22 minute read

Testemunhos

Ana Paula Castro, co-diretora e assistente-vidente

Quando o Cena Diversa se mostrou pra mim, eu não fazia ideia da imensidão que me esperava. No inicio, eu já sabia que seria uma grande aprendizagem, então eu já iniciei todo o processo de peito aberto pra receber todo ensinamento que me seria passado.

Advertisement

Começamos com os alunos cegos, foi um inicio sensível, onde eu me emocionava todos os dias que nos encontrávamos. A gente começou a trabalhar corpo com eles, voz, e etc., e ver toda a evolução deles, foi uma coisa surpreendente. Eles, por serem cegos, estão quase sempre presos a uma bengala que os ajudam a se locomover, e ver esses corpos se soltando no mundo foi e é de uma alegria imensa! Eu nunca vou me esquecer do dia em que vi uma de nossas alunas, Janaína, levantar da cadeira e ir atrás de um funcionário do instituto onde dávamos as aulas. Ela levantou

rapidamente da cadeira e foi atrás dele numa brincadeira, e aquilo sem dúvida, foi reflexo dos ensinamentos de corpo que tínhamos passado, ficou impregnado nela, ela levou algo que seria “do teatro” pro seu cotidiano. Esse acontecimento foi o primeiro de vários que me fez enxergar o quanto eles já tinham mudado e o quanto ainda mudariam. Quando eu estagiava lá, eu morava em Guarapari e estagiava em Vitoria, de ônibus dava mais ou menos duas horas, duas horas sentada, ou em pé, dentro de um ônibus, isso na minha cabeça no inicio seria extremamente cansativo, mas muito pelo contrário, dentro do ônibus eu ia ansiosa pra saber o que eles iriam me ensinar no dia, ou o que nós iríamos ensina-los no dia. Foi uma troca muito sincera e gostosa. Eles são de uma alegria contagiante! Tudo era motivo pra comemorações, palmas, abraços, agradecimentos ou felicitações. Sem contar do quanto eu cresci durante todo esse processo. Estagiar com duas mulheres como a Rejane e a Lena, foi de um privilégio sem tamanho. Foi um processo onde eu aprendi de todos os lados, aprendi com os alunos, com a direção e com minha companheira de estágio. Um processo muito generoso e grato comigo como Ser e como profissional da arte.

Fernanda Oliveira, atriz

Dizem que tudo o que um sonho precisa, é alguém que acredite que ele se tornará realidade. Inicio este pequeno relato com esta frase, a fim de destacar que eu sou um alguém que é extremamente sonhadora. Desde criança, sempre ouvi dizer que jamais seria

capaz de levar uma vida normal, ou de fazer as coisas que os ditos "normais" poderiam fazer. E sempre cresci acreditando piamente nesta frase. Quando me tornei adolescente, descobri o mundo mágico, fantástico e fascinante dos livros. Me lembro que viajava por suas páginas, conhecia o mundo inteiro através das palavras de seus autores. Em 2015, quando fiz teatro pela primeira vez, um mundo novo se abriu diante de mim. Percebi que não seria mais eu, Fernanda que estaria ali no palco. Eu seria uma outra pessoa, um personagem totalmente diferente do meu eu por trás dos bastidores. E isso me deu uma sensação de estranhamento, a princípio, mas depois, aquilo me permitiu abrir novas asas. Aprendi, que o personagem não sou eu, e por isto, existe uma diferença enorme entre minhas ações como Fernanda de carne e osso, e as ações de qualquer personagem que estaria sendo interpretado em cima de um palco. Em 2018, ano passado, me mudei de estado e cidade, e fiz aulas de violino. Ali, mais uma vez, percebi que minha deficiência não é impecílio para nada. Neste ano, quando o Cena Diversa surgiu, eu precisava de algo que me tirasse da depressão, que me desse um fôlego novo, e foi isto o que este projeto fez por mim. Abriu meus horizontes para algo totalmente inédito, que eu nem imaginava poder alcançar. Nas aulas, eu era a que questionava. Sou muito lógica, e a princípio, as ideias da Rejane batiam de frente com tudo o que eu sabia, com tudo o que acreditava, então eu questionava: "Mas por quê tem que ser assim? Não consigo entender isso! Fazer assim não está certo." E ela sempre dizendo: "Fica tranquila, isso é muito cênico, muito potente." E eu ia deixando que ela seguisse com suas ideias, com suas propostas totalmente inovadoras. E aquilo me fez enxergar, que o que é estranho e diferente para uns, pode não ser para outros. Aprendi que cada um tem uma maneira de enxergar as coisas, e mesmo que tudo pareça ser igual, alguém pode ter outro olhar. E foi assim que fui me libertando dos tabus que

