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O balanço das horas e a marcação do tempo
O balanço das horas e a marcação do tempo
Ele acordou de sobressalto, atordoado e com a sensação de que havia perdido à hora. Não sabia exatamente de quê. Era domingo e, nesse dia que se convencionou titular de descanso semanal, no máximo, teria perdido à hora de ir à praia, bem cedo como era de costume, ou à hora do almoço, bem tarde como era habitual. Mas a verdade é que não havia motivos para desesperação.
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O fato é que uma ideia que a muito lhe ocorrerá voltou a perturbar sua mente e foi reconhecida como a causa mais plausível para essa má e incômoda sensação de desespero passageiro. Já havia algum tempo que Ernesto não andava satisfeito com a concepção e o ordenamento convencional dada à marcação do tempo, embora aceitasse o calendário gregoriano como um fato consumado.
Andava a fazer conjeturas sobre o movimento de rotação e translação da Mãe Terra, que determina dias e noites e coloca o Japão como o país do Sol Nascente. Em suas reflexões solitárias, Ernesto compreendia que o sol não nasce em lugar algum e que, como fenômeno natural, apenas aparece e desaparece a cada 12 horas, em média.
Sabedor que o planeta está dividido em 24 fusos horários, a mesma quantidade de horas que tem o dia, mas cônscio de que quando um fato ocorre em algum lugar do mundo, em sua essência, ele ocorre no mesmo momento em todo o universo, mesmo que o observador esteja no Rio de Janeiro, Moscou, na terra, em marte ou em quaisquer outros lugares de quaisquer galáxias existentes.
Portanto, conhecedor de que o ritmo da vida terrestre, obviamente, é marcado pelo tempo solar, Ernesto não alimentava em sua mente nenhuma confusão quando a isso. Nutria, porém, um conflito de interesse. Uma coisa que não se ajustava bem em sua cabeça.
Japão, para ele, era um insulto inaceitável, pois o tempo ocidental deveria possuir primazia e precedência. Essa obstinação pela anteposição do surgir do sol nas Américas, real ou imaginária, era utilizada por ele para balizar a ideia de que o início do movimento diário da terra sobre seu próprio eixo deveria se iniciar do lado de cá do atlântico.
Ernesto ousava e ia ainda mais longe, elegendo com precisão o local mais adequado para se demarcar o início do dia no planeta. Esse lugar deveria ser a Praia de Cabo Branco, em João Pessoa, o ponto mais oriental das Américas. Lá sim, deveria ser o Ponto Zero de referência do tempo, onde tudo se principiaria e/ou se finalizaria, rotação e translação. Bobo Ernesto não era e compreendia muito bem a complexidade de suas cogitações. Sabia dos possíveis impactos e implicações que a mudança dos regulamentos e acordos internacionais sobre o tempo poderia causar, além de seus efeitos práticos na vida dos cidadãos, dos povos e das nações. Mas isso era o que motivava ainda mais seus devaneios e elucubrações atemporais.
Assim, a busca por uma nova forma de organização do tempo e do calendário transformou-se em obstinação, sendo um dos principais exercícios mentais de Ernesto. E por que não? De quando em vez, buscava fazer abstrações até do tempo histórico, a procurar uma atemporalidade que lhe permitisse escapar da linearidade dos fatos e da própria existência.
Para Ernesto, a vida e a história não batiam. Baseava sua opinião nas reincidentes reflexões advindas da análise que fazia da frase de Getúlio Vargas, deixada em sua Carta-Testamento: “Saio da vida para entrar para a história”. Em sua apreciação sobre esse enunciado, o fato que o motivou, seu desdobramento, considerava Ernesto que o ato pretensamente heróico do estadista era relativamente fácil. O difícil seria empreender o contrário: sair da história para entrar na vida.
Todavia, ao contrário do que o leitor possa julgar ou imaginar, a relação de Ernesto com o tempo era das mais normais, na medida certa para manter-se antenado com a realidade, cumpridor de suas obrigações e responsabilidades, como convém a um cidadão politicamente correto, metódico e conformado com o ordenamento social do mundo civilizado.
A questão é que Ernesto não se tornara, como muitos, um escravo dos fusos horários, um fantoche do tempo, preso à marcação das horas, como os que utilizam o relógio para controlar religiosamente suas ações e o calendário para abreviar e restringir sua existência. Por isso, a possibilidade de uma mudança profunda, em nível planetário, dos moldes que atualmente determinam o modelo de marcação do tempo e dos fusos horários mundiais não o assustava.
