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Paulo Geiger
o inverno de nossa (des)esperança
paulo geiger
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Na Líbia libertada de um ditador sanguinário sanguinariamente assassinado, um filme fajuto e imbecil leva ao sanguinário assassinato de um diplomata americano; para isso foi libertada a Líbia?; no Egito que julgava um ditador deposto e preso, é deposto um democraticamente eleito, provando que eleger democraticamente não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida da democracia, e que a democracia não se esgota na vontade das maiorias; na Síria não se sabe o que será pior, a manutenção de um ditador e opressor aliado do islamismo radical do Irã e do Hezbolá ou a tomada do poder por revolucionários que contam entre eles com islamistas não menos radicais, aliados da Al Qaeda e outros grupos sectários, de quem não se sabe o que esperar; em nome da revolução contra um ditador tudo é aceitável?
Numa das mais sólidas democracias islâmicas, o poder conferido pela democracia alimenta um autoritarismo que, segundo muitos turcos saudosos de Ataturk, se baseia na ideia de abandonar a inserção no mundo ocidental para reconstruir um império otomano fundamentado no Islã radical; a vitória eleitoral de Erdogan lhe confere esse direito?
Em Israel, um animador empate entre as tendências moderadas e conservadoras nas últimas eleições ainda não impediu um ministro de se achar no direito de ignorar a voz de metade da sociedade para declarar que a solução de dois Estados está morta; um governo de coalizão, ou qualquer de seus ministros tem tal direito?
No Irã, diz-se, venceu um moderado, e como o regime direcionado por aiatolás é islâmico radical, poder-se-ia dizer que foi eleito um ‘radical islâmico moderado’. Na configuração atual do mundo esse paradoxo não é um absurdo.
Tudo indica que as fronteiras formais dos ‘ismos’ e dos grandes grupos (sociais, econômicos, nacionais, políticos, sexuais, religiosos) parecem estar cedendo ao chamamento de pessoas por causas não necessariamente ideológicas, muitas delas causas ad hoc, adotadas coletivamente, ou pessoalmente.
O indivíduo como tal ganhou um poder imenso de arregimentação em seu
(Continua)
(Continuação) teclado no computador ou no dispositivo móvel. Aliás, tudo é móvel, o amanhã não é a consequência natural do ontem, porque em minutos se criam chamamentos – reais ou virtuais –, convocações, protestos, sem se saber ao certo aonde levarão.
A volatilidade e imprevisibilidade desses processos são tais, a dúvida que suscitam na relevância de ideias e de ideais que se expressem em ideologias é tal que, não como paradoxo (de novo), mas como imposição necessária, já se sente a necessidade de se encontrar, sim, uma direção, uma intenção estruturada, o que se chamava não tão antigamente de ‘ideia’, ‘ideologia’, ‘linha política’, mesmo que os agentes dessas ideias não sejam mais os mesmos, nem sejam os mesmos os tipos de instituição e de arregimentadores.
Vimos isso no fim de outono e início de inverno brasileiros, exemplo claro, no momento em que escrevo, de que, como dizem os estrategistas de plantão, certos processos sabe-se como começam (ou como começar), mas não como acabam (ou aonde são conduzidos). A multidão ao mesmo tempo harmônica e dissonante das palavras de ordem, das causas, dos cartazes, dos lemas proclamados e entoados, têm certamente um caldo social de protesto das massas (no sentido de ‘todos’), de vontade de futuro, de cobrança do que lhe é justamente devido, mas carregam em sua espontaneidade, em seu anarquismo bem intencionado, em sua multiplicidade, as brechas que favorecem a implantação, só por ser contrário ao poder violento (leia-se: desmando, corrupção, descaso, oportunismo, fisiologismo etc., etc., etc. [sem limite para os etcs.]) das instituições legais, de um poder igualmente violento, que não se expressa somente no vandalismo dos saques e da destruição, mas, principalmente, na sutil substituição de uma estrutura predatória por outra, como sempre em nome da democracia. Lemas são cooptados e os violentos de ontem podem se apresentar como os redentores de hoje.
Por isso, embalados na força positiva dos protestos e das reivindicações, que começam com preço de passagem de ônibus ou com a corrupção ou o fisiologismo dos políticos e tantas outras causas no Brasil, ou com o preço abusivo do queijo cottage ou das moradias em Israel, com a destruição de uma praça na Turquia, com a truculência de Wall Street nos Estados Unidos, com o desemprego, com a homofobia, com regimes árabes totalitários, é preciso, sem cair na esparrela das corporações que cooptam insatisfações para se tornarem elas o poder, conduzir essa onda moralizadora na direção em que o protesto se transforme numa realidade do dia a dia, com base numa visão estrutural de justiça e de convivência, não como lema, mas como substrato do pacto social e da paz interna e externa.
Para o Brasil, significa uma democracia que não se esgota no direito de escolher representantes do povo que façam a lei e que governem, mas que exige que o façam realmente no interesse de seus representados. Para os movimentos ditos primaveris do Oriente Médio, significa que a democracia não se realiza com a livre eleição de radicais e a imposição de sua vontade em terrenos nos quais são as opções das vontades de indivíduos e de grupos que devem prevalecer, e que o cidadão, todo cidadão, é o objetivo, e não o meio, de qualquer governo.
Tanto mais em Israel, eleito pelos antissemitas declarados ou não, e não por acaso, o sucessor do povo judeu como o pária da humanidade, único país no qual a legitimidade ou não das escolhas de um governo é confundida com a legitimidade ou não da existência do país, único país cuja destruição consta explicitamente na agenda de organizações e países vizinhos, país cuja razão de ser e cujas responsabilidades se estendem além de seus cidadãos, judeus ou não, para todo o povo do qual é o Estado nacional; tanto mais, portanto, em Israel, o protesto e a mobilização pelo preço do cottage e das moradias certamente não podem esgotar a agenda das reivindicações por um futuro melhor.
Que se mirem nos milhões de brasileiros (somados em todos os dias, mais do que a população de Israel) e saiam às ruas para exigir de seus governantes um futuro melhor, uma paz de compromisso (sem descuidar da segurança), justiça social, identificação com o povo judeu e com todos os seus cidadãos não judeus, afinal, em busca do Estado sonhado pelo sionismo, que não foi uma utopia, e não precisa ser agora.
Qualquer que seja a estação do ano.
