
34 minute read
Pele
Rejane Arruda
Penumbra no palco. Tela da frente abaixada. Tela preta. 7 microfones lado a lado em pedestais posicionados bem à frente, na beirada do procênio.
Advertisement
Movimento 1
Apaga-se luz de plateia. Entra projeção com legenda “O que acontece com a paixão por um rosto”? Fica um tempo. Sai projeção. Abre luz frontal. Entra elenco pela direita: Scarlet, Ana Paula, Fernando, Yasmin, Daniel, Maurício e Nayma. Elenco se posiciona lado a lado, em frente aos mics.
Movimento 2
Daniel brinca no mic. Todos descontraídos. Ana Paula acompanha sem mic. Eles cantam muito rápido, quase não dá pra compreender as palavras.
Daniel: Bate e maltrata essa puta safada / Quero jatada de leite na cara / Mas calma aí, não goza agora / Quero você socando minha xota / Bota aqui, bota...
Eles riem.
Fernando: É uma dependência né? Cê sente falta da pessoa, é isso! Nayma: É literamente uma droga ta ligado? Você se vicia na pessoa. O cheiro da pessoa te deixa entorpecido... O toque da pessoa te deixa (...) Ana Paula: Não tem como controlar, não sabe por quem que isso vai acontecer, só chega... (com a mão e a boca imitando um foguete) Bateu, caiu, cabou. Mauricio: Bate na hora, assim. Depois (...) Scarlet: Vem, fica ali um tempo, uns meses... depois passa. Mauricio: É um tesão educado. Scarlet: Já o amor fica por muito tempo. Daniel: Eu acho tudo uma droga!! Nayma: O ser humano não passa de um grandecíssimo saco hormonal... agora, se for pelo lado racional, é só uma tentativa desesperada da espécie sobreviver. Yasmin: Eu acho que quando você ama e entende o conceito de liberdade você sabe amar. A partir do momento que você cria espectativa em cima do outro e não dá liberdade, você não tá amando.
Daniel: Eu fico até tipo meio confuso porque... eu sempre pondero as coisas, daí eu não sei se eu realmente tipo.... to bloqueando... porque eu entendo o lado da pessoa e não só o meu, mas daí isso me bloqueia um pouco e eu sinto que eu não sinto de verdade. Ana Paula: Comecei com quinze, com a minha ex-namorada mas eu não lembro como é que foi. Não lembro mesmo, eu tenho.... zero lembrança! Nayma: “Ela é a minha melhor amiga eu nunca vou gostar dela!” Quando eu fui ver eu tava mais de um ano namorando já. Ana Paula: A primeira vez com um homem foi num menage... foi ótimo. Scarlet: A minha não foi boa não, na hora H ele broxou. Daniel: A minha foi com o meu professor... Eu tinha dezessete, ele quarenta. Ana Paula: Eu vejo muita diferença entre o sexo que eu faço com as pessoas que eu amo e o que eu faço com as pessoas que eu não amo. Yasmin: O sexo é uma troca de energia, a mais profunda possível, então ele é zeloso, sei lá! Fernando: Quando eu fiquei na cadeira eu tava namorando... ela me viu andando e depois na cadeira.... Então tipo... depois da cadeira foi muito melhor. Foi com minha ex mas tipo... foi bem melhor do que quando eu andava. Maurício: Tem muita gente... “Pô será que ele faz sexo?” “Funciona?” Fernando: Se funciona?.. Dá tua mãozinha aqui meu amor... Maurício: A minha primeira vez depois de lesionado, foi com a minha professora de informática... Primeiro aquela amizade... Ela ficou curiosa... Como é que faz?... O negócio sobe? Sobe!... Ficamo namorando aí... um ano e meio.... Na primeira gozada depois da lesão... parecia que eu ia voltar a andar...
Blecaute.
Movimento 3
Foco em Nayma, que cantarola “Metalica de Enter Sandman”. Durante a canção, Yasmin e Fernando se posicionam. Maurício e Scarlet saem. Ana Paula, Nayma e Daniel tiram os 5 microfones centrais, deixando apenas os dois das pontas e saem.
Nayma: Exit, light / Enter, night / Take my hand / We're off to never-never land / Now I lay me down to sleep / Now I lay me down to sleep / I pray the Lord my soul to keep / I pray the / Lord my soul to keep / If I die before I wake / If I die before I wake / I pray the lord my soul to take / I pray… // Say your prayers little one / Don't forget, my son / To include everyone / Tuck you in, warm within / Keep you free from sin / 'Till the sandman he comes / Sleep with one eye open / Gripping your pillow tight // Exit, light / Enter, night / Take my hand / We're off to never-never land // / Somethings wrong, shut the light / Heavy thoughts tonight / And they aren't of Snow White / Dreams of war, dreams of liars / Dreams of dragon's fire / And of things that will bite / Sleep with one eye open / Gripping your pillow tight // Exit, light / Enter, night / Take my hand / We're off to never-never land / Now I lay me down to sleep / Now I lay me down to sleep / I pray the Lord my soul to keep / I pray the / Lord my soul to keep / If I die before I wake / If I die before I wake / I pray the lord my soul to take / I pray…
Movimento 4
Entra projeção de um ponto de ônibus junto com música do U2 “Ordinary Love” . Fernando e Yasmin no ponto. Yasmin com cabeça deitada, a muchila ao lado, o boné na mão, parece que está sentada em uma das cadeiras. Fernando do outro lado, perto de uma lixeira. Os dois esperam o ônibus. Ela abaixa a cabeça. Em seguida olha pra ele. Apesar de perceber, ele não desvia o olhar da avenida. Ela volta a olhar para onde os ônibus vêm. Então ele a olha. A observa de cima abaixo. Quando ela volta o rosto, os olhares se cruzam. Ela sorri. Sai música.