ainda fechavam minha mente, fui me livrando dos preconceitos e pré julgamentos, e fui me abrindo para o novo, me permitindo vivenciar sensações novas, adversas do que estava acostumada.

Os ensaios também eram cansativos. Uns se dedicavam muito, outros não faziam, e

meu senso de perfeccionismo gritava bem alto: "Vai dar tudo errado, as pessoas não estão se dedicando, isso vai ficar horrível!"

Aprendi que cada ser humano é um só, com seus pensamentos, suas ideias, suas habilidades, e que ninguém é melhor ou pior do que ninguém. Aprendi a entender e aceitar o jeito de ser de cada um. Ninguém pode ser como eu espero, e isso não é ruim, é só próprio do ser humano.

E aí, a surpresa geral foi na hora da nossa primeira apresentação, no Teatro da UFES. O público ria, aplaudia, se entusiasmava com cada cena feita, eles gritaram, se animaram, cantaram com a gente, enfim, eles demonstraram que sim, tudo havia dado certo no final! E quer saber? Aquilo era o que importava! Eu havia me esquecido dos stresses nos ensaios, havia me esquecido da perfeição que eu queria que existisse, havia me esquecido de tudo, e só me concentrei naquele momento, no presente, nos aplausos, na alegria da plateia! Tudo havia ficado para trás. As lágrimas, as noites mau dormidas. Sim, tive insônia, eu me estressei, me irritei, me cobrei, me quebrei em mil e um pedaços, e me reconstruí de novo, eu me descobri, eu aprendi, cresci, me desenvolvi. Mas depois que subi no palco, tudo havia sido esquecido, e eu só me concentrei naquela apresentação, onde eu dei o melhor que havia dentro de mim! Cantei no pot-pourri, como se fossem as melhores músicas que poderia cantar. Fiz cada cena, dando o máximo de mim. Eu não era a Fernanda. Era cada personagem, era outra

pessoa.

Depois, fomos na escola Estadual, e estar ali, com aqueles adolescentes, também foi uma experiência enriquecedora para todos. Ainda tivemos outras duas apresentações, no Festival de Teatro de Vitória, no Teatro Sônia Cabral, e no IFES de Cariacica. Cada apresentação é única, nos traz sensações diferentes, nada é igual, nem cada reação positiva do público pode ser comparada. Depois de todas as apresentações, percebi que tudo é possível, se a gente acreditar, e que o mundo é meu, e tenho o direito de conquistá-lo, seja atuando, cantando, tocando, seja dando uma palestra, enfim. Sou muito grata ao Cena diversa por me permitir viver experiências novas, e por me fazer enxergar o valor da arte. Sou grata as estagiárias: Ana Paula, Lena, Renza. Sou grata a

