
13 minute read
Marcelo Treistman
estado judeu democrático e a revolução constitucional: uma análise jurídica
Émuito comum ouvir nos meios acadêmicos e nas discussões comunitárias, inclusive nas sinagogas e tnuot (movimentos juvenis), referências negativas sobre a ausência de uma Constituição em Israel. A falta de um documento formal e consolidado que represente a carta de direitos e garantias fundamentais do Estado colocaria sob suspeição, segundo a opinião de alguns, a democracia israelense.
Advertisement
Essa discussão começa antes mesmo da criação do país e tem origem na Declaração 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas, mais conhecida como o Plano de Partilha da Palestina. Esta resolução determinava expressamente a necessidade da criação de uma constituição democrática nos dois países que deveriam nascer em breve (o Estado judeu e o Estado árabe).
Como sabemos, o Estado árabe ainda está para ser fundado. Mas no Estado de Israel, desde 1948, intensos debates acerca da feitura de uma constituição pela Knesset (Parlamento) enfrentaram a oposição de uma liderança dividida. David Ben Gurion, o grande líder do ishuv (a comuni-
7 A Suprema Corte de Israel busca no Direito Natural e na essência de um regime de governo democrático os limites para a atuação do governo.
marcelo treistman
dade judaica pré-Estado), considerava que a carta constitucional simbolizava uma ideia proveniente de lutas econômicas e sociais de séculos passados, as quais não mais existiam. Não foram poucas as vezes que, sempre em discursos inflamados, lembrou que no Reino Unido, apesar da ausência de uma constituição escrita, o Estado de Direito e a democracia estavam solidamente ancorados.
Para os partidos religiosos ortodoxos, a carta constitucional representava uma instância legal acima da Torá – o que era (e ainda é) inconcebível para eles, da mesma forma como o é em todos os Estados teocráticos espalhados pelo mundo, dos quais o Irã é o exemplo mais vivo.
Havia ainda o receio de um embate político-cultural feroz entre religiosos e laicos no recém-criado Estado de Israel, o que, de forma sensata, as lideranças políticas tentaram evitar. Importante lembrar que, ato contínuo à criação do Estado judeu, o país viu-se imerso em sua primeira grande guerra existencial, o que dificultou sobremaneira a convocação de uma assembleia constituinte.
Em 1950, dado o entrave político, o chaver knesset (parlamentar) Izhar Harari propôs uma grande ideia. O Parlamento israelense criaria as chamadas “Leis Básicas”, que futuramente seriam reunidas em um único documento –
Constituição. Essas “Leis Básicas” têm como característica especial a dificuldade de modificação, necessitando para tal de um quórum privilegiado.
Assim declarou Harari: “A Constituição será feita por meio de capítulos, cada um desses constituirá uma ‘Lei Básica’ em separado. Os capítulos serão levados ao Knesset quando o Comitê completar seu trabalho, e todos os capítulos conjuntamente constituirão a Constituição do Estado”.
Aceita a proposta conciliatória de Harari, desde 1950 até hoje onze “Leis Básicas” foram criadas. Entre outras funções, elas organizam os poderes do Estado, estabelecem competências, defendem a propriedade privada e protegem o indivíduo, elevando a dignidade do ser humano a um pilar máximo no país. Como todo país que não possui uma constituição formal, Israel possui um Poder Judiciário extremamente ativo. Era este Poder que, até a década passada, exercia solitariamente o controle das leis, tendo em vista que não se podia arguir que uma lei aprovada pelo poder legislativo era “inconstitucional”.
Qualquer indivíduo que se sentisse prejudicado pela promulgação de uma lei deveria ajuizar uma ação e, desta forma, provocar o Poder Judiciário. Caso a Suprema Corte julgasse procedente a ação, havia a interferência no Poder Legislativo, com a declaração de que a lei não preenchia os valores do Estado. Na falta de uma limitação ao processo legislativo, o fardo do controle de validade das leis recaía sobre os juízes.
Fica claro que, na falta de uma Constituição formal que imponha obstáculos ao exercício do poder discricionário do Poder Legislativo, a Suprema Corte busca no Direito Natural e na essência de um regime de governo democrático os limites para a atuação do governo.
