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Pilpul: Como valorizar o Pergaminho da Mezuzá?
como valorizar o pergaminHo da mezuzá?
Terry Wilson / iStockphoto.com A questão que será debatida neste Pilpul é sobre a obrigatoriedade de aderência ao formato tradicional do pergaminho da mezuzá, denominado claf em hebraico. Será que o trabalho do escriba ritual (sofer em hebraico) pode ser substituído por folhas de papel sulfite e uma impressora jato de tinta?
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Pilpul é o nome dado ao tradicional processo judaico de debate religioso e na Devarim isto funciona assim: primeiramente dois expositores colocam seus pontos de vista a respeito do tema. Em seguida convidamos os leitores a enviar suas observações particulares sobre o assunto para o e-mail devarim@arirj.com.br e desta forma colaborar na ampliação da abrangência da reflexão sobre o assunto.
A questão proposta se justifica pelo fato de que numa considerável parcela dos objetos rituais a diversidade dos formatos é a regra geral. Incluem-se nesta categoria as chanukiot, as kipot, os talitim, os livros de reza e muitos outros.
O fator determinante para a qualificação destes objetos como sendo objetos rituais é a sua usabilidade. É impensável, por exemplo, que uma chanukiá (o candelabro utilizado na festa de Chanuká) não contenha exatamente nove velas, pois se isto acontecer ela não servirá para o propósito ao qual se destina. Assim como um livro de rezas que não contenha o texto das rezas, deixa de sê-lo.
Parece então que basta que o objeto cumpra a sua função para que seja considerado um objeto ritual. O gosto, a criatividade e o orçamento de cada usuário seriam os fatores decisivos para a definição dos formatos. Mas não é bem assim! Existem objetos nos quais nenhuma mudança é admitida.
Percebam que não existe caso de sinagoga que tenha substituído o pergaminho do rolo da Torá por um livro. Mesmo considerando as suas muitas vantagens práticas – possibilita acesso direto à informação, sem necessidade de ficar enrolando e desenrolando o pergaminho; são muito mais baratos, o que aliviaria o orçamento das sinagogas; poderia ser impresso com os pontinhos e numa letra maior e mais clara do que a tradicional, evitando erros de leitura –, os livros não se prestam para a leitura ritual do texto sagrado.
Aquilo que vale para o livro de rezas, que é impresso em dezenas de milhares de formatos diferentes, não vale para o livro da Torá. Não obstante o fato de que ambos nasceram como rolos de pergaminho, num se admite aplicar a mais moderna tecnologia, enquanto que no outro, qualquer inovação é motivo para sua descaracterização.
Faz sentido aplicar esta diferenciação? É o que vamos debater a seguir.
Primeiro expositor
Nossa discussão se inicia num aspecto que pode ser sintetizado pela seguinte pergunta: Qual o valor de fato de nossos objetos rituais? Para que efetivamente serve cada um dos elementos materiais que utilizamos nos ritos judaicos?
Estes objetos correspondem sempre a um apoio, um caminho para nos ajudar a alcançar o que o judaísmo nos propõe, seja como um lembrete, um ponto de concentração, um elemento de orientação ou um estímulo. Nenhum objeto religioso judaico tem valor místico ou poder próprio, porque isso configuraria uma forma de idolatria ou magia, o que é totalmente repudiado em nossa religião. Assim sendo, não se pode justificar a persistência num determinado formato ou método de confecção dos objetos rituais a partir da premissa de que, sendo confeccionados de forma distinta, não “funcionariam”. Portanto, o critério da usabilidade, referido na abertura do Pilpul, parece ser o único critério válido para determinar a adequação de um objeto ritual.
No entanto, nossa visão é de que há alguns objetos religiosos que devem ter sua preparação tradicional mantida.
A nosso ver, temos três aspectos a serem ressaltados quanto aos objetos que fazem parte de nossos ritos, sem querer aqui esgotar todas as nuances do tema: seu uso comum, sua perenidade e a melhor alternativa para que cumpra sua função.
