Memorial da Criação de Pele Rejane Arruda
I. Relações como pilar da criação
São três cadeirantes no espetáculo Pele. Scarlet Lemes foi indicação do projeto Praia Legal, Fernando Tulher e Maurício Vieira vieram do time de rugby em cadeira de rodas do IREFES (Instituto Reabilitacional e Esportivo para Deficientes Físicos do Espírito Santo). Durante o tempo que levou até começarmos, enquanto eu procurava um local com acessibilidade para os ensaios, observava, no facebook de Fernando, as fotos com a namorada. Me veio a ideia de convidar não-cadeirantes, pensando na interação entre corpos (e cadeira-corpos). No primeiro encontro, percebi que a união entre andantes e cadeirantes era profícua. O grupo teve empatia e conquistou forte integração. Acabou sendo o elenco mais animado que já vi, com uma atividade intensa no whatsApp, saídas para beber e se divertir. Uma das figuras-chave nesta integração foi justamente Fernando, posição inusitada sobre o ser “aleijado”: é assim que ele gosta que se refiram a ele (e não “deficiente”). Com Fernando está Maurício e os outros atletas do time de rugby: não ser visto como coitado. “Aleijado tem mais é que se fuder!” Trata-los com “zoeira” é um sinal de aceitação. Foi nesta prática que fomos iniciados: eu, Ana Paula Castro, Nayma Amaral, Daniel Monjardim e Yasmin Toretta. Certo dia, comentavam algo sobre o caráter masculino (não lembro o quê), me flagro falando: “Homem né Fernando, não aleijado!”. Todos riram. O viés da “zoeira” virou lei e brincando durante três meses, no dia-a-dia determinado pela presença das cadeiras e de sujeitos que não caminham, nos encontramos. A tônica sensual impregnando bastidores, espetáculo e processo de criação. Piadas sobre sexo, revelações, tematizações e brincadeiras. “Sobe sim!” (“E como sobe, como é?”). O tema da paixão entrou. Debate a microfone aberto. Através da química que une um elenco (cada elenco é único e cada química é única), neste caso, tivemos disponibilidade para as relações pessoais e de bastidor, afeto, “diversao e arte”. Que mudou a vida, não só dos três cadeirantes, como dos quatro andantes do elenco e a minha. O olhar se altera, as questões se ampliam e vem a enorme gratidão por poder viver na diferença, amar a diferença, descobrir a magia da diferença. Quando o outro gera empatia e 73