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Malena Chinski
YiddisH booK center: resgate e transmissão de uma Herança esquecida
malena chinski
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A capacidade de visão de longo prazo de Aaron Lansky lhe permitiu antecipar-se ao processo que sobreviria gradualmente, de que hoje somos testemunhas e protagonistas: o ressurgimento do interesse pelo iídiche e a reapropriação do legado dessa cultura milenar pelas novas gerações, que se viram privadas desta herança cultural por causa de uma particular conjuntura histórica.
Faz pouco menos de dois anos, quando recém-iniciava meus estudos de iídiche, encontrei, por acaso, um artigo jornalístico que informava sobre a existência de um arquivo on-line de literatura iídiche, do qual era possível baixar gratuitamente qualquer título. Não transcorreu muito tempo para que me convertesse em usuária frequente desse arquivo, que se tratava do Steven Spielberg Digital Yiddish Library, pertencente ao Yiddish Book Center.
O Yiddish Book Center é uma organização sem fins lucrativos que se originou como um projeto de resgate de certos objetos em perigo: os livros em língua iídiche. No meio dos anos 70, Aaron Lansky, natural de Massachusetts, embarcou, com 20 anos de idade, na original aventura de coletar o que os outros se desfaziam. No entanto, seria injusto afirmar que o Yiddish Book Center é um mero resultado do desprezo pela língua iídiche; ao contrário, Lansky dedicou anos de sua vida a visitar homens e mulheres da geração de meus avós e bisavós, que lhes entregaram o mais precioso que possuíam, seus livros, não porque já não os queriam, mas sim porque confiaram em sua promessa de preservar esta herança que seus familiares diretos não quiseram ou não puderam receber em algum momento.
Grupo de estudantes trabalha na biblioteca sob a supervisão de Malena Chinski e da bibliógrafa Catherine Madsen.
Nos anos em que Lansky pôs em marcha o projeto, a conjunção fatal de uma soma de fatores derivou em um momentâneo “esquecimento” da cultura judaica enraizada na língua iídiche, trazida do velho mundo pelos imigrantes da Europa Oriental. Os conflitos entre gerações dos imigrantes com os filhos nascidos nos novos países de residência, as políticas de integração dos países receptores, o trágico destino de milhões de falantes de iídiche na Shoah, o renascimento do hebraico em Israel, para citar só alguns desses fatores, contribuíram para a construção de uma crença segundo a qual o iídiche era uma língua “em extinção”, se é que já não havia desaparecido da face da Terra. Nesse contexto, não parecia haver motivos razoáveis entre os mais jovens para conservar livros neste idioma “arcaico”.
A capacidade de visão de longo prazo de Lansky lhe permitiu antecipar-se ao processo inverso que sobreviria gradualmente, de que hoje somos testemunhas e protagonistas: o ressurgimento do interesse pelo iídiche e a reapropriação do legado dessa cultura milenar pelas novas gerações, que se viram privadas desta herança cultural por causa de uma particular conjuntura histórica.
A “pré-história” do Yiddish Book Center, no entanto, tem um caráter mais prosaico. Quando Lansky era estudante no Hampshire College decidiu ter aulas de iídiche como complemento de seus estudos acadêmicos. Mas, ao começar a aprender o idioma, Lansky se deparou com uma situação que desconhecia: a maioria dos livros em iídiche havia sido deixado de ser publicados e estavam esgotados, e as bibliotecas das universidades contavam com muito poucos exemplares ou nenhum. Por isso, junto com um grupo de colegas, Lansky começou a colar pequenos cartazes aqui e ali, com a esperança de prover-se de materiais de estudo. No início suas tentativas pareceram infrutíferas, mas gradualmente foi se configurando um panorama alarmante: havia livros, mas estavam dispersos e muitas vezes em perigo de destruição. Esse foi o ponto de partida de uma aposta de um futuro não isento de riscos, baseada na certeza de que dedicar um esforço em reunir livros em iídiche valia a pena,

Exposição de livros em iídiche; à esq. livro com ilustração de Diego Rivera.
ainda que contrário às opiniões circundantes e sem contar com nenhum fundo inicial.
Foram necessários 30 anos de trabalho sustentado para que o Yiddish Book Center chegasse a ser uma instituição de importância internacional, com mais de 20 mil membros, mantida com o apoio de pessoas progressistas e entusiastas, às quais, com suas doações, fazem possível a continuidade da instituição.
Os primeiros anos de coleta foram cheios de divertidas aventuras. Lansky e seus amigos percorreram as rotas dos Estados Unidos de caminhão, encontrando pelo caminho pessoas carinhosas que alimentaram esses jovens com muita história e muita comida, nesta cerimônia única que consiste na entrega dos livros de toda uma vida. Em seu livro autobiográfico, Outwitting History, Lansky rende homenagens a dezenas de homens e mulheres que possibilitaram, com suas contribuições, a existência do Yiddish Book Center. Personagens inesquecíveis, como Sam e Leah Ostroff e seus convidados ilustres de Sea Gate, o assessor de imprensa Knight, a viúva de Woody Guthrie, e tantos outros, são imortalizados nas páginas deste livro. Apesar da tristeza que despertam tantas histórias cujos protagonistas são livros abandonados, Lansky afirma a necessidade de transcender a nostalgia para desenvolver um programa prático e transmitir a consciência histórica às gerações futuras.
