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Rabino Ruben Sternschein
Ética, religião e psicanálise têm o mesmo sentido no judaísmo?
O judaísmo não tenta ganhar adeptos. Não existiram missionários judeus nem poderiam existir. Há teorias de que em alguma época aconteceram atos proselitistas judaicos, mas trataria-se de uma exceção e de um desvio essencial, uma vez que o judaísmo não acredita que tudo o que é alheio seja errado por não ser judaico, e que os demais sejam pecadores.
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As Cruzadas medievais são um exemplo do sofrimento, da guerra, dos abusos e despotismos trazidos pelas religiões.
rabino ruben sternschein
Uma das acusações mais tristes e ao mesmo tempo, talvez, mais certas contra as religiões diz que trouxeram os piores abusos, despotismos, sofrimentos e guerras. Se observarmos as guerras e matanças das Cruzadas e da Inquisição cristãs, as lutas entre hinduísmo e budismo no extremo oriente e nos caminhos entre China e Índia, as guerras sangrentas entre religiões e tribos africanas, entre sunitas e xiitas no Islã do Oriente Médio, as perseguições religiosas no Irã e no Talibã do Afeganistão, o mero conceito de jihad ou guerra santa no Islã em geral, não podemos negar a base empírica e histórica de tal acusação.
No entanto, não é possível atribuir nenhum desses horrores ao judaísmo. Isso deve-se a vários princípios básicos do judaísmo, que justamente impedem qualquer tipo de prática dessa índole. Mais ainda: os princípios básicos do judaísmo são essencialmente contrários a elas. Nomearemos quatro que achamos mais centrais e desenvolveremos principalmente um deles.
Particularismo
O judaísmo não é universalista, ou seja, não acredita que sua prática deva ser uma prática universal. O judaísmo é particularista e, portanto, acredita que sua tradição é o compromisso particular dos judeus com a vida, com Deus, com a história, com os valores. Podem existir outros compromissos de outros povos e outras formas de expressar os mesmos valores. Quem quiser unir-se ao
caminho judeu pode fazê-lo, mas quem não o fizer não é um pecador por definição. Não está fazendo nada mal. Não precisa ser salvo ou purificado através do judaísmo. Assim é que Maimônides acreditava que Aristóteles contribuía ao bem do mundo tanto quanto ele próprio, sem precisar das mitzvot. Isto não quer dizer que o judaísmo se opõe ao princípio universal de Kant.1 Os judeus não se opõem a que outros adotem o judaísmo, mas não pregam que seja obrigatório como único caminho universal.
Antiproselitismo
O judaísmo não tenta ganhar adeptos. Não existiram missionários judeus nem poderiam existir. Há teorias de que em alguma época aconteceram atos proselitistas judaicos2, mas, além de não ter provas contundentes, trataria-se de uma exceção e de um desvio essencial, uma vez que o judaísmo não acredita que tudo o que é alheio seja errado por não ser judaico3, e que os demais sejam pecadores. O judaísmo não tem nenhuma demanda dos não judeus4 e, portanto, não tentará mudá-los por nenhum meio. O conceito de santidade, que nos faz similares a Deus, expressa-se na Torá através da prática da ética mesma. Parecer-se com Deus, segundo esse texto básico da ética judaica, é ser mais humano com os humanos. A prática da melhor humanidade é a que nos aproxima da divindade.
Pluralismo Mistura essencial de ética e religiosidade
O judaísmo, por tudo isso, é essencialmente pluralista. No mínimo, respeita os demais povos e as demais tradições culturais e religiosas. Existem, sim, casos de intolerância interna entre judeus, geralmente por parte da ortodoxia, que pretende, como seu nome o indica, estabelecer que apenas seu caminho é certo. Existem tendências, nos últimos séculos, que supõem que maior intolerância é sinal de maior verdade e autenticidade. Aquele que faz questão de declarar que não come na casa daquele outro e que não entra naquela sinagoga é erradamente considerado por alguns poucos como mais leal a princípios ou a alguma tradição. Sabemos que a intransigência é irrelevante do ponto de vista lógico e, respeitado o grau de verdade de seu conteúdo, é errada do ponto de vista do judaísmo mais tradicional e obviamente do ponto de vista do judaísmo mais liberal. A Mishná, no século terceiro, marcou a importância teológica e haláchica da controvérsia e da diversidade com o princípio de Elu veelu divrei elohim chaim, ou seja, umas e outras são as palavras do Deus vivente. Os sábios estavam discutindo a aplicação de uma lei da Torá. Haviam principalmente duas opiniões, a do Hilel e a do Shamai. Segundo o relato, uma voz (feminina, por sinal) saiu do céu (identificada com o próprio Deus), que sentenciou aquela frase. Ou seja: a palavra divina é ampla, diversa, complexa e contém verdades múltiplas. Para serem reveladas precisam da diversidade de enfoques. Mesmo acreditando numa divindade só, o judaísmo insiste na pluralidade de seu conteúdo, que exige pluralidade de leituras e aplicações. A revelação não acabou. Continua constantemente nas próprias leituras e interpretações e aplicações diversas. O pluralismo é a ferramenta imprescindível, estabelecida pelo próprio Deus para continuar sua revelação através dos homens. Mais ainda: o próprio Deus se autodefine nessa expressão como vivente. Vivente apenas através dessa diversidade. Para que a divindade tenha vitalidade precisa da diversidade humana. Só assim se revela a divindade na sua essência diversa.
