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Noite sem estrelas nem luar
Noite de inverno, sem estrelas nem luar. Ameaçava chover. Logo uma tempestade desabaria sobre a cidade... Dentro da noite, o céu derramou-se com persistência sobre a terra molhada. A atmosfera relampejava e as nuvens trovejavam. O clima fazia-se frio. A umidade do ar e o vento à beira mar era quase congelante. Amanheceu e das árvores escorriam abundantes gotas d’água deixadas pelo temporal.
O orvalho acumulado na exuberante folhagem do jardim parecia querer segredar alguma coisa para as flores, que se recusavam a desabrochar, resistindo à exibição antes do sol surgir, na certeza de que, em breve, o brilho e o fulgor solar haveriam de aquecer o vento. Brotava da terra um cheiro forte de fertilidade que anunciava a fecundidade e o florescimento da vida vegetal em toda a sua vibração e ardor germinativo.
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Em seu quarto, Sabrina acabara de acorda ao som dos acordes de sax que vinham da sala, onde sua mãe ouvia B.B. King. Pressentia a realização de um prazer a tempo contido. O silêncio envolvente e aconchegante que cobria o aposento trazia ao ambiente um sentimento de serenidade e quietude que parecia disfarçar e encobrir as mágoas recônditas que remontavam à infância e remoíam o seu coração. Para confirmar aquele estado de instabilidade emocional, lá fora, o sol também resistia em acontecer. Apesar de um vago sentimento de solidão, a tristeza não conseguia abafar a crescente sensação de otimismo que principiava a contagiar Sabrina, consciente que aquele nó na garganta concentrava muita amargura, principalmente após a morte de seu pai, no último verão. Percebeu que as resistências de sua mente para retomar a vida em sua plenitude, pouco a pouco, se desfaziam e cediam lugar a uma crescente expectativa de restauração que revigorava suas energias vitais.
Apesar da dor que trazia na alma, sabia que a perda de um ente querido exigia a superação da autocompaixão, embora os traumas restassem indeléveis na memória. Era necessário prosseguir na trajetória existencial e viver a vida, dizia Sabrina para si mesma.
Naquele instante, sua memória olfativa foi excitada pela lembrança dos tempos de criança, onde os doces caseiros e os bolos que sua mãe fazia no fogão à lenha, na velha casa da pequenina cidade do interior onde nasceu. Ainda de madrugada, sua mãe acordava e iam até o fundo do quintal para colher as frutas frescas, laválas e colocá-las para cozinhar, acrescentando açúcar, canela e cravo. Goiaba, mamão, banana e jaca em caldas, além dos bolos e cocadas, traziam sabores à casa singela.
Lá fora, o sol começava há possuir o dia e gradativamente esquentava o ambiente e também aquecia a alma de Sabrina, que sentia a sensação de fragilidade ir embora e ceder lugar a uma crescente auto-estima, que se fazia acompanhar de uma perspectiva de equilíbrio emocional.
Sabrina veste-se de coragem, levanta-se, vai até a janela e, olhando pela vidraça, deixa-se absorver pela paisagem do jardim e pela bela imagem das flores suavemente agitadas pelo vento frio. Já era início de tarde e, apesar da obstinação do sol em não si firmar, o tempo variava, ora quente ora frio, embora refrescante e confortante.
Ensimesmada, Sabrina deixou-se absorver num mergulho meditativo provocado pela contemplação impressionista daquela exuberante paisagem. Foi instigada a uma introspecção irresistível, tão somente quebrada pelas insistentes batidas na porta do quarto, pois sua mãe a chamava para o almoço. À mesa, após saborear levemente algumas iguarias, Sabrina retorna para o seu quarto. Tarde de preguiça e sono, sem coragem para mostrar-se ou fazer qualquer coisa. O restante daquele dia de inverno transcorria frio. No final de tarde, a chuva voltou a ditar a cadência das emoções
e sugeria um prato quente, quem sabe uma fondue, em boa companhia, regada a um bom vinho. Sabrina sorri e pensa: apenas desejos... Naquela noite não sairia para lugar algum.
Sabrina adormeceu consciente que em sua agenda de segunda feira haveria um compromisso sério que poderia transformar a sua vida e até torná-la uma referência para outras. Sabrina foi, dentre as muitas pessoas inscritas, selecionada para participar de uma experiência científica que busca criar interfaces entre cérebro-máquina.
Esse experimento, realizado através de uma parceria entre o Instituto Internacional de Neurociência, localizada em Macaíba, área metropolitana da cidade de Natal (RN), localizada no Nordeste brasileiro, e a Universidade de Duke, nos Estados Unidos da América, busca viabilizar a implantação de dispositivos que possibilitem a interconexão entre cérebro-máquina, a partir dos avanços da tecnologia da informação e da biotecnologia.
