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Rejane Arruda: Hibridismo e Experimentação Aberta
Emanuel Tadeu Borges
O texto que segue encontrou sua inspiração em dois vídeos que correspondem às duas partes da entrevista ao programa PRESENÇA 11 , realizada com a professora universitária, atriz, diretora e pesquisadora de teatro e cinema, Rejane Arruda, do Curso de Artes Cênicas da UVV, Universidade de Vila Velha. Ou como ela mesma diz pesquisatriz. O intuito é apenas apontar certas possibilidades de alianças, no âmbito da reflexão filosófica, voltada para uma conexão com as práticas, as experimentações e as invenções no campo das artes. Em primeiro lugar a idéia de hibridismo, apresentada por Rejane, (ao mesmo tempo um viés prático, uma intenção exploratória) como uma tendência e gosto pela mescla de influencias e procedimentos diversificados (e até mesmo, se me atrevo a acrescentar algo que não foi falado, posições contraditórias ou de difícil “encaixe” inicial), numa tentativa (assim me pareceu...) de produzir uma alquimia e a partir dessa nova receita, um modo próprio de obter resultados.
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Isso vai de encontro a uma aptidão minha. Explico: sou analista junguiano, porém lanço mão da genialidade do trabalho de Freud (em especial de psicanalistas de viés revolucionário como Ferenczi, André Green, Guattari e o nosso Chaim Katz, entre outros) e filósofos como Deleuze, Espinosa, Bergson, entre outros; assim como em outros campos de saber. Enfim, uma busca de conexões com os autores e ideias as mais diferenciais no sentido
de fortalecer a sensibilidade e a compreensão do universo humano, do modo como aparece através de cada indivíduo, e também do universo coletivo no qual estamos mergulhados (cultural, político, antropológico, sociológico, religioso etc). Um segundo ponto que me chamou a atenção, foi a concepção de talento revelada por Rejane, que não se confunde com a definição corriqueira que relaciona o talento a “algo inato” , ou a uma vocação pura e simplesmente. Talento foi definido como a “abertura para experiências”, e mais precisamente em relação a seu trabalho, experiências possíveis no
11 O programa Presença, da Rede TV ES, a qual o autor se refere está disponível, em dois blocos, nos links: https://www.youtube.com/watch?v=5Roc0FOSqsM&t=8s e https://www.youtube.com/watch?v=o9TdJWJvXA0&t=1s. Ultimo acesso: 10 de novembro de 2019.
campo da atuação (e em outros segmentos do “fazer” dramatúrgico: direção, vestuário, cenário etc). Ou, melhor ainda, possibilidades a serem descobertas a partir do corpo de cada indivíduo ator. Pareceu-me o seguinte: uma abertura a partir de um texto ou tema dado, criado ou improvisado. Abertura essa para o próprio tema ou texto e para o indivíduo através do texto ou tema. Para o corpo do texto e para o corpo físico, emocional e mental dos atores. Subvertendo-se com isso, a ideia convencional tanto de autoria, quanto de interpretação. Um terceiro ponto. Remeto a outro vídeo sobre o trabalho de Rejane Arruda com criação teatral e inclusão: teatro com cegos e teatro com surdos. Um verdadeiro trabalho de “abertura para/de experiências”. No qual, evidentemente, ela mergulha fundo, na prática teatral, acionando sua concepção do que seja talento. Aliás, essa é uma abertura e desafio da própria “normalidade” tanto para esses dois grupos de “deficientes” (visto que cegos e surdos estão envolvidos numa normalidade, isto é, num modo de se apropriar da realidade que lhes são característicos), como para os seus colegas “videntes” e “ouvintes” que trabalham nesses projetos. O que temos aqui, segundo penso, em termos de uma possível orientação e ampliação teórico-prática? (e aqui aponto uma sugestão teórica): a obra de Espinosa (16321677), a de um espinosista que é o Deleuze (1925-1995); e de outro espinozista, que é o etólogo Jakob von Uexküll (1864-1944).
Porque Espinosa?
Porque para ele não se considera um fenômeno qualquer, e aí se inclui um indivíduo ou grupo de indivíduos (sujeitos ou coletividades), a partir de um parâmetro ou conceito geral. E sim a partir da singularidade individual (a particularidade de cada ser!), o que ele denomina essência singular. Portanto, no caso do trabalho acima citado, não se vê o surdo ou o cego como carentes de uma aptidão ou atributo do “ser sadio” ou “saudável”, mas a partir de sua “potência singular”. A questão fundamental de Espinosa é, portanto, “O que pode um corpo?” Ou, já a partir da proposta acima: “Que teatro pode fazer um surdo?”; “Que teatro pode fazer um cego?” Qual a potencia singular e intransferível (a ser desvelada! A ser expressa!) do teatro dos surdos e dos cegos? Mais ainda: desses surdos e cegos com os quais se trabalha. Portanto, potência, para Espinosa, é algo potencial, latente, a ser revelado na “abertura para experiências”, mas já presente potencialmente no âmago de cada indivíduo e grupo, como que “adormecido”, e que, ainda uma vez, tem que ser “parido” no trabalho (no caso) teatral (claro, em outra atividade qualquer, mas que se dê como abertura experimental). Mas
potência é, em segundo lugar, poder, expansão do ser individual (de cada um dos artífices teatrais: atores, encenadores, cenógrafos etc) e ao mesmo tempo, do ser coletivo (grupo teatral); poder no sentido de realizar-se, exprimir sua potência latente, expandir-se, participar, transformar.
