Cabala a especulações fora de moda e até a crenças tolas. Esta foi a visão dominante por 120 anos.

Mas tudo isto mudou muito rápido. Espantosamente, no espaço de uma única geração, a Cabala tornou-se uma palavra familiar nos Estados Unidos, na Europa Ocidental e na América do Sul, incluindo o Brasil, é claro. Hoje em dia, quase todos os não judeus instruídos, assim como os judeus, sabem que a Cabala é uma tradição mística muito antiga do judaísmo, e que floresceu em todos os continentes habitados. Hoje, como nunca antes na era industrial, milhões de pessoas têm consciência deste sistema esotérico tão caro ao judaísmo.

Será que os judeus comprometidos devem celebrar esta mudança? Na qualidade de judeu norte-americano, psicólogo e professor que há quase 30 anos vem escrevendo livros sobre Cabala e espiritualidade, minha resposta é: ainda não. Porque, como dizemos em inglês: “Ter apenas um pequeno conhecimento pode ser muito perigoso”. Ou seja, a vasta maioria daqueles milhões de pessoas conhece quase nada à respeito do verdadeiro misticismo judaico. Muitos têm uma perspectiva super simplificada e até mesmo enganosa, por exemplo, Muitos têm uma perspectiva super simplificada e até mesmo enganosa, por exemplo, associando quase que completamente a Cabala com magia e numerologia; sua poderosa sabedoria espiritual e ética é desconhecida pela maior parte destas pessoas.

7 A Cabala é uma tradição mística muito antiga do judaísmo e que floresceu em todos os continentes habitados; hoje, como nunca antes na era industrial, milhões de pessoas têm consciência deste sistema esotérico tão caro ao judaísmo.

associando quase que completamente a Cabala com magia e numerologia; sua poderosa sabedoria espiritual e ética é desconhecida pela maior parte destas pessoas.

Por vários motivos esta situação se deve ao que eu chamo de mercantilização global da Cabala nos últimos anos. Em outras palavras, de uma maneira totalmente inconsistente com os ensinamentos e o estudo da Torá, indivíduos e organizações em muitos países vêm tentando colocar a Cabala no “mercado” como um produto de consumo atraente – repleto do formato mercadológico contemporâneo, tal como endossado por celebridades de Hollywood, belas embalagens de itens simples e multifacetadas fontes de lucro. O objetivo deste marketing? Enriquecer. E, para consternação de muitos judeus comprometidos, esta estratégia de negócios tem se mostrado muito bem sucedida.

Como isto aconteceu? E o que podemos fazer para remediar esta situação? Para responder completamente à primeira pergunta seria preciso mais espaço do que os limites deste artigo permitem, porque teríamos que explorar os altos e baixos da história judaica durante os últimos 500 anos. Além disso, a resposta nos levaria a dimensões complexas da sociologia da religião ocidental de modo geral. Embora sem dúvida mais urgente, a segunda pergunta é mais fácil de abordar. Examinemos uma de cada vez.

Por que de repente a Cabala ganhou esta imensa fascinação em nossa época de alta tecnologia? Surgem claramente três razões principais. Primeiro, creio eu, os horrores da Segunda Guerra Mundial, incluindo os campos de extermínio nazistas e o uso da bomba atômica convenceram muitas pessoas inteligentes que não era possível confiar na ciência para guiar moral e eticamente a humanidade. Por exemplo, o fato de que médicos e cientistas alemães entusiasticamente uniram-se ao esforço nazista para aniquilar os judeus e outros grupos “inimigos” demonstra com toda clareza que ter instrução universitária não garante moralidade ou senso humanitário. Mais amplamente, a posição filosófica conhecida como “cientismo” (isto é, transformar a ciência em uma quase religião) ficou claramente insustentável depois da Segunda Guerra Mundial.

Depois de Auschwitz, só um tolo seria capaz de continuar argumentando que médicos e cientistas são dotados de sabedoria e moralidade superiores por causa de sua instrução universitária. Como resultado, sistemas espirituais milenares, como o judaísmo, deixaram de parecer tão irrelevantes aos pensamentos modernos. De fato, pensadores humanísticos brilhantes da era pós Segunda Guerra Mundial, como Martin Buber, Erich Fromm, Abraham Maslow, Rollo May e Viktor Grankl, insistiram em que durante milênios a religião levantou questões vitais que podem ser legitimamente recolocadas de forma contemporânea, tais como: “Qual é a essência da natureza humana?”, “Como os seres humanos podem realizar o seu potencial total?”, “Qual é a melhor sociedade?” e “Qual é o significado da vida humana?”