Nas mitzvot
No judaísmo, a ética e a religiosidade misturam-se essencialmente numa profundidade extrema. O judaísmo não acredita que é possível servir a Deus apenas na sinagoga e através dos rituais. É bem sabido que existem preceitos que vinculam o homem com o homem e não apenas preceitos que vinculam o homem com Deus. O que não é tão sabido é que talvez a maior virtude dessa classificação é sua imprecisão. É muito difícil achar apenas uma mitzvá que consiga ficar só numa das duas categorias e não na outra. Por exemplo, a mitzvá mais religiosa, que parece mais puramente limitada ao terreno homem – Deus, a reza, é feita em plural, num espaço público, junto a várias pessoas, com um texto destinado a unir a todas. Presentes e ausentes, vivos, mortos e aqueles que ainda não nasceram. Ou seja, a reza é também um marco humano,
Ivana Budja / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 11

precisa de referenciais humanos. Por outro lado, a tzedaká, que poderia ser um exemplo de preceito ético exclusivamente, que poderia vincular apenas o homem com o homem e não com Deus, é ordenada e fiscalizada pelo próprio Deus. Os preceitos que unem o homem com Deus unem também o homem com o homem. E vice-versa. A ética mistura-se com a teologia. A teologia com a ética.
Na Torá
A parashá kedoshim, que apresenta o conceito religioso de santidade, estabelece que o homem deve procurar sua própria santidade porque Deus é santo, só que para fazê-lo precisa principalmente ter uma conduta ética que inclui: pagar salários dignos e em dia, não odiar, não guardar rancor nem se vingar, não aproveitar as fraquezas do próximo, não ficar passivo perante o sofrimento do próximo e amá-lo como a nós mesmos. Ou seja, o conceito de santidade, que nos faz similares a Deus, expressa-se na Torá através da prática da ética mesma. Parecer-se com Deus, segundo esse texto básico da ética judaica, é ser mais humano com os humanos. A prática da melhor humanidade é a que nos aproxima da divindade. O texto que pretende falar da religiosidade através da santidade estabelece a ética como caminho principal!
Nos profetas
Mais tarde, os profetas disseram que nenhuma atividade ritual tem sentido religioso enquanto o indivíduo e a sociedade na qual vive forem insensíveis ao sofrimento e à injustiça. Amós, Isaias, Oséas, Miquéas e Malaquias dizem que Deus afirma detestar os rituais que ficam apenas no templo, ao invés de representar a atitude reta e bondosa na vida real, fora do templo.
Na linguagem e nos ketuvim
A palavra “ética”, de origem grega, é usada também no hebraico moderno, mas existe uma outra palavra de origem bíblica, também usada para o bem e a moral: mussar. Ela aparece principalmente no livro dos provérbios, equiparada com a Torá mesma! Parece que foram sinônimos ou, no mínimo, que fosse o aspecto principal da Torá, aquele que o pai transmite ao filho.5 Parece o resumo ou o sinônimo da palavra educação ou transmissão. Aliás, a raiz da palavra mussar é a mesma que a raiz do verbo transmitir e dos substantivos tradição e transmissão.
Na filosofia judaica medieval Assim foi que a partir da Idade Média desenvolveu-se o conceito de mussar, de modo que reuniu não apenas a ética prática com a religiosidade, mas também com a autopsicanálise. A ética passou a ser uma disciplina que não apenas se manifesta na prática do bem, mas que representa uma ferramenta de autoconhecimento. É por meio do mussar que a pessoa se conhece em seu interior, se autoavalia, dialoga com ela própria e pratica uma psicanálise de si mesmo. O último capítulo do primeiro livro de filosofia Emunot veDeot, de Saadia Gaon, foi dedicado ao trabalho individual com as forças e as fraquezas da personalidade, a fim de purificá-la em prol de uma ética saudável. Só assim é que segundo o autor a pessoa atingiria o maior bem. Depois veio o Livro dos Deveres do Coração, no qual Bachyei Ibn Pakuda no século 11 marcou novas mitzvot. Segundo ele, além de todas as mitzvot conhecidas, às quais chamou os deveres dos órgãos físicos, existem outras, muito mais profundas e importantes, destinadas exclusivamente a purificar eticamente a personalidade para que assim se atinja a maior espiritualidade. Esses são os deveres do coração. A sucá, a chalá, o kidush e a reza mesma, uma vez que são praticadas com os órgãos físicos, são preceitos primários, básicos. Os que vêm depois são os que mexem com a pessoa mesma, com sua personalidade, e acabam transformando-a profundamente. Esses preceitos não contêm nenhum ritual físico externo. Chamam-se deveres do coração e trabalham exclusivamente o espírito da pessoa através do bem. Uns cem anos depois, Maimônides também dedicou o último capítulo de seu livro de filosofia, More Nevuchim, ao resumo e à conclusão do caminho que leva, segundo ele, a imitar Deus: polir a personalidade ética, para atingir maior religiosidade.