Porque Deleuze?
Porque ele tem em sua obra como filósofo, também ele, um movimento muito próximo do que Rejane Arruda denominou “hibridismo”. Em seu trabalho de pensamento como filósofo, Deleuze envolveu-se também com as artes: pintura, literatura (um livro sobre Kafka, outro sobre Proust) e... cinema e teatro. Dois livros sobre cinema e dois sobre teatro. Cinema: “Cinema 1. Imagem-Movimento” e “Cinema 2. Imagem-Tempo”. Um livro em que trata da obra literária, teatral e televisiva de Samuel Beckett (que também roteirizou um filme protagonizado por Buster Keaton). Outro livro, ainda, em que trata do trabalho teatral e (menos vezes) em cinema do italiano Carmelo Bene. Ambos foram reunidos na tradução brasileira, num só volume: “Sobre o Teatro”. Dois problemas em relação à compreensão da obra de Deleuze. O pessoal “deleuzeano” é o pessoal da PUC de SP (“rival” da USP, dominada pela psicanálise). A questão é justamente esse “parti pris” (exclusividade) que se manifesta e se impõe nas linhas de pesquisa, excluindo ora um, ora outro pensador/pensadores da linha supostamente “concorrente” (não se vê com bons olhos o “hibridismo” na Academia, no Brasil, tanto quanto no mundo, infelizmente). O outro problema é a extrema dificuldade, decorrente da grande originalidade, do pensamento de Deleuze (Foucault disse uma vez, sendo irônico, elogioso e realista, que “Um dia, quem sabe, o século será deleuzeano...”) Pois bem, dos intérpretes do pensamento de Deleuze mundo afora (mesmo incluindo os franceses, seus alunos), nenhum, em minha opinião, se compara ao brasileiro Cláudio Ulpiano (1933-1999), a quem tive o privilégio de conhecer e de ter sido aluno. Há algumas aulas dele no youtube, em especial recomendo o vídeo Claudio Ulpiano, Uma Personagem Original (anos 90)12 . apenas como uma demonstração da genialidade do querido e saudoso mestre (e pelas razões abaixo relacionadas). Trata-se de uma aula avulsa (de um curso justamente sobre o cinema na concepção de Deleuze) em que ele fala da ideia de “personagem original” elaborada por Herman
12 O vídeo “Claudio Ulpiano, Uma Personagem Original (anos 90)” está disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=mVkqYSgtF2A&t=1946s. Ultimo acesso em 10 de novembro de 2019.
Melville e de outros temas, de um modo “híbrido”, para usar a definição rejaneana, isto é, encaixando autores e conceitos variados no sentido de aclarar e ir costurando seu
pensamento. Desde 2003 até uns 2 ou 3 anos atrás funcionou um blog, mantido pela viúva do Cláudio, no qual se postavam muitas aulas transcritas, outras tantas aulas em áudio (a partir das gravações em fita K-7, feitas pelos alunos dos vários grupos de estudo que ele mantinha) e em vídeo (a partir de VHS). Ocorre que esse blog, infelizmente, parou por falta de grana. Uma outra alternativa de acesso, digamos, mais palatável, à obra de Deleuze, e essa viável, são os cursos realizados pelo próprio Deleuze disponíveis em francês on line (áudio e/ou pdf), ou pela tradução da Editorial Cactus de Buenos Aires.
Porque Uexküll?