Yasmin: Ta demorando né? Fernando: O que? Yasmin: O onibus! Fernando: Ah sim! Yasmin: Você também pega o 404 não pega? Acho que já te vi nele. Fernando: Ah, pego sim.
Silencio.
Fernando: É.. tá demorando mesmo. Yasmin: Como é seu nome? Fernando: Felipe e o seu? Yasmin: Janaína. Fernando: Nome bonito. Yasmin: (Com um sorriso) Cê acha? Fernando: Sim, é bonito mesmo.
Silêncio.
Yasmin: Você gosta de ler né? Já te vi lendo no ônibus. Fernando: (Ele ri) Não muito. Mas preciso pro meu trabalho. Yasmin: O que você faz? Fernando: Dirijo um setor do Hospital Vaticano e você? Yasmin: Sou atleta. Fernando: Jura? Que legal! Yasmin: Quer ver um treino um dia? Porque você não vai lá? Vai sim, é legal! Fernando: Claro! Vou sim! Yasmin: Vai mesmo? Fernando: Vou.
Entra novamente “Ordinary Love”. Sai projeção. Fernando se desloca até o microfone. Entra luz em Fernando.
Fernando: Felipe batalhou muito desde a infância. Conseguiu pagar os estudos. Chega a irritar as pessoas com a sua calma e não tem atitude pra tomar decisões. Apesar disso, assumiu responsabilidades e com 25 anos é chefe de setor no Hospital Vaticano. Mora com a
namorada Janaína e a cunhada Aurora. Sente uma necessidade imensa de cuidar, talvez por não poder ser pai.
Yasmin se desloca até outro microfone. Ajoelha-se. Entra luz em Yasmin.
Yasmin: Janaína ama a cor laranja e é virginiana. É atleta, joga kindiball profissional. O que mais lhe faz feliz é estar em movimento. Nas horas vagas faz aula de dança. Tem poucos amigos, é fã do irmão Joel, que considera o seu melhor amigo. Desde cedo assumiu a responsabilidade dos cuidados de Aurora, caçula, oito anos mais nova. Há seis anos encontrou o seu grande amor Felipe.
Eles sorriem. Yasmin corre para o foco de luz de Filipe. Cai a luz de Yasmin. Sai música.
Yasmin: Eu to com os anéis aqui, não é nada do jeito que você sempre sonhou, mas... Eu botei meu nome.... e no meu, eu botei o seu.... Você aceita?.. Ai eu vou chorar, me dá...
Ela pega a mão dele e coloca o anel. Dá o segundo anel para ele... Ele coloca o anel no dedo dela também. Ela bate palminhas. Enquanto isso Ana Paula se posiciona no microfone onde antes estava Yasmin. Entra foco de luz em Ana Paula. No final da fala de Ana Paula Daniel se posiciona no centro da cena, violão nas costas. Entra música.
Ana Paula: Eu e minha irmã nos mudamos pra começar tudo do zero, já que nossos pais foram embora. Eu mudei de escola e Janaína de faculdade. Meu cunhado veio morar com a gente. Sim, ele é a melhor parte dessa estória. Minha irmã vive treinando, quase não da atenção. A gente vê filme, faz pipoca, anda de patins.... Ele me leva pra escola... Meu irmão Joel vem visitar a gente. Junta ele e Janaína e eles me deixam de lado! As vezes eu saio, fico horas na rua. Difícil é me adaptar à cidade. Onde eu morava todo mundo me conhecia.
Sai música.
Movimento 5
Daniel: Mana?
Abre luz em Daniel. Entra música: “Só Hoje” (Jota Quest).
Yasmin: Joel! (Sai correndo para abraça-lo) Joel!!
Eles se abraçam, ela pula nele, agarrando-o com as pernas.
Yasmin: (Desprendendo-se do abraço) Tira essas coisas, me dá tudo...
Ajuda-o a tirar o violão das costas. Coloca no chão. Vai pegar o chapéu...
Ana Paula: Congela!
Eles imediatamente param o movimento.
Ana Paula: (Bate uma palma) Corre!
Abre luz de frente. Eles correm.
Ana Paula: (Bate duas palmas) Congela!
Eles congelam.
Ana Paula: (Bate três palmas): Se joga no chão!
Eles se jogam no chão.
Ana Paula: (Bate uma palma): Abraço!
Eles se levantam e se abraçam.
Ana Paula: (Bate duas palmas): Se afasta!
Eles se afastam.
Ana Paula: (Bate três palmas): Um tapa!
Eles se estapeiam no rosto.
Ana Paula: (Bate uma palma) Vira de costas!
Eles viram de costas um para o outro.
Ana Paula: (Bate duas palmas) Cai no chão e rola.
Eles caem no chão e rolam.
Ana Paula: (Bate três palmas) Se levanta e grita.
Eles se levantam e gritam.
Ana Paula: (Bate uma palma) Abraço!
Eles se abraçam e continuam a cena. Volta luz fechada.
Yasmin: Eu não acredito!
Filipe olha sério.
Yasmin: Você não avisou que ia vir! Meu deus! Que saudade de você!
Ela o abraça novamente.
Yasmin: Ai te amo tanto! Ai meu deus!
Joel percebe Filipe. Os dois olham ao mesmo tempo para Filipe.
Sai música.
Daniel: Quem é ele?
Sai luz. Saem Fernando, Yasmin, Daniel, Ana Paula.