O filósofo judeu alemão Martin Buber, buscando inspiração no antigo Chassidismo, ajudou a disseminar a centelha do interesse no pensamento chassídico. Suas versões poéticas de histórias chassídicas clássicas (Contos dos

Pensadores humanísticos brilhantes da era pós Segunda Guerra Mundial insistiram em que durante milênios a religião levantou questões vitais como: “Qual é a essência da natureza humana?” e “Qual é o significado da vida humana?”

Chassidim, Histórias do Rabbi Nachman) e suas interpretações inspiradoras da filosofia chassídica (O Chassidismo e o Homem Moderno; Eu e Tu) levaram muitas pessoas instruídas, inclusive não judeus, a explorar a Cabala, que era a base teológica do antigo Chassidismo. Para Buber, homens e mulheres do mundo ocidental moderno têm muito a ganhar a partir da ênfase chassídica na alegria e na profunda troca interpessoal como essência da vida humana.

Em segundo lugar, o final da década de 1960 e a década de 1970 testemunharam um imenso crescimento do interesse nas formas orientais de religião e espiritualidade, sobretudo em aspectos vivenciais tais como a meditação e os estados mais elevados de consciência. Dentro dos Estados Unidos e na Europa Ocidental este interesse foi largamente ligado ao que veio a ser conhecido como contracultura, que também abarca outros valores não convencionais, a saber o anticonsumismo, a vida comunitária, a ecologia e o plantio orgânico. Inicialmente foram as tradições mais antigas, como a ioga, o zen-budismo e o taoísmo que dividiram o centro das atenções, depois o sufismo e as formas de espiritualidade dos nativos norte-americanos (os índios).

Durante a década de 70 um grande número de livros escritos por psicólogos e filósofos ajudaram a aumentar o interesse pelo caminho oriental. Eles argumentavam que as tradições espirituais antigas continham enorme conhecimento da personalidade humana, do crescimento interno, do bem-estar e por isso mereciam ser seriamente estudadas. Por exemplo, o best-seller norte-americano The Relaxation Response1 , escrito por um respeitado psiquiatra de Harvard, insistia em que a meditação traz eficazes benefícios para a saúde de todos. O livro dele aumentou muito a atenção que as comunidades médicas e psicológicas davam às disciplinas do Extremo Oriente. De maneira semelhante outro atraente best-seller norte-americano, The Tao of Physics2, sustentava que o taoísmo, assim como outros sistemas de pensamento do Extremo Oriente, ofereciam grandes visões sobre a natureza do cosmos – e, de certa maneira, até previam as mais novas descobertas da física quântica.

Livros como estes aceleraram o interesse da população

Havia um vácuo para no misticismo a partir de um ponto de a espiritualidade autêntica, e é muito vista científico respeitável, e este interesse deve ser visto como pano de fundo para o subsequente crescimento do interesse compreensível que mundial pela Cabala. Certamente estes a Cabala ficasse fascinantes trabalhos contribuíram para disponível para espicaçar as minhas tentativas de explipreenchê-lo. Não nos car as perspectivas psicológicas da Cabala – objetivo este que resultou no meu ressurpreende que suas peitado livro The Way of Splendor: Jewish deslumbrantes imagens Mysticism and Modern Psychology, publipoéticas, bem como seu cado em 1981. Até onde sei, esta foi a priinspirador retrato da meira obra escrita por um psicólogo forexistência humana, se mado a apresentar os ensinamentos básicos da Cabala no contexto dos escritos tornassem rapidamente modernos sobre a personalidade humacativantes. na e seu potencial, conforme formulado por Sigmund Freud, William James, Carl Jung, Abraham Maslow e outros. The Way of Splendor rapidamente conquistou grande popularidade internacional, chamando a atenção de psicólogos, psiquiatras e terapeutas para a Cabala. Muitas destas pessoas não tinham qualquer identidade religiosa, mas reconheciam a capacidade excitante da Cabala para o trabalho terapêutico. Finalmente, creio que a Cabala ressurgiu de maneira tão significativa precisamente devido ao vazio espiritual que muitos judeus e não judeus sentiam dentro de suas sinagogas e igrejas. Em países ricos como os Estados Unidos, estas instituições construíram edifícios externamente vastos e grandiosos, mas internamente tediosos e sem vida. Ofereciam muito pouco que tivesse a ver com experiências religiosas ou estudos sagrados, e sim prédicas enfadonhas e grupos de oração sem nenhuma paixão e intensidade. Não é nenhuma coincidência que milhões de pessoas passassem a procurar inspiração em outro lugar, porque, como o Sefer HaZohar (Livro do Esplendor) espertamente declarou há mais de 700 anos, “a alma humana precisa tanto de alimento quanto o corpo”. Em outras palavras, havia um vácuo para a espiritualidade autêntica, e é muito compreensível que a Cabala ficasse disponível para preenchê-lo. Não nos surpreende que suas deslumbrantes imagens poéticas, bem como seu inspirador retrato da existência humana se tornassem rapidamente cativantes. O nosso desafio, enquanto judeus comprometidos, não é tentar fazer com que mais uma vez a

De uma maneira totalmente inconsistente com os ensinamentos e o estudo da Torá, indivíduos e organizações em muitos países vêm tentando colocar a Cabala no “mercado” como um produto de consumo atraente, repleto do formato mercadológico contemporâneo.