Porque ele faz um trabalho em que delinea os “diferentes mundos” animais e humanos, que cada espécie e indivíduo “produz”. Partindo da ideia de que reage-se a estímulos ou, na linguagem de Espinosa, afetos (os indivíduos são afetados por “forças que vm de fora”). Diferentes conjuntos de afetos, de uma espécie a outra e, mais profundamente na espécie humana, de um indivíduo para outro. E isso fica fácil de ser exemplificado se consideramos o empreendimento criativo teatral: é óbvio que o que “afeta” cegos, o que “afeta” surdos, isto é, o conjunto de estímulos aos quais respondem, não só genericamente – o conjunto das pessoas surdas ou cegas – mas mais ainda, cada um dos indivíduos surdos e cegos, é variável. Portanto é nesse sentido que cada um de nós, enquanto espécie e como indivíduos, constitui para si um mundo próprio (Umwelt), que é o nome do conceito de Uexküll, ponto de partida de sua obra. Assim, em seu livro, ele parte do exame do mundo próprio do carrapato, que interage apenas com três afetos ou estímulos “na floresta imensa, com sua polifonia de estímulos”, que são (1) o calor da luz solar, ao qual responde subindo ao ponto mais alto de um arbusto; (2) o efeito do ácido butírico que se irradia do suor dos mamíferos, cuja resposta do carrapato é o deixar-se cair do arbusto; e (3) caso caia sobre o corpo do animal, busca um sítio na pele, em meio ao pelo onde crava seu ferrão para seu “único e derradeiro banquete”. Cláudio Ulpiano brincava em suas aulas dizendo que, em certos lugares do “interiorzão” do Brasil, a moça só tinha, como o carrapato, três afetos: namorar, noivar e
casar.
“Ator meu, não é pessoa!”
Dizia meu querido e saudoso mestre, Cláudio Ulpiano. Nessa época ele se associou a alguns alunos para montar uma peça. Que queria ele dizer com isso? Meu ator não se envolve com personagens. No sentido em que não estará envolvido em esforços para representar personalidades, caracteres fechados e pré-determinados, seguindo marcações rígidas. Como? Partindo-se da concepção espinosana, como vimos acima, os seres, ou seja as essências singulares, podem ser definidos como “pacotes de afetos” (claro, aptos a serem, os afetos, multiplicados; adicionados, a esse pacote, sempre novos afetos). Cada afeto é uma “linha de interação com a vida”, um circuito ou uma conexão de um indivíduo com outro indivíduo, situação ou força que “chega a ele”, no desenrolar da existência. Cada afeto nos dá a oportunidade de reagir, ou melhor, de interagir – para usar um termo mais técnico contraefetuar – com algum estímulo que nos atinge. É a partir disso que se constitui, e não para de se constituir, de modo mais ou menos rico, dependendo da diversidade da experimentação (ou como diz Rejane, da “abertura para experiência”) o campo afetivo ou mundo próprio (Umwelt) de cada espécie, inicialmente (isto é, a partir das características cognitivas e sensoriais das diferentes espécies) e, mais profundamente, de cada ser individual, como nos mostra Uexküll em sua obra.
Assim, as artes cênicas, teatro e cinema, constituem-se como territórios de exploração relativos aos potenciais de expressão afetiva para os indivíduos. Por meio da experimentação dos corpos, sensorialidades, emoções, e da inteligência – verbalizada ou apenas pensada –, fisionômias, maneirismos, hesitações e toda uma série de manifestações, mesmo irrealizadas (importância do rosto em Bergman; das posturas em Cassavetes; dos olhares em Dreyer, por exemplo, no cinema). Todos esses elementos são considerados como possibilidades exploratórias pela Rejane. Tudo isso pode ser tomado no sentido da questão de Espinosa: “o que pode um corpo?” Com que forças ou corpos do espaço que nos é externo somos capazes de nos encontrarmos e estabelecer com eles uma composição (com os outros corpos) e uma saúde (com as forças que nos “atingem” ou as “situações” em que nos encontramos)? Como construir com os outros uma unidade dinâmica nova com outros corpos que nos traga alegria (um amor, uma amizade, um grupo de teatro, uma equipe cinematográfica, uma sala de aula, uma nação...)? Um afeto proveniente de outro corpo, de uma situação ou de uma força que chega até mim, me enfraquece ou me fortalece? Selecionar os afetos, eis a efetuação da ética como estratégia de vida: o que aumenta e o que diminui meu poder de existir, minha força de existir, a partir dos encontros que realizo? “That’s the question” para Espinosa. Não “ser ou
não ser”, mas como aumentar a minha potencia de vida, necessariamente fazendo composições com seres que me são afins (com quem tenho afinidades), dentro de todo um
espectro,
não de identificações e homogeneidades, mas de diferenças e diversidades integradoras e, portanto, criativas. Criar é sempre com alguém, em algum lugar, ou tomado por alguma força (amigo, amor, atmosfera, inspiração). Jung dizia que se a transformação numa situação de análise não for recíproca, nada aconteceu. Ou, em termos espinosistas, ao se encaixarem, as pessoas, vivendo-se como essências singulares, incorporam as potências umas das outras, aumentando suas potências recíprocas. Trata-se de um movimento tendendo a uma abertura para a Natureza. É nesse sentido que Espinosa entende a importância da multidão. Entenda-se multidão, aqui, como diversidade: cegos, surdos, todas as sexualidades, cores, etnias, todos os corpos, sensações, emoções, reflexões se intercambiando, por exemplo, no fazer dramatúrgico. É uma questão eminentemente política e perfeitamente apropriada a ser encenada ou cinematizada. Enfim, problematizada dramaturgicamente.