Movimento 6
Entra audio de Ana Paula. Durante o audio, atrás da segunda tela, Nayma acende lanternas. Daniel troca de roupa. Yasmin ajuda. Ana Paula prepara Scarlet. Daniel se posiciona em cima do quadrado de areia.
Ana Paula (Voz off): Durma com um olho aberto / Apertando o seu travesseiro com força / Sai a luz / Entra a noite / Pegue na minha mão / Nós vamos para a Terra da Fantasia // Algo está errado, apague a luz / Sonhos pesados nesta noite / E eles não são com a Branca de Neve / Sonhos com guerras, sonhos com mentirosos / Sonhos com o fogo do dragão / E com aquelas coisas que mordem / Sim // Agora me deito para dormir / Peço ao Senhor para guardar a minha alma / Se eu morrer antes de acordar / Peço ao Senhor que leve a minha alma / Silêncio, bebezinho, não diga uma palavra / E não se incomode com o barulho que ouviu / São apenas bestas embaixo da sua cama / Em seu armário, na sua imaginação // Sai a luz / Entra a noite / Grão de areia / Sai a luz / Entra a noite / Pegue na minha mão / Nós vamos para a Terra da Fantasia.
Movimento 7
Entra música “Meab Blues” (Floyd Lee). Sobe a 1ª tela, deixando a mostra o cenário que está montado atrás. Joel caracterizado de salva-vidas, braços cruzados, pé de pato e óculos de natação, no centro de um quadrado de areia iluminado por seis lanternas, três em cada lateral. Entra projeção com imagens de cassino: Soraia e amiga riem, bebem, ganham dinheiro, comemoram. Nayma caracterizada de cachorro aparece no fundo à esquerda, avança pela diagonal. Pára um pouco antes de Joel, fareja em várias direções e late. Em seguida percebe o quadrado de areia, vira-se e vai até ele, cheira, percebo Joel, começa a cheira-lo. Ele se incomoda e tenta afasta-la com um chute. Começa uma briga entre chutes e latidos que ganha intensidade até aparecer Soraia. Ela vem pelos fundos em uma linha reta, passa por Joel e se posiciona ao lado do quadrado de areia. Vira-se de frente para a plateia e pára. Permanece imóvel olhando a plateia. Joel olha para ela.
Daniel: (Em posição frontal) Olha aqui senhorita cachorros são proibidos nesta praia. Scarlet: (Abre os braços e fala alto) Por que são proibidos?!!
Calmamente ela vira a cadeira e contorna Joel pela sua esquerda até completar o círculo. Se posiciona atrás do quadrado de areia entre Joel e Nayma. A cachorrinha se anima com a presença da dona, pula, lambe, festeja.
Scarlet: Você concorda com este absurdo? Bichinhos são tão meigos....
Joel espicha o olho.
Daniel: (Voltando a posição frontal) Que bonitinho!... Pois é... Mas Lei... é Lei!!! (Enxergando o bracelete espicha novamente o olho) Que pulseira bonita!!.... É de verdade?
Soraia ri.
Scarlet: Como assim de verdade? Daniel: Nem tudo o que brilha... é jóia!!! Scarlet: É falsa. Daniel: Falsa? Scarlet: É pra atrair os golpistas!!!!
Sai projeção, entra tela preta.
Movimento 8
“The Dope Show” (Marilyn Manson). Durante a música, aomesmo tempo: Nayma apaga as lanternas, coloca no quadrado de areia e arrasta a lona pra fora. Ana Paula e Yasmin posicionam bacia e roupas. Daniel tira pé de pato e óculos de natação e se posiciona em frente a bacia. Diante da bacia com água e sabão, ele bate a roupa molhada e procura o seu terno no bolo de roupas secas. Durante esta cena Nayma se troca e ajuda Scarlet com o vestido.
Daniel: Diabo!! Vocês não viram meu terno não?
Sai a música bruscamente. Abre luz em Daniel. Sobe corredor de luz.
Ana Paula: (Atravesssa a cena correndo) Aiiii uma barata!!!
Janaína entra escovando os dentes com um copo d’água na mão.
Daniel: Porra vocês não viram meu terno? Yasmin: (Parando atrás de Joel) Eu tenho que tomar conta da vida de todo mundo aqui?! Ana Paula: Ihhhh, ta estressada?
Yasmin: (Joga a água na cara de Aurora) Filha da puta. (E sai de cena). Daniel: (Contina batendo roupa e procurando o terno) Caralho!!! Yasmin: (Voltando, com a bolsa) Vamo Aurora! Garoto levanta daí logo? Ana Paula: (Exasperada) Homem do céu, pra quê você quer esse terno?
Joel levanta-se abrupto, num susto.
Yasmin: (Puxa Joel pelo braço e o derruba) Kukusclan!! Vocês viram a matéria sobre isso? Daniel: (Cruzando os braços, no chão ainda) Lamentável. Ana Paula: (Agoniada com a roupa molhada) Mas eu...
Janaína puxa Aurora pela roupa.
Daniel:: Menina, você tem que saber onde tá o terno! Ana Paula: (Birrenta) Nananinanão. Yasmin: (Segura Joel e o empurra agressivamente) Olha nas suas coisas Joel!! Ana Paula: Porra Joel!! Daniel: (Levantando) Ô caralho! Porra!
Aurora se afasta. Janaína dá uma bolsada em Aurora e começa a bater em Joel.
Yasmin: Ridículo! Sonso demais! (Janaína busca o terno) Ana Paula: (Posicionando-se na frente dele) Urra meu irmão!!! Yasmin: (volta com o terno, levanta Joel pelo braço) Vai vai vai, levanta logo sai daqui.
