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Reencontro Casual
Eram vinte horas e trinta minutos. O táxi parou em frente ao Teatro, no Centro da cidade:
- Qual o valor da corrida?
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- Dezessete reais, senhora! Se quiser pode olhar o taxímetro.
- Aqui está. Muito obrigada e até logo!
- Até... Tenha uma boa noite!
Na bilheteria do teatro:
- Um ingresso, por favor! Qual o valor?
- Cinquenta reais, senhora!
- Aqui está!
- Boa diversão!
- Obrigada!
Na fila para entrar no teatro: - Olá, que prazer! Não esperava encontrar ninguém conhecido por aqui, hoje. E logo você...!
- Eu também não! Que surpresa...!
- Há quanto tempo não nos vemos? - Pois é! Desde que acabamos nosso relacionamento.
- Então já faz mais de um ano.
- O que você tem feito? Novo amor, novas amizades?
- Estou em um relacionamento. Mas não posso chamar de amor. Apenas um namorico sem maiores compromissos! E você?
- Ainda estou curtindo a solidão...
- Deixa de teatralidade. O drama não lhe cai bem!
- Não é drama! É a mais pura verdade.
- Não acredito! De lá pra cá muitas já devem ter caído em sua teia...
- Que nada! Você é que está sempre ostentando esse ar de vencedora!
- Você sempre toca nessa tecla... Minha autoconfiança sempre lhe incomodou!
- Você chama isso de autoconfiança? Eu chamo de prepotência! - Prepotente, eu? Sou nada... Esse seu artificialismo é o que lhe estraga!
- Vamos evitar essa querela sobre nossas personalidades... Esse tipo de discussão sempre gerou atrito entre a gente. E talvez tenha sido a principal motivação para o fim da nossa relação! - Concordo! Acho que foi isso mesmo o que ocorreu...
- Então vamos parar com as provocações! Afinal, conseguimos nos separar sem inimizade!
- É verdade! Mas sempre resta um resquício de mágoa, que fica silenciada e pode aflorar sem que a gente queira ou perceba! Claro que nenhum dos dois planejou ou se preparou de forma prévia para esse reencontro. Adentram o teatro e vão para a mesma frisa. Instantes antes do espetáculo, já acomodados às suas poltronas, dão prosseguimento ao diálogo:
- Uma peça de teatro, para ser considerada de alto padrão estético, tem que tirar o espectador de sua passividade mental e do conforto emocional, levando-o à reflexão e a outras experiências de sentimentos!
Disse ele, com certo tom de intelectualidade.
- Não só uma peça teatral, mas qualquer obra de arte! Ou melhor, qualquer coisa na vida que esteja para além do lugar-comum e da mediocridade!
Arrematou ela, de forma sutil, buscando expressar sua sensibilidade estética.
- Concordo plenamente! Asseverou ele.
Começa o espetáculo. O enredo se desenrola cheio de intrigas e desencontros amorosos. Os atores coadjuvantes se desdobram para permitir o ápice emocional da hostilidade entre os protagonistas da peça, onde o sentimento de posse e a obstinação da atriz principal em dominar a relação permeiam a trama amorosa entre o casal.
Francelino olha para o lado e percebe que aquela mulher que está ao seu lado, sua ex-companheira, que ele julgava conhecer profundamente e considerava que ela não haver mais nada que nela o seduzisse, passa a lhe transmitir uma imagem diferente daquela que estava cristalizada em sua mente.
Surge nele um desejo de tatear os pelos dourados daquelas coxas arredondadas que se encontram cruzadas ali bem próximas a ele. A mulher usava uma saia que não era tão curta, mas que ao sentar-se deixou descoberta uma generosa parte acima dos joelhos. Quando a peça acabou, ela imediatamente se levantou da poltrona, demonstrando ansiedade para sair daquele recinto. De relance, ele a observa de baixo para cima e sente renascer a voluptuosidade daquele corpo que ele a tempo não contemplava.
Nem se as catas do tarô tivessem previsto que ele reencontraria aquela mulher e voltaria a sentir reacender dentro dele a chama do desejo por ela, ele teria acreditado. Por alguns instantes ficou a imaginar o quanto seria prazeroso fisgar aquele “peixe” novamente.
À saída do teatro, ele a convidou para irem até a um restaurante. Ela aceitou, não sem antes demonstrar um ar de resistência. Sentados à mesa, ao olhar distraído para um vaso de flores brancas que se encontrava sobre um móvel próximo, ele sentiu em sua boca um forte gosto de leite. Olho-a no rosto e desceu seu olhar até os seus seios.
Percebendo ela a chama do desejo que acendeu, o encarou com firmeza. Sendo o tampo da mesa de vidro transparente, ao baixar o olhar, ele vislumbra os pés, as panturrilhas e as coxas de Elaine, trazendo à memória as massagens que já dera naquele corpo macio. Observou que havia uma pequena borboleta tatuada em sua perna esquerda, à altura do tornozelo, mas nada comentou.
Ao flagrar-se contemplativo, absorvido naqueles pensamentos perturbadores de sua estabilidade emocional, levou um susto consigo mesmo e chegou a ficar com a voz trêmula, balbuciando com aberta indecisão:
- Você aceita um vinho...?