Para os pesquisadores do campo da neuroengenharia, os desafios são imensos, pois a investigação científica para monitorar, identificar e registrar as interações das atividades elétricas dos neurônios com as informações contidas em um microchip, que funciona como uma fonte artificial de envio de sinais para o córtex cerebral e deve identificar se essa interface é capaz de influir no controle do pensamento, das emoções e do comportamento dos indivíduos submetidos aos efeitos diretos da realidade virtual.
Caso isso se confirme, há possibilidades infinitas para criação de virtualidades reais, onde os resultados ideias seriam os cérebros incorporarem as informações e os conhecimentos armazenados nesses micros ampliadores e processadores artificiais de sinais eletrônicos, atuando como extensão das próprias atividades neuronais do indivíduo, influindo na imaginação e na inteligência pessoal.
A intenção era que, após ser implantado, a própria energia resultante da atividade cerebral passasse a realimentar o microchip, através das ligações com o sistema nervoso central. Após um mês de implantação do microchip, Sabrina foi submetida a exames de ressonância magnética e os neurocientistas registraram uma intensa atividade elétrica em quase todas as áreas do seu cérebro e se surpreenderam com a multiplicação da quantidade de sinapses que se sucediam.
Os pesquisadores constataram que aquele experimento se constituía oficialmente no maior registro de ligações neuronais já identificados e descritos pela literatura especializada. Nem os experimentos que utilizam drogas para estimular a atividade cerebral se aproximavam do volume de ligações neuronais proporcionada por essa experiência tecnocientífica. Devido ao excesso de informação a que foi exposto o cérebro de Sabrina, a partir da implantação do dispositivo eletrônico, ela passou a ter dificuldade em relaxar a mente e acalmar seus pensamentos, estando permanentemente em busca de novos estímulos, precisando cada vez mais de informações para satisfazer sua hiperatividade neuronal.
Em pouco tempo, o excesso de informações saturou seu córtex cerebral, produzindo uma mente superpensante, agitada, impaciente, com baixo nível de tolerância à repetição e à rotina. Entretanto, embora com excesso de informação, Sabrina teve uma baixa considerável em sua capacidade criativa e afetiva.
A vida de Sabrina entrou num ritmo alucinante, com superdoses diárias de informações, pois ao acessar qualquer base externa de dados ocorria uma imediata aceleração de sua atividade neuronal, devido à vinculação com o dispositivo eletrônico intracraniano.
Esse excesso de sinapses trouxe consigo a ansiedade, a depressão, o estresse e o pânico. Esses sintomas passaram a ocorrer com
certa rotina, deixando Sabrina quase incapacitada para cumprir suas tarefas mais rotineiras, estabelecer novos contatos sociais ou até mesmo conservar seus relacionamentos afetivos anteriores à sua participação no experimento. Frieza ao abraçar e beijar, resistência em trocar experiências com outros ou dar carinho às pessoas mais próximas, tudo isso ocasionou perturbações a rotineira vida de Sabrina.
Ao mesmo tempo em que ela tomava consciência de seus novos estados mentais e emocionais, buscava criar mecanismos para proteger seus sentimentos e motivações da percepção alheia. Passou a exigir e cobrar muito das pessoas próximas, tendo dificuldade para elogiar as boas características e os pontos fortes de quem com ela interagissem. Isso começou a causar-lhe uma enorme angústia.
Um sentimento persistente de ansiedade começou a lhe causar confusão mental, falhas de memória, déficit de atenção, irritabilidade, inquietação, agitação, alteração do sono e variações do humor, que se aproximavam da bipolaridade. Esses sintomas refletiam o esgotamento mental a que Sabrina estava sendo submetida.
O alto nível de estresse, cada vez mais, impedia que ela desacelerasse seus pensamentos. Por isso, nos meses que se seguiram ao início da experiência, Sabrina começou a sentir um constante cansaço físico, pois seu córtex cerebral desviava grande parte da energia que deveria ser gasta pelo corpo, para o pleno funcionamento de seus órgãos e funções vitais, e utilizava grande parte dessa energia para realimentar a interface entre o dispositivo eletrônico nela implantado e o seu cérebro. O que no início da experiência era um fator positivo passou a acarretar transtornos à Sabrina. A sensação de estar sendo esmagada pela excessiva quantidade de sinapses que seu cérebro produzia provocava a imediata variação de humor, deixando-a a beira de um esgotamento mental ou de um colapso emocional.
Apesar do esforço, Sabrina não conseguia desacelerar sua atividade mental e o cansaço físico logo se alojou em seu corpo, tornando-se permanente. Seu córtex cerebral, a camada mais evoluída do cérebro, cada vez mais, roubava grande quantidade da energia que deveria ser utilizada pelos músculos e outros órgãos, para alimentar a interatividade e a interconexão com a extensão artificial do seu, agora, cérebro-máquina. Essa etapa da pesquisa visava proporcionar o controle dos comportamentos e dos estados emocionais dos participantes. Mas, contrariamente, à medida que os cientistas observavam um alto grau de plasticidade em múltiplas áreas do cerebral dos integrantes do grupo de experimento, escapavam ao controle às emoções e os comportamentos dos pesquisados. Os indicativos de interação cibernética em grande escala, com alta conexão a uma base de dados artificial implantada no cérebro, às vezes, fazia Sabrina ter consciência da ameaça silenciosa de uma possível usurpação de sua identidade pelo dispositivo eletrônico.