Volta “The Dope Show”. Sai corredor. Fica o foco em Joel. Yasmin e Ana Paula se alternam para pegar as coisas na coxia. Uma a uma, saem e retornam, com alguma coisa na mão em uma espécie de coreografia. Trazem e vestem ele: a calça, o paletó, o chapéu e o lenço, o violão e a flor, o perfume. Depois saem, deixando ele sozinho.
Movimento 9
Entra audio com dedilhado de violão. Abre corredor de luz. Scarlet entra, atravessa o palco, posiciona-se no microfone. Abre suave luz frontal. No fim da sua fala, Daniel começa a dedilhar. O som do violão se mistura ao audio.
Scarlet: Eu me chamo Soraia. A minha vida mudou quando o meu avô faleceu e deixou para mim tudo o que tinha. Joel veio atrás de mim. O que eu tinha, não era o suficiente, mas a gente sempre dá um jeito, quando ama. Eu até gostei. Foi uma oportunidade pra me aproximar de novo. O primeiro encontro tinha sido legal. Mas depois, ele começou a fugir.
Daniel dedilhando. Ela vira a cadeira e fica de frente com ele. Os dois se aproximam. Sem parar de tocar, ele caminha em torno dela, que mantem o deslocamento em movimentos circulares. Ora andando de frente, ora de costas, sempre tocando, Daniel caminha em torno. Até se ajoelhar. Scarlet pára a cadeira e, em seguida, se desloca para o lado. Fica um tempo.
Volta a deslocar a cadeira, até ficar bem na frente dele e, então, tira o seu chapéu. Segue por trás até parar novamente ao seu lado. Esconde o seu próprio rosto com o chapéu. Entra audio de vozes no telefone. Daniel continua dedilhando. Scarlet escutando, como se lembrasse. Fecha os olhos, seu rosto se contorce de dor.
Soraia/Amiga: (voz off) Alô? / Amiga... / Espera... Fala comigo. / Vou tomar estes comprimidos. / Que tipo de comprimidos? / Vermelhos, azuis, verdes, o arco-íris inteiro... A cidade tá me matando. / Como é que tá te matando? / Ele me deixou... Eu to sozinha... Todo mundo tá sozinho... Eles me desrespeitam. / Eu te respeito. Viver... não é algo fácil de se fazer. / Não será arrogante quando eu chegar? (Barulho) Você está bem? Que barulho é esse? / Nada, to indo praí. / Pra onde? / Eu sei onde você tá.
Caem as luzes. Scarlet sae de cena.
Movimento 10
“Sweet Dreams ” (Marilyn Manson). Fernando entra. Acende a luz. Durante esta cena, Yasmin e Ana Paula se preparam para entrar com os caixotes. É uma cena de bastante movimento, onde Daniel puxa e gira a cadeira de Fernando que, por sua vez, ora foge, ora vai pra cima, ameaçando atropelar Daniel.
Daniel: (Agressivo) Escuta aqui... Eu não sei como você chegou nessa casa... (ajoelha-se na frente dele) mas quem você acha que é?
Silêncio.
Fernando: Quem eu acho que sou? Daniel: Quem você acha que é! Fernando: Sou o marido da sua irmã... E aí? Daniel: Eu não sei qual é a sua não....
Levanta-se, circula ao redor de Filipe
Daniel: Sei que eu não gosto de você. Fernando: Você não gosta de mim? Daniel: Eu não gosto de você. Fernando: Foda-se!
Joel de frente para Filipe.
Daniel: E se você acha que vai ocupar o meu lugar nessa casa, tá muito enganado... Fernando: O seu lugar? Daniel: O “MEU” lugar. Fernando: Que lugar? Passou anos fora daqui, quem teve com suas irmãs?... Daniel: Mas essa é a “MI-NHA” família!!
Fernando: Ah tá e onde você tava quando elas precisaram?
Daniel sai de cena e deixa Fernando falando sozinho.
Fernando: (gritando para os bastidores) Família não é quem tem o mesmo sangue, família é quem tá junto!!!
Sae música. Apagam-se as luzes.
Movimento 11
Abre luz. Yasmin e Ana Paula colocam a cabeça pra dentro do palco. Toalha colorida enrolada como turbante e óculos. Entram e olham para a plateia. De salto alto, bem peruas, carregam caixotes. Caminham. Nos bastidores Daniel se troca ajudado por Nayma. Yasmin e Ana Paula posicionam os caixotes e se sentam. Lixam as unhas, esperando o atendimento. “Sem querer”, começam a tirar som dos gestos: lixa no caixote, salto no chão, respiração... Aos poucos surge um ritmo orquestrado. A intensidade aumenta, até que Yasmin se abana, Ana Paula bate com o pé no chão e a coreografia começa. Com tempo dobrado (a cada tempo duas batidas). Lixa na unha: 1 2 3 4 5 6 7 8. Lixa na perna: 1 2 3 4. No caixote: 1 2 3 4. No colo da outra: 1 2 3 4. Com a mão na coxa da outra: 1 2 3 4. Batida do pé no chão com uma bufada. Com tempo normal (a cada tempo uma batida). Lixa arrastando no caixote para trás e para frente: 1 2 3 4 5 6 7 8, 1 2 3 4 5 6 7 8. No contra-tempo: uma batida com a lixa na sola do pé do lado oposto. Volta lixa arrastando no caixote: 1 2 3 4. Batida com a lixa na sola do pé do lado oposto: 1 2 3 4. Com tempo dobrado novamente, salto do chão com pés alternados: 1 2 3 4 5 6 7 8, 1 2 3 4 5 6 7 8, 1 2 3 4 5 6 7 8. Batida com os dois pés no chão. Três bufadas. Neste momento Daniel aparece.
