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Sepultamento no Asfalto

Sepultamento no Asfalto Para ler ouvindo a música Construção, de Chico Buarque.

Ontem, em um dos cruzamentos da Avenida Fernandes Lima, principal via de acesso a Maceió, na parte alta da cidade, ao meio dia, um indigente foi sepultado em meio aos automóveis. O homem que alimentava fantasias e exercitava sua frágil vontade, naquele exato momento, sonhava apenas com uma possível festa de seu estômago vazio. Nunca saiu da linha ou perdeu a dignidade pessoal, nem mesmo na hora da morte.

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Seu jejum não era fantasia e a fome o rondava há meses. Mas seu louvor à vida fazia-o transformar qualquer fruto apodrecido ou resto de comida encontrada no lixo de supermercado, restaurante, lanchonete ou hortifruti, na extravagante arte da sobrevivência.

Talvez, naquele último instante, desejou apenas que sua morte se decompusesse em uma ampliação de sua vida, numa exuberante homenagem aqueles que fazem diariamente a digestão do nada. Com certeza, seu desejo era um só: que aquele insignificante evento fúnebre se transformasse em alegoria de um grande desfile carnavalesco, onde o homem comum sobrepuja as adversidades e os infortúnios em nome da alegria.

O sangue expelido pela boca deslizava e borbulhava sobre o asfalto quente como chope a ferver. À sua volta trafegavam caminhões, ônibus, automóveis e motocicletas, além de transeuntes curiosos que se aglomeravam em sua volta e multiplicavam comentários desconexos e estapafúrdios a respeito do triste episódio e de seu anônimo protagonista.

Um senhor de cabelos grisalhos falou de forma séria e reflexiva para uma jovem senhora que estava ao seu lado carregando uma criança nos braços: “Um fato como esse causa muita consternação, mas é muito difícil para um homem que chega a essa situação escapar da cruel realidade que o destino lhe impõe!”.

A mulher olhou para o lado e desviou o olhar daquele corpo dilacerado estendido no asfalto. Em seguida, concentrou sua atenção no rosto da criança que trazia nos braços que, embora não compreendesse o que se

passava, estava impressionada com a curiosidade que aquele fato despertava nos adultos que por ali passavam.

Ao retornar o olhar para o morto, a jovem senhora descobriuse invadida por um forte sentimento de ausência, como se seu corpo estivesse ali, sem sua alma está presente, e projetou o rosto de seu rebento na face daquele infeliz. Essa imagem que, por instantes, presenciara tão nítida, escapa-lhe instantaneamente da memória, deixando-a com uma forte sensação de impotência, ante os mistérios da vida e da morte que, segundo sua crença, é acaso, sorte ou azar.

Mergulhada nessa confusão mental e emocional, simplesmente solta um comentário afetado: “Calou-se o homem e pouco se sabe o que buscava. Talvez apenas um pouco de felicidade”. Ao que o senhor de cabelos grisalhos respondeu: “Nem isso minha senhora, nem isso! Talvez só quisesse mesmo se livrar da humilhação de ter que morrer de fome!”.

Diante do silêncio que essa observação provocou, um menino de rua, raquítico e maltrapilho, que ouvia o diálogo sentenciou: “Isto é muito triste. Ninguém merece morrer assim!”. O senhor de cabelos grisalho não se conteve e arrematou a ponderação do guri: “A existência tem seus próprios critérios de justiça e desígnios de propósitos. Esse é o verdadeiro mistério da existência garoto!”.

Por fim, três horas depois do fato ocorrido, silenciosamente, chegou o rabecão para recolher aquele corpo esfacelado, anêmico e decrépito, deixando no local, impregnadas no asfalto estorricado, apenas as frustrações daquela alma penada. Aquela enorme mancha avermelhada que ali restou infiltrada no asfalto formara desenhos grotesco que pareciam pretender encobrir as carências e as necessidades de milhares de outros indigentes da

Um comentário final ainda foi feito por uma mocinha sensível que, por acaso, presenciou o acidente e, por algumas vezes, havia ajudado aquela pobre alma, dando-lhe algum dinheiro ou alimento: “Por aquela fresta que se abriu em seu ventre ainda passariam saborosos pratos capazes de lhe proporcionar algum prazer!”.Todos os dias, ao meio dia e em taças especiais, a sociedade faz seu brinde aos farrapos humanos despossuídos, vítimas da perversa lógica capitalista de exclusão social.

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