Havendo atravessado não poucas frustrações, Lansky conseguiu salvar mais de um milhão de livros em iídiche e prover de material de leitura mais de 600 bibliotecas do mundo inteiro. Nesse processo, teve de enfrentar uma dificuldade imprevista: os livros em iídiche, publicados em sua maioria a partir de meados do século 19, foram im-
pressos em papel com alto nível de acidez, o que os torna extremamente frágeis e propensos à desintegração. Este problema foi o motor que impulsionou o projeto de digitalização de mais de 11 mil livros. Concretizado em seu início graças a um generoso subsídio de Steven Spielberg, o projeto constitui a primeira tentativa histórica de digitalizar toda uma literatura. Qualquer um desses livros pode ser reimpresso hoje em novo papel. O quase milagroso resultado disso é que a literatura iídiche é atualmente uma das mais acessíveis do mundo.
Quando conheci a história do Yiddish Book Center compreendi que eu também, em alguma medida, formava parte dessa história, não só em relação ao meu interesse pelo iídiche – ainda que inexplicável para muitos na Argentina –, se não porque reuni meus livros em condições similares às que relata Aaron em seu livro. Assim, quando soube da criação de um novo programa de bolsas de estudo no Yiddish Book Center, decidi apresentar-me, e no dia 2 de dezembro de 2009 embarquei para Massachusetts para passar ali todo o inverno.
Em meu primeiro dia de trabalho como Graduate Fellow, o Yiddish Book Center me impressionou antes de tudo pela imensidão. Situado no meio das lindas paisagens de New England, a poucas milhas do centro de Amherst, uma pequena cidade de construções com o sóbrio estilo protestante, o Yiddish Book Center se destaca por sua arquitetura peculiar. O edifício, imponente, inaugurado em 1997, foi desenhado, por um arquiteto não judeu, segundo o estilo de um complexo de casas semelhantes a um shtetl, uma típica aldeia judaica do Leste europeu e cenário favorito da literatura iídiche.
A serenidade da paisagem que rodeia o Yiddish Book Center contrasta com a agitação que acontece em seu interior. Um pequeno grupo de funcionários se ocupa, com insólita energia, em materializar uma inumerável quantidade de projetos, em consonância com a incansável capacidade empreendedora de Lansky.
O Yiddish Book Center abriga uma coleção de valor incalculável de literatura secular publicada em diversos países, como Estados Unidos, Israel, Brasil, México, Argenti-
Os primeiros anos de na, Polônia, Russia e França, entre outros; coleta foram cheios de divertidas aventuras. também se contam entre os volumes numerosos sforim – textos sagrados do judaísmo – traduzidos para o iídiche e textos Lansky e seus amigos acadêmicos de História, Filologia ou Crípercorreram as rotas tica Literária. O “edifício novo”, inaugudos Estados Unidos de rado em 2008, conta com uma abóbada caminhão, encontrando climatizada conforme a temperatura e o nível de umidade adequados para a prepelo caminho pessoas servação dos livros. carinhosas que Particularmente interessante é a históalimentaram esses ria da coleção de partituras musicais do jovens com muita Yiddish Book Center. No meio dos anos história e muita comida. 1980, o rabino Gottlieb, de Nova Jersey, fez contato com Lansky: ouvira rumores da existência de uma garagem cheia de partituras em iídiche e hebraico em Boro Park, Brooklyn. Efetivamente, logo se descobriu que a companhia Metro Music de música judaica havia vendido a investidores a totalidade de seu estoque restante, composto de 85 mil folhas, nos anos 1970, e esses não tinham conseguido revender. Após o encerramento da companhia, um judeu religioso guardou o material em sua garagem, já que entre as partituras havia khazones (peças litúrgicas), e considerou uma mitzvah salvá-las. O Yiddish Book Center possui também com uma imAaron Lansky, o idealizador do Yiddish Book Center.



Funcionários e consulentes no Yiddish Book Center.
portante coleção de livros raros, provenientes sobretudo da Polônia, do Império Czarista, da União Soviética e da América Latina, dos quais se preservam contados exemplares no mundo. Em seu livro, Lansky menciona o achado de um livro editado na União Soviética cuja tiragem havia sido destruída em sua totalidade pela polícia com exceção desse único exemplar, salvo graças a um judeu residente nos Estados Unidos, primo do editor, que havia adquirido uma cópia em sua viagem à URSS em 1929 e o trouxera para a América. Em outra ocasião, o Yiddish Book Center recebeu um carregamento de livros enviados por navio do Zimbabwe, chegados ali pelas mãos de judeus refugiados durante os anos da Segunda Guerra Mundial.