Daniel: “Shhhhhhhh”. E elas voltam a lixar as unhas. Daniel está caracterizado como Yasmin e Ana Paula, bem perua, turbante na cabeça, salto e lixa de unha. Senta-se no seu caixote. Mantem-se entretido com o celular.
Ana Paula: (De forma melódica) Só vou esperar mais dez minutinhos! Yasmin Gente, mas a gente ta aqui a uma hora e meia!! Ana Paula: Essa médica demora, mas ela é (Aurora e Janaína juntas) boa!!
Duas batidas com o pé no chão. Pés escorregam, joelhos juntos, corpo para a frente, queixo apoiado na mão. Pulso na testa. Abana. Levanta. Vira. Abaixa. Volta. Senta. Voltam a lixar a unha displicentemente. Entra “Push It” (Salt-N-Pepa). Ana Paula balança os ombros ro ritmo da música. Corredor de luz. Bento entra. Terno e cadeira de rodas. Yasmin chama a irmã para olhar. Ele passa pela frente delas em direção à secretária. Ana Paula tira o óculos para ver melhor. As duas acompanham com a cabeça. Daniel empolgado com a música. Bento chega na frente dele. Música sai. Ana e Yasmin acompanham.
Maurício: Boa tarde. Daniel: Boa tarde. Maurício: Eu tenho uma consulta marcada com a Dra. Gislaine. Daniel: Qual o seu nome? Maurício: É Bento. Daniel: Pra que horas? Maurício: (...) Daniel: Hoje tá bem lotado aqui vai demorar um pouquinho. Mauricio: (...) Daniel: Você pode esperar ali no canto? Maurício: Tudo bem então.
Volta a música. Bento dá meia volta com a cadeira de rodas. Ana Paula e Yasmin olhando ostensivamente. Bento passa pela frente delas e se posiciona ao lado de Ana Paula. Música sai. Janaína arrisca perguntar a Bento.
Yasmin: Ãn, eh... Ce vem nela sempre aqui? Maurício: Sempre eu venho nela, mas não se atrasa tanto assim não. Yasmin: Nossa a gente veio lá da Serra, menino.
Alguns instantes de silêncio. Ana Paula tosse. As duas voltam a lixar a unha. Ana Paula ainda dá mais uma olhadinha. Bento de cabeça baixa. Toca o telefone.
Daniel: Alô? Consultório da Dra. Geslaine!
As duas puxam papo de novo.
Yasmin: Ei... É... O que que cê fez procê tá aí? Ana Paula: Foi tiro? Yasmin: Ou foi de nascença? Maurício: Um acidente. Daniel: Hummmm. Ana Paula: De carro? Maurício: Não.
Alguns instantes de silêncio. Yasmin resolve levantar. Vira-se para a secretária.
Yasmin: Moça tá demorando demais! Daniel: Só um minutinho moça que eu to no meio do atendimento. Maurício: Tem mais de meia hora já que nós tamo aqui... esperando. Daniel: Só um minutinho moço!.... Eu to no meio do atendimento.
Maurício abaixa a cabeça. Alguns instantes de silêncio. Ana Paula e Yasmin olhando.
Yasmin: Qual o seu nome mesmo?
Sai luz do consultório. Entra “Ordinary Love ” do U2 novamente. Maurício se desloca até o o microfone. Sobe pino. Durante a fala de Maurício, Yasmin e Daniel saem, levam os caixotes. Ana Paula tira os adereços, se posiciona no outro lado do procênio. Olha para Bento.
Maurício: Meu nome é Bento. Cresci na comunidade. Era bom menino. Ajudava todo mundo. Mas, vivia nas ruas. Pai e mãe ausente. Educação em casa não tinha. Aprendi a sobreviver... Fiz amizades com os barra pesada. Me envolvi em assalto, tráfico de drogas e pequenos sequestros. Até que encontrei uma menina responsa...
Sai música.
Movimento 12
Bento se vira para Aurora. Aurora em em uma ponta, Bento em outra, frente a frente. Nascem dois corredores de luz.
Ana Paula: Você não pode andar? Maurício: Eu não posso andar? Ana Paula: Você não pode...
Pausa.
Maurício: Não, eu tive um acidente. Ana Paula: Você teve um acidente. Maurício: Sim, eu tive um acidente.
Pausa.
Maurício: Mas não se preocupe, tá tudo bem.
Pausa.
Maurício: Como é o seu nome?”. Ana Paula: Como é meu nome? “Aurora”. Maurício: Aurora. Ana Paula: Aurora.
Pausa.
Maurício: Você pode me ajudar a chegar até em casa? Ana Paula: Eu, ajudar você a chegar em casa? Maurício: Me ajudar.... Ana Paula: Te ajudar... Maurício: A chegar... em casa.
Ana Paula vai até ele. Posiciona-se atrás da cadeira, toca-a. Desloca Bento, até sair de cena. Apaga a luz de Aurora e Bento.
Movimento 13
Entra “Type O Negative Black N. 1”. Fernando e Yasmin bem no centro, encostados na tela, olham a plateia. Yasmin de salto, pernas de fora, óculos escuro, microfone. Daniel posiciona a camera no rosto de Fernando e liga. Ao mesmo tempo entra projeção do rosto de Aurora. A imagem dos rostos se misturam.
Yasmin: A Aurora saiu né?