O uso comum permite que a comunidade se solidifique e mantenha-se coesa. A maioria dos judeus, mesmo os que não se identificam com a religião, utilizam a mezu-
Segundo expositor
Aabertura deste Pilpul estabeleceu o fato de que alguns objetos rituais podem ser modificados e outros não e que o claf da mezuzá encontra-se atualmente na segunda categoria. A questão em estudo é avaliar se é conveniente modificar esta situação.
Na minha opinião, estamos errando ao não tolerar de forma ampla e irrestrita mudanças na forma de elaboração do claf. Acredito que uma atualização tecnológica seria muito bem-vinda se fosse realizada com o objetivo de aumentar a relevância da mezuzá dentro do ambiente em que é usada. Explico-me a seguir:
É importante entender antes de tudo que o ritual nunca deve se transformar num objetivo em si. Nossos profetas dedicaram suas vidas a este ensinamento e nos deixaram um legado, onde empregaram rios de tinta, com poderosas mensagens tais como a proferida por Micá:
Acaso se comprazerá o Eterno com milhares de carneiros e com rios de azeite? ... A ti foi dito, ó homem, o que é bom e o que o Eterno exige de ti: somente que saibas agir com justiça, amar a benevolência e caminhar humildemente com teu Deus! (Micá 6:7-8).
Micá ensina que Deus não quer o ritual vazio e sim que o ritual seja o sustentáculo da busca pela justiça, pela benevolência e pelo caminhar humilde. Eu infiro a partir daí que Deus não deseja o pergaminho da mezuzá e sim que saibamos cumprir com o que está lá escrito.
Não entrarei aqui na descrição do texto do Shemá, que vai dentro do pergaminho da mezuzá, pois a questão a ser analisada é qual a relevância de seu formato e não o
zá em sua porta, identificam-se como judeus para o mundo exterior a partir da mesma. Ainda que não saibam o que está escrito no claf, a presença da mezuzá atingirá seu objetivo ao lembrar aos moradores da casa: sou judeu, tenho um compromisso ético e valores a serem mantidos, seja na minha casa ou fora dela. E, quem sabe, a presença da mezuzá não será um estímulo para uma aproximação com uma vivência judaica mais ampla. Sempre é bom lembrar que a síntese judaica feita por Hilel, “não fazer ao outro o que não se deseja para si” é seguida da recomendação: “agora vai e estuda”.
A perenidade caracteriza o vínculo histórico que permite a construção da identidade religiosa sobre uma base preexistente, assegurando também a motivação para a continuidade. Essa ligação atávica, que nos leva de Avraham a Moshé, dos profetas aos grandes comentaristas talmúdicos, das transformações no universo judaico provocadas pela Haskalá (iluminismo judaico) ao Holocausto, da fundação do Estado de Israel aos nossos dias, tem nos objetos rituais um auxílio. Eles materializam este vínculo atravessando séculos, ganhando importância à medida que estimulam nossa memória e nossa responsabilidade, ajudando-nos a perceber que as mudanças ocorridas não diminuem nossa identidade, para cuja construção todos estes momentos contribuem.
Sob as duas óticas acima, a presença da mezuzá como parte de nosso equipamento religioso se justifica plenamente, mas ainda não se materializa a necessidade (ou o desejo) de preservar seu método tradicional de confecção. Para isso, temos que incluir o terceiro aspecto que relacionamos, ou seja, a de ser esta forma o melhor caminho para que a mezuzá cumpra sua função de alerta.
A mezuzá contém apenas um pequeno trecho da Torá, mas representa sua mensagem integral, e isso é fortalecido pela manutenção de processo similar em sua elaboração, sendo escrita por um especialista, sobre pergaminho adequado, tal como a Torá. O valor associado a este método tradicional, longe de se relacionar a qualquer poder ou magia, faz parte de um contexto mais amplo, em que a consciência das particularidades para sua preparação deve nos alertar para as particularidades que se impõe no cumprimento das normas de conduta que pautam a vida judaica.
Aproveitando o conceito do marketing moderno, de que “forma é conteúdo”, podemos também entender uma mensagem subliminar contida no fato de que, apesar das
seu conteúdo. Pela inferência feita acima decorre que a rigor nem mesmo a mezuzá seria necessária. Bastaria que a mensagem fosse entendida e rigorosamente seguida. A mezuzá é um mero agente para a memória. Ela é necessária para nos lembrar dos ensinamentos e, assim sendo, para quem se lembra ela é inútil e para quem se lembrará a partir dela qualquer formato seria válido.