O quadro de caos mental piorava, principalmente quando Sabrina interagia com as tecnologias da informação através das redes sociais. O excesso de estímulos, após ela passar uma noite inteira acessando a internet, significava lidar com uma quantidade absurda de textos e imagens que, em curto tempo, ativavam e levavam seu cérebro para um nível de atividade quase insuportável.
O contato com a natureza, o caminhar ao ar livre, admirar as árvores, os animais, apreciar o mar, sentir o vento no rosto... Mesmo essas simples ações induziam a uma exacerbada atividade cerebral, gerando uma condição quase intolerável de introspecção. Outras atividades lúdicas como ler um livro, ouvir música ou assistir a um filme também não a ajudavam a relaxar. Sabrina logo tomou consciência que tinha um desafio: reaprender a desligar-se, a desacelerar seu cérebro a qualquer momento do dia, a esquecer de tudo ao redor, respirar fundo e esvaziar sua mente. Resguardar seu equilíbrio mental era o foco. A ideia era,
o quanto antes, livrar-se e livrar o cérebro daquela situação de turbulência.
Diante de um crescente sentimento de abandono, Sabrina decidiuse em arrumar um novo amor. Na sua avaliação, nada melhor do que se apaixonar novamente para escapar daquela situação incômoda. Para Sabrina, o início de um novo relacionamento seria a solução quase perfeita para aquele estado de caos mental e emocional.
Mas, independente de seu desejo, o cérebro de Sabrina já estava artificialmente programado para encontrar um novo amor. Os mecanismos de defesa criados para superar a sua fragilidade emocional estavam fortemente condicionados às informações resultantes da interação com o dispositivo eletrônico implantado em seu cérebro, onde as escolhas amorosas passaram a se manifestar a partir de poucas referências externas.
Conheceu Fabiano, que não suportava a rejeição, mas estava decidido a conquistar aquele coração aparentemente arredio. Ele logo percebeu que, naquele relacionamento com Sabrina, era impossível escapar ileso. Tomou consciência que superar uma possível rejeição era seu maior atestado de maturidade mental e emocional.
O reconhecimento do complexo eletivo entre os dois foi imediato. Aqueles olhos, as íris causavam uma impressão tão forte no cérebro de Sabrina que desbloqueava seus traumas mais profundos. Por outro lado, aquele homem provocava nela um medo exacerbado de morrer. Mas ela queria se arriscar.
- Você, somente você, provoca esse autoconhecimento dos meus medos e frustrações! Declarou Sabrina a Fabiano, poucos dias depois de conhecê-lo.
Mas aquela risada irônica e sarcástica que ele a dirigia criava uma dissonância com a imagem com que Sabrina o cortejava!
Em um final de tarde, caminhavam à beira mar: - No inverno anoitece cedo! Exclamou Fabiano.
- Por isso, prefiro o verão, onde os dias são mais longos e a noite tarda em chegar! Ponderou Sabrina, a espera de um argumento que indicasse a preferência de Fabiano.
Diante do silêncio que se seguiu, ela persistiu:
- Há pessoas que são sensíveis aos fenômenos da natureza. Outras há que convivem com o tempo de forma retilínea, quase monótona. Não se deixam absorver pelas alterações climáticas ou pelas mudanças de estações.
- Você está alheia as minhas intenções! Desfechou Fabiano de forma aleatória, despropositada e descontextualizada...
Sabrina sorriu de forma acanhada e replicou de forma ríspida:
- E quais são elas?
Tendo consciência de que, em Sabrina, as chamas do desejo a muito estavam reprimidas, Fabiano desconversou... Entendeu que o acender dessa chama deveria ser branda e contínua, sem ações precipitadas. Fabiano sabia que a possibilidade eficaz para se compartilhar um elevado nível de intimidade naquele relacionamento exigia que os dois não tendessem a fazer julgamentos apressados em relação ao outro, a partir das aparências.
A intimidade pede uma atitude compreensiva, tolerante e complacente. Confidenciar segredos, compartilhar intimidade e criar vínculos profundos exigem a tessitura de elos silenciosos e exclusivos. Segue-se um silêncio profundo entre os dois...
Sabrina contempla a agitação do oceano com o olhar absorvido pelo horizonte, onde céu e mar se invadem, se envolvem e se perdem.
O sol que, mesmo sem brilhar, clareou o dia, gradativamente, cedia lugar à negritude do anoitecer... A imaginação de Sabrina se desdobrava, temperando seus anseios de mulher, até pouco tempo solitária, com as possibilidades com que o amor penetra a alma dos amantes.
Findava-se mais um dia de inverno... Iniciava-se mais uma noite sem estrela nem luar... A vida, como o tempo que a mede, não tem fim...