Os tribunais são obrigados a encontrar os valores sobre os quais o Estado está apoiado para justificar suas decisões. Então, quais seriam esses valores? A resposta encontrada desde o primeiro dia de existência do Estado de Israel: judaísmo e democracia.
Não há dúvidas de que a ligação entre a vida real e as regras jurídicas representam uma via de mão dupla. A realidade influencia as regras jurídicas: a legislação e a jurisprudência – juntas – deram expressão ao fato de que o Estado de Israel é um Estado judeu e também é um Estado democrático. Em paralelo, as regras jurídicas influenciam a realidade: a legislação e a jurisprudência fortaleceram, persistentemente, a característica judaica e a característica democrática do país.
Com relação à característica judaica do país, podemos facilmente observar inúmeras sentenças que contêm fontes judaicas em sua redação, como a Torá, a Guemará e a Mishná. Além disso, a exegese israelense proclama que, na ausência da norma, os juízes deverão buscar a solução dos conflitos nos princípios de liberdade, justiça, integridade e paz contida na “herança do povo de Israel”.
Com relação à característica democrática, desde sem-
David Ben Gurion considerava que uma Constituição simbolizava uma ideia proveniente de lutas econômicas e sociais de séculos passados.

pre existiu a percepção de que a lei destinava-se a cumprir os valores da democracia, como liberdade de expressão, direitos fundamentais, alternância de poder, etc. Então, interpreta-se a lei para que o dano a estes valores sejam limitados e somente nas circunstâncias que o justifique. Nesta direção, os tribunais utilizam a democracia como base para as suas decisões e, consequentemente, as decisões são usadas como base para o estabelecimento de um real Estado democrático.
Apesar do aparente vácuo gerado pela ausência de uma constituição, o espírito libertário contido na Declaração da Independência foi a força motriz que impulsionou o ativismo judicial da Suprema Corte, assumindo o papel de guardiã dos valores judaicos e democráticos do Estado, com ênfase na proteção dos direitos humanos.
Mas há exatamente quinze anos esta situação começou a se modificar. Israel passou pela chamada “revolução constitucional”. Em 1992 e 1994, respectivamente, a Knesset promulgou duas novas “Leis Básicas” – “Dignidade da Pessoa Humana – sua Liberdade” e “Liberdade de Ocupação”, finalizando o conjunto de onze “Leis Básicas” existentes no país.
Estas duas leis mudariam para sempre o regime jurídico-legal do país transformando a relação entre os três poderes e modificando a compreensão do significado de Israel existir como um Estado judeu democrático. E este fato é normalmente ignorado nas discussões comunitárias às quais me referi na abertura do texto.
A Lei Básica “Dignidade da Pessoa Humana e sua Liberdade” (1992), aprovada pela décima segunda Knesset, é destinada a ser a carta de direitos humanos de Israel. Devido à grande oposição dos partidos religiosos ortodoxos, foi aprovada em parte. Declara, no entanto, que em Israel os direitos humanos básicos são baseados no reconhecimento do valor da pessoa humana e na santidade de sua vida.
Dentre os direitos considerados básicos retirados do texto original se destacam: direito à igualdade, liberdade de expressão, liberdade de religião e liberdade de protesto. Entretanto, em mais um capítulo do ativismo judicial israelense, Aharon Barak – presidente da Suprema Corte –
Há exatamente quinze interpretou estes direitos como sendo dianos Israel passou pela chamada revolução retamente derivados da expressão “direito à dignidade” contida na lei. Por exemplo, com relação à liberdade constitucional. de expressão, os tribunais já haviam sen-
Em 1992 e 1994, tenciado que este direito “pertence ao mesrespectivamente, a mo grupo de direitos que não estão escritos
Knesset promulgou nos livros, mas são provenientes diretamente do caráter democrático do país que adduas novas Leis voga em prol da liberdade” (Suprema Cor-
Básicas: Dignidade te 243-1962 – Salas de Cinema Israelense da Pessoa Humana e Ltda. vs. Gary). Por isso, a “censura” não Liberdade de Ocupação, tem permissão para exercer a sua compefinalizando o conjunto tência concedida por lei sem antes pesar a possibilidade de atingir a liberdade de exde onze Leis Básicas pressão. “Deverá haver um equilíbrio neexistentes no país. cessário, cada caso analisado de modo particular, entre o dano à segurança do país ou à paz pública e entre o dano à liberdade de expressão”. (Suprema Corte 73-1953 – Kol Haham vs. Ministro do Interior). A Lei Básica “Liberdade de Ocupação” (1994), aprovada pela décima terceira Knesset, garante o direito a todo cidadão ou habitante de desempenhar ocupação, profissão ou comércio, desde que não contrariado por lei e pelos valores do Estado de Israel. Desta forma, completava-se assim o rol de liberdades pessoais elevados ao pilar mais alto na hierarquia de leis. Alem disso, de agora em diante, toda lei promulgada pela Knesset deverá atravessar a “barreira” legislativa expressa pelo artigo 8 da Lei Básica “Dignidade da Pessoa Humana e sua Liberdade”: “Não deverá haver violação de direitos regulados por essa Lei Básica exceto por lei que se compatibilize aos valores do Estado de Israel, designada a objetivo próprio e evidente, e na proporção necessária, ou em virtude de regulamentação expressa em lei”.