Yasmin posiciona o microfone para Fernando e em seguida retoma-o para si.
Fernando: A Aurora saiu? Yasmin: Sim ela saiu. Fernando: Você viu ela sair? Yasmin: Ela não saiu agora a pouco? Fernando: (...) Yasmin: Tem muita coisa que a gente pode fazer! Fernando: Muuuuita coisa que a gente pode fazer...
Ela senta no colo dele. Eles se beijam. Daniel filma. A projeção do beijo se sobrepõe à imagem de Aurora empurrando Maurício pelas ruas: uma rua, outra rua. Quando entra a terceira rua, toca o telefone. Sai música e projeção. Daniel entra. Fernando e Yasmin se reposicionam. Atores afastados, cada um iluminado por um foco virados de frente para a plateia. Imagem de Aurora perdida. Olha as paredes, abaixa o rosto, olha a camera com estranhamento. Toca o telefone de novo... uma, duas, três vezes. Daniel atende.
Daniel: Alô.
Tempo.
Daniel: Vocês o quê? (Com os olhos arregalados) É o quê?
Yasmin se aproxima do celular perto dela, no chão, para falar em viva voz.
Yasmin: Aurora?
Joel continua com os olhos fixos. Pausa.
Daniel: (Lentamente) Au-ro-ra? Fernando: Isso só pode ser trote, pára!
Janaína abaixa o rosto, testa franzida, compenetrada. Tempo.
Yasmin: Aurora me responde. Daniel: (Abaixando o celular) Preciso de dinheiro!! Fernando: Isso só pode ser trote!! Yasmin: A gente gastou o dinheiro todo.... pra escola....
Telefone toca de novo. Joel atende novamente.
Daniel: Quem tá falando? Quero saber quem são vocês! Fala o nome inteiro dela.
Pausa.
Yasmin: Tá certo.
Pausa.
Yasmin: Tá certo Joel!!!
Na projeção, a boca aberta de Aurora em um grito. Entra audio de Fernando com enigmática música de Zbigniew Preisner. Apaga-se os focos. Os três lentamente se viram para a boca e se aproximam. Chegam bem perto. Tocam. Yasmin é a primeira a sair de cena, depois Daniel. Fica apenas Fernando, na cadeira de rodas, acarinhando o rosto projetado em dimensão desproporcional. Durante o audio, Maurício e Ana Paula se posicionam atrás da 2ª tela. Cenário do cativeiro preparado, Nayma liga a TV.
Fernando (voz off): Eu já fui tantas coisas / Já fui jogador, soldado / Até já fui astronauta. Mesmo dentro do meu próprio quarto / Na verdade, eu nunca entendi o motivo de não ter jamais saído dali! / Ouvia os outros meninos da rua e eu sempre quis ir… / Sofria comigo mesmo, sempre fui meu melhor amigo / Embora sempre ouvia a voz de um velho sábio que na minha cabeça falava comigo… / Minha genitora fazia um rodízio de homens e eu quem sofria / Nem se eu berrasse, ela atendia / Raramente me deixava ver TV e eu amava ir até a sala / Em algum momento, houve um homem com a seguinte fala / "Se ele mijar nesse sofá a mancha não vai sair! Você acha que ele realmente precisa ficar aqui?" / Eles saíam, curtiam, iam muito ao bar / Eu mesmo ficava ao "Deus dará" / Minha alegria foi quando ela teve seu segundo / Ao mesmo tempo senti tristeza.. / Nem de mim ela cuidava, pra que trazer outro ao mundo? / Era como eu esperava, ela saia e sozinho nos deixava / Eu nunca reclamei, mas meu irmão chorava / Fiquei feliz por ele quando ele o levou a um passeio / Eu outra vez fiquei de escanteio / O patinho feio.. / Sempre ouvi que me levar daria trabalho por causa do transporte. / Até acostumei ficar ali, contando com a própria sorte. / O Eduardo do Facção disse algo que nunca vou esquecer / "O papel dela deveria ser cuidar de mim. Afinal.. Eu não pedi pra nascer" / Ah.. Mas eu nunca reclamei / Naqueles poucos metros quadrados eu podia ser quem nunca fui. / Um super herói, um vilão! Mas só até ela apagar a luz. / Comecei a tossir, pensei que fosse disreflexia / Era um bicho entrando em minha garganta / Quem diria.. Não morri com anos de mals tratos e morreria por asfixia.. / Não se preocupe, estou num lugar bonito agora / Tem um homem ao meu lado / Ele disse que agora eu posso com a boca
falar / Dói olhar pra baixo e ver no quarto meu corpo ainda lá.. / Saber que ela só vai descobrir amanhã, quando voltar do bar.
Terminado, contiua a música de Zbigniew Preisner. Yasmin sobe a 2ª tela, revelando o cenário do cativeiro.
Movimento 14
A luz recortada entra pela janela mostrando telas espalhadas pelas paredes e chão. Logo na entrada, uma TV em meio a caixotes de feira. Desenho animado em negativo sobre órgãos e anatomia humana. No fundo da cena, Aurora pinta. Bento imóvel bem no centro. Antes de terminar esta cena, Scarlet e Daniel vão se posicionar.