equipe: Bárbara, Laysa, Yasmin, Daniel, Gabriel, Filipe, Letícia. Sou grata a nossa diretora Rejane. Enfim, sou grata a todos, que de várias formas, contribuíram para que chegássemos até aqui! Sem vocês, o espetáculo perderia seu brilho. Nós atores, não seríamos nada se não fossem seus olhos, suas palavras de calma, ânimo e insentivo. O Cena diversa pode ter encerrado suas atividades agora, mas eu, ainda tenho muito a realizar, muitos sonhos para serem transformados em realidade. E agora, depois deste ano tão louco, tão cansativo, tão exaustivo, tão gratificante, sei que realizarei tudo o que quiser! Criei um canal no Youtube, graças ao teatro, que me fez superar a timidez, e me fazer entrar na internet, e mostrar aos que me assistem quem eu sou, o meu mundo, enfim. O Cena diversa me deu asas para que eu possa voar, e eu farei isso. Voarei muito auto, e tudo o que vivi neste projeto, jamais será esquecido por mim! Obrigado a todos vocês, que fizeram do projeto ser o que é!

Francielly de Oliveira, atriz.

Eu aprendi muito com vocês no teatro. Sempre fui uma menina tímida. Depois do teatro eu me soltei. Tinha dificuldade de soltar o timbre da minha voz, que não saia. E aprendi muito com vocês. O teatro me despertou muitas coisas. Tipo, sobre

o preconceito. Aceitar quem eu sou, mesmo. E aprender a superar as coisas. Igual o meu depoimento, da coleira. Era um cachorro que só ele ouvia meu choro, ninguém escutava, quando eu tava no berço. Comecei a falar quase com três anos.

A menina apaixonada é a

minha cara. Porque foi o começo do meu namoro. Praticamente quase igual ao roteiro. Mas, é muito linda. E já to morrendo de saudade de cada um. De você, do Gabriel, do Dan, da Baby, da Aninha, da Yasmin, da Fernanda, Janaína, Jarlison, Telma, Ana, Fadine, Zé Carlos, todo

mundo do elenco.

Gabriel Caetano Madeira, produtor

As cordas transitaram de tal vulnerabilidade –que o trânsito parou. Inicio esse tráfego com a hipótese de os atores cegos (essa especificidade de cegueira é viva e eficaz na cena contemporânea e suas relações espaço/social-tempo) serem a priori - naquele ato - uma

espécie de jogo e trans-jogo. Saliento a passagem de atorplatéia, um diálogo, uma prosa... sinto a cena como ‘’um lanche da tarde,u ma janta...’’ -, um toque especial assim. Transfiguração. Figuras mortas e antunianas proferiando relato-pessoal-afetos, uso de objetos de vida e memórias, exploradas pelo tempo, de um caráter caixa de pandora: a revelar de uma outra escrita dramática, em parte e vívida. A exatidão de contar um fato, um acontecimento com usos dramatúrgicos (urso, boneca, carrinho, panela, peteca, pandeiro, secador de cabelo, bacias, folhas secas, câmera, projeção, quadrado de cordas (centro do palco), caixas de feiras (fundo), lanternas, rostos, não contando fábulas (fazer para parecer verdade), mas mostrando, investigando processualmente. O local de não familiaridade - de incertezas, não-executado-espaço corporal e ambiental (esse último espetáculo acontecera no auditório do IFES, campus Cariacica). Os atores cegos, experimentam as cordas, os passos, as falas, os objetos; essa potencialidade de respiro, mudança do fazer cênico, ganha toda vitalidade e prontidão. Troca de ambiente/território. Novo público, novos ares. Atrizes não cegas na cena, auxiliando na condução, volta e meia ‘’passagens livres’’ pelos atores, ora atrizes não cegas com os atores. Saem. Entram. Passagem com microfones, ajustes. Ao vivo. Uma das atrizes não-cega filma-

os.

Imagem+corpo+coro se juntam, abstraindo a visualidade de quem assiste-cria a rede de tessituras, formativa, gradual de Quando Acordar a Cidade. Figura “particular” espectador que não é oculto, esse público se apresenta como um todo participante, e não mera cereja do bolo, voyerismo, mas fazedor. Uma comunhão que se estabelece, as escuras, (ator, direção, equipe), como se tudo não houvesse feito, um novo apontamento, uma nova garra, um novo desafio de encarar a dor e prazeres.