A inovação
Certamente, a maior inovação nestas “Leis Básicas’ foi a declaração, no corpo do texto, de que o Estado de Israel é um “Estado judeu democrático”. Fotografando uma situação real e adicionando uma importante dimensão na consequência destas palavras. Foi a primeira vez que uma lei israelense, e, neste caso,
uma “Lei Básica”, declarou expressamente que o Estado de Israel é um Estado judeu e é também um Estado democrático, mudando o status jurídico destes valores sobre os quais o país encontra-se apoiado.
Como demonstrado, o judaísmo e a democracia eram valores utilizados até então apenas como “valores moderadores”, fornecendo aos tribunais inspiração e direção. Funcionavam como uma ferramenta de interpretação das leis e cristalização de sentenças.
Estas novas “Leis Básicas” forneceram o ingrediente necessário para que a Suprema Corte israelense, de uma só tacada, iniciasse a “revolução constitucional”, declarando a existência de leis superiores no país, e terminando um trabalho não realizado pelo Poder Legislativo – “promulgava” a constituição sem nunca ter existido uma Assembleia Constituinte.
Em 1995, no julgamento que selou a “revolução”, a Suprema Corte assim declarou acerca do artigo 8 da “Lei Básica” promulgada apenas um ano antes:
“Qualquer lei nova que venha causar um dano nos direitos estabelecidos por estas Leis Básicas, ou que contradiga os valores do Estado Judeu Democrático, serão passíveis de serem declarados pelo tribunal como lei, ou norma inconstitucional, e portanto, inválida”. (Corte de Apelação Civil 6.821-1993 – Banco Mizrahi Hameuhad Ltda. vs. Migdal Cafer Shitufi).
Chegamos em um estágio em que podemos denominar os direitos e conceitos defendidos por estas “Leis Básicas” de princípios constitucionais: norma jurídica acima da norma da lei.
Desta forma, Israel torna-se uma democracia constitucional. Nos juntamos ao grupo de nações iluminadas pela democracia, em que direitos humanos ganharam força constitucional acima das leis simples. Similar a Estados
A manifestação de cem mil intolerantes
Se eu fosse um daqueles indivíduos que acredita em destino, teria ficado maravilhado com a “improvável” coincidência. Poucos minutos após colocar o ponto final no texto para a Devarim fui surpreendido ao assistir no noticiário noturno imagens que se relacionavam diretamente com o texto que havia acabado de escrever.
Cem mil (cem mil!) judeus ultraortodoxos participavam de uma manifestação em Jerusalém contra a decisão da Suprema Corte israelense que determinou o fim da exclusão de meninas de famílias ultraortodoxas sefaradiot de uma escola ultraortodoxa ashkenazi. A escola havia recusado as estudantes unicamente por uma razão étnica.
Quinze anos atrás, antes da promulgação das duas “Leis Básicas” que analisei no texto, os juízes teriam dificuldades em obrigar a escola a abandonar práticas discriminatórias. Isto porque a lei israelense concede independência à comunidade ultraortodoxa para estipular as regras de funcionamento de suas instituições de ensino, com autonomia na aceitação de matrículas à definição dos currículos.