No entanto sou de opinião que o descaso na transmissão desvaloriza completamente a mensagem. Em outras palavras: mensagens sublimes devem ser transmitidas de forma sublime. Assim que sou favorável a que haja a mezuzá e a que ela receba o tratamento dispensado aos objetos relevantes que possuímos.
Parece-me que esta foi a intenção dos formuladores das normas judaicas ao preconizar um método de escrita do claf dentro da técnica mais apurada existente em sua época. Eles entendiam que um ensinamento fundamental deve ser transmitido com o apoio dos melhores métodos disponíveis, conforme a mais apurada tecnologia existente.
Esta percepção foi reforçada por uma visita ao Museu de Israel em Jerusalém onde vi que na época do Segundo Templo os judeus pregavam plaquinhas de prata com o texto do Shemá nos umbrais de suas portas. A meu ver estas plaquinhas devem ser as antepassadas das mezuzot em seu formato atual, pois elas satisfazem com perfeição o que está escrito na Torá: “E as escreverás [as palavras] nos umbrais de tua casa e em tuas portas” (Devarim/Deuteronômio 6:9) e o processo de gravação em prata é sem dúvida um processo sofisticado.
No entanto, parece-me que em algum momento da nossa caminhada perdemos de vista a diferença entre processo e finalidade e congelamos os métodos do passado. Ao fazer isto valorizamos o processo, às vezes em detrimento do conteúdo.
Assim, hoje todos exigem um pergaminho escrito por um escriba treinado conforme a tradição milenar, porém poucos se dão ao trabalho de ler o que vai escrito em suas portas. E destes, apenas alguns dedicam tempo e esforço para analisar com suas próprias mentes e percepções o que está lá escrito, confrontando o ensinamento judaico e assimilando-o em suas vidas.
Desta forma, sou favorável a que o pergaminho da mezuzá seja substituído por um método mais moderno de impressão, mas apenas se esta substituição trouxer mais

inúmeras apresentações possíveis para a parte externa das mezuzot, seu interior permaneceu inalterado através dos anos: no judaísmo, mudaram hábitos e ritos, mas a essência de sua mensagem persiste através dos séculos.
A natureza quase artística da preparação do claf contribui para conduzir o uso da mezuzá ao seu sentido original, porque transmite toda a força imaterial e a inspiração da arte. Seu caráter único recorda que também cada um é único, sendo única a forma de relacionar-se com o mundo que nos cerca. Devemos buscar fazer de nossas vidas algo especial, retribuindo o milagre da existência com ações que a justifiquem.
A origem da palavra mezuzá é “o que movimenta” (o verbo lehaziz, em hebraico, significa mover) e se vincula ao movimento das portas, onde deve ser colocada. Por isso, finalizamos fazendo uso das palavras do Shemá: que a mezuzá às nossas portas possa servir de impulso para o bem ao sairmos de nossa casa ou quando a ela retornarmos, que nos mova na direção do melhor que podemos ser e nos inspire sempre, nos portais de nossas vidas.
(R. G.)
compreensão ao texto e aderência da família aos ensinamentos do nosso riquíssimo legado cultural.
E sou não apenas favorável como acredito que esta atualização, quando feita com consciência quanto ao seu objetivo, resgataria o papel que a mezuzá representou para nossos antepassados e nos colocaria mais próximos aos ensinamentos do Tanach.
Em outras palavras: se você se dispuser a escrever com esmero e compreensão o texto a ser afixado em sua porta, estudando-o e trazendo aquelas palavras para dentro do coração de sua família, é melhor que use o texto preparado por você do que o terceirizado a um escriba. E neste caso o texto pode ser impresso sim.
Mas, caso a substituição seja motivada apenas por interesse econômico, com falta de compreensão de todo o processo que reveste a mezuzá, você estará errando menos ao adotar um pergaminho tradicional.
(R. C. G.)