Luz, desenhando e recortando a silhueta dos atores, arquitetando falas e espaços, apagando atores, acendendo o próximo, pisca-pisca, algo misterioso e secreto. Corpo luz, geografia sombria e fria. Mudança de sons, evidenciando a fala. Qual a função do público na trilha sonora, ação ou modo de chegar a dramaturgia? É possível deixar o histórico em casa e partir para o teatro? Como é emergir o corpo diante de tantos outros, sem se ver, apenas sentir? Proponho redescobrir um outro corpo, um novo jeito de comer, um nova maneira de escovar os dentes, vestir uma roupa, calçar os sapatos, passar batom, dirigir, ir à praia, arrumar a casa, tomar banho, cuidar do outro, do cachorro, fazer uma sobremesa, pagar conta, ser acompanhado por alguém (sem saber quem é), fazer arte, tocar um instrumento, ir ao shopping, tirar foto, postar nas mídias, ter amizades, ter um crush. Me permitir chorar, me permitir ser, me olhar no espelho às cegas. Me permitir abrir as cidades.

Fig. 1: Paulo Pasta, sem título, 2011, óleo e tela, 50x70

Fig. 2: Mark Rothko, COMPOSITION, 1959

Janaína Reis, atriz

Fazer teatro me abriu os olhos para quem eu posso ser. Me permitiu ver que eu posso não só sonhar, mas também realizar tais sonhos. Existe uma Janaína

antes, e uma depois do teatro, isso vindo lá de 2015. O triste para um deficiente visual é quando chegamos a fase adulta sem qualquer expectativa e esse

foi o fundo do poço para mim. Acordar para que? dormir para acordar mais um dia para nada. Essa era a definição da minha existência após perder a audição do lado esquerdo e ter que me afastar do meu trabalho. Sim, cheguei a trabalhar, coisa difícil para um cego total. Tinha meu próprio salário, nunca quis receber o benefício por não querer encostar em nada que me desse um apoio para ser ociosa. Passei por muita coisa, desde a perda da minha mãe que me atirou ao chão, até a ser enganada por uma suposta amiga, o que me levou quase a beira da loucura. Minha recuperação do fundo do poço foi o teatro. Foi ver nos meus personagens que não importa quem somos para o público. Eles não fazem ideia. Veem a funckeira louca do show que montamos em 2018, veem a patricinha ou a Tereza Cristina cleptomaníaca que interpretei em 2015. O que somos nós deixamos nos bastidores. Eu voltava do palco querendo mais, querendo escapar, podendo escapar. Aos poucos o foco passou a ser sonhar, e tudo que me afundava, me arrastava para o nada, tudo aquilo passou a não ocupar tanto a minha mente até nem ter mais importância. A criança dentro de mim queria aqueles 60 minutinhos ali, se jogando, brincando, sem medo, sem preocupações, vibrando com a reação da plateia diante do que dei meu suor para aprimorar, dar forma e chegar até ali. O Cena Diversa chegou num momento em que eu tinha decidido que era aquilo que eu queria. Não seria mais uma terapia, seria minha vida. Fui apresentada ao projeto e me atirei. Fui me achegando, de repente estava em contato com a diretora, a Rejane. Perguntando, questionando, pesquisando por fora, dando trabalho... Acho que eu era a mais faladeira da turma. Era uma menina bagunceira, animada, mas extremamente focada.

Eu mudava. Brincava por fora, rígida ao extremo nas aulas. Perdia o sono, sério, fui ao limite do stress. Dei o que tinha, o que não tinha e busquei mais pelo aperfeiçoamento da peça e com isso aprendi que sou apenas uma, que cada um de nós dá uma importância diferente a algo e que eu estava sendo uma tremenda egoísta querendo arrastar todos para o meu ideal. Aprendi que toda essa confusão, briga, desentendimento, stress e mancadas de bastidores é o que dá força a um espetáculo. Quem imaginaria? De fora ninguém vê. Mas ter tantas cabeças juntas dá nisso, se batem, se mordem, se gostam e desgostam, até mostrar uma sincronia fantástica no palco. A energia da plateia envolve e recebe a todos. Tudo fica pra trás.

