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Nelson Hoineff
YellniKoff, gopniK e a identidade on-line
Identidade é detalhe; é nicho; está espalhada por toda parte. Quando o personagem de um filme é judeu e age como tal, cria-se entre ele e os judeus da plateia o laço do judaísmo. Um a cada três espectadores se perguntará o que os não judeus estão percebendo disso. Essa identidade que está na tela, num livro, numa receita, num odor ou numa mera citação, está hoje em cada canto. Sim, a identidade é prima-irmã dos mecanismos de busca digitais.
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A construção de imagens nos diz muito sobre povos, raças e eventos. E, no entanto, desde que as plataformas digitais revolucionaram as comunicações, a natureza dessa construção e, principalmente, os mecanismos de distribuição, nos dizem muito mais.
Por natureza da construção podemos inferir, por exemplo, a credibilidade das imagens construídas. São imagens não apenas documentais, ou de propaganda – mas imagens que podem ser processadas, descontextualizadas, reeditadas sem que isso constitua, pelos padrões vigentes, um delito ético consensual.
As imagens produzidas pelo recente incidente com a flotilha que procurava provocar o bloqueio em Gaza, por exemplo, nos ensinam muito sobre isso. Parte do incidente foi produzida exatamente para que algumas imagens pudessem acontecer. Mas há uma distância muito grande daí para, digamos, a natureza das imagens produzidas por Leni Riefenstahl para o rally do Partido Nazista de 1934 em Nuremberg. Num documentário de Ray Muller produzido 60 anos depois, “The wonderful, horrible life of Leni Riefenstahl”, a cineasta do III Reich defende “O Triunfo da Vontade” baseada no fato de que o filme “não contém uma única cena reconstruída”. Cenas reconstruídas num ambiente documental. Apenas 16 anos depois, este não é mais um valor aplicável para se comentar a ética por trás da propaganda nazista feita através da mídia mais popular da época.
É emblemático o fato que, hoje, a expressão “attack to Israel” contabiliza 57 mil ocorrências no Google. Já a expressão “attack by Israel” aparece sete vezes mais, cerca de 378 mil vezes. Isso quer dizer alguma coisa. O que importa não é a produção da informação e muito menos a verdade que esteja contida nela; o que vale mesmo é a estratégia de distribuição dessa informação – que passou a ser sutil, minimalista, viral.
No mundo imagético-digital, toda manipulação pode ser aceitável – e o impacto das imagens junto à sociedade se dá unicamente através das estratégias traçadas para disponibilizá-las aos nichos pretendidos. É fácil perceber isso como uma atitude criminosa nas imagens do incidente de Gaza – mas é bem mais complexo entender a relativização do conceito de “verdade” em filmes que podemos considerar extraordinários, como os de Michael Moore – “Bowling for Columbine” ou “Fahrenheit 9/11” são bons exemplos de como a verdade pode ser torturada e disso
nelson Hoineff
/ iStockphoto.comIuliya Sunagatova

resultem bons “documentários” – ou de Sacha Baron Cohen – em particular uma obra-prima como “Bruno”, que leva essa possibilidade ao paroxismo.
Faço essa introdução para relativizar a noção de filmes com temática judaica, que passam a ser discutidos neste espaço. No início deste ano, pelo menos dois filmes grandiosos, radicalmente judaicos, foram lançados comercialmente no Brasil – e já estarão esquecidos nas locadoras quando essas linhas forem publicadas. É obvio que me refiro a Woody Allen e aos Irmãos Coen, que estão entre os mais importantes cineastas contemporâneos de todos os tempos.
Em “Tudo Pode dar Certo”, o protagonista Boris Yellnikoff está atormentado por uma notável parábola judaica: a vida é tão fascinante que ele não pode levá-la adiante. Ele não fala com os amigos, mas os instrui. Fala diretamente para a plateia, reconhecendo sua existência e desqualificando o mais elementar princípio narrativo do cinema – o pacto da inexistência do aparato cinematográfico, celebrado entre o filme e o espectador, sem o qual, evidentemente, o próprio filme não poderia existir.
Yellnikoff tem uma grande similaridade com Larry Gopnik, o protagonista de “Um Homem Sério”, Joel e Etan Coen. Ambos são físicos e, nos dois casos, a vida
É emblemático o fato deles está fora de controle. A mulher de que, hoje, a expressão Gopnik está deixando-o pelo seu melhor
“attack to Israel” amigo; seu filho só pensa em ouvir rock na escola hebraica e sua filha rouba-lhe contabiliza 57 mil dinheiro para fazer uma cirurgia plástica. ocorrências no Google. Um filme e outro discursam sobre a razão Já a expressão “attack e a fé, ambos mergulham sobre os mitos by Israel” aparece sete vezes mais, cerca de e as ambiguidades dos valores judaicos. “Só depois de ganhar o Oscar pode-se fazer um filme como Um Homem Sério”, 378 mil vezes. resumiu o ex-crítico do Variety, Todd McCarthy. É preciso conquistar a massa para poder voltar-se para o grupo. Quando o cinema passou a falar, em 1927, quem falou foi Cantor Rabinowitz, cujo filho Jake parecia mais interessado em jazz e ragtime do que nas músicas de sinagoga. A voz do cinema soou alto porque ali estava uma oportunidade de fazer dinheiro proclamando, pela música, a identidade judaica através das oportunidades massivas oferecidas pelo meio. As pessoas saíam na neve para ver Al Jolson entre o templo e o cabaré – e celebrar o encontro com sua própria identidade. Agora, vá ao YouTube e procure um prosaico Kol Nidrei: são mais de 650 performances. Quem já sentou em casa para ver todas? Nelson Hoineff é jornalista, crítico de cinema, produtor e diretor de cinema e televisão e sócio da ARI.