Hoje, porém, a Suprema Corte possui os instrumentos que possibilitam o combate ao racismo, à xenofobia e à exclusão. A “Lei Básica” “Dignidade da Pessoa Humana e sua Liberdade” é uma norma superior, constitucional. Ainda que a ultraortodoxia construa e mantenha um sistema educacional próprio, embasando tal conduta numa lei simples, jamais poderá praticar algo negado por uma lei superior.
A revolta dos ultraortodoxos é pela constatação que suas formas discricionárias de interpretar e distorcer a halachá estão com os dias contados. Um manifestante segura uma placa onde se lê: “Escolhemos seguir a Torá”. Eu me pergunto em que parte da Torá ele leu que meninas não podem conviver no mesmo banco escolar porque seus avós provêm de locais diferentes. A Torá que eu escolhi seguir diz vehahavta et earecha camocha (amarás ao próximo como a ti mesmo) e que a mesma lei que se aplica aos filhos de Israel se aplica aos não judeus que vivem junto com o nosso povo.
A Suprema Corte mais uma vez nos contempla com uma sábia decisão ao determinar a tênue linha do significado de vivermos em um real Estado judeu democrático. Demonstra a todos os habitantes do país que aqueles que defendem um judaísmo ausente de valores democráticos não possuem lugar em Israel.
As duas novas “Leis Básicas” criadas há pouco e a atuação dos nossos juízes colocarão de uma vez por todas um fim na era de escuridão à qual cem mil intolerantes desejam nos levar.

Um dia os pilares da democracia e do judaísmo em Israel vão se tornar apenas um único pilar; na foto, a Suprema Corte de Israel.
Unidos, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão e outros países ocidentais, Israel possui uma defesa constitucional dos direitos humanos. Além disso, cria uma defesa constitucional para existir como um Estado judeu e democrático. Obviamente, há inúmeras críticas dentro do país no que tange ao ativismo judicial da Suprema Corte israelense. Diversos estudiosos, juristas e professores não concordam com a ideia de que vivemos em um país que possui uma constituição, apegando-se a conceitos juridicamente ortodoxos.
A verdade é que isso não importa nem um pouco. De agora em diante, toda lei nova sofrerá uma limitação dentro do próprio processo legislativo. Isto porque existe uma norma superior que limita a ação dos parlamentares: nenhuma lei poderá negar os direitos humanos estipulados nas “Leis Básicas” descritas acima e/ou negar o caráter do país como um Estado judeu democrático.
Certamente, a situação atual contribui para “apimentar” a pergunta em Israel sobre o que significa existir como um Estado judeu e existir como um Estado democrático. Em especial, qual a ligação entre estes dois valores.
Cada valor corresponde a um mundo de correntes e mecanismos. Existem centenas de livros atuais que tentam explicar o que significa viver em um país fundado nestes dois valores. Nossa tradição ensina em relação ao judaísmo: “Procure, procure que tudo está aqui”. Podemos dizer que, de modo semelhante, assim é a democracia.
Existem correntes consideradas extremistas, que interpretam o judaísmo como um valor incompatível com a democracia. Acreditam que o judaísmo não sobreviveria aos ideais iluministas que criaram a Idade Moderna.
Existe, obviamente, a corrente extremista dos democratas, que não está nem um pouco satisfeita com certos eventos específicos expressos pelo caráter judeu de nosso país.
Eu entendo que é bem possível, ainda que cheio de contradições, cristalizar o entendimento entre estes dois valores. Isto porque entendo que eles possuem um amplo denominador comum. Se nós renunciarmos às propostas dos dois extremos, estes valores podem conviver em paz, um ao lado do outro.
É isto que vem afirmar estas duas “Leis Básicas”, recentemente aprovadas pelo governo israelense, e interpretadas de forma brilhante pelos sábios juízes da Suprema Corte israelense: Israel é um Estado judeu e também um Estado democrático, concedendo a todos os cidadãos direitos e garantias fundamentais através de uma lei superior.
Desta forma estamos protegendo aquilo que mais nos orgulhamos – a existência de um Estado judeu essencialmente livre e democrático – unindo eternamente o judaísmo à democracia, e esperando o dia em que estes dois pilares possam se tornar apenas um.
Não hipótese, nem antítese, e sim a síntese de um novo país.
Marcelo Treistman é advogado, mora em Israel desde 2007 e é Chazit de coração.