A loucura dos ensaios é o pior... eu sou uma das loucas, devo acrescentar. Louca de pedra! de chorar e tudo. Repetir, errar, repetir, errar até dar certo. Isso é um ensaio, e isso é maçante! Eu saía da aula com meu perfeccionismo exagerado berrando com todas as forças: "Erro, erro, erro! Tá errado! Eu quero que essa seja a peça da minha vida. Vocês estão atrapalhando a peça da minha vida!" E aí está mais um aprendizado. Essa não foi a peça da minha vida. Essa foi uma das primeiras e espero que essa tal peça esplêndida nunca chegue. O dia em que eu chegar até ao espetáculo da minha vida eu não terei mais o que buscar. E depois da tempestade eis que nasce o sol... Era a hora de colher os frutos de tudo isso. A apresentação na UFES foi tudo que eu esperava e muito mais. Estar naquele palco gigante, teatro lotado mesmo com protesto e toda a dificuldade advinda dele, tudo isso foi mais que emocionante. Eu admito que estava com medo. Passei por mais um pico de stress que me levou as lágrimas e descontrole, mas fui bem amparada, tudo acabou bem. E como as outras vezes, deixei o pacote de surtos na coxia e entrei no palco pra fazer o que eu sabia bem, eu estava pronta para aquilo. Gaguejei algumas vezes, minha voz cobrou o preço pelos dois ensaios seguidos no dia e pela bagunça que fizemos antes de entrar no palco, mas tudo bem, passamos, todos gostaram e até meus familiares estavam. Foi incrível! Isso me deu mais certeza de que era esse o caminho.

Por fim, apresentações posteriores fizeram essa emoção triplicar! Fomos convidados a participar em um evento no colégio estadual e mais duas apresentações, uma no festival de teatro de vitória que ocorreu no Teatro Sônia Cabral e outra apresentação para os alunos do IFES de Cariacica.

Não vou dizer que não me passa pela cabeça "O que eu estou fazendo aqui?" "Porque essas pessoas vieram nos ver?" A baixa auta estima me afeta por mais que eu queira acreditar em mim mesma. Mas não pretendo parar. O céu é o limite! Estou com um canal no youtube atualmente que vira e mexe eu penso em desistir, mas esse também é um sonho que realizei e tirou meu medo de falar para as pessoas. Hoje consigo encarar o público com um pouco mais de naturalidade, aceitar minha própria limitação e até mesmo passar por cima dela na medida do possível. A tecnologia está aí para transformar deficiência em eficiência, nos tornar dependentes de nós mesmos e de nossa própria capacidade como pessoas únicas como todos os que tem visão. De tudo fica o aprendizado, e isso ninguém poderá apagar. Sou grata a UVV e suas estagiárias Júlia, Lena, Sabrina, Ana Paula e Renza que trabalharam conosco no Braille. Sou grata também a Rejane por ter inscrito esse projeto e ter nos dado tamanho contato com o público. Foi maravilhoso e irei levar para sempre. Esse projeto me despertou para voar. Obrigado aos demais estagiários que fizeram parte da equipe do Cena Diversa e que trabalharam nos bastidores das apresentações. Vocês moram no meu coração. Assim termino esse texto, na esperança de que tudo continue fluindo e que esse capítulo da minha história continue dando frutos no futuro.