Respondeu ela decididamente.
- Claro! Estou precisando relaxar!
Enquanto esperavam o vinho, conversaram amenidades. Francelino pensou em elogiá-la, mas ficou receoso que ela achasse uma leviandade, possibilitando ainda que ela imaginasse que ele se tornara um cínico, um verdadeiro hipócrita, capaz de tecer elogios falaciosos a uma mulher apenas para obter favores sexuais. Olho-a bem dentro dos olhos fazendo com que ela
expressasse um sorriso espontâneo e angelical, deixando à mostra os dentes brancos e fortes que tanto mexia com ele. Chamaram o garçom e pediram o prato: camarão ao creme de leite.
Ao chegar o prato, Elaine tentou se servir. Mas ao tocar a travessa levou uma pequena queimadura na mão. Ele a serviu com generosamente, colocando uma porção em seu prato e repondo vinho em sua taça. Continuaram a trocar olhares e a se falarem com polidez. De repente, ela teve um sobressalto e passou a ficar ligada e refletir de forma mais elaborada sobre o comportamento e as disposições dele, analisando em minúcia o sentido de cada palavra que ele dizia.
Silenciosamente, ela adotou a tática de se sair bem daquele encontro inesperado. Houvesse o que houvesse, buscava ter consciência de todas as sensações, emoções e sentimentos que aquele homem ainda pudesse nela despertar. As lembranças dolorosas das causas que motivaram o fim do relacionamento logo afloraram em sua memória, fluindo como um turbilhão. Isso a fez ficar em retaguarda, passando a se auto exigir prudência e tato nas palavras e nas açõews.
Dali em diante, passou a se comportar como uma fêmea que estava prestes a ser atacada, se encolhendo cada vez mais dentro de si mesma. Quando ficava assim, era quase um milagre algum homem conseguir arrancá-la desse grau de autodefesa. Ela era capricorniana, passiva e fecunda, só se entregava inteiramente àquele que provasse a conhecer em profundidade. E, quando se entregava, nada mais é alimentado dentro dela que o desejo de agradar ao homem que escolheu.
Já ele regido por touro, estava receptivo a qualquer demonstração de carinho. Mas interiormente, elaborava criteriosamente e restringia todas as suas manifestações de amor, colocando à prova a veracidade e sinceridade das expressões dos sentimentos alheios, abusando da desconfiança para produzir certezas. Isso
talvez fosse a causa do vício de linguagem que possuía e que tanto a irritava.
Costumava repetir a mesma coisa de duas a três vezes. Embora, em algumas ocasiões, utilizasse formas próprias pra dizer a mesma coisa, com ela isso não reduzia a chateação:
- Você já me disse isso outras vezes!
- Não me lembro de ter lhe dito isso!
- Você disse a mesma coisa, só que com outras palavras!
- Se foi com outras palavras, então foi a mesma coisa!
- Claro que foi. Você anda se repetindo. Eu não suporto ouvir você fala a mesma coisa várias vezes!
- Calma! Se já lhe disse, me desculpe! Eu não quis lhe ofender. Só quero me expressar com nitidez, pra ter a certeza que fui bem compreendido!
Percebendo que aquele enfoque estava deixando-a ainda mais irritada, ele resolve mudar o eixo da conversa. Fixou o olhar nos brincos de ouro com pingente de prata que ela usava e que reluzia quando ela movimentava a cabeça. Em seguida fez alguns comentários sobre algumas esculturas zoomórficas que decoravam o ambiente e criavam uma ornamentação se não bizarra e grotesca, ao menos com uma atmosfera burlesca inusitada.
Continuou ele com algumas considerações e devaneios tolos que não despertaram a atenção dela. Acabaram de jantar, pagaram a contar e saíram em silêncio. Já no carro, decidiram para em uma casa de bingo. Naquele momento, talvez estivessem tentando reproduzir no jogo o que acontecia com eles. Lançar a sorte ao acaso. Às vezes, para algumas pessoas, o jogo e o amor parecem dois fenômenos e duas elevações que se assemelham, pois tanto em um como em outro, parece que o acaso é quem determina
as relações de troca e reciprocidade, sendo o resultado sempre imprevisível.
Arriscaram a sorte algumas vezes. Mas ela logo se sentiu entediada e pediu para que ele a deixasse em casa. Já em frente ao edifício onde ela morava, ele tentou marcar um encontro outro dia. Quem sabe ir ao cinema, a um show, a uma boate... Ela recusou todas as alternativas categoricamente. Entrou no prédio de forma agitada e apressada, desaparecendo pra sempre da vida dele. Naquele encontro casual, os dois foram verdadeiros. Descobriram que um relacionamento profundo, exclusivo e duradouro exige um alto nível de compreensão, de dedicação e de entrega.
Para um homem, conhecer a alma feminina é uma arte de difícil aprendizado e utilidade questionável. Para uma mulher, desvendar a alma masculina é uma tarefa árdua e, na maioria das vezes, ingrata e improdutiva. Viver é o suficiente... Leitor, esse conto foi escrito originalmente em preto e branco. Não tente lê-lo em cores!