Ana Paula: (pintando o quadro com dois pinceis, um grande e um pequeno. Pinta com movimentos abertos e agressivos) Eu to cansada disso. (molha o pincel em outra tinta) A verdade é que eles não vão conseguir. (molha o pincel mais uma vez e faz movimentos leves no quadro) Tá tudo muito complicado, ce entende? (começa a fazer o numero “2” no quadro. Molha o pincel repetidas vezes) Tem duas coisas no mundo que são estúpidas (permanece fazendo o numero “2”) Na verdade o universo eu não sei se é tão estúpido assim... mas o que vocês tão fazendo é estúpido (pinta levemente. Perdida) eu to no mundo da lua (permanece pintando, e vai aumentando a agressividade) mas não só. Eu to na terra também.. (tempo. Pinta quadro) (irônica) Olha, eu preciso pegar meu ônibus, tenho que ir embora. (tempo. Deixa os pinceis caírem no chão. Tempo. Vira de frente para Mauricio, encosta em seu ombro. Abaixa. Passa a mão no rosto de Mauricio, tira seus óculos devagar, com carinho) Eu gosto tanto do seu olho, as vezes ele é tão... (mexe no cabelo de Mauricio, caminha pra frente e senta em seu colo. O observa) há quanto tempo vocês têm me observado? (Mauricio acaricia perna de Ana Paula) (Ana pula levanta rosto de Mauricio) Você pode me falar seu nome? (tempo. Segura no ombro de Mauricio) Seu nome mesmo?
Nayma entra devagar observando Ana Paula e Mauricio e caminha em direção aos caixotes e a TV. Ana Paula olha para Nayma.
Ana Paula: (No ouvido de Maurício) Ela gosta de incenso, né? E velas perfumadas (diz deitando a cabeça no ombro de Mauricio. O abraça) Percebi. (Ana Paula olha para o quadro e volta a olhar para Mauricio, o acaricia) Ela tem uma voz doce, né? (se levanta) Ela deve gostar tanto de você. (volta para o quadro, pega o pincel, molha na tinta e pinta) Eu tenho dois gatos... (Tempo. Olha para o quadro e depois volta a falar para Mauricio, se agacha) Um macho e uma fêmea, ce sabe, né?
Tempo. Levanta-se e volta a pintar.
Ana Paula: O inacreditável é que a gata tá grávida.
Ana Paula para de pintar, escuta o ambiente, vai para o ouvido de Mauricio.
Ana Paula: (No ouvido de Maurício) Ela gosta de pintar, né? Eu acho tão legal (diz voltando para o quadro. Molha o dedo em uma tinta) Eu gosto de pintar também (pinta o quadro com as mãos) (Ana Paula vira para Mauricio, pinta os próprios braços) Por que vocês me deixam pintar, hein? (passa tinta no rosto) É pra eu ficar calma, né? (pega mais tinta e passa no rosto) Pra eu não gritar? Percebi. (Volta pro quadro, molha o dedo com mais tintas. Se vira para Mauricio e pinta uma porta no braço) Minha avó dizia, quando você não tiver uma porta (vira o braço e desenha uma janela) abra uma janela. (Pinta o rosto de Mauricio) Ela também gosta de batom vermelho, né? E bijuteria .
Ana Paula vai ao microfone da direita. Entra “Nachtwache Blaubeermund” (E Nomine).
Ana Paula: Ela tá parada! Ela devia estar xingando! Tá certíssimo. (Abrindo os braços) Eu te amo tanto! Não é assim?
Nayma aumenta a gargalhada. Ana Paula se vira para Mauricio, passa a mão no rosto.
Ana Paula: Você sabe o que eu quero? Mauricio: (com um mic sem fio) O que você quer? Ana Paula: Eu to sentindo cheiro de..... Eles vão dar uma festa!!!! Mauricio: Uma festa? Ana Paula: Voce sabe o que é poesia? Mauricio: Que poesia? Ana Paula: Poesia é a fundação da palavra pelo homem. Mauricio: Ce tá maluca! Ana Paula: (em desespero) Vocês tão no mar! Vocês tão se afogando! Você ta percebendo que vocês tão se afogando? Você tá sentindo que vocês tão se afogando? Mauricio: Esquece. Nada de se afogar... eu tava boiando. Ana Paula: Quando eu era pequena eu cai de uma arvore, bati com a cabeça. Isso não vai dar certo, ce ta percebendo que não vai dar certo? Mauricio: Claro que vai, tá tudo nos planos. Nos nossos planos Ana Paula: Eu te amo tanto (tempo) você não acredita né? Que eu te amo. Mauricio: Esquece menina. Ce tá louca! Ana Paula: Paixão é assim, meu amor! Ela vem, ela só vem! Você não escolhe. É irracional, ce percebe? Ana Paula: Você ta sentindo o amor? Mauricio: Isso é tudo ilusão da sua mente. Ana Paula: Sono, sede frio. Sono, sede, frio. Fala pra plateia! Mauricio: Nada de sono, nada de amor. Ana Paula: Você já sentiu fome, sono, sede e frio? Mauricio: Eu não sei que que é isso. Não existe no mundo não. Ana Paula: E paixão? Mauricio: Nem sei o que é isso. Ana Paula: É a mesma coisa!!
Apaga luz de Ana Paula e Maurício. Nayma desliga a TV. Entra contra-luz.
Movimento 15
Continua “Nachtwache Blaubeermund” . Scarlet no procênio no canto esquerdo. Daniel do outro lado. Daniel caminha em direção a ela. Vai até bem perto da cadeira e estende a mão. Ela também. Ela se levanta e, ajudada por ele, caminha até o outro lado do procênio. Ele a suspende pela cintura e é como se dançasse com ela, balançando-a para lá e para cá enquanto gira no próprio eixo. Mantendo este movimento de balanço ele retorna para perto da cadeira. Quando chega bem perto a pega no colo e senta-se. Sobe luz de frente nos dois. A música sessa. Ela sentada em seu colo. Os dois conversam.