Jarlison de Oliveira, ator

Está sendo muito importante pra nós. Eu aprendi mais a me soltar, pois eu achava que eu era muito incapaz, me relacionar com outras pessoas. E uma coisa também que eu me surpreendi, pois eu tinha que escolher o nome da peça, e vem a minha cabeça este título de

Quando Acordar a Cidade. Então eu fiquei muito feliz por ter escolhido o título e também pelos meus personagens. Aprendi como a fazer a previsão do tempo, as piadas, o Men e também a bandinha. Isso tudo pra mim está sendo muito gratificante. No dia da minha apresentação na UFES eu fiquei emocinado e eu fiquei muito alegre e foi muito bom pra mim apresenetar para muitas pessoas, e obrigada Rejane por ter tirado um tempo pra nós. São de pessoas assim que precisamos. Espero que continuamos.

José Carlos, ator

Devo dizer que esse ano de 2019 é um ano marcado por um encontro lindo e intenso com o projeto Cena Diversa, que possibilitou que pessoas com deficiência tivessem voz dentro do contexto social de eterna busca da perfeição. Nunca havia sido diritido e topar com o desefio foi uma tortura e, ainda, encontrar uma diretora “obsessiva” tornou o desafio

uma “questão de honra”. É publico e notório que lidar com atores é loucura total. São egos inflados, megalomania, ataques de grandeza, elevado ao quadrado. Mas o desejo no projeto Cena Diversa foi tão coletivo que, quando indivíduos entravam em cena, aprecia uma daquelas pinturas clássicas, feitas com exatidão, beleza, harmonia, paixão. Simplesmente divino. Divino de divinal, me permitam a redundância.... Mesmo estando dentro do projeto, me flagrei todo o tempo boquiaberto com o potencial artístico de cada um da equipe, do elenco... As pessoas que assistem o espetáculo percebem claramente onde os andarilhos querem chegar, embora todos tenham vindo de universos diferentes. Tudo conspirou para que a mensagem deste projeto tão lindo fosse escrita nas estrelas. De alguma forma a arte em geral provoca uma ruptura que nos faz parar, questionar, elaborar, digerir e seguir numa direção alternativa e melhor. Essa é a função da arte: cutucar e desordenar ideias sedimentadas e obsoletas, e propor novas e frescas emoções. Sair da zona de conforto e seguir sempre em busca de novos sentidos, novas percepções. Tenho um sentimento transcendente de que mais que um projeto, o Cena Diversa tem sido um encontro de almas de verdade, de intensidade, de vida... Seja dentro ou fora do palco. Se a ideia incial era acordar a cidade, creio que a cidade foi acordada e sacudida. O melhor de tudo é saber que a semente foi plantada e estamos cuidando para que os frutos surjam vistosos e maduros, para a alegria da galera... Quem viver verá.

Lena Signorelli, co-diretora

O chamado veio desde que estive pela primeira vez no Instituto Braille, com o Coral do Tribunal de Contas: quero me aproximar dessa instituição, dessas pessoas. Aí veio o curso de Artes Cênicas e na lista de entidades para o estágio, o Instituto Braille.

E lá fui eu. Era meu primeiro período de estágio.

Meio insegura. Como será? Uma certeza: teria muito que aprender com eles e muito que aprender sobre os deficientes visuais, suas dificuldades, suas especificidades, sua beleza, suas habilidades especiais. O “remédio” para a insegurança: o apoio da minha orientadora, professora Rejane Arruda, que foi fundamental, assim como as trocas entre os colegas nos encontros de orientação. E a parceria da Sabrina, minha colega de curso, que se juntou a nós. Fomos muito bem recebidas pelo Instituto Braille e pelos alunos. Uma experiência gratificante, mais do que professora e alunos, criamos afeto. Nesse primeiro semestre de oficinas criamos um curto espetáculo para a festa de fim de ano do Instituto. Foi uma experiência colaborativa, a partir das nossas vivências nas oficinas, dos exercícios de corpo e voz, dos jogos teatrais de Viola Spolin e Augusto Boal. Apesar das limitações, a apresentação continuar. foi um sucesso e o grupo quis

