Sepultamento no Asfalto Para ler ouvindo a música Construção, de Chico Buarque.
Ontem, em um dos cruzamentos da Avenida Fernandes Lima, principal via de acesso a Maceió, na parte alta da cidade, ao meio dia, um indigente foi sepultado em meio aos automóveis. O homem que alimentava fantasias e exercitava sua frágil vontade, naquele exato momento, sonhava apenas com uma possível festa de seu estômago vazio. Nunca saiu da linha ou perdeu a dignidade pessoal, nem mesmo na hora da morte. Seu jejum não era fantasia e a fome o rondava há meses. Mas seu louvor à vida fazia-o transformar qualquer fruto apodrecido ou resto de comida encontrada no lixo de supermercado, restaurante, lanchonete ou hortifruti, na extravagante arte da sobrevivência. Talvez, naquele último instante, desejou apenas que sua morte se decompusesse em uma ampliação de sua vida, numa exuberante homenagem aqueles que fazem diariamente a digestão do nada. Com certeza, seu desejo era um só: que aquele insignificante evento fúnebre se transformasse em alegoria de um grande desfile carnavalesco, onde o homem comum sobrepuja as adversidades e os infortúnios em nome da alegria. O sangue expelido pela boca deslizava e borbulhava sobre o asfalto quente como chope a ferver. À sua volta trafegavam caminhões, ônibus, automóveis e motocicletas, além de transeuntes curiosos que se aglomeravam em sua volta e multiplicavam comentários desconexos e estapafúrdios a respeito do triste episódio e de seu anônimo protagonista. Um senhor de cabelos grisalhos falou de forma séria e reflexiva para uma jovem senhora que estava ao seu lado carregando uma criança nos braços: “Um fato como esse causa muita consternação, mas é muito difícil para um homem que chega a essa situação escapar da cruel realidade que o destino lhe impõe!”. 62 | Sonetos da Meia Noite Contos do Meio Dia