Cabala desapareça da civilização moderna – objetivo este ao qual eu certamente me oporia – e sim minimizar o mercantilismo e a distorção que a cercam. Será possível? Com toda certeza. Como será possível? Seguem-se algumas recomendações específicas:

1. É preciso ensinar a Cabala como parte integrante da história e teologia judaicas. Devido à influência nociva do historiador judeu alemão Heinrich Graetz, no século 19, a maior parte dos rabinos e eruditos reformistas e conservadores passaram a acreditar que a Cabala não é parte autêntica do judaísmo. No entanto, como os estudos de Gershom Scholem demonstraram mais tarde, já na nossa época, o ponto de vista anterior estava completamente errado. Agora está cristalinamente claro que muitos dos maiores pensadores rabínicos do judaísmo escreveram extensamente sobre trabalhos esotéricos como, por exemplo, o Sefer HaZohar (O Livro do Esplendor) do século 13. No entanto, muitos rabinos não ortodoxos e educadores judaicos ainda não confiam no conceito de estudar e ensinar a Cabala dado o resíduo da influência de Graetz. O mesmo acontece na comunidade ortodoxa, onde rabinos e professores também evitam disseminar a Cabala, mas por razões diferentes.

Esta situação precisa mudar. Precisamos publicar mais livros que demonstrem que as práticas e os conceitos místicos sempre floresceram no judaísmo, até mesmo em obras aparentemente não místicas como o Talmud e os escritos de Maimônides. Quanto mais pudermos fazer isto tanto menos será possível para indivíduos e grupos interesseiros vender a Cabala como seu “produto” exclusivo.

2. Ao ensinarmos a Cabala precisamos enfatizar a sua dimensão ética. Chega a ser irônico que hoje este componente ético seja tão amplamente ignorado, pois historicamente sempre foi vital para a energia e o charme do judaísmo místico. Por exemplo, obras cabalísticas veneradas como Tomer Devorah (A Palmeira de Débora), de Rabbi Moses Cordovero no século 16, e Derech Hashem (O Caminho de Deus), de Rabbi Moses Chaim Luzzatto no século 18, basearam-se fortemente na Cabala para demonstrar como nossos atos, pensamentos e nossas palavras individuais impactam o mundo espiritual à nossa volta. Recentemente lancei uma nova antologia, The Kabbalah Reader, com o objetivo de ajudar a demonstrar que a Cabala e os ditames éticos estão intimamente ligados no judaísmo há séculos. A ética judaica está entre os aspectos mais belos e profundos da nossa tradição, e o seu elo com a Cabala precisa ser enfatizado nos dias de hoje.

3. Finalmente, precisamos demonstrar que, na verdade, a Cabala proporciona um sistema comprovado pelo tempo para o crescimento interior ao invés de ferramentas mágicas para o enriquecimento, o status social ou as posses materiais. Quanto mais claramente pudermos apresentar os ideais lúcidos da Cabala e suas práticas para o autodesenvolvimento – tais como melhorar a disciplina emocional, aprimorar a força de vontade e a intencionalidade (kavaná) e viver cada dia com mais alegria e senso de propósito (tikun) – tanto mais o público em geral vai perceber como são vulgares e grosseiros os “marqueteiros da Cabala”.

Enquanto judeus comprometidos não podemos nos manter passivos diante da comercialização generalizada desta grande faceta de nossa religião. Mas por sorte a passividade nunca foi uma característica da personalidade judaica. Se tomarmos a iniciativa energicamente, e enfatizarmos tudo o que a Cabala tem de profundo, inspirador e duradouro, teremos encontrado a melhor maneira de vencer aqueles que distorcem a sua verdadeira essência.

O nosso desafio, enquanto judeus comprometidos, não é tentar fazer com que mais uma vez a Cabala desapareça da civilização moderna – objetivo este ao qual eu certamente me oporia – e sim minimizar o mercantilismo e a distorção que a cercam. Será possível? Com toda certeza.

Notas do tradutor

1. Não traduzido para o português 2. Traduzido para o português e editado em 2000 pela editora Cultrix sob o título

O Tao da Física.

Edward Hoffman é doutor e professor associado adjunto de psicologia na Yeshiva University de Nova Iorque. Escreveu muitos livros sobre psicologia e judaísmo e recentemente veio ao Brasil e proferiu palestras. Seu livro A Sabedoria de Carl Jung está traduzido para o português.

Traduzido por Teresa Roth

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