É precisamente o judaísmo liberal que retomou a ênfase ética do judaísmo ao focar o conceito de tikun olam. Por meio dele a pessoa reconhece seu comprometimento em melhorar o mundo através de uma responsabilidade social, que começa com um comprometimento total com o bem, que começa com um trabalho profundo e sincero com a personalidade.

Diferentemente de outras religiões, o judaísmo não é universalista, ou seja, não acredita que sua prática deva ser uma prática universal.
Na modernidade
Nos começos da modernidade, na ultraortodoxia desenvolveu-se o movimento mussar na figura do Rabino Israel Salant, que levou ao universo das yeshivot o dever de trabalhar a personalidade íntima como único caminho espiritual para praticar o bem e se aproximar de Deus. No entanto, nos nossos dias testemunhamos um judaísmo ortodoxo focado nos rituais físicos externos, nas formas mais superficiais. Como se a meta final do judaísmo fosse a forma da sucá, o tipo de ramo que a cobre, as gramas de matzá que devemos comer no Seder e a ordem na qual devemos acender as velas de Chanucá.
A ênfase no acolhimento do estrangeiro é diferente em Sucot e do contato direto com a natureza, a ênfase da liberdade de preconceitos no pensamento e na emoção a ser trabalhada em Pessach e a ênfase na luz da autodeterminação a ser desenvolvida em Chanucá, foram recolhidas pelo judaísmo liberal.
É precisamente o judaísmo liberal que retomou a ênfase ética do judaísmo ao focar o conceito de tikun olam. Por meio dele a pessoa reconhece seu comprometimento em melhorar o mundo através de uma responsabilidade social, que começa com um comprometimento total com o bem, que começa com um trabalho profundo e sincero com a personalidade. Foi Netzer olami, o movimento juvenil judeu liberal, que escolheu divulgar o objetivo de tikun olam através de tikun há chevrá (reparo da sociedade), tikun hakehilá (reparo da comunidade), tikun hamishpachá (reparo da família) e tikun atzmi (reparo da individualidade).
Religião que prega ética interpessoal, que precisa de autopsicanálise para atingir a maior espiritualidade. Isso é aspirar a imitar Deus.
A verdadeira e mais profunda religiosidade judaica, segundo todo esse desenvolvimento que começou na parashá kedoshim, continuou nos deveres do coração e hoje no tikun olam talvez explique científica e antropologicamente porque temos uma religião que nunca trouxe aqueles horrores. Mais ainda, uma religião que sempre se oporá a eles, lutará contra eles e promoverá o contrário: a vida, o bem e a necessidade da diversidade.
Ruben Sternschein é rabino ordenado pelo Hebrew Union College e serve à Congregação Israelita Paulista (CIP).
Notas
1. Segundo o filósofo da ética Immanuel Kant, o bem de uma norma ou de um princípio depende da medida em que pode ser aplicado por todo mundo. Podemos afirmar que nosso princípio é bom uma vez que estamos dispostos a que seja adotado por todo mundo, que todos vivam como nós e atuem como nós, que se comportem conosco segundo nossos parâmetros de conduta. 2. A teoria se baseia numa interpretação totalmente marginal do salmo 118 segundo a qual uma possível vingança é insinuada contra quem persegue o judeu. 3. Na ultraortodoxia dos últimos dois séculos existem referências negativas ao alheio ao judaísmo criticadas duramente pela ampla maioria das linhas majoritárias. Algumas delas baseiam-se em frases talmúdicas e medievais sobre a função dos demais povos na história educativa e de purificação dos judeus. 4. Existem apenas sete mitzvot dos filhos de Noé que incluem principalmente não matar, evitar o sofrimento dos animais e a idolatria, ou seja, a maioria absoluta das pessoas de nossa era cumprem com eles mesmo sem sabê-lo. 5. Ver, por exemplo, Provérbios 1:8.