Sujeitar-se a horários oficiais, para Ernesto, isso transformava a vida cotidiana na servidão de um cativeiro. Para ele, submeter-se à divisão imaginária do tempo deveria ser uma opção não uma imposição, oferecendo às pessoas a liberdade de se mover com absoluta liberdade dentro do tempo e do espaço. Sonhava em definir seus horários segundo um ritual próprio que respeitasse suas necessidades físicas, emocionais e espirituais, e não segundo os movimentos dos ponteiros do relógio. Cada vida tem seu próprio ritmo, ponderava ele. Por isso, alguns morrem ao nascer e outros podem chegar a 125 ou mais anos de existência, refletia Ernesto em momentos ensimesmados de maior meditação.
Apesar de reconhecer que a tecnologia permitiu às pessoas estarem mais próximas e poderem se comunicar de forma instantânea e intensa, viver nesse ambiente social de compressão do espaço e do tempo causava-lhe desconforto. Ernesto sonhava com tempos passados, quando a vida e seus acontecimentos ocorriam em redor da tribo. Ansiava até sair da zona de influência dos conglomerados das grandes áreas urbanas, com suas metrópoles caóticas, e ir morar numa dessas cidadezinhas isoladas do interior do país.
Essa demarcação da vida através de recortes temporais mexia com o entendimento e alimentava a criatividade de Ernesto. Para ele, a reprodução do tempo através de sua marcação em segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses e anos, limita a experiência humana. O que ocorreria se o mundo inteiro passasse a ter badaladas simultâneas dos relógios, indicando há mesma hora para todos?
Por que o Meridiano de Greenwich serve como apontador espacial e marco zero para definir a medição do tempo? E por que o centro desse sistema de medição está no Observatório Real, em Londres? Todas essas indagações flutuavam no imaginário de Ernesto, que esmigalhava argumentos em busca de justificativas plausíveis para esse impedimento há uma vida mais próxima do ritmo da natureza.
Voltando à questão inicial, para que o Brasil se tornasse a nova referência geográfica mundial na marcação do tempo, a partir de Cabo Branco, Ernesto cogitou duas soluções. Ou melhor, uma única solução que exigiria o atrelamento de duas resoluções determinantes: a primeira seria fazer a vinculação dos anos bissextos com o excedente anual de horas que determinam que a cada quatro anos se acrescentem mais um dia ao calendário.
Não se aflija leitor. Eu vou explicar em detalhes. O tempo de translação da terra, ou seja, o tempo que o planeta leva para dar uma volta completa em torno do sol é de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos, aproximadamente. Entretanto, o tempo realmente computado anualmente no calendário é de exatos 365 dias. Então, para compensar a fração de tempo que todo ano é desprezada, a cada quatro anos, faz-se necessário acrescentar mais um dia para que a folhinha se mantenha ajustada ao ano solar e o calendário conserve um alinhamento com as estações climáticas: primavera/verão, outono/inverno. Esse dia extra, incluído sempre no fim do mês de fevereiro, que a cada quatro anos passa a ter 29 dias, definindo-se, portanto, o ano bissexto.
Pela proposta de Ernesto, por quarto anos consecutivos o calendário brasileiro não respeitaria a vigência dessa regra e, no último dia do ano, 31 de dezembro, os relógios parariam por 6 horas. Ou seja, o derradeiro dia do ano teria 30 horas. E, após quatro anos de expectativa, em nosso último ano bissexto, num esplendoroso 28 de fevereiro, no momento em que o relógio batesse as doze badaladas noturnas, nosso calendário pularia para o dia primeiro de março e entraríamos no terceiro mês do ano à frente das outras nações, que ainda estariam nos 29 de fevereiro. Assim, deixaríamos o Japão para traz, no tempo e no espaço, e o sol passaria a nascer nas Américas.
Ou seja, enquanto os outros povos estivessem dormindo ou acordando para viver o 29 de fevereiro, nós, os brasileiros, despertariam para mais um feriado nacional, em homenagem à nossa hegemonia temporal, com uma mutação essencial: São Paulo viveria o dia posterior; Tóquio, o dia anterior. Claro que, na cabeça de Ernesto, tudo isso a partir de Cabo Branco.