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Ela sorria quando amava
Ela sorria quando amava
Era seu aniversário. 50 natais já se passaram e o tempo começava a tornar visíveis os estragos produzidos em seu corpo. Uma ruga aqui, outra acolá, uma leve artrite que ocasionalmente atingia as articulações, o afligiam por alguns dias. Eliachar acordou pensativo. Fez uma breve regressão no tempo e revisou alguns fatos que lhe causaram decepção e sofrimento, especialmente aqueles relativos aos amores contrariados. Contemplativo, passou em revista algumas paixões, mas logo esqueceu esses aborrecimentos e infortúnios do coração e concentrou-se nos compromissos festivos que o esperavam ao longo do dia e que, à noite, o aguardavam.
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Logo que se distraiu das ponderações sobre essas obrigações, uma frase surgiu dê repente em sua mente, trazendo-lhe à memória uma antiga namorada: “Ela sorria quando amava...”. Um caso relativamente curto, mas que marcou sua vida. Lembrou-se que, a princípio, quando a conheceu, ela apresentava um sorrido de lábios finos, quase retos, que se abriam miúda e gradualmente, revelando dentes que não eram tão brancos quanto ele desejaria.
Mas na intimidade, esse sorriso se ampliava e fazia do amor uma coisa alegre e clara, um rastilho de inocência que mascarava a violenta satisfação animal que aquela mulher si permitia e também lhe proporcionava. Recordou que, quando a viu pela primeira vez, chegou falar pra si mesmo: não quero o amor dessa mulher, quero apenas possuir o seu esbelto corpo sedutor e seu lindo rosto.
Mas na penumbra dos dias sem sol e na escuridão das noites sem luar, seus sentimentos resvalaram para o precipício desse desejo obstinado que é a paixão, essa forma recorrente de cobiça e vontade que fisga e captura violentamente os homens. Quando trocava intimidades com aquela mulher, aqueles
momentos de prazer, em vez de converter-se numa sucessão de gritos e grunhidos selvagens, cavavam no horizonte um mundo incerto, onde um pequeno abismo de luz e candura articulavase num conjunto de sons que não diziam nada, servindo apenas para atribuir sentido ao próprio prazer doado e recebido, breve e definitivo como um gesto banal, um aceno de despedida ou um olá, uma onda preservada eternamente em um pingo d’água que se condensou ou um fragmento de poeira cósmica de um cometa ou de uma estrela cadente que se solidificou... Após gozar, o sorrido daquela mulher deixava de ser apenas a doação de um corpo habitado por desejos despertados pelo estímulo dos sentidos que foram contentados, para transformar-se em um majestoso culto à existência. Por outro lado, quando havia um excessivo aumento de sua carência afetiva, a agressividade sexual aflorada a transformava, de um ser estonteante, em uma fera e nela se acendia uma chama que a transformava em uma potencial homicida.
Todavia, quando ocorria uma acentuada diminuição da sua libido, percebia-se que havia uma retração exagerada da sua personalidade, tornando-a uma mulher medrosa, vacilante, tímida e introvertida. Para Eliachar, o desafio era buscar formas que a mantivesse em equilíbrio, comportando-se de maneira abalizada e consistente, denotando segurança e firmeza. Os costumes de família haviam refinado o seu caráter e elevada sua personalidade, permitindo-lhe que adquirisse uma segurança pessoal e adotasse um conjunto de princípios morais rígidos e a eles dedicasse alto grau de fidelidade. É claro que essa tenacidade e obstinação não provinham apenas da sua educação familiar, mas estava robustecida por suas experiências pessoais e embasada por qualificadas leituras em diversos campos do saber, principalmente a psicanálise.
Os sentimentos, emoções e opiniões de Eliachar não ficavam a
mercê da instabilidade das conveniências sociais ou dos efeitos das vicissitudes de fatos triviais, quer fossem esses positivos e adequados ou desfavoráveis e opostos aos seus interesses. A essa constância de caráter alinhava-se a simplicidade de sua personalidade que contagiava a todos os que tinham o privilégio de sua convivência.
Então, mesmo a contragosto, a relação com aquela mulher, que pra ele era uma admirável e diferente exceção, pois sorria quando amava, chegou ao fim. As micros psicopatologias cotidianas que ela esporadicamente exibia, originadas dos resquícios de instintos, emoções e sentimentos reprimidos, nele causava espanto, apreensão, inquietação e receio. Essas alterações e variações de humor tornaram-se cada vez mais constantes e logo se transformaram em aversão, desconfiança, suspeição, retraimento. O afastamento foi inevitável.
Apenas no dia de seu cinquentenário, Eliachar compreendeu que, naquela relação, ele foi vítima das próprias sombras e penumbras de sua personalidade, cujos espectros se manifestaram através de obscuros efeitos simbólicos, que se revelavam através de suas identificações com o alterego daquela mulher que sorria quando amava.