Scarlet: Então, agora eu posso... te levar pra Italia, te dar o carro do ano... Daniel: Meu bem, meu bem.... Um dia, eu tinha ido trabalhar na serralheria... Eu tinha que caminhar durante uma hora... com aquele chinelinho. Era meio dia. Eu olhava assim, os carros passando, pra lá e pra cá. Eu podia dar um passo errado e fingir que foi sem querer... só pra não ir trabalhar... Scarlet: Posso de dar roupas de marca... um i-phone 11 Pro... um Macbook Air... Daniel: Eu também tive um avô... Eu lembro dele com setenta e dois anos, lenha nas costas. Ele é vivo, ainda, o meu avô. Eu lembro da lenha... Um velho carregando... Eu era um menino de dez anos, carregando as varetas que caiam. Ele ia indo, peidava o caminho inteiro. Eu ia atrás dele. Scarlet:... e uma Sony 4K 35 mm Compact... Daniel: Meu amor... eles pediram 500 mil reais. Scarlet: Eles? Daniel: Eu não gosto que você goste do meu jeito de gostar. Eu não gosto do jeito que você anda e do jeito que você fica me olhando. Não gosto que você se aproxime, mas também não gosto que você se afaste. Não gosto que fique calada, mas também não gosto que fale. Eu não gosto de você.
Silêncio.
Scarlet: Não tem problema.
Silêncio.
Daniel: Eles pediram 500 mil reais. Scarlet: Eles? Daniel: Eles.
Tempo.
Daniel: Os sequestradores da minha irmã.
Blecaute.
Movimento 16
Entra audio com voz sussurrada de Nayma. Daniel se reposiciona. Scarlet sai de cena. Nayma entra. Abre luz nela. Abre luz em Daniel, sentado em um caixote, no outro lado do procênio. Fuma um cigarro. Durante o audio, ele olha para ela, apaga o cigarro com o pé e se levanta com uma maleta na mão. Nayma caminha lentamente, até entrar no seu foco. Lentamente ele estende a mão para lhe entregar a maleta. Lentamente ela estende a mão para pegar.
Nayma (voz off): Meu bem, meu bem.... Um dia, eu tinha ido trabalhar na serralheria... Eu tinha que caminhar durante uma hora... com aquele chinelinho. Era meio dia. Eu olhava assim, os carros passando, pra lá e pra cá. Eu podia dar um passo errado e fingir que foi sem querer... só pra não ir trabalhar... Eu também tive um avô... Eu lembro dele com setenta e dois anos, lenha nas costas. Ele é vivo, ainda, o meu avô. Eu lembro da lenha... Um velho carregando... Eu era um menino de dez anos, carregando as varetas que caiam. Ele ia indo, peidava o caminho inteiro. Eu ia atrás dele. Eu não gosto que você goste do meu jeito de gostar. Eu não gosto do jeito que você anda e do jeito que você fica me olhando. Não gosto que você se aproxime, mas também não gosto que você se afaste. Não gosto que fique calada, mas também não gosto que fale. Eu não gosto de você.
Daniel: E minha irmã?
Escuta-se choro de Aurora.
Nayma: (No microfone) A oração é o mais doce consolo do desgraçado...
Lentamente sobe a luz de Ana Paula, situada no outro lado do procenio. Vendada sozinha, semi-nua. Daniel permanece imóvel com a mala na mão, olhando em direção da plateia. É como se a visse. Enquanto fala, Nayma se desloca para o foco do centro. Cada um em uma luz.
Nayma: (No microfone) ... porque ele fica mais forte depois de ter orado. Ela ergueu-se cheia de coragem, e como começava a escurecer, escondeu-se num pequeno bosque pra passar a noite... (...) A segurança em que julgava estar, o abatimento que sentia, a pequena alegria que estava desfrutando, tudo contribuiu para que passasse uma noite agradável e o sol já ia alto quando abriu os olhos. (...) O instante do despertar é o mais fatal; o repouso dos sentidos, a calma das idéias, o esquecimento imediato dos seus males. É quando tudo volta com mais força, tornando o fardo mais pesado. (...) Mas a paixão têm um grau no qual voz alguma pode cativar; e as pessoas a quem ela deveria servir não estavam em estado de compreender... Para que pudessem se alegrar, declararam, unanimemente, que quando o cadafalso estivesse pronto, ela deveria tornar-se sua presa.
Yasmin: Aurora!!!
Yasmin chega pelos fundos. Corre até a irmã. Daniel deixa a mala no chão, corre também. Os três se abraçam chorando. Nayma entra no foco de Daniel. Sai foco de Nayma. Úrsula altiva, o celular na mão. Só o rosto iluminado.
Nayma: Doutora Geslaine? Pode marcar. Estamos prontos.
Felipe chega. Vai até o foco central. Sobe luz. Aurora olha para ele, vai correndo, deita a cabeça no seu colo e chora. Ele se abaixa e a beija carinhosamente no rosto. Os dois irmãos se aproximam. Sai foco lateral. Joel se abaixa e abraça os dois. Janaína abraça os três. Ficam um tempo assim, os quatro abraçados. Blecaute. Entra audio de Ana Paula.
Ana Paula: (Voz off) Agora me deito pra dormir / Peço ao Senhor para guardar a minha alma / Se eu morrer antes de acordar / Peço ao Senhor que leve a minha alma / Silêncio, benzinho, não diga uma palavra / E não se incomode com o barulho que ouviu / São apenas bestas embaixo da sua cama.
Entra Enter Sandman (Metálica). Abre luz de plateia. Abre luz geral sobre o palco.