Neste ponto já havia uma mudança nas nossas vidas, na deles e na minha. Alegria, sensação de pertencimento, de poder transformar nossas vidas e influenciar a sociedade. Construir pontes e falar de um lugar que só aos deficientes pertence. Falar à sociedade como é viver como deficientes visuais, propor mudanças. Daí veio, neste ano, o Cena Diversa. E tudo foi potencializado! Com a direção de Rejane Arruda, montamos o espetáculo “Quando acordar a cidade”. Foi um aprofundamento de todas as experiências. Um aprendizado. Nossos laços se estreitaram, permitindo-nos vencer todas as dificuldades. Bravos guerreiros! Lutar sem perder a ternura jamais! Assim os vejo. A entrega desses atores guerreiros me emociona e me desafia. Todos participaram de forma única na construção do espetáculo. O “Quando Acordar a Cidade” é verdadeiramente um lugar de fala. Mais do que isso: um grito que vai ecoar para sempre em nós e nas vidas de quem assistiu e viveu conosco essa aventura transformadora. Nunca mais seremos os mesmos.

Marcelo Ferreira, espectador, diretor da Cia Teatro Urgente

“Quando acordar a cidade”, nos afeta de muitas

formas.

Estamos no teatro. É o 15º Festival Nacional de

Teatro Cidade de Vitória que recebe o “Cena Diversa”. Idealizado e dirigido pela atriz Rejane Arruda, esse projeto apresenta uma proposta inclusiva ao expandir a presença

de pessoas com alguma deficiência motora, visual e auditiva em criações e performances cênicas. No caso de “Quando acordar a cidade,” trata-se de uma encenação realizada por atores e não-atores deficientes visuais.

No palco, uma tela de projeção do lado esquerdo, folhas secas, caixotes, cadeiras brancas enfileiradas no fundo do palco. Luz âmbar criando uma atmosfera. Ouve-se um som ambiente, antes do terceiro sinal. Uma câmera está posicionada no palco e será usada para captar imagens em tempo real, recortando as cenas em close. Terceiro Sinal.

Numa narrativa onde se cruzam depoimentos pessoais e ficção, drama, humor, canto e sabedoria, a montagem nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Presenciamos a incursão da diretora, acompanhada de atores em formação da Universidade de Vila Velha, numa poética que recupera a lucidez, resgata o afeto, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu. O teatro é performativo, reunindo elementos que identificam uma estética híbrida. Temos no mesmo plano: textos, objetos, folhas secas, água, fumaça, música, movimentos sutis, pausas, sons acústicos e microfonados, imagens em tempo real. Com uma iluminação bem fechada, em focos de pino, e usando a contraluz, os atores cantam, falam das memórias que certos objetos trazem, revelam verdades e meias-verdades, nos divertem com a criação de um programa de rádio e descem até a plateia, num momento de interação e surpresa. São atrações que foram construídas a partir de material vindo das histórias pessoais e a busca por uma estética que transformasse esse material em arte. A expressão do rosto, das mãos e do andar em cena, revelam uma sensibilidade ímpar dos atores, sua experiência imaginativa e uma instabilidade motora que me remeteu à dança butoh japonesa, e ao expressionismo, em alguns momentos.

“Cena Diversa” nos faz lembrar "a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam", como escreveu José Saramago referindo-se ao seu, “Ensaio sobre a Cegueira”.

Yasmin Toretta, assistente-vidente

Doação. Amor. Empatia. Respeito. Confiança. Desejo. Afeto. União. Ao longo desses meses pude perceber que esse são os princípios da diversidade. Em todo tempo estivemos vulneráveis uns aos outros, aprendendo e nos dedicando juntos. Entendendo a necessidade e se dispondo a

tudo.

Esse tem sido o trabalho mais excitante e sereno

que já fiz. Me descubro, me renovo e quando acho que entendi tudo, me desconstruo novamente. Experienciar "Quando Acordar a Cidade" me fez entrar em uma esfera que jamais achei que algum dia poderia estar. Ser os olhos de alguém transcende. E todos eles imaginam o mundo de uma maneira diferente, essa é a minha maior lição.

This article is from: