Devarim 21 (Ano 8 - Agosto 2013)

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Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 8, n° 21, Agosto de 2013 devarim Padre Jorge: meu rabino Rabino Sérgio Bergman Um Kotel para todos Entrevista com Natan Sharansky 20 anos dos Acordos de Oslo Paul Liptz O milagre e a mitsvá Rabino Sérgio Margulies As perguntas de David Hartman Rabino Dario Bialer A visão reformista sobre os colonos da Cisjordânia Rabino Richard G. Hirsch O inverno de nossa (des)esperança Paulo Geiger A canção Shalom Aleichem Alessandra Sussmann Cohen Vegetarianismo e Judaísmo Daniel Biron Tisha Be’av Rabino Stephen Lewis Fuchs A oração de Israel Rabino Joshua Kullock

Há uma vertente no pensamento científico atual que propõe uma modificação profunda na classi ficação do reino vegetal. Estes pesquisadores “re formistas” argumentam que a classificação tradi cional é baseada apenas na morfologia (o aspecto exterior) das plantas, não considerando a composição química das mesmas, resultando que plantas com constituição com pletamente diversa sejam agrupadas na mesma família.

A familiaridade com este assunto me foi transmitida por meu pai, de saudosa memória, um dos químicos que de forma pioneira e entusiasmada defendeu a reforma na classificação. Eu, engenheiro civil degenerado em enge nheiro de sistemas, nunca entendi nada de química. Con tudo, a mensagem adquirida na mesa do jantar de que é preciso avaliar o que nos cerca muito além do aspecto e da coloração jamais me abandonou.

E este ensinamento sempre foi valioso. Não se conten tar com o sentido superficial das palavras, ou seja, sempre procurar incluir o contexto aos textos, enriquece sobrema neira todas as relações, todos os estudos e todas as leituras.

Não se deixar iludir pela roupagem ou pelo renome dos personagens é aderente a duas das mais bonitas e fun damentais mensagens judaicas: a de que todos os seres hu manos têm a mesma origem e a de que todos são falíveis – inclusive os mais sublimes personagens bíblicos –, e permitem absorver o máximo em cada interação.

Enfim, esta atitude é fonte de grande alegria porque ha bilita a escuta de múltiplas vozes e aguça a valorização de todos os pensamentos. Afinal de contas, para entender a composição, tanto das plantas como do pensamento hu mano, é necessário considerar todos os fatores, sem me nosprezar nada antes de uma cuidadosa avaliação, o que resulta na agradável surpresa da extração de valores positi vos em quase tudo que se analisa. Como está expresso no Salmo 104:24, que os judeus escolheram proferir diaria mente em suas orações: “Quão variados são os teus feitos, oh, Senhor! A tudo com sabedoria Criastes. Toda a terra é preenchida com a Tua riqueza”.

A revista Devarim tem a proposta de difundir o pen samento, os anseios e as preocupações dos judeus brasileiros. Para cumprir esta missão, convidamos a cada núme ro um leque de diversos pontos de vista e também temos a agradável surpresa de sermos procurados com alguma frequência por pessoas que se identificam com a revista e que rem se expressar em nossas páginas.

O resultado disto é uma publicação com muitas (se bem que certamente não todas) vozes, que desta forma re flete a riqueza da cultura judaica produzida no Brasil. De varim é objeto de muita alegria para o seu conselho edi torial e para a ARI. Esperamos que represente o mesmo para seus leitores.

O site www.devarim.com.br introduz uma importante mudança no processo de distribuição da Devarim

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Raul Cesar Gottlieb Diretor de Devarim
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 1 editorial
ATENÇÃO

Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 8, n° 21, Agosto de 2013

P R es I dente d A ARI Ricardo Gorodovits

R A b I nos d A ARI sérgio R. Margulies dario e bialer

dIR eto R d A Rev I stA Raul Cesar Gottlieb

Conselho e d I to RIA l beatriz bach, bruno Casiuch, Rabino dario e bialer, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio Margulies.

e d I ção Roney Cytrynowicz (editora narrativa Um)

e d I ção de A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) tainá nunes Costa

F oto GRAFIA de CAPA Wingmar (istockphoto.com)

I l U st RA ções leila danziger

t RA d U ção

Ana beatriz torres, teresa Cetin Roth

Rev I são de t exto Mariangela Paganini (libra Produção de textos)

Colaboraram neste número: Alessandra sussmann Cohen, daniel biron, Rabino dario e bialer, Rabino Joshua Kullock, Paul liptz, Paulo Geiger, Rabino Richard G. hirsch, Rabino sérgio bergman, Rabino sérgio R. Margulies e Rabino stephen lewis Fuchs.

os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista devarim ou da ARI.

os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

A revista devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br www.devarim.com.br

Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ

A contracapa de devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

sumário

O milagre e a mitsvá Rabino Sérgio R. Margulies 3

Ma nishtaná ha laila haze? As perguntas de David Hartman Rabino Dario E. Bialer 9

Padre Jorge: meu rabino Rabino Sérgio Bergman 15

Um Kotel para todos Entrevista com Natan Sharansky 20

Será que tudo não passou de um sonho? Oslo, Israel e os Palestinos Paul Liptz 25

A visão reformista sobre os colonos da Cisjordânia Rabino Richard G. Hirsch 33

Vegetarianismo ético e o judaísmo Daniel Biron 39

Shalom Aleichem: Uma canção milenar criada no século 20 Alessandra Sussmann Cohen 44

Uma perspectiva progressista para Tisha Be’av Rabino Stephen Lewis Fuchs 53

A linguagem corporal e a oração de Israel Rabino Joshua Kullock 57

Cócegas no Raciocínio: O inverno de nossa (des)esperança Paulo Geiger......................................................................................... 59

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o milagre e a mitsvá

rabino sérgio r. margulies

“Tudo isto se assemelha, para vós, com um documento selado que homens en tregam a alguém que sabe ler, pedindo: ‘Rogo-te, lê isto para mim’, e recebem por resposta: ‘Não posso, porque o documento está selado’. E o documento é en tregue a alguém que não é versado, dizendo: ‘Por favor, lê isto’, e lhe respon dem: ‘Não sei ler’.”

(Profeta Ieshaiahu/Isaías 29:11 12)1

“Nós guardamos o Livro por milhares de anos e ele tem nos guardado.”

(David Ben Gurion, 1886 1973)

O livro

Conta se que, aflito com o destino de seu domínio, um imperador per guntou a seu assessor se ele acreditava em milagres. Diante da resposta positiva pediu uma prova da existência dos milagres ao que pronta mente o assessor afirmou: ‘Os judeus!’

A existência judaica pode se situar na esfera dos milagres tanto por superar as previsões de seu desaparecimento quanto por sua contribuição para o bem da humanidade. Este milagre é fruto do valor atribuído à educação e ao estu do. Neste sentido, o livro – como fonte de conhecimento – torna­se o elemento central da vida judaica.

O próprio culto religioso do shabat e das festividades gira em torno da lei tura e aprendizado de textos dos livros bíblicos. Para a tradição judaica “o li vro é o mais prazeroso dos amigos... contém palavras antigas e novas, o passa do e o presente. Fala dos mortos e conta muito da vida. É um amigo que de

O livro estudado não é um objeto. É uma voz. A voz da tradição representada por contínuas gerações que já estudaram e permanecem estudando. Um diálogo se estabelece. Não basta reverenciar a Torá, é preciso dar a ela relevância, o que acontece através da conversa proporcionada pelo estudo.

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senvolve seu talento”, (Abraham ibn Ezra, 1098 1164).

Ser judeu é um ato de escolha. Mes mo quem recebe a condição judaica de seus pais necessita escolher. A escolha re quer conhecimento. Em nossas orações diárias afirmamos que o preceito do es tudo da Torá equivale a todos os demais.2 Sem conhecimento não há como esco lher. Sem escolha não há como praticar, de modo consciente, os ensinamentos re ligiosos. Sem estudo o religioso torna se fanático. Torna se servil seguidor de di tames alheios à sua própria existência. O conhecimento dá autoestima. Fortalece o ser. Possibilita a integridade.

O leitor

Uma parábola conta que um discípulo percebeu seu mestre lendo seguidamente a mesma página do Talmud – livro que debate as leis judaicas – e então perguntou o motivo disso. O mestre respondeu: ‘A página é a mesma, mas eu não sou o mesmo’.

A estrutura dos livros de estudo judai cos é permeável a fim de que das pala vras e frases sejam extraídos novos signi ficados. As palavras da Torá são escritas somente com as consoantes, permitindo que diferentes vogais, em consequência de distintas leituras interpretativas, sejam colocadas. Ao leitor que muda e que, por tanto, interpreta de maneira nova, o texto vai falando de modo diferente. Em acrés cimo, o texto da Torá é lido por intermé dio de uma musicalidade que dá sentido à construção das frases.

A Torá começa com a segunda letra do alfabeto hebrai co, beit. A ideia é que seja uma casa – em hebraico bait, palavra de sonoridade similar ao nome da letra – convi dativa. A Torá convida cada um e todos a entrar no mun do do estudo e aprendizado. Este estudo transcorre atra vés de uma conversa. O livro estudado não é um objeto. É uma voz. A voz da tradição representada por contínuas gerações que já estudaram e permanecem estudando. Um diálogo se estabelece. Não basta reverenciar a Torá, é pre ciso dar a ela relevância, o que acontece através da conver sa proporcionada pelo estudo.

Uma parábola conta que um discípulo percebeu seu mestre lendo seguidamente a mesma página do Talmud –livro que debate as leis judaicas – e então perguntou o mo tivo disso. O mestre respondeu: ‘A página é a mesma, mas eu não sou o mesmo’. A leitura cria condições para que haja uma reflexão da vida cuja jornada não é estática: mu damos com o tempo ao incorporarmos novas percepções e adquirirmos distintos ensinamentos. Assim, a palavra do livro – ainda que a mesma – entra no âmago do ser por dis tintos filtros perceptivos moldados ao sabor das vivências.

O diálogo leitor­livro transcorre paralelamente ao diálogo que cada um estabelece com si próprio. A palavra do livro é lida e internamente escutada a cada singular mo mento de modo antes não concebido. A mensagem do li vro não é congelada. Uma vez que o leitor muda, igual mente se altera o significado da palavra.

De modo similar, uma vez que o Tal mud não traz pontos para indicar pergun tas ou exclamações, Rashi (1040 1105) anota em seu comentário talmúdico como o texto deve ser lido, por exemplo, com espanto ou com calma. A melodia direciona o sentido do texto. Com o tom de sua voz o leitor constrói o livro. Os livros são construídos. Não constituem mensagens impositivas. O leitor cresce, desenvolve se, aprimora se.

Cada nova geração também é um novo leitor e traz para as mesmas palavras novos significados: “Cada geração escuta na Bíblia seus próprios desejos, esperanças e pen samentos... leem o mesmo livro, e ainda assim de muitas maneiras torna se um livro diferente para cada uma delas” (Rabino Leo Baeck, 1873 1956).

Novos livros

Do diálogo entre leitor e livro, que propicia o emergir de novos significados às palavras, nascem livros. O ato é contínuo e permanente, pois a busca pelo sentido das pa lavras não congeladas causa ebulição das ideias. Estas ge ram palavras que compõem livros. A cada leitura, um co mentário. A cada comentário, outro comentário, e assim sucessivamente, num somatório de concepções intermináveis. Um livro nunca fecha. Abre se em outro.

Inovar a Torá é considerado a realização de um man damento religioso, sugere o rabino cabalista do século 13 Jacob ben Sheshset. A inovação não é um rompimento, é justamente a valorização da Torá: resgata sua vitalida de, não permitindo que se torne irrelevante para as vidas.

Dentro de cada livro inovador – como o Talmud – há vários livros, pois diversas opiniões são registradas. As opi

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niões são distintas, frequentemente discordantes entre si. Algumas refletem pontos de vistas majoritariamente acei tos, outras minoritárias. Todas são incluídas. Isto demons tra o aspecto pluralista e inclusivo do judaísmo. Afinal, descartar uma visão em detrimento de outra é desdenhar algum leitor. Rejeitar uma posição – ainda que em desa cordo com ela – pode incorrer no risco de impor o tota litarismo da ideia única. A partir dai, então, não se daria luz às novas ideias. Não tardaria em obscurecer a vida es piritual judaica. O debate murcharia. O pensar encolhe ria. O tolhimento prevaleceria. O anseio pelo exercício do poder recrudesceria, afinal alguém teria que decidir quais ideias abortar.

As estantes

Na profusão de inovações, interpretações, comentários e na busca de entendimento conforme cada época e lugar, várias coletâneas de pensamento surgem. Ora, referendam umas às outras, ora se opõem em suas perspectivas. Na es tante judaica há espaço para todas: tanto para o raciona lista Maimônides (1135 1204) quanto para o místico a ele contemporâneo, Nachmânides (1194 1270); tanto para o ortodoxo Samson Hirsch (1808 1888) quanto para o re formista Richard Hirsch (1926 ); tanto para o hebraís ta Chaim Bialik (1837 1934) quanto para o escritor iídi che Scholem Aleichem (1859­1916), entre praticamente incontáveis outros exemplos.

Esta multiplicidade literária tem sido decisiva na vita lidade judaica. Algumas das mais dramáticas tentativas de exterminar o povo judeu – como a Inquisição e o Holo causto – foram acompanhadas da queima dos livros de estudo judaicos. Queimá los intencionava extirpar uma fon te que abastece o espírito e a mente judaicos. Queimá los, ainda mais em praça pública como nestes casos foi feito, tentava demonstrar a inocuidade do judaísmo. Não basta va, para estes detratores, queimar o judeu na fogueira e no forno, era necessário também eliminar o judaísmo e evi denciar sua invalidade. Porém, mantiveram se os judeus. Manteve se o judaísmo. Os livros continuam. Mesmo an tes do advento do processo de impressão continuavam os livros. Os antigos e os novos. Os leitores prosseguem.

A biblioteca

Por vezes o convívio nas estantes judaicas foi severa mente ameaçado. As bibliotecas empobrecidas. O monu mental trabalho filosófico de Maimônides, O Guia dos Per plexos, foi banido no século 13. No século 16, Baruch Spi noza, em função de sua obra filosófica, foi considerado he rege. No século 18, o pensamento chassídico condenado à supressão pela visão então predominante de seus oposito res, o que seria o equivalente a retirar das bibliotecas judai cas textos de Baal Shem Tov (1700 1760). No século 20, livros de oração com liturgia baseada na formulação teológica do rabino Mordechai Kaplan (1859 1916) foram

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execrados. Na verdade, muito antes o Tal mud foi rejeitado por Karaitas (grupo que somente aceitava a literalidade da Torá) e várias de suas interpretações pelos Sadu ceus. Seja como for, cada um destes livros, entre tantos outros, faz parte da ampla bi blioteca judaica que cresce continuamen te e na qual há sempre lugar para a diver sidade. E discordância.

O autor

Discordam os livros entre si. Discor dam os autores entre si, bem como os lei tores entre si. Também pode discordar cada leitor de si próprio. Conta uma pas sagem da literatura rabínica que dois ra binos eram companheiros de estudo. Um pergunta para o outro: “Por que você discorda tanto de mim?” A resposta: “Não fique chateado, frequentemente eu discordo de mim mesmo”. Esta antiga narrativa do folclore judaico adquire contornos contemporâneos conforme descreve o rabino Arthur Hertzberg (1921 2006). Ele era aluno do rabino Mordechai Kaplan no Seminário rabínico. Após uma apresentação, o professor demoliu cada ponto de sua exposi ção. Arthur então argumentou que aquilo era o que o pró prio professor havia dito na última quinta feira. O profes sor Kaplan fitou os olhos do aluno e disse: “Mas Arthur, eu cresci desde quinta feira”. Concluiu Herztberg que o pro

Conta uma passagem da literatura rabínica que dois rabinos eram companheiros de estudo. Um pergunta para o outro: “Por que você discorda tanto de mim?” A resposta: “Não fique chateado, frequentemente eu discordo de mim mesmo”.

fessor discordou dele somente para provar que o aluno estava errado3.

Ou, talvez, simplesmente para fazê lo pensar. Ou talvez para sugerir que pode ria mudar e ver a questão sob outro ân gulo. Ou, quem sabe, a fim de prover in gredientes intelectuais para que fosse tan to leitor quanto autor. Este é o chamado judaico: ser ávido leitor e motivado autor.

O santuário

A tradição judaica ensina que cada casa é um pequeno santuário sagrado. As sim, tal como em cada sinagoga há uma Arca Sagrada que guarda os rolos da Torá, em cada lar deve haver livros para prati carmos a mitsvá (mandamento religioso) de cultivar as pa lavras já lidas e as que serão relidas, as já escritas e as que serão reescritas.

Notas

1. Bíblia Hebraica, Editora Sefer, D. Gorodovits e J. Frindlin, São Paulo, SP, Brasil, 2006.

2. A oração é extraída do Talmud, tratado Shabat 127a.

3. Hertzberg, A. e Hirt Manheimer, A., Jews: The Essence and Character of a People”, Harper San Francisco, 1998.

Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Religiosa Is raelita do Rio de Janeiro – ARI.

Luoman /
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m á nishtaná ha l aila haze? a s perguntas de d avid h artman

Quem pensa que unicamente “essas” são as palavras de Deus e não “aquelas” está abandonando o espírito interpretativo do Talmud. No judaísmo, cada pessoa tem pleno direito a formar sua própria opinião, pois uma tradição viva é exatamente o oposto da obediência cega.

rabino dario e. Bialer

Dias atrás nasceu a minha filha Laila e, desde sua chegada, tudo tem um novo significado. Imagino que durante um bom tempo, cada prédica, cada texto e cada aula que eu prepare terão o seu nome em algum lu gar. Daí o título dessa matéria: Má nishtaná ha Laila haze? De todas as “Lailas”, o que tem de especial essa Laila?

Essa Laila, que representa para mim tudo o que existe de especial e verdadei ro no mundo, é a noite em que coincidentemente a tradição de Israel coloca sua semente de eternidade na redenção do Egito e o início do caminho à liberdade.

Esse momento de sublime transcendência na história dos filhos de Jacó, em que aprendemos a tratar os humanos com humanidade, exercendo a justi ça com o indefeso e a solidariedade com o carente; nessa noite fugimos da ig norância e viajamos ao encontro da Torá, estabelecendo um pacto de valores éticos que tem como único fim abraçar a vida. É nessa noite, na qual nos per guntamos o que há de essencial e o que de supérfluo, que eu conheci o rabi no David Hartman z’l, um dos pensadores mais brilhantes do século 20. Foi numa palestra sobre Pessach que ele me cativou para sempre.

Ai estava ele, um rabino ortodoxo, discípulo do célebre Rav Soloveitchik, dizendo que, embora se sentisse muito feliz por ser parte do povo judeu pre parando se para a festa de Pessach, estava francamente entediado pela atmos fera e pela temática que o cercava.

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Estou enfadado pelo tipo de conversa que escuto em tor no de mim, por um nível de discurso que parece não avan çar nada além da preocupação excessiva com as minúcias do ritual haláchico.

As prateleiras dos supermercados estão repletas com uma sempre crescente variedade de matzot, as famílias dedicam o fim de semana antes do Pessach lavando assoalho, toalhas, cortinas e lençóis (me pergunto como esses tecidos podem não ser kasher le Pessach, visto que nunca os vi comendo pão) e até mesmo lavando de novo montanhas de roupas. Todos falam sobre limpeza, receitas e kasherut: Você segue o costume ashke nazi de não comer kitniyot [arroz, milho, soja, feijão, etc.] ou você segue o costume sefaradi? Você tem que comer matzá sh murá [preparada sob supervisão estrita] para cumprir com a mitsvá na noite do seder? E qual a quantidade exata de mat zá que você deve comer para completar a mitsvá?

Nada disso responde as perguntas essenciais de Pessa ch, pois não conectam o judaísmo com o sentimento de realização ao qual anseia o ser humano.

Como ser ortodoxo e moderno

O professor David Hartman, falecido em fevereiro em Jerusalém, cidade onde morou os últimos 40 anos de sua vida e onde criou um seminário de estudos que leva o nome de seu pai, mostrou ao israelense e ao mundo uma alternativa de fé ao establishment ultraortodoxo. Ele mostrou que se pode ser ortodoxo e moderno, com mente e alma abertas para abraçar todas as linhas do judaísmo. Essa foi a missão do Shalom Hartman Institute durante esses anos todos.

A vida inteira ele lutou para mostrar como o judaís mo é um assunto bastante sério e profundo para questio nar, pensar, refletir e voltar a questionar. Assim foi até o último dia: um anárquico da Lei. Um revolucionário do espírito da Lei.

Má nishtaná ha Laila haze? O que diferencia os se res humanos? O que faz de um homem um ser excepcio nal, que deixa sua marca em milhares de pessoas? No dia do seu enterro, seu filho Donniel falou diante do túmu lo de seu pai:

Quando eu era jovem e te acompanhava levando os livros de uma sala de aula a outra, as pessoas me falavam de como você era especial, de como você tinha transformado a vida de les para sempre.

E talvez um dos segredos desse poder, dessa capacidade de

inspirar e transformar a vida de tantas pessoas, seja que você não tentava compreender o mundo, mas mudá-lo.

A realidade não te definia, era só a base a partir da qual você começava a imaginar e projetar a visão de um ser humano melhor, de um judaísmo melhor e de um Israel melhor. Por isso as pessoas te admiravam e te amavam. Porque viam em você o melhor que elas poderiam chegar a ser.

E é por isso que quando uma pessoa era tocada por você, ela já não continuava sendo a mesma.

David Hartman foi um homem realmente inspirador. Um sonhador apaixonado e convicto de que todas as leis da vida judaica devem sempre ser uma opção de vida para as pessoas.

Ele viveu dentro das tradições de Israel, mas sempre olhou para fora. Declarou com veemência que a tradição judaica é importante simplesmente por ser portadora de um profundo humanismo. Essa é a sua riqueza.

Hartman a denomina “tradição interpretativa”, pois está por cima de qualquer sectarismo dogmático. Para essa tradição, o estudo, além de ser o centro de sua experiên cia, é uma contínua revelação que demanda ser interpretada de forma coletiva.

Por isso, a Torá se lê em voz alta e se discute em gru pos, possibilitando o diálogo entre as opiniões do passa do e as ideias dos mestres e alunos do presente. Todos po dem expressar o que pensam e sentem com a mesma vali dade daqueles sábios. “O mestre, mais do que aquele que sabe, que se escolhe por sua sabedoria, é aquele que pode dar vida ao que se sabe”.1

Daí um dos grandes livros de David Hartman, A heart of many rooms, inspirado na seguinte passagem talmúdica:

As escrituras dizem: Essas palavras... aquelas palavras. To das as palavras foram dadas pelo Senhor da Criação, aben çoado seja Ele, portanto procure um coração de muitos quartos para abrigar tanto as palavras da escola Shamai como as palavras da escola de Hillel. (Talmud de Babilônia, tosef ta, Sotá 7:12)2

Os muitos quartos representam como cada pessoa deve se preparar internamente para estar predisposta a uma vida com incertezas e ambiguidades, na qual todas as palavras, as que gostamos mais e as que gostamos menos, possam coexistir dentro de nós, num coração com espaço para opiniões dissímiles.

Quem pensa que unicamente “essas” são as palavras de Deus e não “aquelas” está abandonando o espírito in

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terpretativo do Talmud. No judaísmo, cada pessoa tem pleno direito a formar sua própria opinião e escolher as palavras dos sábios pelos quais sente mais afinida de, pois uma tradição viva é exatamente o oposto da obediência cega.

Uma tradição viva também pode dar a uma pessoa uma perspectiva crítica sobre a realidade social contemporânea, outor gando lhe uma distância útil que a capa cita para avaliar crenças e práticas vigen tes. Isso dá acesso a uma visão alternativa das possibilidades humanas. Ao mesmo tempo, essa mesma tradição resulta ser objeto de desafio quando as pessoas entram em contato com novos valores e possibilidades na cultura circundante, o que, indefecti velmente, afeta suas intuições morais e suas atitudes, pois a moralidade não se desenvolve de forma abstrata afasta da da realidade na que nascem e vivem os seres humanos.

Nós somos o produto de uma cultura na qual somos fieis à tradição quando exercemos a reinterpretação. Esse capital simbólico coloca sobre as costas do povo de Israel uma carga diferente a outros povos.

xibilizam e a tolerância e o entendimen to prevalecem. Assim, se torna um tex to vivo que nos ensina e emociona. E tal vez dessa forma se possam condensar um dos pensamentos centrais do pensamen to hartmantiano.

Ele vê o judaísmo em termos de pac to, sem por isso acreditar que esse pacto seja eterno e inalterável. Como todo bom casamento, precisa de instâncias de ava liação e, quando necessário, de mudança das condições.

Obediência e liberdade

O ser judeu está em permanente construção. E para isso deve estar ligado com o que acontece dentro e com o que acontece fora.

Quando o professor Hartman, que cresceu numa fa mília ortodoxa em Brooklin, reivindica a tradição, ele está dizendo que o cumprimento de preceitos religiosos é im portante, mas que a quantidade de mitsvot que cada um vai cumprir e como vai se apropriar das tradições é uma questão puramente pessoal.

Em termos de Heschel, se trata de uma inter relação entre a obediência a uma autoridade e teologia espiritual espontânea pessoal e livremente escolhida.3

Essa é a tensão que existiu sempre entre tradição e mu dança. Toda tradição viva atravessa esses dilemas. Nem ser tão rígido para que esses valores não sejam uma opção de vida, nem que essas normas sejam apenas um carimbo na testa e não mais do que isso.

Uma das passagens prediletas de Hartman era:

Que a Torá nunca seja para ti um decreto antiquado, mas uma troca num decreto recém-emitido, feito no máximo há dois, três dias... Mas Ben Azzai dizia: nem mesmo como um decreto de dois ou três dias, senão que tenha sido emitido hoje mesmo. (Pesikta de Rab Kahana, piska 12:12)

Assim, os conteúdos se atualizam, as verdades se fle

O relato bíblico é uma primeira fase. Cheia de pactos entre Deus e muitos dos personagens em blemáticos do judaismo e da humanidade. Nessa narrati va, o denominador comum é a obediência. O pacto fun ciona na medida em que as duas partes o obedecem. E quando o homem não obedece, Deus se enfurece. Assim surgem as histórias do dilúvio de Noé, da destruição de Sodoma e as ameaças constantes à geração do deserto, en tre outras.

O segundo momento desse pacto inclui não apenas a necessidade de obedecer aos mandamentos, mas também a responsabilidade de interpretar a palavra de Deus. Essa etapa coloca o homem num plano superior. Além de cum prir a vontade divina, tem o direito de interpretar a lei e de implementá la da forma que melhor entender, mes mo se isso for contra o desejo de Deus. A decisão dos ho mens prevalece e sobre isso sobram exemplos na Mishná e no Talmud.

A terceira etapa para Hartman é o Sionismo, porque é evidente que Israel ocupa um lugar destacado em sua vida, tendo deixado a sua Nova York de nascença para construir um judaísmo alternativo em Jerusalém.

Quando o judeu errante dá o passo histórico e decisivo de acabar com dos mil anos de exílio, a consciência de pac to alcança sua maior expressão de responsabilidade. Essa tradição interpretativa, que tinha tomado em suas mãos a interpretação da lei a partir dos dias talmúdicos, ainda ti nha deixado em mãos de Deus o destino histórico mate rial do povo. Isso muda quando os sionistas acabam com o desterro e assumem a responsabilidade de sua história. O que Hartman destaca é que só o povo do Talmud po deria outorgar ao homem tanta liberdade para continuar servindo a Deus e simultaneamente mudando as regras do

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jogo. O Sionismo alterou o dogma religioso de que o mes sias chegará por vontade divina e com ele o retorno a Sion.

Aprender a mudar

O homem é capaz de mudar. O homem está obriga do a mudar! Em seu último livro The God who hates lies (que título brilhante! Um Deus que odeia as mentiras…) ele insta aos laicos a se aproximarem do judaísmo e aos or todoxos a se tornarem genuinamente religiosos aceitando que devem aprender a mudar.

Eu sugiro que talvez o maior desafio ao sistema haláchico que herdamos seja a emergência de um Estado soberano no território bíblico judaico.

A realidade do Estado de Israel desafia o sistema haláchi co desenvolvido em grande parte no exílio a reavaliar algu mas de suas mais profundamente arraigadas atitudes e clas sificações.

O que significa para um sistema, desenvolvido sob condições diaspóricas de falta de poder, o confronto com as rea lidades da autonomia política e da força militar? Qual é a resposta haláchica apropriada para as realizações deste so nho milenar?4

Nós somos o produto de uma cultura na qual somos fieis à tradição quando exercemos a reinterpretação.

Esse capital simbólico coloca sobre as costas do povo de Israel uma carga diferente a outros povos. Israel. Não

pode ser uma nação que compartilhe apenas seu destino histórico e político.

Hartman lutou por um povo judeu que deve empe nhar se em ser, como no passado, uma comunidade com objetivos espirituais comuns. Isso significa que a realida de israelense deve alimentar a renovação do pacto. E as sim surgem as perguntas:

Será que é possível criar uma comunidade com valo res compartilhados por todos? Ou será que devemos nos conformar com que o único sentido da união entre todos os judeus se limite à luta pela sobrevivência?

Hartman já não está entre nós para responder esses questionamentos, mas nos deixa seu singular aporte a essa maravilhosa tradição interpretativa para elaborarmos nos sas respostas.

Notas

1. Calles, Roger, prólogo a La tradicion interpretativa. Ed. Altamira, 2004.

2. Hartman, David. A heart of many rooms. Ed. Jewish Lights, 1999.

3. Ver Heschel, A. J. O problema da polaridade em Deus em busca do homem.

4. Hartman, David. The God who hates lies. Confronting & Rethinking Jewish Tradi tion, 2011.

O rabino Dario Ezequiel Bialer serve à Associação Religiosa Is raelita do Rio de Janeiro – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Se minário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Ai res, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém.

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padre Jorge: meu ra B ino

Como bispo de Roma, na pedra angular da herança de Pedro, foi or denado Santo Padre nosso querido Padre Jorge. Que, como primado da Argentina, era conhecido como o cardeal Bergoglio e hoje é Francisco, o Papa de todos. Um pároco para o mundo. Um homem de serviço, intelectualmente sólido, espiritualmente elevado, exemplarmente hu milde. Um homem de Deus, um pastor próximo aos pobres – a quem visitava já não só como próximos, mas como irmãos –, um ser de reflexão, de profunda oração e de ação transformadora.

Uma referência ampla à qual todos acudiam e que não se negava a receber para escutar com especial atenção todo aquele que quisesse consultá lo, sem dis tinção. Um mestre, que era nossa referência para aprender tanto ou mais do que dizia, escrevia e pensava sobre aquilo que encarnava na ação e traduzia numa pedagogia do espírito, o ser no fazer.

Autenticidade, integridade, audácia, coerência, consistência, bondade, hu mildade, serviço, caridade, amor, oração, estudo, testemunho, docência, ci vismo, patriotismo, clamor, denúncia, verdade, coragem, exemplo. Seus valo res não são somente gestos, são as firmes fundações sobre as quais se constitui, em uma nova envergadura, quem, com um perfil mais discreto, se eleva à má xima ordenação de ser um dos líderes do mundo, em quem muitos de nós já veem um novo farol, um rumo claro daquilo que este novo evangelho anuncia.

A boa nova de um tempo novo, no qual o papa Francisco será já não apenas cabeça da Igreja Católica, mas um líder para a humanidade, que espera referên

Quando pude visitá-lo no Vaticano, na primeira audiência para as diferentes religiões, me apresentei dizendo: “Estou diante do Papa Francisco e me reencontro com meu rabino Bergoglio”. Propôs que orássemos juntos e compartilhamos uma bênção.

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cias claras de como nos reencontrarmos na fraternidade universal, que nos resti tui como verdadeira família.

Além disso, nos convoca para a re conciliação e recuperação do rumo de nos tornarmos mais humanos, revelan do o que em nós há de divino, e consoli dando, na unidade da diversidade, que di ferentes religiões, culturas, tradições, na ções são expressões singulares de um mes mo destino, que é redimir, salvar o sen tido do humano e fazer do mundo um lar de todos e da humanidade. A família na qual, como irmãos, todos tornamos a nos sentar em torno de uma mesma mesa, onde a ninguém deve faltar dignidade de pessoa e possamos celebrar o banquete do bom pão e bom vinho, do terreno e do eterno, sendo construtores da pon te que une a terra e o céu.

Acredito que me encontrar com um mestre como Jorge Bergoglio me permite reconhecê-lo como meu rabi e como referência. Referência de quê? Em primeiro lugar, referência teológica, referência espiritual, referência no âmbito das religiões.

do que o termo adquire por sua própria tradução na tradição dos primeiros cris tãos. “Rabi” significa ‘mestre’. Portanto, me refiro à função do magistério, e, na minha visão, a partir do Evangelho e da tradição judaica, ao rabi, enquanto mes tre, um conceito que os judeus e cristãos podemos compartilhar em relação a Jesus. Acredito que me encontrar com um mestre como Jorge Bergoglio me permite reconhecê lo como meu rabi e como re ferência. Referência de quê? Em primeiro lugar, referência teológica, referência espi ritual, referência no âmbito das religiões. Foram muitos os que envidaram esforços nos tempos em que o diálogo inter reli gioso não era politicamente correto, já que um pensamen to preconciliar continuava imperando para além da realização do Concílio Vaticano II.

A experiência do diálogo inter-religioso Supero, não com pouco esforço, a emoção inicial de querer dar testemunho do muito que nos une, da amizade que cultivo no coração, do privilégio de conhecê lo e de ter tido a graça de assumí lo como minha referência, guia e mestre. Assim, me refiro ao Padre Jorge, ao meu querido Bergoglio, como “meu rabino”, “meu mestre”. Quando pude visitá lo no Vaticano, na primeira audiência para as diferentes religiões, me apresentei dizendo: “Estou diante do Papa Francisco e me reencontro com meu rabino Ber goglio”. Propôs que orássemos juntos e compartilhamos uma bênção.

Quando nos despedimos, voltou a me pedir, como sempre fez, que rezasse por ele. Não pude deixar de insis tir em que, como Francisco, rezasse por todos nós. A divi na providência intercedeu a seu favor para que ele chegasse a ser ordenado como Papa. Precisamos da mesma interven ção para que nós, argentinos, possamos voltar a ser uma nação e os seres humanos, uma fraternal família de irmãos.

Na experiência do diálogo inter­religioso, aprendemos que as palavras compartilhadas são respeitosa e plas ticamente traduzidas no mundo de cada interlocutor. En tão, quando digo “rabino”, não estou me referindo à mi nha ordenação, minha formação, minhas referências no judaísmo, aos mestres da tradição rabínica, mas ao senti

A convivência é a unidade mínima necessária para construir comunidade. Assim nos tornamos conscientemente seres sociais. Viver na situação do outro é convi ver. Implica no valor de compartilhar. No livro Celebrar la diferencia escrevi que “o diálogo inter religioso é uma dimensão, uma experiência espiritual de encontro. Cada um coloca o outro num lugar de autenticidade, de inte gridade e de reconhecimento; enquanto outro, que é di ferente nas suas crenças, expressa sua fala e eu a recebo para aprender, sem deixar de ser quem sou, nem renun ciar à minha própria fala”.1

Considero importante lembrar e tornar presente àque les que são referência das diversas religiões, porque na di mensão que terá Jorge Bergoglio como papa Francisco, esta questão será fundamental na sua agenda. Porque ele é beneficiário de uma tradição, felizmente. E estimo que eu também, porque temos mestres em comum, depois de um percurso compartilhado.

Aqueles de nós que sabem quem é Bergoglio não du vidam de sobre quais bases, valores, liderança e visão po demos nos inscrever como discípulos e apóstolos para sair pelo mundo para compartilhar a boa nova. Um evange lho segundo Francisco é, para mim, um compromisso de nos somarmos ao enorme desafio no qual, sem desconhe cer a própria singularidade da pertinência daquilo que é próprio da Igreja Católica Apostólica Romana, há um ho

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rizonte estendido para toda a família humana.

Tive a oportunidade de conhecer pessoas que traba lham com ele, que dão conta dessa dimensão de transfor mação na sua forma de liderar e me permito fazer parte do grupo daqueles que foram transformados pela sua liderança. Acredito que essa liderança transformacional é um atri buto geral da liderança jesuíta.

Linguagem simples e clara

Uma especial sensibilidade para saber escutar a quem precisa ser escutado e falar para orientar os liderados sur preende essa intuição para focar numa pessoa em particu lar e gerar uma interação e entrar no canal de vibração de cada um. Esse é um dos atributos da maneira de Bergoglio liderar. Sua linguagem simples, clara, direta, sem meias pa lavras nem rodeios, sem prescrever e sempre com um rumo claro para orientar, fiel à sua formação jesuíta, utilizando tanto a parábola, a metáfora ou a própria citação bíblica, que, sem deixar de lado a gíria e sua essência portenha, encontra o jeito de empregar a hipérbole onde dá a conhe cer exatamente o que pensa, sente e orienta a quem tem o privilégio de se saber guiado por ele.

Quando ainda era cardeal, tinha assumido uma tarefa vocacional de “pontífice” construtor de pontes recebendo,

escutando, falando com todos aqueles que a ele se referi ram, afirmando coincidências e tecendo acordos assenta dos em bases comuns de convergência.

Já ordenado como Francisco, também demonstrou, com a generosidade que somente os grandes têm – que também na sua dimensão de estadista sabe marcar a dife rença por elevação e não pela imposição como vencedor –, não reagir às misérias dos medíocres que migraram em poucas horas da desqualificação e da calúnia à fanática ve neração de uma falsa conversão dos seus corações midia ticamente expostos após uma década de desconhecimen to e mau trato, degradando o à falsa categoria de “chefe da oposição”.

Somente um grande, que tem visão transcendente e exerce uma liderança jesuíta, que ainda por cima se tor na franciscano, pode se conduzir sempre da mesma forma e deixar evidência, citando o Evangelho, que “ninguém é profeta na sua terra” e, como ele nos lembrou, que “Deus não se cansa de perdoar”, então obviamente ele também não.

É preciso inovar

Bergoglio chega a ser Francisco não só pela sua sim patia, seu carisma, sua linguagem simples e próxima das

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pessoas, sua intelectualidade, mas porque, do ponto de vista estratégico, encar na uma mudança paradigmática. O mo delo anterior está esgotado, é preciso ino var. Uma renovação baseada na engenho sidade, na dimensão heroica de agir con forme as próprias convicções, fiel à tra dição dos atributos na liderança jesuíta.

Como mestre, forjou um espírito nos seus alunos e discípulos, porém não só conseguiu isso através da interação pessoal com todos aqueles que fomos in fluenciados e moldados pelos seus en sinamentos, mas fez escola numa tradi ção que se revela na trajetória das instituições que liderou. Então, todo o con teúdo se transformou em liderança. Uma forma de liderar com esse perfil discre to que lhe é característico, porém que não diminuiu o impacto de transformar a realidade na qual operava um exemplo que deixou rastro. Nem sempre foi possível an tecipar como reagiria perante os novos desafios que a realidade da sociedade argentina impunha, mas a originali dade pela qual circulava não desviava a linha de condu ta que o antecedia, como a coerência com os conteúdos doutrinários, espirituais e exemplares que marcavam um caminho que nos conduzia ao mesmo destino.

Bergoglio chega a ser Francisco não só pela sua simpatia, seu carisma, sua linguagem simples e próxima das pessoas, sua intelectualidade, mas porque, do ponto de vista estratégico, encarna uma mudança paradigmática. O modelo anterior está esgotado, é preciso inovar.

fica seu ser e seu fazer numa nova esca la, que não causa distorção, mas a emo ção de saber quem é e quem não deixa de ser, quando ele próprio nos pede para re zarmos “para que não se ache” (“para que no se la crea”2), expressão portenha, qua se como um antídoto necessário pelo sim ples fato de ser um argentino assumido, mas sem presunção.

Não apelamos para transformá lo num mito, mas sim num arquétipo. Sua pessoa, Jorge, sua trajetória como Bergo glio, nos proporcionam um recurso de re ferência espiritual de valores e agora or denado como Francisco, o estadista em quem poderemos ter um recurso pedagó gico, didático, exemplar, para adotar du rante seu papado como mestre a boa nova de sair pelo mundo fazendo igreja. Já não só para uma re ligião, um dogma ou a própria fé, mas numa evolução hu manista de uma civilização, porque o mundo carece de uma luz orientadora de sentido, não para o que se diz, mas para o que é ensinado com o fazer. É neste ponto, como alunos e discípulos, que queremos nos assumir como no vos apóstolos do seu evangelho.

Notas

Um homem de Deus e dos homens. Um mestre que, refugiado na intimidade da oração e do encontro com seu interior, fortalecia a raiz de uma fé inquebrantável, que o orientava, mesmo nas tempestades das inclemências da so ciedade que havia perdido o norte dos seus valores, encon trava na sua voz calada e suave a força do clamor profético de não ceder diante do poder, a mundanidade, a aparência da vaidade da soberba, mas de dizer a verdade que auten ticamente permitia um meio de continuar insistindo nos valores que encontravam virtude nas ações que o tempo e o lugar requeriam, sem ser necessariamente as que as mul tidões seguiam, confundidas muitas vezes pelo consumo, a superficialidade dos meios de comunicação, a moda ou aquilo que demagogicamente era imposto a partir do abu so do poder, para ficar do lado dos vencedores ao invés de sustentar os princípios com fidelidade.

Sua figura não eclipsa a pessoa que ele é, mas a engran dece e a expande sem lhe roubar a naturalidade. Ampli

1. Bergman, Sergio. Celebrar la diferencia. Unidad en la diversidad, Buenos Aires, Edi ciones B, 2009.

2. Nota do tradutor: a gíria portenha usada por Bergman (que tem o sentido de “para que a pessoa não fique convencida / deslumbrada com si mesmo”) foi traduzida por uma gíria carioca de mesmo sentido.

Sérgio Bergman é rabino reformista, ativista social e político ar gentino. Bergman serve como rabino na Congregación Israelita de la República Argentina – Cira (Buenos Aires) –, é presidente exe cutivo da Fundación Judaica e presidente da Fundación Argentina Ciudadana. É mestre em educação pela Universidade Hebraica de Jerusalém, mestre em Literatura Rabínica pelo Hebrew Union Col lege e mestre em Estudos Judaicos pelo Jewish Teological Semi nar. Também é deputado da legislatura da Cidade de Buenos Aires.

Traduzido do espanhol por Ana Beatriz Torres, intérprete de confe rências e tradutora, membro da Associação Internacional de Intér pretes de Conferência, da Associação Profissional de Intérpretes de Conferência e do Sintra – Sindicato Nacional dos Tradutores.

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u m Kotel para todos: e ntrevista com n atan s harans K y

Presidente executivo da Agência Judaica para Israel

AAgência Judaica para Israel foi fundamental na fundação do Estado de Israel por haver provido as funções básicas de um estado numa era anterior ao Estado. Hoje seus objetivos principais são a aliá e a educação judaica em todo o mundo. Sendo estes os principais laços pragmáticos entre os judeus da diáspora e os de Israel. Portanto, como está conectado o tema das rezas no Kotel com a Agência Judaica?

A singularidade da Agência Judaica não está refletida apenas nas tarefas re lacionadas com o objetivo de reforçar os vínculos entre Israel e os judeus do resto do mundo. A natureza e a formação da entidade são únicas. Nela estão os representantes do governo israelense, da oposição, do judaísmo da diáspora, bem como os líderes dos movimentos religiosos ortodoxo, conservador e refor mista. Todos se sentam juntos e decidem juntos.

É a única entidade de sua classe onde todos estes grupos cooperam de for ma tão unida. O comitê da Agência Judaica para a unidade do povo judeu é muitas vezes o espaço onde os temas relacionados com o mundo judaico são abordados em primeiro lugar e, portanto, auxilia o governo em relação a essas questões. No passado o comitê ajudou a resolver certos casos em temas sensí veis entre o mundo judaico e o governo de Israel através da Agência Judaica.

Devarim: O senhor poderia, por favor, compartilhar sua visão sobre os ju deus no século 21? O ponto de vista habitual é que os judeus são um grupo

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de pessoas que compartilham uma religião e uma cultu ra. Porém, considerando as diferentes correntes da nossa religião, os vários aspectos culturais, idiomas, nacionali dades, posturas políticas, interesses e hábitos, somos re almente um povo?

Natan Sharansky: O povo judeu está unido por uma história e uma missão muito especiais. É verdade que as pessoas que sentem que fazem parte dessa história compar tilhada crescem em diversas culturas; mas o encontro des sas pessoas em Israel, seja através de aglutinação dos judeus de outros países em Israel ou através da cooperação entre Israel e as diferentes comunidades judaicas em muitos te mas importantes, demonstra que, apesar de todas as dife renças, sempre que há a abordagem adequada, o judaísmo nos enriquece e fortalece, nunca nos debilita.

Devarim: Qual é o significado do Kotel para os judeus, principalmente para aqueles que se declaram não religio sos? É correto considerar o Kotel uma sinagoga?

Natan Sharansky: O Kotel é um único lugar que não encontra paralelo em nenhuma civilização. É o símbolo

nacional mais importante, o símbolo histórico mais im portante e o local religioso mais importante. Tudo isso ao mesmo tempo. Não pode ser comparado, como fazem al guns, com o monumento de Lincoln nos EUA, pois nin guém coloca mensagens com rezas dirigidas a Deus ali. Tampouco pode ser comparado com a Catedral de Brasí lia, pois esta não tem simbolismo histórico na formação do Brasil. Somente o Kotel é parte inseparável de três mil anos de história judaica.

Devarim: Você poderia descrever a natureza do pedido que o primeiro-ministro lhe fez em relação à organização das rezas no Kotel?

Natan Sharansky: Como mencionei anteriormente, a Agência Judaica é única no sentido de reunir numa úni ca mesa representantes do governo, do mundo judaico e das diversas correntes religiosas. É por isso que o primeiro ministro me pediu para manter discussões com todos os setores envolvidos e chegar a recomendações sobre como garantir que o Kotel seja um lugar que une o povo judeu, no lugar de dividi lo.

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Devarim: Você poderia descrever qual a solução que você visualizou para resol ver o tema e sobre que princípios baseou sua proposta?

Natan Sharansky: Durante as dis cussões ficou claro para mim que é im portante para os judeus ortodoxos man ter a parte do Kotel utilizada como sina goga ortodoxa, tal qual é atualmente. É igualmente importante para os líderes e membros dos movimentos Reformista e Conservador sentirem se parte legítima de Israel e do mundo judaico e ter uma forma digna de rezar no Kotel. E, além disso, é muito importante para o Estado de Israel, que é e pretende ser um Es tado que pertence a todos os judeus do mundo, assegurar que todos os judeus te nham a oportunidade de expressar a sua solidariedade com nosso país, com nosso

A Agência Judaica é única no sentido de reunir numa única mesa representantes do governo, do mundo judaico e das diversas correntes religiosas.

É por isso que o primeiro-ministro me pediu para manter discussões e chegar a recomendações sobre como garantir que o Kotel seja um lugar que une o povo judeu, no lugar de dividi-lo.

povo e nossa herança e, sobretudo, de re zar do modo em que estão acostumados. É por isso que minha proposta é conside rar todo o espaço do Kotel como um lugar para rezar, usando o setor sul do Ko tel, que em 1968 foi separado para fins arqueológicos – atividade já finalizada. A ideia é elevar esse setor ao mesmo nível que a praça onde atualmente se faz as re zas, de forma que seja igualmente acessí vel e igualmente importante. A ideia é di vidir o Kotel em uma área para a tefilá or todoxa e uma área para a tefilá pluralista, não ortodoxa. É também muito impor tante que a praça frontal ao Kotel conti nue sendo utilizada pelo Estado de Israel para as cerimônias nacionais.

Devarim: Existe um pequeno, porém crescente, grupo de mulheres ortodoxas

Natan Sharansky junto a Benjamin Netanyau, primeiro-ministro de Israel.
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que constituem minianim femininos que leem Torá e rezam em voz alta. Vo cês acreditam que elas serão bem-vindas para rezar no setor feminino do Kotel?

Natan Sharansky: O desafio das Mulheres do Muro é que há membros que são mulheres ortodoxas, que desejam rezar de acordo com a tradição ortodo xa, e também mulheres não ortodoxas, e todas desejam rezar juntas. Não há dúvi da que nesta nova solução deve haver um tempo e um lugar para que rezem como desejam. O local exato no qual isso irá ocorrer exatamente é um tema para a pre sente negociação.

Devarim: Finalmente, duas perguntas pessoais: Você é um dos heróis do Movi mento Refusenik, que conseguiu abrir as portas de Israel para a imigração judaica russa. Seus sonhos sobre a vida em Israel enquanto estava numa prisão russa coincidem com a realidade?

O desafio das Mulheres do Muro é que há membros que são mulheres ortodoxas, que desejam rezar de acordo com a tradição ortodoxa, e também mulheres não ortodoxas, e todas desejam rezar juntas. Não há dúvida que nesta nova solução deve haver um tempo e um lugar para que rezem como desejam.

nua sendo o paraíso. Eu me sinto exata mente assim. O mundo em que vivo é mais colorido, com muito mais nuances que o mundo com que eu sonhei, mas é também mais desafiador. Em geral, quan do alguém é enviado diretamente do in ferno ao paraíso – como foi comigo, que comecei um dia numa prisão russa e ter minei o mesmo no Kotel – existe somente um caminho, e ele é para baixo. Porém até hoje, depois de 27 anos de descida do céu, me sinto ainda no paraíso.

Devarim: Como você analisa o impac to da imigração russa na vida de Israel? Natan Sharansky: A imigração rus sa acrescentou muito profissionalismo, novas ambições e contribuiu para que a nossa sociedade seja mais aberta, com um alto nível de vibrante debate interno e tudo isto a torna ainda mais judaica.

Natan Sharansky: Quando uma pessoa de fé chega ao “próximo mundo” descobre que o paraíso não é exatamen te o paraíso de seus sonhos. Porém, mesmo assim, conti

Entrevista concedida por e-mail com a gentil colaboração da repre sentante da Agência Judaica no Brasil, Revital Poleg. Traduzida do inglês pela Agência Judaica.

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Sou israelense e me vi mudando de ideia com muita frequência, passando da confiança num novo Oriente Médio a um profundo ceticismo. Meus amigos palestinos compartilhavam dos mesmos medos. Como eu, desejavam uma posição melhor, mas tínhamos sido feridos por décadas de conflito.

Há exatos 20 anos, no primeiro semestre de 1993, ficou óbvio que havia algo importante no ar no que tange à situação israelense palestina. O mundo inteiro se interessava por estes dois grupos conflitantes, lutando pelo mesmo pedacinho de território. A expressão “Paz no Oriente Médio” tinha deixado de se referir aos conflitos no âmbito amplo da região para referir se tão somente à situação tensa entre palestinos e israelenses. Muitos consideravam ser esta uma situação insolúvel que continuaria sendo uma arena de violentos confrontos por décadas futuras.

Naquele ano, meu grande amigo dr. Yair Hirschfeld ficou subitamente mui to nervoso e, embora ele não mencionasse nada além de alguns poucos concei tos vagos, eu me dei conta de que alguma coisa importante estava acontecen do. Pois, além de nervoso, Yair, que desempenhou um papel extraordinário na tentativa de melhorar a posição de Israel face aos nossos vizinhos, estava viajan do para a Europa com uma frequência muito maior que o seu habitual. Pouco tempo depois chegaram as notícias de que o ministro do Exterior, Shimon Peres, e o vice ministro do Exterior, Yossi Beilin, haviam iniciado discussões em Oslo com o objetivo de aproximar Yasser Arafat e Yitzhak Rabin, e eu entendi pelo que o meu amigo estava passando.

Foi um processo lento e doloroso. Rapidamente descobriu se que trazer a paz para inimigos é um conceito duro. Tanto os israelenses como os palestinos

Ilustrações: Leila Danziger s erá que tudo não passou de um sonho? o slo, i srael e os palestinos

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viam o lado oposto com total desconfiança e cada um dos lados tinha certeza de es tar envolvido em um jogo sem meio ter mo – ou era vitória total ou derrota to tal. Talvez acima de qualquer outra coi sa, o desafio era encontrar um mecanismo pelo qual os dois lados ao menos se falas sem para que, a partir disso, lentamente chegassem a algum nível de compreensão.

Compreendi que o enfoque dos Acordos de Oslo tem valor.

O processo logrou suavizar as rivalidades, proporcionar um sentido de otimismo e indicar que quando existir confiança os dois lados ganharão – os palestinos controlarão uma porção crescente de território e os israelenses obterão um ambiente mais pacífico.

Os palestinos em sua maioria mos travam se céticos e, nos meses de nego ciações, tanto as secretas como as aber tas, atravessaram muitas crises. Eles es tavam convencidos de que Israel jamais concordaria com um Estado palestino e só tinha interesse em aumentar o núme ro de colônias israelenses na Cisjordânia e em Gaza, para assim assegurar que a ter ra jamais pudesse ser desocupada. Tam bém eram de opinião que os israelenses acreditariam para sempre que os árabes e os muçulmanos seriam seus inimi gos eternos.

Uma grande fatia da população israelense acreditava que os palestinos não passavam de um instrumento do mundo árabe maior e que, uma vez estabelecido o Esta do palestino, o pequeno Israel seria atacado pelos inimi gos árabes que o cercavam, agora de uma posição geográ fica muito mais vantajosa. A paz parecia impossível a par tir de ambas as perspectivas.

Um nível básico de interação

Em julho de 1993 houve o surpreendente anúncio de que existia uma clara possibilidade de se quebrar a históri ca animosidade entre os dois lados, anúncio este que cho cou tanto os israelenses quanto os palestinos. Foi dado a este anúncio o nome de “Declaração de Princípios” ou “Oslo I”. Trata­se de um documento incomum, de poucas páginas, que não é realmente um acordo e sim uma de claração de intenções, às vezes definido como “Gaza e Je ricó Agora”.

Certa noite recebi um telefonema urgente pedindo que eu preparasse um programa especial para algumas unida des do exército que desempenhariam uma função impor tante na execução de alguns dos componentes deste pri meiro estágio de interação com os palestinos. O papel que

alguns dos meus colegas e eu assumimos foi o de tentar explicar “Oslo I” ao nos so lado. Era uma tarefa desafiadora. Fi quei confuso ao examinar o documento inicial, que não se parecia nem um pou co com um tratado de paz. Depois de dé cadas lecionando nos departamentos de História das universidades israelenses eu tinha um bom entendimento sobre trata dos oficiais, mas este documento era to talmente diferente.

”Oslo I” parecia ser uma vaga suges tão daquilo que os lados conflitantes tal vez considerassem um dia no futuro. Mi nha falta de compreensão destas poucas páginas era bem parecida com a do nos so público do exército, que também vinha tentando ao máximo entender como uma “declaração de intenção” com alguns ane xos poderia se transformar em algo concreto.

Com o passar do tempo, a “Declaração de Princípios” ficou clara para nós. Era um tipo de planejamento estraté gico peculiar segundo o qual, absolutamente sem nenhu ma confiança uma na outra, as partes tentariam desenvol ver algum nível básico de interação. O tratado de paz real só aconteceria em um estágio muito posterior.

O primeiro ministro Yitzhak Rabin tinha certeza de que era da maior importância seguir em frente com os pa lestinos se Israel realmente quisesse melhorar a sua posição no Oriente Médio. Ele foi claramente influenciado pelo tratado de 1979 entre Israel e Egito, assinado por Mena chem Begin e Anwar Sadat, no qual existem cláusulas referentes a uma posição política melhor para os palestinos. Rabin tinha plena consciência da imensa oposição por par te de vastas parcelas da população israelense quanto a al gum acordo que exigisse retiradas significativas de territó rios que Israel vinha controlando desde a Guerra dos Seis Dias em junho de 1967. Ele entendia ser pouco comum que os vitoriosos devolvessem territórios, mas, embora Is rael fosse claramente vitorioso naquela guerra, as conces sões territoriais eram vitais.

A assinatura do acordo

No dia 13 de setembro de 1993, Yasser Arafat, da Or ganização para a Libertação da Palestina, Yitzhak Rabin e o

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presidente Bill Clinton assinaram o acordo na Casa Branca. O Knesset (o Parlamento israelense) se manifestou com 61 votos a favor (50,8%), 50 contra, 8 abstenções e uma ausência – um sinal claro de quão divididos se encontra vam os cidadãos israelenses.

As negociações continuaram enquanto, paralelamen te, de ambos os lados grupos de oposição manifestavam seu profundo desagrado com a própria base conceitu al dos Acordos de Oslo. Por toda parte aconteciam de monstrações e protestos. Em setembro de 1995 foi assi nado “Oslo II”, um documento massivo, formando um livro volumoso, detalhado, de difícil compreensão para o cidadão comum.

O componente central era a divisão da Cisjordânia em três zonas, A, B e C; as oito cidades e municípios na zona A formariam um tipo de cidade/estado independente, a zona B seria uma área de controle misto palestino/israe lense e a zona C continuaria totalmente sob controle isra elense. Era previsto que, com a melhoria gradual das re lações, mais território migraria para a situação da zona A.

Mais uma vez o exército me pediu que interpretasse esse acordo para certas unidades de segurança. Não foi fá cil! Uma questão fascinante foi a das patrulhas conjun tas pelas quais israelenses e palestinos supervisionariam o acordo em dois jipes, com um oficial e um soldado de cada lado. Em muitos casos os oficiais tinham que explicar as cláusulas complexas e confusas do conceito da zona C para os habitantes locais palestinos e israelenses e tentar dissipar os inevitáveis conflitos que eclodiam.

Embora as instruções para os tripulantes dos jipes fos sem cristalinas, as interações humanas mostraram se mui to complexas. Afinal de contas, tínhamos ali quatro milita res de dois lados opostos, que tinham crescido suspeitando uns dos outros, para não dizer odiando se totalmente. De uma hora para outra, quase que da noite para o dia, rece bem uma ordem de cooperar!

As diferenças culturais entre os dois grupos eram sig nificativas. Os israelenses estavam inseridos no mundo secular ocidental, enquanto que muitos palestinos encon travam se profundamente incrustados no ambiente mu

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çulmano do Oriente Médio. O que poderiam ter em comum? Como poderiam deixar de lado a sua raiva mútua e os seus medos? Pelo lado israelense tentamos an tecipar as possíveis tensões que pode riam surgir e discutimos detalhadamen te as cláusulas que pudessem ser invoca das quando nos deparássemos com uma situação impossível. Não sei de qualquer tentativa semelhante que tivesse sido fei ta do lado palestino.

Observamos com o tempo que só ob tivemos sucesso parcial. Em muitas situ ações os acordos políticos não foram to talmente compreendidos pelas respectivas populações. Aconteceram alguns ca sos terríveis de conflitos entre as patru lhas conjuntas em que soldados israelen ses morreram.

Da confiança ao ceticismo

Os assassinatos de Anwar Sadat e Yitzhak Rabin indicariam que a paz é um sonho impossível no Oriente Médio? Em ambos os casos, as oposições internas pareciam ter vencido e um ambiente de manutenção do status quo permeou a área. A violência

foi terrível, mas aparentemente para alguns a paz seria uma ameaça ainda maior.

Enquanto observador comprometido, fiquei insegu ro a respeito do sucesso dos dois estágios do Oslo. Será que foi só um sonho? Por outro lado, compreendi que o enfoque dos Acordos de Oslo tem valor. O processo lo grou suavizar as rivalidades, proporcionar um sentido de otimismo e indicar que quando existir confiança os dois lados ganharão – os palestinos controlarão uma porção crescente de território e os israelenses obterão um am biente mais pacífico.

Houve uma apreciação de que se tratava de acreditar em um futuro melhor para os dois lados. Paralelamente, vimos que os Acordos de Oslo tinham atrasado a discus são a respeito dos desafios mais assustadores, como o futu ro de Jerusalém, os refugiados palestinos, os assentamen tos israelenses e fronteiras seguras. A ideia era que estes as suntos causariam uma explosão imediata se fossem discu tidos nos estágios iniciais e seria melhor deixá los para um momento posterior, quando os relacionamentos de traba lho já estivessem estabelecidos.

Sou israelense e me vi mudando de ideia com mui ta frequência, passando da confiança num novo Orien te Médio a um profundo ceticismo. Meus amigos pales tinos compartilhavam dos mesmos medos. Tinham pas sado pelas realidades aterradoras da ocupação israelen

se e pela violência dos colonizadores is raelenses. Como eu, desejavam uma po sição melhor, mas tínhamos sido feridos por décadas de conflito – não era fácil ser otimista.

A arena mais ampla Havia alguns sinais positivos na re gião mais ampla, tanto antes como de pois dos Acordos de Oslo. O tratado de paz de 1979 entre Israel e Egito, assim como o acordo de 1994 entre Israel e Jor dânia, era encorajador.

Israel e Egito vinham de uma longa história de guerras e ambos pareciam estar numa posição pior do que muitos dos outros países em guerra no mundo. Os is raelenses consideravam o Egito o inimi go mais importante na região e um país comprometido com a destruição de Isra el. Os egípcios afirmavam ser Israel uma ameaça para todo o Oriente Médio, sendo os judeus totalmente estrangei ros na região, sem nenhum direito de estar ali, com exce ção de um punhado de israelenses nativos. Todos os ou tros judeus deveriam voltar a seus países de origem. As sim, é preciso considerar que, tendo em vista estes respec tivos estereótipos negativos, o acordo de paz de 1979 nem de longe foi perfeito, mas só o fato de se ter conseguido um acordo foi um enorme sucesso e a paz se mantém até hoje, se bem que fria.

O acordo de 1994 entre Israel e Jordânia foi mais fá cil de estabelecer com limitadas modificações de frontei ras. A Jordânia esperava ganhos devido ao alto nível de tu rismo de Israel, acreditando que a partir daquele momen to muitos turistas estenderiam suas viagens até o Reino. Além disso, Israel comprometeu se a fornecer água para o seu vizinho do Leste.

Israel desejava desesperadamente um acordo com ou tro país árabe para quebrar seu isolamento dentro da re gião hostil. Além disso, os dois países tinham consciên cia de seu problema em comum: os palestinos, um assun to que preocupava igualmente a israelenses e jordanianos. Os palestinos são um grupo majoritário na Jordânia, onde os Hashemitas do governo são uma minoria significativa. Existem interesses comuns relevantes entre os dois países e

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o tratado diminuiu as tensões de maneira importante, em bora ocasionalmente surjam crises.

A tragédia

O otimismo sempre enfrenta desafios desanimadores. No dia 6 de outubro de 1981 o presidente egípcio Anwar Sadat foi assassinado por soldados egípcios da Fraternida de Muçulmana Egípcia. Ficou óbvio que, embora o acor do Sadat Begin tivesse o apoio das elites políticas dos dois países, grande parte das populações permanecia desconfiada. De certa forma, o Egito perdeu mais do que Israel ao assinar o acordo, pois enquanto Israel renunciou ao deser to do Sinai, o Egito sofreu a rejeição do mundo árabe e foi profundamente humilhado ao assinar um acordo reconhe cendo o Estado judeu.

No dia 4 de novembro de 1995 o primeiro minis tro Yitzhak Rabin foi assassinado por um judeu israe lense. Este evento pode muito bem ser o maior trauma

pelo qual a sociedade israelense jamais passou. Um ju deu matou um judeu. O líder que tinha se comprometido de maneira tão determinada à paz com os palesti nos já não vivia. Ninguém mais, nem mesmo seu suces sor direto, Shimon Peres, conseguiu progredir com os Acordos de Oslo.

Os assassinatos de Anwar Sadat e Yitzhak Rabin indi cariam que a paz é um sonho impossível no Oriente Mé dio? Em ambos os casos, as oposições internas pareciam ter vencido e um ambiente de manutenção do status quo per meou a área. A violência foi terrível, mas aparentemente para alguns a paz seria uma ameaça ainda maior.

Os palestinos

Na arena palestina a situação não era melhor. A violên cia espocava em muitas ocasiões. As duas intifadas (insur reições) trouxeram muita morte e muita destruição para os dois lados. Durante os períodos de violência extrema eu

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cheguei a pensar que tudo que os Acordos de Oslo tinham tentado fazer falha ra. Anos de discussões, consultas, reuni ões sigilosas e sonhos jogados fora. Será que conseguiríamos nos juntar outra vez?

Em 2005, sob o primeiro ministro Ariel Sharon, Israel abdicou da Faixa de Gaza, forçando os colonizadores israelen ses ali estabelecidos a deixar suas casas. Is rael tinha esperanças de que aquela área, já quase independente, viesse a ser uma arena de paz. No entanto, o conceito de uma retirada unilateral de território sem acordo foi um fracasso. O Hamas tomou o poder e mostrou­se um inimigo intratável e muito agressivo. Além disso, o Egito não tinha a menor confiança no Hamas.

Pesquisas de opinião entre israelenses continuam a mostrar que uma maioria é a favor de uma solução que envolva dois Estados para os dois povos e a pesquisa Pew do dia 9 de maio deste ano observa que a maioria dos israelenses acredita que palestinos e israelenses são capazes de coexistir.

Os palestinos da Cisjordânia estão numa posição muito melhor. Estão tendo crescimento econômico, recebem ajuda financeira significativa dos Estados Unidos, da União Europeia e do Qatar. Passei um dia inteiro visitando Ramallah há alguns meses e fi quei surpreso ao ver os edifícios altos, o desenvolvimen to industrial e os carros novos. Éramos um grupo de is raelenses que foi se encontrar com um variado grupo de líderes do mundo de negócios palestino. Eles nos fala ram sobre a significativa melhoria de suas vidas e tam bém sobre a sua profunda preocupação com o futuro. Tendo uma economia que depende em grande parte de doações externas, eles temem o dia em que terão que ser autossuficientes sem terem desenvolvido uma infraestru tura interna adequada.

Há também sérias tensões com as autoridades israelen ses e colonos, embora haja sinais de que o novo governo israelense esteja comprometido com a melhoria das rela ções com a Autoridade Palestina. A América vem desem penhando papel cada vez mais central na tarefa de guiar os dois lados na direção da negociação política. Um elemen to interessante é o nível satisfatório de interação entre as forças de segurança da Cisjordânia e de Israel: ambas que rem paz e sossego.

O impacto da Primavera Árabe

Em 2011 a Primavera Árabe trouxe novas realidades. Este movimento dramático terá trazido um novo Orien

te Médio, melhor e democrático, ou não passará do surgimento de outra forma de totalitarismo sob a égide de islamis tas radicais? Teremos anarquistas em vez de ditadores? A vida do cidadão comum terá melhorado de alguma maneira? E, no que diz respeito ao assunto deste ar tigo, terá ajudado os palestinos e/ou os israelenses?

Creio que tudo o que podemos dizer é que o veredicto ainda não foi dado. O fato é que a inquietação no mundo ára be proporciona poucos benefícios aos pa lestinos e as preocupações globais e regio nais voltaram­se cada vez mais para a Síria, o Iraque, o Irã, a Líbia, o Bahrain e a outros países do Oriente Médio.

Os próximos meses Não pode haver nada mais desafiador do que sugerir o que vai acontecer no Oriente Médio nos próximos me ses. É uma região carregada de violência e insegurança. Apesar disso, e como israelense, há um aspecto que me faz otimista. Pesquisas de opinião entre israelenses conti nuam a mostrar que uma maioria é a favor de uma solu ção que envolva dois Estados para os dois povos e a pesquisa Pew do dia 9 de maio deste ano observa que a maio ria dos israelenses acredita que palestinos e israelenses são capazes de coexistir.

Ainda temos desafios imensos pela frente, meu so nho é de que um dia haverá um Estado palestino inde pendente e que encontraremos uma maneira de convi ver lado a lado.

Concluindo, é preciso enfatizar um ponto adicional: “A paz no Oriente Médio” não diz respeito apenas aos is raelenses e aos palestinos, mas inclui uma melhoria radi cal na situação de toda a região.

Paul Liptz é historiador e sociólogo e faz parte do corpo docente da Universidade de Tel Aviv há 35 anos. Leciona também no He brew Union College em Jerusalém há 25 anos. Foi conferencista no Corpo de Reservistas do Exército de Israel, tendo discorrido so bre um variado leque de tópicos, inclusive assuntos relacionados ao Oriente Médio.

Traduzido do inglês por Teresa Cetin Roth.

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Amais delicada questão do conflito israelense palestino se refere ao sta tus da parte oriental de Jerusalém e às colônias israelenses na Cisjor dânia. A situação legal destes territórios desafia as leis internacionais, pois conforme o plano de partilha aprovado pela ONU em 1947 eles deveriam ser parte do Estado Palestino a ser constituído em 1948, ao lado do Estado de Israel. No entanto, os palestinos se recusaram a declarar o seu Estado e no vácuo resultante desta situação os territórios foram anexados pela Jordâ nia, num movimento não reconhecido pela comunidade mundial.

Mesmo não tendo feito planos de conquistar esses territórios, Israel acabou ocupando os militarmente por motivos estratégicos e de defesa após a agressão jordaniana de 1967. Em novembro daquele ano, o Conselho de Segurança da ONU adotou a Resolução 242 que demandou “a retirada de Israel de territó rios ocupados no recente conflito”, bem como o direito a todos os Estados da região a viver em paz dentro de fronteiras reconhecidas e seguras.

Contudo, o texto da resolução foi objeto de duas interpretações discordan tes. Os árabes entenderam que o texto obrigava a retirada de Israel de todos os territórios ocupados, enquanto outros entenderam que a falta da palavra “to dos” indicava que haveria ajustes na fronteira. Líderes israelenses aceitavam de volver todos os territórios desde que o direito a fronteiras reconhecidas – algo igualmente demandado pela resolução da ONU – fosse respeitado.

Terão os judeus da Diáspora o direito de participar deste debate? Terá o Movimento Reformista, como uma organização religiosa de abrangência mundial, o direito de se posicionar neste conflito? Eu sustento que ambos têm não apenas o direito, mas também a obrigação, tanto como indivíduos quanto como organização.

No entanto, a Liga Árabe, reunida em Cartum, havia declarado em setem bro de 1967 os três “nãos” da beligerância continuada: “Não à paz com Isra a v isão r eformista so B re os colonos da c is J ordânia

< Torre do relógio em Nablus, Cisjordânia, construída em 1906 durante o Império Otomano.

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el, não ao reconhecimento de Israel e não às negociações com Israel”, e ela não se moveu desta posição, à despeito da resolução 242.

Na falta de entendimento, o vácuo jurídico continuou a existir nos territórios, só que desta vez preenchido mili tarmente por Israel, sob grande controvérsia. Israel argu menta que sua fronteira a Leste nunca foi definida e que os acordos de 1993 com a OLP (chamados Acordos de Oslo) e de 1994 com a Jordânia rezam que o status final da Cisjordânia será definido no acordo permanente a ser alcançado. Por outro lado, os palestinos sustentam que a presença militar e civil de Israel na região viola os seus di reitos de soberania.

Os colonos e a população árabe

O público israelense abriga várias posições divergen tes. Desde os que se retirariam de todos os territórios em troca do estabelecimento de um Estado Palestino que co exista em paz com Israel até os que defendem a anexação total do território e a transferência de sua população ára be para a Jordânia.

A falta de uma solução exacerba o problema continua mente, tendo Israel estabelecido cidades pequenas e gran des na região, que hoje abrigam aproximadamente 350 mil

colonos judeus, diante de uma população árabe de aproximadamente 2,4 milhões de pessoas.

Pesquisas de opinião conduzidas ao longo dos anos in dicam que em troca de uma paz estável a maioria dos israelenses, e talvez até mesmo a maioria dos colonos, apoia ria a retirada da maior parte dos territórios. Contudo, a decisão de se retirar precipitaria uma oposição extremada e possivelmente violenta por parte de elementos radicais judeus da Cisjordânia. Esses grupos são majoritariamente compostos por ortodoxos que sustentam ser sua posição fundamentada em princípios haláchicos.

O que está em questão, então, é o debate entre duas es colas sionistas diametralmente opostas. A escola represen tada pelo movimento dos colonos acredita em Eretz Isra el Hashlemá, a “Terra de Israel completa”, tendo o Jordão como a sua fronteira a Leste. Para eles, o controle sobre o território dado por Deus, conforme o relato da Torá, é pre ponderante sobre qualquer outra consideração. A segunda escola reconhece o direito histórico à Terra de Israel, mas acredita que considerações pragmáticas, tais como a com posição demográfica da população e o caráter democrático do Estado judaico, têm precedência sobre a retenção dos territórios sob o domínio de Israel.

Terão os judeus da Diáspora o direito de participar

Maale Adumim, na Cisjordânia.
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deste debate? Terá o Movimento Reformista, como uma organização religio sa de abrangência mundial, o direito de se posicionar neste conflito? Eu sustento que ambos têm não apenas o direito, mas também a obrigação, tanto como indiví duos quanto como organização. Se eles têm o direito de se manifestar com rela ção às políticas internas que afetam os ju deus da Argentina ou da antiga União So viética, por que não têm o direito de falar sobre assuntos que afetam os judeus do Estado judaico?

Conceitos de santidade

Certamente que há ramificações po líticas em tomar partido, porém, acima e além dos aspectos políticos, há uma pro funda questão religiosa que necessitamos endereçar. Temos diante de nós dois conceitos conflitantes de santidade. Há alguns judeus religiosos que, professando o amor pela Ter ra Santa e a obediência a Deus, insuflam as chamas do fa natismo religioso, violam as liberdades de grupos minori tários, advogam o governo pela força e impedem a evolu ção em direção a um acordo pacífico. Na minha concep ção, sua versão de judaísmo é uma perversão. Seu amor é cego, suas crenças messiânicas são falsas e seu zelo é peri goso. Suas realizações difamam a fé, dessacralizam o Eter no e profanam a Terra Santa.

Se Israel pretende permanecer ao mesmo tempo judaico e democrático, Cisjordânia e Gaza não podem ser incorporados a Israel. Contudo, a lógica do movimento dos colonos não é fundamentada apenas na política. Não por coincidência, a grande maioria dos colonos é ortodoxa.

cer. Por outro lado, se não for dada aos ci dadãos árabes cidadania plena, Israel não será uma democracia.

Só há, então, uma conclusão: se Isra el pretende permanecer ao mesmo tem po judaico e democrático, Cisjordânia e Gaza não podem ser incorporados a Israel. Contudo, a lógica do movimento dos colonos não é fundamentada apenas na política. Não por coincidência, a grande maioria dos colonos é ortodoxa. Eles são fortemente influenciados por seus rabinos que dizem estar seguindo os ditados da tradição bíblica. Portanto, as posições do movimento dos colonos devem ser con testadas também a partir de perspectivas religiosas.

É neste contexto que eu apresento as minhas visões. A alegação de que os colonos estão aplican do a halachá é um subterfúgio. Na realidade, eles exploram a halachá para conseguir seus objetivos políticos. Eles abusam da tradição em vez de seguí la e, ao fazer isto, eles dis torcem tanto o espírito como a letra do judaísmo.

Como judeus religiosos nós declaramos que o conceito de “povo santo” tem precedência sobre o conceito de “terra santa”. Repudiamos as forças que, por silêncio ou inação, toleram a intolerância política e religiosa, os atos de violên cia física e verbal e os atos de racismo antijudaico e judai co. A aliança entre o radicalismo político e o extremismo religioso é profana. A menos que estas tendências ameaçadoras sejam revertidas, a diáspora será alienada, o tecido democrático da sociedade israelense será corrompido e será perdida a visão sionista de renovação nacional e espiritual.

A minha posição é fundamentalmente política. Se Israel não renunciar à maior parte da Cisjordânia (assim como fez com Gaza) em prol de um Estado Palestino, ele será forçado a incorporar milhões de árabes na sociedade isra elense. E a menos que a maioria dos cidadãos seja judia, o caráter judaico do Estado será minado e poderá desapare

A alegação daqueles colonos que se dizem motivados pela religião é que o povo judeu recebeu a Terra de Israel de Deus como parte do pacto eterno com Abraão e sua se mente. O mentor espiritual do movimento, o Rabino Zvi Yehuda Kook declarou: “Esta terra é integralmente nos sa, incluindo todas as partes e fronteiras que o Criador do universo concedeu aos nossos antepassados, Abraão, Isaac e Jacó. Somos obrigados a conquistá la e colonizá la. Por tanto, não temos permissão para alienar partes desta terra e transferi las para estrangeiros”. Eles também citam uma interpretação de Nachmanides sobre Maimônides na qual o mandamento de yishuvhaaretz (colonizar a terra) é um dos 613 preceitos do judaísmo. E outra declaração rabínica afirma: “Realizar o mandamento de habitar a terra é equi valente a realizar todos os demais mandamentos”.

Três controvérsias e interpretações

O fundamento básico do movimento dos colonos é que a terra de Israel é santa e que é a sua santidade que de fine as fronteiras do Estado. Portanto, nada pode se inter por à sua ocupação – nem os árabes, nem as outras nações do mundo e, certamente, nem o governo de Israel.

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Estas convicções religiosas motivam as ações dos elementos radicais junto aos co lonos. Contudo, alguns rabinos – inclusi ve não afiliados aos movimentos liberais – declararam que as interpretações halá chicas dos rabinos dos colonos são opos tas ao espírito autêntico da halachá. Eis três controvérsias:

Os colonos citam de Devarim / Deu teronômio 7:1: “Quando o Eterno te trouxer à terra que estás para entrar e pos suir, e desalojares muitas nações defronte a vós – os Hititas, os Girgashitas, os Amo ritas, os Canaanitas, os Perizitas, os Hivi tas e os Jebusitas,...”. Contudo, todos os comentaristas rabínicos concordam que os árabes de hoje não descendem dos ha bitantes de Canaan dos tempos bíblicos. Assim, o que se aplicava àquelas nações que desapareceram não tem relevância.

A alegação de que os colonos estão aplicando a halachá é um subterfúgio. Na realidade, eles exploram a halachá para conseguir seus objetivos políticos. Eles abusam da tradição em vez de seguí-la e, ao fazer isto, eles distorcem tanto o espírito como a letra do judaísmo.

vo de manter as fronteiras pós 1967. Usar a religião como um pretexto para desres peitar os direitos dos terceiros é distorcer o judaísmo.

Ao estabelecer o Estado de Israel nós afirmamos a legitimidade do nacionalis mo a nosso favor. Não podemos deixar de afirmar esta legitimidade para os pales tinos. Nós, judeus, somos diferentes dos gregos e dos romanos. Os gregos desen volveram um código de justiça em cada cidade estado, mas não se compromete ram a estabelecer a justiça com os povos conquistados. A Pax Romana – a paz que prevaleceu no Império Romano por 350 anos – impôs a soberania e a civilização romana sobre os povos conquistados. Os conceitos de governo de ambos – gregos e romanos – se basearam na manutenção do controle mi litar sobre os demais.

O mandamento de conquistar a terra tinha validade limitada àquele momento histórico e não é mais válido. Conforme a halachá, este mandamento só pode ser rea tivado através de uma renovação da profecia (a revelação direta da palavra de Deus para um humano). Contudo, a tradição registra que a profecia terminou a cerca de vin te e cinco séculos.

O Pikuach Nefesh, a “preservação da vida”, é um pre ceito fundamental a favor do qual todos os demais preceitos – menos idolatria, adultério e assassinato – podem ser desobedecidos. A tradição judaica ensina que o verso da Torá “e guardarás meus mandamentos, para que vivas por eles...” (Vaikra / Levítico 18:5) significa que não se deve morrer por eles. Consequentemente, o Estado de Israel é obrigado a conseguir um acordo com os palestinos para preservar vidas.

Nacionalismo e direitos

Nenhuma sociedade secular e democrática pode ser go vernada hoje pela interpretação da halachá. Promessas bí blicas e rabínicas de séculos atrás não podem ser invo cadas para o estabelecimento de fronteiras no século 21. Nem Abraão, nem Josué nem Maimônides foram cartó grafos. Nenhum texto bíblico ou medieval pode ser usa do para justificar o derramamento de sangue com o objeti

Nós, judeus, não acreditamos na Pax – a ausência do estado de guerra –, mas em shalom – completitude, in tegridade, bem estar. Shalom, derivada da palavra shalem (completo), é o produto da justiça entre as nações. Este é o nosso objetivo, nosso desafio, nossa visão. Segundo as palavras de Isaías: “A obra da justiça será a paz e seu efeito será a quietude e a confiança eterna” (Isaias 32:17).

Os dilemas morais que confrontam o judaísmo pro gressista se intensificam à medida que nossa relação com Israel se agudiza e isto acarreta que resolvê los passe a ser cada vez mais essencial. Nosso movimento, com sua ên fase na justiça social, está imbuído da visão sionista da renovação do povo judeu no bojo de uma sociedade funda mentada na justiça social e econômica. Contudo, nossa participação na sociedade israelense conscientizou nos so bre várias deficiências nos padrões públicos e pessoais de moralidade.

Somos o povo escolhido? Israel é a terra prometida? É este o Estado judaico pelo qual nossos antepassados reza ram por três mil anos? Como podemos reconciliar o sonho com a realidade? Como assegurar que a restauração da so berania previna o abuso do poder? Em resumo, como po demos cultivar o nosso sonho sionista sem corromper nossas almas na realidade sionista?

Não existem respostas fáceis para estes e para outros di

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lemas profundos. No seio do nosso movimento houve os que se opuseram à transferência da sede da WUPJ para Jerusalém e à afiliação à Organização Sionista Mundial. Ar gumentaram que uma identificação muito próxima com as instituições sionistas comprometeria o compromisso pri mordial do judaísmo progressista com a ética universal.

O que eles não entenderam é que aqui em Israel os va lores judaicos não são desenvolvidos na teoria ou no rei no do abstrato. Aqui não existe a dicotomia artificial entre as dimensões política histórica particularista e as dimen sões religiosa espiritual universalista. Aqui, judaísmo e hu manismo, particularismo e universalismo, corpo e espírito são inseparáveis. Esta é a fonte da nossa angústia e do nos so arrebatamento, nossa frustração e nosso júbilo. Esta é a essência do Sionismo.

Um dos significados seminais da palavra hebraica am (povo) é família. Am Israel é uma família grande e uni da. Nos limites da família, as experiências comuns e crises aproximam. Obrigações para com os membros da família impõem relações especiais. Que assim seja neste momento da história, quando nossos valores como povo estão sendo

severamente testados. A partir do renascimento do Estado atingimos novos níveis de realização e inspiração. Fomos honestos uns com os outros da mesma forma como fo mos honestos com os valores judaicos. Que continuemos a manter nossas mentes e ouvidos abertos, tanto uns com os outros como ao chamado superior do destino de Israel.

Que as palavras do profeta Malachi guiem o diálogo Is rael Diáspora: “Então os que reverenciam a Deus falaram uns para os outros e Deus escutou e tomou nota” (Mala chi 3:16).

O Rabino Richard G. Hirsch é presidente de honra da World Union for Progressive Judaism – WUPJ –, a organização guarda-chuva in ternacional dos movimentos Reformista, Liberal, Progressista e Re construcionista. Em 1973, ele liderou a transferência da sede da or ganização para Jerusalém, onde reside desde então.

Este texto corresponde à tradução e à condensação do capítulo 5 do livro For the Sake of Zion, escrito pelo Rabino Richard g. Hirsch e editado pela URJ Press em 2011. A tradução do inglês e a con densação são de Raul C. gottlieb.

Mercado em Ramalah, na Cisjordânia. Alex k uehni / iStockphoto.com
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v egetarianismo Ético e o Judaísmo

“E Eu, eis que estabeleço a Minha aliança convosco e com vossa descendência, depois de vós. E com toda alma viva que está convosco, com a ave, com o ani mal e com todo o animal selvagem da terra convosco, todos os que saíram da arca, todo animal da terra.”

(Bereshit/Genesis 9:9 10)

Os seres humanos reúnem se em torno do alimento desde os mais lon gínquos tempos. São encontros que aproximam, identificam e ex pressam a tradição e a cultura dos povos. Como bem observado pelo escritor Jonathan Safran Foer em seu livro Comer Animais:

Histórias sobre comida são histórias sobre nós mesmos – nossa história de vida e nossos valores. Na tradição judaica da minha família, aprendi que a comida serve a dois propósitos paralelos: alimenta e ajuda a lembrar. Comer e contar histó rias são duas coisas inseparáveis – a água salgada também são lágrimas; o mel não apenas tem sabor doce, mas faz com que pensemos em doçura; a matzá é o pão da nossa aflição.

Da mesma forma, tenho saudosas recordações dos jantares e festas judaicas na casa de minha avó materna, de quem era grande admirador, especialmen te por suas habilidades culinárias. Receitas feitas com amor e repletas de tradi ção: gefilte fish, sopa de kneidler, matzo brei, bolos, compotas e outros saboro

Segundo a corrente ortodoxa, os animais foram criados apenas para servir ao homem. Defendem uma hierarquia da criação antropocêntrica, com o homem no pináculo, e justificam a supremacia da espécie baseados na interpretação literal dos textos.

daniel Biron
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sos pratos que nos conectavam aos nossos antepassados. A família reunia se em torno da mesa para celebrar e lembrar a história de nosso povo, passada de geração em geração.

Apesar de não seguir uma alimentação kasher, acredita va que estes alimentos mantivessem altos padrões de qua lidade e higiene. Defini a minha linha de respeito às nor mas da kasherut, não consumindo carne de porco, aves de caça, anfíbios, crustáceos e moluscos. Criei, sob a minha ótica, uma escala aleatória de respeito a estas normas onde a ingesta de carne com leite e derivados e o consumo de carnes permitidas (mesmo que não kasher), eram “infra ções menos graves” do que, por exemplo, o consumo de anfíbios e crustáceos. Foi­me ensinado que animais abatidos da maneira kasher sofriam menos e que sua carne era mais saudável e “pura” e estes conceitos permaneceram ir refutáveis por muito tempo.

Na minha experiência até então, comer era um ato ino cente e ingerir carne algo natural. Jamais havia feito a co

nexão entre os animais e os nossos pratos. Os argumen tos para a perpetuação do consumo de carne são justificados principalmente: pela crença de estarmos no topo da cadeia alimentar; por prazer gustativo; pelo mito da pro teína; por antropocentrismo cultural e religioso e através da legitimação do consumo pelos governos. O ser huma no acredita ser o único detentor de dignidade e, portanto, julga se “superior”, dominando e classificando os demais animais como commodities.

Assim, mesmo sem compreender a filosofia do vegeta rianismo e sua dimensão ética, eu tinha preconceitos. Fa zia uma leitura equivocada destas pessoas rotulando as de “alternativas”, “contracultura” ou “elevadas espiritualmente”. Além disso, julgava a dieta vegetariana pobre, restri tiva e sem sabor. Estes estereótipos foram lentamente se extinguindo e abriram espaço para uma nova percepção.

Hoje há um crescente interesse pelo vegetarianismo por motivos diversos: saúde, meio ambiente, sofrimento ani

Chuwy
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mal, espiritualidade, filosofia de vida, ética e religião. Este fenômeno vem atingin do inclusive as crianças, que tornam se vegetarianas por estabelecerem a relação entre a carne e os animais.

Comer animais

Segundo o relato bíblico, Adão e Eva teriam sido vegetarianos: “Eis que vos te nho dado toda erva que dá semente que está sobre a face de toda terra, e em toda árvore que há fruto de árvore que dê semente; a vós será para comer”. (Bereshit/ Genesis 1:29). Até então, o ser humano tinha a clara missão de cuidar do mundo e estava acima da cadeia alimentar. Al guns comentaristas do Tanach sugerem que num mundo perfeito, com a vinda do Messias, os seres humanos retornarão ao vegetarianismo.

O consumo de animais só foi permi tido por Deus a Noé e seus descendentes após o Dilúvio: “Tudo que se move vos servirá de alimen to, como toda verdura e erva que já vos dei” (Bereshit/Ge nesis 9:3). De acordo com alguns estudiosos, a permissão ao consumo de carne justificou se por: necessidades fisio lógicas; queda do homem em nível moral e espiritual, in serindo o no topo da cadeia alimentar; e a necessidade de sua diferenciação e hegemonia sobre o reino animal.

Uma análise mais apurada revela que animais têm sentimentos e suas vidas não devem ser resumidas a servir aos interesses dos seres humanos. Embora comuniquem-se através de sons e sinais corporais, e sejam capazes de expressar prazer, dor, alegria e medo, seus direitos lhes são negados, tais como vida, liberdade e integridade.

à imagem e semelhança de Deus. A utili zação do termo animais para designar ani mais não humanos exemplifica a negação da própria condição de animais e distan cia o ser humano de outros seres dotados de senciência.

Decerto, uma análise mais apurada revela que animais têm sentimentos e suas vidas não devem ser resumidas a servir aos interesses dos seres humanos. Embora co muniquem se através de sons e sinais cor porais, e sejam capazes de expressar pra zer, dor, alegria e medo, seus direitos lhes são negados, tais como vida, liberdade e integridade. Se lhes fosse dado o dom da comunicação, tal qual os humanos pra ticam, certamente optariam pela manu tenção de sua integridade física a serem transformados em bife kasher, hambúr gueres ou sabonetes.

Por outro lado, a Torá enfatiza princípios “éticos” na relação entre seres hu manos e animais, sendo o principal Tzaar Baalei Chayim, ou seja, a prevenção da crueldade com animais (Devarim/ Deuteronômio 22:4). Na época, foram instituídas normas de abate para a alimentação (shechitá), foi proibida a caça, e foram criadas regras visando o bem estar e a diminuição do sofrimento animal.

Segundo a corrente ortodoxa, os animais foram cria dos apenas para servir ao homem. Defendem uma hierar quia da criação antropocêntrica, com o homem no piná culo, e justificam a supremacia da espécie baseados na in terpretação literal destes textos: “Façamos homem à nos sa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre o peixe do mar, e sobre a ave dos céus, sobre o animal e em toda a terra, e sobre todo réptil que se arraste na terra!” (Bereshit/Genesis 1:26). A manifestação deste pensamen to é chamada de Especismo, que, por analogia ao racismo, atribui valores ou direitos diferentes a seres pelo mero fato de pertencerem a uma determinada espécie.

Logo, a estes animais é negado o valor dignidade, so mente estendido aos indivíduos humanos. São rebaixados a seres irracionais e que seguem instintos, enquanto ape nas humanos têm razão e sentimentos, pois foram criados

Dentro destes princípios, foi concedido um dia de des canso aos animais no shabat (Shemot/Êxodo 20:10), foi proibido o abate de uma vaca e seu bezerro no mesmo dia (Vaikrá/Levítico 22:28) e também foi proibida a retirada dos filhotes de uma ave sem espantá la (Devarim/Deutero nômio 22:7). Todos os exemplos citados constituem uma visão bem­estarista da utilização de animais, onde segue­se a lógica de que, em caso de serem explorados, que sejam da maneira mais nobre e justa. Mas cabe aqui a seguinte per gunta: Será que é possível explorar de forma ética?

Regulamentar a maneira pela qual animais são explo rados e mortos com “compaixão e misericórdia” abre um precedente para a continuidade de sua exploração. Acre dita se que, se realizado de maneira correta, o ser humano tem este direito. O próprio abate kasher, que se mantém fiel às tradições, é considerado por muitos defasado e cruel se comparado a métodos mais modernos e menos traumá

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ticos para os animais. Mas, mesmo que se criem formas de abate mais “humanitá rias”, a questão não é desenvolver um mé todo mais eficiente, mas sim refletir por que o homem julga ter esta prerrogativa.

Certamente, muitos acreditam estar escusados de questionamentos morais ao consumir a carne de um animal aba tido segundo os preceitos da kasherut. Porém, como o filósofo e poeta norte americano do século 19, Ralph Waldo Emerson, adverte: “Acabastes de jantar e, por mais escrupulosamente que escondais o matadouro na agradável distância de mi lhas, há cumplicidade”.

A preservação dos valores judaicos de veria contemplar novos questionamentos morais, bem como a necessidade do ques tionamento ético, ao reconhecer as mu danças de paradigmas inerentes à evolução humana. O apego a certas tradições expõe a incoerência dos seres hu manos, que, por conveniência, optam em seguir de ma neira seletiva apenas alguns destes mandamentos, seja pela visão antropocêntrica estabelecida, por prazer gustativo ou indiferença. Mesmo com as visões contraditórias da Torá em relação aos animais, prevalece a interpretação de su perioridade dos seres humanos. Alguns exemplos de leis e tradições não atuais que hoje não estão mais em vigor: Fi lho rebelde e contumaz (Devarim/Deuteronômio 21:1821) e Adultério (Devarim/Deuteronômio 22:22 25), am bos penalizados no passado com apedrejamento e morte.

Para a maioria, a ética engloba apenas as relações entre seres humanos, mas a inclusão de outras espécies é oportuna para a ampliação das fronteiras de consideração moral, ou seja, o reconhecimento que estes seres possuem status moral e que não podem ser ignorados ou tratados aleatoriamente.

toriamente, pois seus direitos morais mais básicos estarão sendo violados. Ao torna rem se insensíveis à vida dos animais, hu manos dessensibilizam se nas próprias re lações humanas. Estabelecer a relação en tre seres sencientes com o conceito de res peito ao próximo torna possível a consideração e a autogerência de suas vidas, não como propriedade, mas como indivídu os. Se estendido neste contexto ao princípio de “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Vaikrá/Levítico, 19:18), será um grande avanço do ponto de vista éti co e o mandamento “Não matarás” esta rá sendo cumprido.

Ensinamentos judaicos para um mundo sustentável

A religião judaica considera os seres humanos os guardiões do planeta Terra: “E o eterno Deus tomou o homem e o pôs no jardim do Éden para cultivar e guardá-lo” (Bereshit/Genesis 2:15). Os ensinamentos da Torá são pautados numa conduta de compaixão e justiça, reverência a Deus, respeito à vida, manutenção da saúde pessoal e cuidado com o meio ambiente.

Os sacrifícios de animais eram habituais no período do Beit Hamikdash. Este ritual foi abolido após a destruição do Segundo Templo e foi substituído pelas rezas. Hou ve, portanto, uma evolução moral, e a liturgia supriu esta prática. Se o Templo fosse reconstruído, os sacrifícios pro vavelmente não seriam retomados. Este pode ser um in dicador para uma nova relação com os animais hoje con siderados alimento, e o caminho para uma evolução éti ca e espiritual.

Para a maioria, a ética engloba apenas as relações entre seres humanos, mas a inclusão de outras espécies é opor tuna para a ampliação das fronteiras de consideração moral, ou seja, o reconhecimento que estes seres possuem sta tus moral e que não podem ser ignorados ou tratados alea

A poluição gerada pelo “progresso” está danificando o planeta de maneira irreversível e violando o preceito judai co de proteger e preservar o meio ambiente. O consumis mo desenfreado terá sérias implicações ambientais para as futuras gerações. Resgatar a reverência e respeito pelos co abitantes do planeta é imperativo, sejam eles do reino ani mal, sejam do reino vegetal.

A produção industrial de animais é hoje a principal responsável pela destruição ambiental da Terra. Quase um terço das terras aráveis do planeta, inclusive grandes partes da Amazônia e do Cerrado, foram desmatadas e são usa das para criar animais para consumo humano e produzir grãos para alimentá los. A água, recurso natural essencial à sobrevivência de todas as espécies, é desperdiçada de for ma inconsequente. A alimentação baseada no consumo de carne é comprovadamente mais devastadora e devorado ra de recursos do que uma alimentação vegetariana estrita.

Além das questões ambientais, estudos recentes relacio nam o consumo de produtos de origem animal com di versas doenças, entre as quais: obesidade, câncer, diabetes

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e doenças cardiovasculares. Cuidar da saúde é uma mitsvá e há crescente conscientização do impacto da alimentação no bem estar, na qualidade de vida e longevidade.

Enfim, viver uma vida segundo os preceitos da kasherut não se limita aos hábitos alimentares. A alimentação é parte de um sistema, que leva em conta o relacionamento com o meio ambiente e os cuidados com a saúde pessoal. Não cuidar do planeta implica que a kasherut não está sen do mantida num sentido mais amplo, moral e espiritual.

Celebrando a vida, com liberdade e compaixão

Inegavelmente, seres humanos e animais são diferentes, sendo evidente que animais não poderiam usufruir de di reitos como a liberdade de expressão e pensamento da mes ma maneira que os humanos, tampouco ter perante a lei os mesmos direitos constitucionais. Mas para que haja uma ética ampliada, seus interesses e direitos básicos devem ser garantidos, como viver e escolher o que fazer de sua liber dade, bem como ter sua integridade não ameaçada.

Estudos científicos sobre o comportamento e as emo ções dos animais, comprovam a inteligência e o nível de complexidade de seus sistemas nervosos. A mente animal ainda é um mistério e sua consciência fascina tanto a pes quisadores quanto a tutores de animais de estimação, que dispensam estudos complexos para atestar a sensibilida de de seus companheiros. Mas, apesar das similaridades, o ser humano prefere ressaltar a inferioridade dos indivídu os não humanos, para justificar o seu domínio.

É certo que os seres humanos são dotados de uma inteligência que lhes permite fazer escolhas, planejar e ter no ção de futuro. O vegetarianismo ético e o direito dos ani mais fazem parte de um movimento cultural que envolve questionamentos morais e desafios atuais à sobrevivência humana: “Ser vegetariano é discordar: discordar do curso que

as coisas tomaram hoje. Fome, crueldade, desperdício, guer ras – precisamos nos posicionar contra essas coisas. O vegeta rianismo é a minha forma de me posicionar” (Isaac Bashevis Singer – escritor, Prêmio Nobel de Literatura).

Em síntese, a sabedoria da tradição judaica pode auxi liar o homem a curar e restaurar o planeta, conduzindo o para o Tikun Olam. Reparar o planeta é também fazer justiça e pôr em prática a importante mitzvá da tzedaká. Es tender o conceito de justiça social aos animais através da compaixão por todas as criaturas de Deus é pensar num mundo sustentável e justo, onde se privilegia o coletivo e consideram se os interesses de outras espécies sencientes. O judaísmo e o vegetarianismo ético celebram a vida, a li berdade e caminham juntos em harmonia com os ensi namentos da Torá. Na próxima vez que sentar se à mesa, convido o(a) à reflexão.

Bibliografia

1. David Gorodovits e Jairo Fridlin – Bíblia Hebraica. São Paulo: Editora Sêfer, 2006.

2. Jonathan Safran Foer – Comer Animais. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2009.

3. http://pt.wikiquote.org/wiki/Ralph_Waldo_Emerson – Ralph Waldo Emerson –The Conduct of Life. Boston: Editora: Ticknor and Fields, 1863. Citado na pági na 5.

4. http://pt.wikiquote.org/wiki/Isaac_Bashevis_Singer – David Gabbe – Why do ve getarians eat like that? Everything you wanted to know (and some things you didn’t) about vegetarianism and some things you didn’t about vegetarianism. Editora: Prime Imprints, 1994. Citado na página XII.

5. http://jewishveg.com/asacredduty – Lionel Friedberg – A Sacred Duty: Applying Jewish Values to Help Heal the World. Jewish Vegetarians of North America (JVNA).

Daniel Biron é chef de cozinha vegano, designer gráfico e ex-cha ver da Chazit Hanoar Rio de Janeiro. Formado pela Natural gour met Institute, já trabalhou nos restaurantes veganos Candle Cafe e Candle 79, em Nova York, e no restaurante gentle gourmet Café, em Paris. Possui receitas publicadas na Revista dos Vegetarianos e uma coluna no site da Anda (Agência de Notícias de Direitos Ani mais – http://www.anda.jor.br/).

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s halom a leichem: uma canção milenar criada no s É culo 20

Será possível que a “tradicionalíssima e quase universal” canção Shalom Aleichem tenha sido composta somente no início do século passado por um rabino que nem chassídico era?

alessandra sussmann cohen

Ao longo da história da música judaica, pode­se observar que as ondas musicais perpassam por todas as correntes do judaísmo, sem se im portar com sua vertente específica e quebrando, então, os mitos das propriedades exclusivas. Sua permanência se dá em mérito de sua uti lidade ou encantamento. A transformação, a releitura e a adaptação acontecem naturalmente, viabilizando, portanto, a existência de trocas e influências, tanto internas, quanto externas, típicas da nossa trajetória histórico cultural.

Um importante elemento que permite essa quebra do preconceito em re lação a uma melodia específica está relacionado ao conceito do “resgate”, mui to explorado na música chassídica. Lida se, pois, com a canção por si só, apre ciando a sua função e seu efeito, que são muito mais importantes do que uma aprovação de procedência. Como consequência, determinadas canções são tão incorporadas pela comunidade que chegam a se confundir com a “tradição”.

Como um excelente exemplo, veja se a clássica canção Shalom Aleichem, cantada por diferentes linhas religiosas judaicas espalhadas pelo mundo inteiro, desde os chassidim em volta da mesa de shabat de suas próprias casas, à roti na escolar cultivando e celebrando o shabat. Observa se, ainda, que muitas das partituras, publicações ou coletâneas de Zemirot LeShabat (canções para sha bat) classificam na como “tradicional” ou “chassídica”, justamente pelo desco nhecimento de seu compositor.

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Entretanto, ao realizar uma pesquisa simples é possível descobrir sua autoria, resultando, pois, numa desconfian ça da veracidade dos fatos tão contraditórios e instigan do a dúvida: será possível que a “tradicionalíssima e quase universal” Shalom Aleichem tenha sido composta somente no início do século passado por um rabino que nem chassídico era?

Dando continuidade a uma investigação mais profun da, a resposta à indagação é sim. Realmente a música Sha lom Aleichem foi composta pelo rabino Israel Goldfarb em 1918, um rabino formado pela Jewish Theological Semi nary em Nova York (1902), cuja linha é conservadora (e, portanto, não ortodoxa, muito menos chassídica), além de ser fundador da Escola de Música Sacra do Hebrew Union College Jewish Institute of Religion (1949), ou seja, o se minário rabínico reformista, comprovando, assim, como uma música de uma procedência particular é capaz de se articular, sem problemas, por todas as outras linhas.

Aliás, tanto o próprio rabino­músico quanto seus familiares testemunharam e se surpreenderam com a velocida de na qual a canção se espalhou, necessitando, portanto, de seus relatos a respeito da composição em diferentes épocas.

Nota se que este obscurantismo se mantém até hoje, podendo constatá lo mediante as publicações coletadas

pelo The Synagogue Journal, lançado em 2006 em caráter comemorativo aos 150 anos de aniversário da Kane Street Synagogue, a Congregation Baith Israel Anshei Emes do Brooklyn, Nova York. Duas foram as edições destinadas a este assunto, as de números 6 e 49, datadas de 10 de feve reiro e de 8 de dezembro respectivamente.

Na primeira, constam matérias interessantíssimas, tais como curiosidades a respeito de suas composições e relatos sobre a atuação do rabino na sua Congregação; um artigo escrito na página 5 pelo neto do rabino Israel Goldfarb, o rabino Henry D. Michelman, destinado à Enciclopédia Judaica, em que narra a biografia de Goldfarb e sua “Sha lom Aleichem Goldfarb’s”, através do trecho de suma rele vância1: “Ele compôs a melodia para o mundialmente fa moso hino da tarde de sábado ‘Shalom Aleichem’ em 1918. Foi registrado e publicado pela primeira vez no final daquele ano em seu ‘Friday Evening Melodies’”; além de citar as palavras do próprio compositor a respeito da divulgação de sua música: “Muitos passaram a acreditar que esta mú sica foi transmitida do Monte Sinai por Moisés”.

Na página 6 tem se a oportunidade de ler a carta es crita pelo próprio Israel Goldfarb em 1963, esclarecen do a origem da popular e polêmica melodia a pedido do chazan Pinchas Spiro, que durante os anos de 1961

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1966 serviu à comunidade do Temple Beth Am, em Los Angeles, para apresen tar ao seu mentor Max Helfman, através do qual, e para seu espanto, pode obser var a “Shalom Aleichem Goldfarb” descri ta como uma melodia de origem chassí dica no repertório de “Sabath Chants and Zmirot”, uma coleção compilada e har monizada para “Brandeis Camp Institute of Santa Susanna”. Entretanto, o chazan não teve a oportunidade de mostrar esta carta a Helfman, que faleceu com a dú vida em 9 de agosto de 1963:2

Inquérito sobre a origem da melodia de Shalom Aleichem. A carta está na Rat ner Center Library at JTS

Graças à valorização judaica à tradição

oral, Shalom Aleichem “viajou de volta ao Monte Sinai, por assim dizer: tornou-se tão universalmente cantada que os judeus nos Estados Unidos tinham certeza que seus avós e bisavós haviam trazido a melodia de lugares antigos e distantes para este país.”

Querido Hazzan Pinchas Spiro, Tenha certeza de que a melodia originou comigo mes mo e sozinho.

Eu compus a melodia há 45 anos (1918), enquanto es tava sentado em um banco perto da estátua Alma Mater, em frente à Biblioteca da Columbia University, em Nova York. Comecei a cantarolar para mim mesmo, tirei uma folha de papel de música da minha pasta e anotei. Foi numa sexta-fei ra, que pode ser a razão pela qual a melodia e as palavras me vieram à mente simultaneamente. Além disso, eu estava tra balhando naquele momento na minha “Friday Evening Me lodies” que foi publicada em 1918. A popularidade da melo dia não só viajou por todo o país, mas por todo o mundo, de modo que muitas pessoas passaram a acreditar que a canção havia sido transmitida no Monte Sinai por Moisés.

Recebi inúmeros pedidos de rabinos, cantores e composito res para dar-lhes permissão para usar a melodia em suas co leções de música, e fui liberal ao conceder tal permissão. Al guns foram generosos o suficiente para reconhecer a autoria. Um grande número de editores, alguns em Israel, não sabendo a origem da melodia, simplesmente escreveu “Tradicio nal” ou “Chassídica”. Mas o fato é que eu sou o compositor, e a melodia foi registrada por mim e arquivada na Biblioteca do Congresso em 1918.

Eu escrevo isto para você, a fim de silenciar de uma vez por todas as muitas reivindicações ao contrário.

Israel Goldefarb, 10 de maio de 1963.

Algo novo para ensinar

Foi editada também, nesta mesma pá gina, uma conversa com a filha do rabi no, em 20 de junho de 2003, na qual ex punha o contexto em que a melodia foi escrita:

Meu tio Samuel Goldfarb era naquele tempo – eu não sei exatamente qual era o seu título –, mas naquela época havia uma Bureau of Jewish Education na maior área de Nova York, e ele estava no comando do departamento de música. Eu não sei exatamente quais foram as suas funções, mas ele estava em contato com todas as escolas da Grande Nova York. Eu acho que isso sig nificava Norte da New Jersey, toda a área. Um dia ele chamou meu pai e disse que iria ter uma reunião muito grande de to das as crianças judias no Madison Square Garden.

Eu não sei se o programa estava relacionado com a Pales tina. Houve reuniões coletivas de tantos em tantos anos e esta foi particularmente para as crianças. Naturalmente, as crian ças da escola não poderiam vir sozinhas, então os pais esta vam lá. Ele disse ao meu pai que queria algo novo para ensi nar. Algo cativante e melódico que eles aprendessem com fa cilidade e que seriam capazes de cantar em uníssono quando chegassem a esse comício. Ele não lhe deu qualquer orien tação, tanto quanto sei, apenas pediu algo apropriado para uma escola judaica.

Meu pai estava em Columbia naquele tempo... ele estava lá com seu almoço, o ‘brown-bagging’ [marmita], sentado no campus durante a refeição. Ele estava procurando algo para escrever, e tudo que encontrou foi uma carta no bolso. Assim, ele tirou a carta e abriu o envelope e passou a lápis a escala musical e começou a cantarolar para si mesmo. E é assim que ele cantarolava através de Shalom Aleichem.

E ele foi para casa. Ele não tocou no piano, ele costumava tocar com um dedo no ar e cantou isto. Ele chamou seu irmão e perguntou o que ele achava. Seu irmão adorou, então ele mandou para ele. E seu irmão tinha copiado e ele mandou-a para todas as escolas que estavam em sua jurisdição. E quan do eles se reuniram no encontro, as crianças cantaram e os pais cantaram e com o passar do tempo virou um hit nacional.

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Símbolo musical

A segunda edição do jornal foi dedicada exclusivamen te ao rabino Israel Goldfarb, com um retrato seu de 1916; um esboço biográfico de 1940; seu Childrens Jewish Edu cation de 30 de janeiro de 1938; as publicações de Goldfarb – Títulos e música; Mensagem do rabino em honra à Celebração do Centenário em 1955; um memorial em sua homenagem publicado em 4 de junho de 1967; a no tícia de seu falecimento em 14 de fevereiro de 1967; além da esclarecedora “The Journey of a Hebrew Melody: rabbi Israel Goldfarb’s Shalom Aleichem”, redigida por seu neto, o rabino Henry D. Michelman, para o jornal Rayonot, uma publicação da Sinagoga Park Avenue, de Nova York.

Nessa matéria é possível perceber como esta canção se tornou um dos símbolos da música judaica. Michelman conta que tudo começou “de mesa em mesa”, através de convidados e de seus cinco irmãos e cinco irmãs apaixo nados por música que compartilhavam juntos o shabat. É através de um relato de um convidado de uma dessas noites que se demonstra o “rumo de uma longa viagem musical”: Jacob Lefkowitz recorda que quando era jovem estudava na Yeshiva Torah V’Daas no Brooklyn e que ele era um con vidado regular para o shabat na casa de Nathaniel David, o pai de Israel Goldfarb. “Nossonl Dovid” ele mesmo era um compositor de melodias maravilhosas. À sua mesa Jacob Le

fkowitz ouviu o Shalom Aleichem e muitas outras melodias para o z’mirot Shabat, as quais ele carregava consigo para a Young Israel de Cleveland. Ele me disse que a música via jou de Cleveland para Chicago, para Denver, dentro do movimento Jovem Israel, uma vez que, certamente e simulta neamente, entrou no mundo maior congregacional. O rabi no David Lincoln aprendeu o Goldfarb Shalom Aleichem à mesa do shabat de seu pai, Ashe Lincoln, em Londres, e ele lembra seu avô Reuben cantando também. O rabino Lin coln me disse que ao longo de suas extensas viagens ao redor do mundo se podia contar sobre a audição de uma melodia e, de fato, em qualquer mesa de shabat cantava-se a Goldfarb Shalom Aleichem. Na verdade, os Goldfarbs e seus amigos ajudaram a reforçar o empenho do então recém-criado movi mento Jovem Israel para o canto congregacional, uma prática não popular no século 19 ou no início do século 20. 3 Henry Michelman, pp.67 68.

O “passo” seguinte foi decorrente de “Congregação para Congregação” tal como o rabino Henry descreve:

A melodia Shalom Aleichem de Goldfarb foi publica da pela primeira vez na Friday Evening Melodies (1918), The Jewish Songster (1919), e Song and Praise for Sabba th Eve (1920). Dezenas de milhares destes livros foram usa dos nas sinagogas e escolas em todo o país. Que continham

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canções melódicas, que eram fáceis de can tar e apelou para uma nova geração de ju deus americanos 4

De volta ao Monte Sinai

E, consequentemente e graças à va lorização judaica à tradição oral, Shalom Aleichem “viajou de volta ao Monte Sinai, por assim dizer: tornou se tão universal mente cantada que os judeus nos Esta dos Unidos tinham certeza que seus avós e bisavós haviam trazido a melodia de lu gares antigos e distantes para este país.” (Michelman, Henry D., p. 69). Tal como comprovado na narração abaixo:

O ponto comum de todos os nigunim é serem capazes de resumir todo o seu grupo maior num objetivo só: conduzir um judeu, qualquer que seja a oportunidade, a ter momentos de alegria e exaltação resultantes de uma experiência espiritual ímpar.

Quase 50 anos atrás o rabino Morris Kertzer escreveu que, ao visitar a Índia, ouviu um judeu indiano cantando a Goldfarb Shalom Aleichem. Quan do ele lhe perguntou onde ele tinha aprendido aquela me lodia, o judeu indiano lhe disse que “desceu pela tradição de seus antepassados”. Membros da família viajaram para a Rodésia, na Palestina, e outros lugares distantes, onde ou viram o nosso Shalom Aleichem e trouxeram de volta rela tórios semelhantes. 5

Entretanto, vale ressaltar que essa jornada só foi possí vel em mérito do ideal que o conservador rabino­chazan possuía em prol das composições melódicas simples desti nadas aos membros da congregação não treinados, permi tindo lhes uma aprendizagem fácil e rápida, capaz de es timular o gosto pelo canto participativo nos serviços reli giosos e em seus lares.6

Talvez devido a este conceito de um “judaísmo para o judeu simples” faz de “Shalom Aleichem Goldfarb” ser con fundido com um nigun tradicional chassídico. Aliás, mes mo sabendo de toda sua origem e procedência, permite se afirmar que se trata sim de um nigun chassídico justa mente pelos sentimentos despertados em quem o canta e pela preparação de um ambiente propício para o shabat. Uma canção sem dificuldades, com repetições e que, além de penetrar a mente, penetra a alma, conduzindo­a ao Infinito, ou seja, uma melodia com raiz conservadora e fru tos chassídicos

Dispõe se em quatro versos que, segundo o costume, deverão ser repetidos três vezes cada para reforçar e forta lecer as boas vindas aos anjos:7

Shalom Aleichem, Malachei Hasharet, Ma lachei Elyon, Mimelech Malchei Hamela chim, Hakadosh Baruch Hu (3x)

Que a paz esteja convosco, anjos servido res, anjos do Altíssimo, do supremo Rei dos reis, o Santo, bendito seja Ele.

Boachem Leshalom, Malachei Hashalom, Malachei Elyon, Mimelech Malchei Hame lachim, Hakadosh Baruch Hu (3x)

Bem vindos, anjos da paz, anjos do Altís simo, do supremo Rei dos reis, o Santo, bendito seja Ele.

Barchuni Leshalom, Malachei Hashalom, Malachei Elyon, Mimelech Malchei Hame lachim, Hakadosh Baruch Hu (3x) Abençoai me com paz, anjos da paz, anjos do Altíssimo, do supremo Rei dos reis, o Santo, bendito seja Ele

Tsetchem Leshalom, Malachei Hashalom, Malachei Elyon, Mimelech Malchei Hamelachim, Hakadosh Baruch Hu (3x) Que vossa partida seja em paz, anjos da paz, anjos do Al tíssimo, do supremo Rei dos reis, o Santo, bendito seja Ele.

Sentido místico

A letra é bastante antiga e não se sabe se, antes de Goldfarb, era cantada numa outra melodia ou simples mente recitada. No livro Shabat Shalom, guia prático para desfrutar o shabat em casa, o rabino Avraham Tsvi Beuth ner proporciona uma explicação bem clara a respeito da prática ritualística e analítica desta poesia:

Ao retornar da sinagoga, na noite do shabat, os membros da casa cantam ou recitam esta canção, o “Shalom Aleichem”, de pé, cada um em seu lugar em volta da mesa, como parte das preparações para a cerimônia do kidush.

“Shalom Aleichem” (Bem-vindos sejam!) é um cântico de louvor, composto há uns 450 anos por um desconhecido po eta cabalista, recitado na noite de shabat, dando boas-vin das aos anjos celestiais. Está baseado em um trecho do Tal mud (Shabat 119b) onde consta que um anjo bom e outro mau acompanham às suas casas todos aqueles que voltam da sinagoga na sexta-feira à noite. Se eles encontram a casa pre parada para o shabat, a mesa festivamente posta, com velas reluzentes e toda a família vestida em suas melhores roupas,

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o anjo bom diz: “Que o próximo shabat seja como este!”, e o anjo mau responderá, mesmo contra a sua vontade: “Amém, que assim seja!” Caso contrário, acontecerá o inverso, e o anjo bom terá de dizer “Amém”.

Assim podemos entender melhor o profundo sentido mís tico desta canção: Primeiro nos dirigimos aos anjos chaman do-os de “malache hasharet” – “anjos a serviço do Eterno” –, pois, como todo anjo, ele também tem a sua tarefa a cum prir: eles estão “investigando” o nosso shabat. Depois, ao ver o esplendor do shabat em nossa casa, os anjos deixam de se opor um ao outro e se unem, sendo então chamados de “ma lache hashalom” – “anjos da paz” –, e esta paz que o nos so shabat provocou entre eles acaba trazendo paz e benção para o nosso lar.

Rabino Avraham Tsvi Beuthner, p. 29.8

Na continuidade da recitação, no início das três estro fes seguintes, os anjos da paz são convidados a entrar (Bo achem Leshalom), a abençoar a casa (Barchuni Leshalom) e, finalmente, a deixar em paz (Tzetchem Leshalom).9 Ve ja se a explicação de Rav Beuthner sobre a razão pela qual os anjos são solicitados a sair:

O curioso é que na última estrofe do “Shalom Aleichem”

convidamos os anjos, educadamente, a ir embora. Por quê? Pois neste momento em que estamos prestes a iniciar a pri meira refeição do Shabat não poderíamos convidar os anjos a compartilhar conosco desta refeição – pois os anjos não co mem. Este é o motivo pelo qual nós os convidamos a se reti rar, honrosamente, ainda antes do kidush.

Rabino Avraham Tsvi Beuthner, p. 30.10

Destaque aos “coloridos

Apesar da existência dos quatro versos, a melodia foi composta em apenas duas partes, sendo a segunda mais aguda que a primeira.11 Durante a mesa de shabat, e como já observado, cada qual deve ser reproduzido três vezes. Ao que parece, a escolha do uso de uma parte ou outra para cada repetição depende da tradição ou rotina de cada oficiante, podendo, pois, cantar duas vezes a parte grave e uma vez a aguda, ciclicamente até completar todas as es trofes ou revezando entre a grave e a aguda até o final. Não estando no momento da refeição noturna do shabat, existe ainda a opção de se cantar de maneira resumida uma úni ca vez cada verso, sendo neste caso, de maneira geral, se guida a alternância melódica. Cabe alertar que, original mente na partitura, a sequência indicada seria grave, agu

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do, agudo e grave. Sendo assim, conclui­se a irrelevância da série musical a ser adotada, dando se destaque aos “co loridos” contrastantes que surgem inesperada e, por fim, agradavelmente aos ouvidos.

Chega se, então, ao ponto comum de todos os nigu nim de uma forma geral, capazes de resumir todo o seu grupo maior num objetivo só: conduzir um judeu, qual quer que seja a oportunidade, a ter momentos de alegria e exaltação resultantes de uma experiência espiritual ímpar.

Assim, fica fácil compreender o quão benéfica é a in fluência de uma música de forma ilimitada e desprovida de fronteira alguma, que, no caso, provém do chassidismo, mas que poderia ser de outra linha ou até mesmo de outra cultura qualquer, tal como já ocorreu tantas vezes e que, certamente, continuará acontecendo. E é desta forma, entre adaptações e trocas, que os judeus da diáspora vêm existindo, se mantendo e se transformando.

Notas

1. Todos os trechos retirados nesta pesquisa foram traduzidos para o português pela autora.

3. Michelman, Henry D. The Journey of a Hebrew Melody: Rabbi Israel Goldfarb’s Sha lom Aleichem. In: Rayonot, In: The Journal of Synagogue, December 8 2006, Issue 49.

4. Idem, p. 69.

5. Idem, pp. 69 70

6. The Journal of Synagogue, December 8 2006, Issue 49. In: Michelman, Henry D. The Journey of a Hebrew Melody: Rabbi Israel Goldfarb’s Shalom Aleichem. In: Rayo not, p. 73.

7. http://www.headcoverings by devorah.com/ShalomAleykhem.html

8. Beuthner, Avraham Tsvi. Shabat Shalom, guia prático para desfrutar o shabat em casa, p. 29.

9. http://www.nationmaster.com/encyclopedia/Shalom aleichem

10. Beuthner, Avraham Tsvi. Shabat Shalom, guia prático para desfrutar o shabat em casa, p. 30.

11. Para se obter uma apreciação auditiva de Shalom Aleichem, de Israel Goldfarb, acesse o site http://www.youtube.com/watch?v=MfYk6hO k Q, interpretada por Itzhak Perlman ao violino.

2. Apud Michelman, Henry D. The Journey of a Hebrew Melody: Rabbi Israel Goldfarb’s Shalom Aleichem. In: Rayonot, In: The Journal of Synagogue, December 8 2006, Is sue 49, p. 70.

Alessandra Sussmann Cohen é professora de shirim (canções) na ARI e nas escolas A. Liessin e Eliezer-Max do Rio de Janeiro, além de proprietária da Bonarte Academia de Música. Ela é forma da em Design gráfico e tem Licenciatura em Educação Musical pela UFRJ e duplamente pós-graduada em Estudos Judaicos pela PUC-RJ e pela Hebrew University of Jerusalem – The Melton Cen tre for Jewish Education.

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u ma perspectiva progressista para t isha Be’av

rabino stephen lewis fuchs

Onono dia do mês hebraico de Av, Tisha Be’av, é um dia no qual os judeus que seguem a tradição mais antiga jejuam lembrando­se dos magníficos Templos de Jerusalém, que foram destruídos em primeiro lugar pelos babilônios em 586 aec e posteriormente pelos romanos em 70 dec.

Esse dia também é solene em memória a outras tragédias históricas associa das a essa data. Por exemplo, diz se que o início da primeira Cruzada em 1095, uma época de perseguição e massacre de judeus na Europa, e a expulsão dos judeus da Inglaterra em 1290 ocorreram nessa mesma data. Tisha Be’av tam bém coincide com a expulsão dos judeus da Espanha em 1492 e com o início da Primeira Guerra Mundial em 1914.

As lembranças deste dia de tragédias não costumam ocupar um lugar de des taque na consciência da maioria dos judeus não ortodoxos e isso levanta a ques tão: como os judeus progressistas de hoje devem tratar Tisha Be’av?

Por um lado, a destruição dos dois Templos e o posterior exílio dos judeus da nossa terra sagrada foram ocasiões que acarretaram enormes sofrimentos e muita tristeza. O mesmo é verdadeiro para as outras tragédias históricas asso ciadas a essa data. Nada disso pode ser esquecido jamais.

Mas, por outro lado, a centralidade do Templo na vida judaica acabou abruptamente com a sua destruição e haveria pouco mérito em reviver na atualidade as suas tradições. Grande parte da relevância do Templo girava em tor

Apesar de ter sido uma tragédia horrível em sua época, a destruição do Segundo Templo libertou o judaísmo e transformou-o no que significa para nós hoje: uma religião baseada no estudo da Torá, oração e atos de bondade e compaixão. Uma religião e uma forma de vida que estão profundamente presentes em tudo que fazemos.

< gravura de gustav Dore, de 1870, mostra a reconstrução do Templo de Jerusalém.

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significado das rezas

no do papel que este desempenhava como o lugar do sacrifício de animais, que era um sinal de arrependimento, gratidão e celebração.

Depois da destruição e dispersão, o povo judeu encontrou outras maneiras de realizar seus cultos religiosos nas sinagogas e nos lares. Os rabinos emergiram da comuni dade no lugar dos sacerdotes e nossas práticas pós Templo atenderam bem às nossas necessidades em todos os luga res onde fomos pelo mundo.

Assim, não conheço nenhum judeu progressista que deseje ver o Templo reconstruído com a volta dos sacri fícios de animais e devolver o controle da vida judaica às mãos de uma classe sacerdotal hereditária.

Memória reconciliada

A conclusão é que, apesar de ter sido uma tragédia hor rível em sua época, a destruição do Segundo Templo li bertou o judaísmo e transformou o no que significa para nós hoje: uma religião baseada no estudo da Torá, oração e atos de bondade e compaixão. Uma religião e uma for ma de vida que estão profundamente presentes em tudo que fazemos.

A própria vibração e força do povo judeu ao longo dos séculos atesta a sabedoria daquilo em que nos tor namos. Pode parecer esdrúxulo, mas nesse sentido Tisha Be’av, especialmente na era de uma nação judaica reno vada em Medinat Israel, pode ser visto tanto como uma ocasião de esperança e otimismo quanto como de lem brança e tristeza.

Depende de nós reconciliarmos a memória de uma grande tragédia com o potencial de crescimento e de de senvolvimento do judaísmo que nos foi transmitido.

Nesse contexto, guardo o jejum em Tisha Be’av até o meio do dia. Durante esse período, estudo o texto tradi

cional do dia, o livro bíblico das Lamentações. Às treze ho ras participo de um almoço, agradecendo pelo judaísmo que nos foi passado ao longo dos anos, um judaísmo que já não sacrifica animais, nem asperge seu sangue como sinal de agradecimento ou de súplica a Deus.

Celebro o fato do judaísmo baseado no Templo e a classe hereditária dos sacerdotes terem sido substituídos por um judaísmo ao qual todos temos acesso e no qual nos encontramos imersos, aprendendo as lições que nosso povo colheu ao longo dos séculos: que cada um de nós use os seus talentos individuais segundo a sua própria e justa medida para tornar este mundo um lugar melhor.

Para mim, Tisha Be’av é também o dia em que come ço a me preparar para o período de introspecção que cul minará com os rituais de Rosh Hashaná e de Iom Kipur. A motivação para iniciar o processo de arrependimento sur ge do meio do livro das Lamentações. “Procuremos exa minar nossos caminhos e retornar para o Eterno!” (Lamentações 3:40).

Para os judeus progressistas, portanto, Tisha Be’av pode ser tanto um dia de luto quanto um dia de alegria. Lamentamos a destruição do Templo, mas nos deleitamos por termos criado meios fortes e resilientes de sobreviver como judeus. Lamentando as tragédias do passado come çamos a buscar e examinar o caminho a trilhar, enfrentan do o futuro com esperança e coragem.

O Rabino Stephen Lewis Fuchs é ex-presidente da WUPJ – União Mundial pelo Judaísmo Progressista.

Traduzido do inglês por Beatriz Torres, intérprete de conferências e tradutora. Membro da Associação Internacional de Intérpretes de Conferência, da Associação Profissional de Intérpretes de Confe rência e do Sintra – Sindicato Nacional de Tradutores.

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a linguagem corporal e a oração de i srael

O ser humano é reconhecido como um ser autônomo e livre. Parte justamente da sua liberdade a decisão de rezar, sem imposição de ninguém. É assim que homens e mulheres afirmam sua vontade de pertencer e o desejo de fortalecer o vínculo que os une como comunidade ao mistério do transcendental.

Especialistas em comunicação afirmam que grande parte do que dize mos é transmitido pelas nossas posturas corporais. O corpo tem sua própria linguagem e, quando falamos, não só tem importância o que dizemos, mas, principalmente, como dizemos.

Acredito que parte disso se manifesta nas características básicas que dão en quadramento à oração mais importante da liturgia judaica: a Amidá. Três ve zes por dia, nós, judeus, rezamos as dezenove bênçãos que compõem esta ora ção milenar. Se tivermos um minian, leremos em silêncio e depois ouviremos a repetição em voz alta, porém se estivermos sozinhos somos convidados a pe gar o sidur e encontrar uns minutos a cada dia para nos conectarmos com nos sos textos e tradições, engajados em um diálogo transcendente com o Eterno.

Porque a Amidá é justamente isso, um diálogo. Apresentamo nos humil des perante o Santo, bendito seja, sabedores das nossas falhas, porém orgulho sos de podermos travar uma conversa íntima e pessoal com o criador do uni verso. Nesse contexto, portanto, não só devemos prestar atenção às palavras, mas também à forma como nossos sábios entenderam que deve ser vivido o momento da Amidá.

Em primeiro lugar, a Amidá deve ser recitada de pé. Exceto se a pessoa esti ver fisicamente impossibilitada de fazê lo, a reza central da oração judaica nos solicita permanecermos erguidos. De fato, em hebraico a palavra Amidá signi fica justamente estar de pé. Contudo, estar em pé não é um sinal de arrogân

rabino Joshua Kullock
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cia. Muito pelo contrário, somos aconselhados a elevar o espírito, enquanto nosso olhar se dirige para baixo, na di reção do chão.

O que a tradição judaica nos quer ensinar quando es tabelece que a Amidá seja recitada de pé é que esse ato está relacionado com aquilo que citávamos anteriormente em relação ao diálogo. A Amidá é, antes de tudo, um espaço de encontro, onde ambas as partes – o homem e o Eterno – se procuram e se necessitam.

Diferentemente de outras tradições religiosas, aqui não há exigência de submissão como o primeiro ato de fé, mas o desejo de conexão. O ser humano é reconhecido como um ser autônomo e livre. Parte justamente da sua liberda de a decisão de rezar, sem imposição de ninguém. É assim que homens e mulheres afirmam sua vontade de pertencer e o desejo de fortalecer o vínculo que os une como co munidade ao mistério do transcendental.

Silêncio e enraizamento

Mesmo assim, nossos sábios nos ensinam que a Amidá deve ser recitada silenciosamente. Isto atende a vários fins. Por um lado, a meditação silenciosa nos dá oportunidade de acrescentar orações pessoais ao texto base proposto por nossos rabinos, permitindo, assim que a oração espontâ nea possa acompanhar o momento de recitação comunitá ria. Por outro, o fato da Amidá ser recitada silenciosamente nos lembra que a oração é uma atividade intransferível. Se nós não fizermos isso, ninguém o fará por nós. Enquan to no ato de rezar em voz alta podemos deixar outras pes soas cantarem por nós, na hora da Amidá a responsabili dade não pode ser delegada. Desta forma, afirma se o ca ráter democrático do judaísmo e torna se evidente a forte ênfase no compromisso de cada pessoa individualmente.

Por fim, ao proferir a Amidá a pessoa deve voltar se na direção de Ierushalaim/Jerusalém. Assim, independen temente de onde estivermos, nos unimos como judeus, orientando nossos corações para um mesmo lugar. Esta ca

pacidade de manter o povo unido, apesar da dispersão ge ográfica, contribuiu, sem sombra de dúvida, para a conti nuidade da nossa tradição. Antes que o mundo tivesse se tornado globalizado, nós, judeus, nos encontrávamos enraizados na terra comum, que foi transformada em anseio de tempos melhores. Jerusalém, consequentemente, não é só um lugar físico, mas também o símbolo de um estado de superação. É o centro que nos equilibra e é sinônimo de uma humanidade que deve estar comprometida com a busca de shalom, paz.

Conclusão: A linguagem corporal da nossa oração mais importante nos encontra de pé, nos abrindo para um diá logo eterno com a transcendência, no silêncio que nos in terpela a participar de uma atividade intransferível e que volta nossos corações para Ierushalaim, a fim de nos unir mos como povo na tarefa cotidiana de fazer deste mundo um lugar melhor.

Portanto, agora que já falamos do enquadramento físico que serve como a chave que abre um pentagrama mu sical, estamos convidados a tirar alguns minutos de nos sa jornada, abrir um sidur e começar a recitar as notas de uma tradição que, baseada em acordes consagrados por ge rações de judeus, também espera de nós a improvisação de maravilhosas melodias.

Rabino Joshua Kullock foi diretor-executivo da União Judaica das Congregações da América Latina e Caribe. Ele serviu na Comuni dade de guadalajara. Foi ordenado pelo Seminário Rabínico Latino -Americano em Buenos Aires e se formou pela Universidade de Hai fa, com Mestrado no Instituto Schechter de Estudos Judaicos em Je rusalém. A partir de agosto, passará a ser rabino na Sinagoga West End, em Nashville, no Estado do Tennessee, EUA. Twitter:(@kullock)

Traduzido do espanhol por Beatriz Torres, intérprete de conferências e tradutora. Membro da Associação Internacional de Intérpretes de Conferência. Membro da Associação Internacional de Intérpretes de Conferência. Membro do SINTRA - Sindicato Nacional de Tradutores.

significado das rezas

o inverno de nossa (des)esperança

NaLíbia libertada de um ditador sanguinário sanguinariamente assassinado, um filme fajuto e imbe cil leva ao sanguinário assassinato de um diplomata americano; para isso foi libertada a Líbia?; no Egito que julgava um ditador deposto e preso, é depos to um democraticamente eleito, provan do que eleger democraticamente não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida da democracia, e que a demo cracia não se esgota na vontade das maiorias; na Síria não se sabe o que será pior, a manutenção de um ditador e opressor aliado do islamismo radical do Irã e do Hezbolá ou a tomada do poder por revolucionários que contam entre eles com islamistas não menos radicais, aliados da Al Qaeda e outros grupos sectários, de quem não se sabe o que esperar; em nome da revolução contra um ditador tudo é aceitável?

Numa das mais sólidas democra cias islâmicas, o poder conferido pela democracia alimenta um autoritarismo que, segundo muitos turcos saudosos de Ataturk, se baseia na ideia de aban donar a inserção no mundo ocidental para reconstruir um império otomano

fundamentado no Islã radical; a vitória eleitoral de Erdogan lhe confere esse direito?

Em Israel, um animador empate en tre as tendências moderadas e conser vadoras nas últimas eleições ainda não impediu um ministro de se achar no di reito de ignorar a voz de metade da so ciedade para declarar que a solução de dois Estados está morta; um governo de coalizão, ou qualquer de seus minis tros tem tal direito?

No Irã, diz-se, venceu um moderado, e como o regime direcionado por aiato

lás é islâmico radical, poder-se-ia dizer que foi eleito um ‘radical islâmico mo derado’. Na configuração atual do mun do esse paradoxo não é um absurdo.

Tudo indica que as fronteiras formais dos ‘ismos’ e dos grandes grupos (so ciais, econômicos, nacionais, políticos, sexuais, religiosos) parecem estar ce dendo ao chamamento de pessoas por causas não necessariamente ideológi cas, muitas delas causas ad hoc, ado tadas coletivamente, ou pessoalmente.

O indivíduo como tal ganhou um po der imenso de arregimentação em seu

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cócegas no raciocínio (Continua)

teclado no computador ou no dispositi vo móvel. Aliás, tudo é móvel, o amanhã não é a consequência natural do on tem, porque em minutos se criam cha mamentos – reais ou virtuais –, con vocações, protestos, sem se saber ao certo aonde levarão.

A volatilidade e imprevisibilidade desses processos são tais, a dúvida que suscitam na relevância de ideias e de ideais que se expressem em ideolo gias é tal que, não como paradoxo (de novo), mas como imposição necessá ria, já se sente a necessidade de se en contrar, sim, uma direção, uma intenção estruturada, o que se chamava não tão antigamente de ‘ideia’, ‘ideologia’, ‘linha política’, mesmo que os agentes des sas ideias não sejam mais os mesmos, nem sejam os mesmos os tipos de ins tituição e de arregimentadores.

Vimos isso no fim de outono e início de inverno brasileiros, exemplo claro, no momento em que escrevo, de que, como dizem os estrategistas de plan tão, certos processos sabe-se como começam (ou como começar), mas não como acabam (ou aonde são conduzi dos). A multidão ao mesmo tempo har mônica e dissonante das palavras de ordem, das causas, dos cartazes, dos lemas proclamados e entoados, têm certamente um caldo social de protes to das massas (no sentido de ‘todos’), de vontade de futuro, de cobrança do que lhe é justamente devido, mas car regam em sua espontaneidade, em seu anarquismo bem intencionado, em sua multiplicidade, as brechas que favore cem a implantação, só por ser contrá rio ao poder violento (leia-se: desman do, corrupção, descaso, oportunismo, fisiologismo etc., etc., etc. [sem limite para os etcs.]) das instituições legais, de um poder igualmente violento, que

não se expressa somente no vandalis mo dos saques e da destruição, mas, principalmente, na sutil substituição de uma estrutura predatória por outra, como sempre em nome da democracia. Lemas são cooptados e os violentos de ontem podem se apresentar como os redentores de hoje.

Por isso, embalados na força positi va dos protestos e das reivindicações, que começam com preço de passa gem de ônibus ou com a corrupção ou o fisiologismo dos políticos e tantas ou tras causas no Brasil, ou com o pre ço abusivo do queijo cottage ou das moradias em Israel, com a destruição de uma praça na Turquia, com a trucu lência de Wall Street nos Estados Uni dos, com o desemprego, com a ho mofobia, com regimes árabes totalitá rios, é preciso, sem cair na esparrela das corporações que cooptam insatis fações para se tornarem elas o poder, conduzir essa onda moralizadora na di reção em que o protesto se transforme numa realidade do dia a dia, com base numa visão estrutural de justiça e de convivência, não como lema, mas como substrato do pacto social e da paz in terna e externa.

Para o Brasil, significa uma demo cracia que não se esgota no direito de escolher representantes do povo que façam a lei e que governem, mas que exige que o façam realmente no inte resse de seus representados. Para os movimentos ditos primaveris do Orien te Médio, significa que a democracia não se realiza com a livre eleição de radicais e a imposição de sua vonta de em terrenos nos quais são as op ções das vontades de indivíduos e de grupos que devem prevalecer, e que o cidadão, todo cidadão, é o objetivo, e não o meio, de qualquer governo.

Tanto mais em Israel, eleito pelos antissemitas declarados ou não, e não por acaso, o sucessor do povo judeu como o pária da humanidade, único país no qual a legitimidade ou não das escolhas de um governo é confundida com a legitimidade ou não da existên cia do país, único país cuja destruição consta explicitamente na agenda de or ganizações e países vizinhos, país cuja razão de ser e cujas responsabilidades se estendem além de seus cidadãos, judeus ou não, para todo o povo do qual é o Estado nacional; tanto mais, portanto, em Israel, o protesto e a mo bilização pelo preço do cottage e das moradias certamente não podem esgo tar a agenda das reivindicações por um futuro melhor.

Que se mirem nos milhões de brasi leiros (somados em todos os dias, mais do que a população de Israel) e saiam às ruas para exigir de seus governantes um futuro melhor, uma paz de compro misso (sem descuidar da segurança), justiça social, identificação com o povo judeu e com todos os seus cidadãos não judeus, afinal, em busca do Esta do sonhado pelo sionismo, que não foi uma utopia, e não precisa ser agora.

Qualquer que seja a estação do ano.

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cócegas no raciocínio (Continuação)

Há mais de um caminho para ser judeu

Associacão Religiosa do

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Israelita
Rio de Janeiro Aqui, todo judeu encontra seu judaismo www.arirj.com.br +55 21 2156-0400 WORLD UNIONFOR PROGRESSIVE JUDAISM Próximo está o Eterno de todos que O buscam, de todos que O buscam com sinceridade. Salmo 145:18

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