Uma de minhas primeiras tarefas como bolsista consistiu no processamento de caixas cheias de livros raros. Esta tarefa requeria bastante paciência, já que muitas vezes a ortografia antiga do iídiche tornava difícil a leitura, ou o livro não tinha nem capa nem título e tinha que investigar sobre o que se tratava, ou bem a data de publicação correspondente ao ano hebraico estava “em código” dentro de um versículo bíblico que era preciso desvendar. A cada dia essas caixas de livros foram para mim uma fonte renovada de surpresa e descobrimento.
No mês de minha chegada tive também a sorte de participar como assistente do desenho de conteúdos da futura exibição permanente do Yiddish Book Center, “A Walking
O foco do Yiddish Tour of Yiddish Books”. Este grande proje-
Book Center está to se propõe a “abrir os livros” aos visitantes e reconstruir, a partir deles, a história voltado atualmente aos da civilização que lhes deu origem. A exprogramas educativos. posição, que será inaugurada em novem-
A cada janeiro se bro de 2010, baseia-se em uma proposdesenvolve um ta de circulação livre pelos espaços do Yiprograma intensivo de ddish Book Center, que dará lugar ao encontro fortuito com pequenos aparadores língua e cultura iídiche, que enfocarão algum aspecto particular em coordenação com da cultura iídiche mediante textos, livros as cinco universidades especiais, fragmentos literários, poemas e da região, que outorga créditos aos estudantes. fotografias. O “Kinder vinkl” (Cantinho das Crianças) será um espaço lúdico onde os visitantes poderão familiarizar-se com as letras e os sons do iídiche, e mergulhar nas aventuras e desventuras desta língua e seus falantes. Outro grande projeto que atualmente mantém inquieta a instituição é o Wexler Oral History Project. Em seu afã de compilar histórias, o Yiddish Book Center se propõe agora a incorporar às suas coleções histórias vivas relacionadas ao judaísmo contemporâneo. Todo visitante, judeu ou não, é considerado neste projeto como um potencial narrador que enriquecerá o novo arquivo audiovisual com sua singular perspectiva sobre o judaísmo. A velocidade com que esse projeto se apresentou e se concretizou, desde a arrumação do estúdio com todo o equipamento necessário até a redação de perguntas e formulários, e o treinamento dos entrevistadores, demonstra, num exemplo ilustrativo, a incrível capacidade empreendedora que caracteriza o Yiddish Book Center.
Mas nem tudo acontece em grande escala; também tive a oportunidade de participar de um pequeno leyenkrayz (círculo de leitura) coordenado por Aaron Lansky, um evento que ocorre semanalmente com o objetivo de abordar o texto original de Y. Y. Zinger, Di brider ashkenazi (Os irmãos ashkenazi), um portal de entrada à Lodz judaica do final do século 19. O entusiasmo de Lansky pelas língua e literatura iídiche se mantém intacto até hoje.
O foco do Yiddish Book Center está voltado atualmente aos programas educativos. A cada janeiro se desenvolve um programa intensivo de língua e cultura iídiche, em coordenação com os cinco colleges da região, que outorga créditos acadêmicos aos estudantes. Por outro lado, o Steiner Summer Yiddish Internship é um programa de sete semanas de duração destinado a estudantes universitários, os quais recebem uma bolsa de estudos completa no momento da admissão ao programa. Os bolsistas têm 3 horas diárias de aulas do idioma e de cultura, a cargo de professores universitários, e trabalham como assistentes com os funcionários do Yiddish Book Center.
A incorporação mais recente na área da educação é o programa de Graduate Fellowships, em expansão, que consiste na imersão e participação de jovens graduados, em diversas áreas de atuação, tais como bibliografia, história oral e exibições, às quais se somarão aulas de iídiche e supervisão a cargo de professores acadêmicos.
Este é um momento muito particular na história do Yiddish Book Center, que reflete uma nova orientação em seus objetivos. As transformações por que passa a instituição e a vitalidade com que mergulha em novos projetos são a consequência lógica de uma feliz constatação: os livros já se encontram a salvo.
Fontes
Lansky, A., Outwitting History. The Amazing Adventures of a Man who
Rescued a Million Yiddish Books, Chapel Hill, Algonquin Books of
Chapel Hill, 2005. www.yiddishbookcenter.org Pakn Treger, revista institucional periódica do Yiddish Book Center. A Bridge of Books. The Story of the National Yiddish Book Center (documental institucional, acessível no endereço web).
Malena Chinski é bolsista do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas-Conicet) da Argentina. Faz doutorado em Ciências Sociais no Instituto de Desenvolvimento em Ciências Sociais (Ides) na Universidad Nacional General Sarmiento. É professora de língua e cultura iídiche na Fundação IWO de Buenos Aires. Foi Graduate Fellow no Yiddish Book Center entre dezembro de 2009 e março de 2010. Participa atualmente do Steiner Yiddish Summer Internship como professora assistente. Tradução de Mariangela Paganini
O prédio novo do Yiddish Book Center, cuja arquitetura lembra um shtetl, a aldeia judaica na Europa Oriental.
