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Rabino Dario E. Bialer

má nishtaná ha laila haze? as perguntas de david hartman

Quem pensa que unicamente “essas” são as palavras de Deus e não “aquelas” está abandonando o espírito interpretativo do Talmud. No judaísmo, cada pessoa tem pleno direito a formar sua própria opinião, pois uma tradição viva é exatamente o oposto da obediência cega.

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rabino dario e. Bialer

Dias atrás nasceu a minha filha Laila e, desde sua chegada, tudo tem um novo significado. Imagino que durante um bom tempo, cada prédica, cada texto e cada aula que eu prepare terão o seu nome em algum lugar. Daí o título dessa matéria: Má nishtaná ha Laila haze? De todas as “Lailas”, o que tem de especial essa Laila?

Essa Laila, que representa para mim tudo o que existe de especial e verdadeiro no mundo, é a noite em que coincidentemente a tradição de Israel coloca sua semente de eternidade na redenção do Egito e o início do caminho à liberdade.

Esse momento de sublime transcendência na história dos filhos de Jacó, em que aprendemos a tratar os humanos com humanidade, exercendo a justiça com o indefeso e a solidariedade com o carente; nessa noite fugimos da ignorância e viajamos ao encontro da Torá, estabelecendo um pacto de valores éticos que tem como único fim abraçar a vida. É nessa noite, na qual nos perguntamos o que há de essencial e o que de supérfluo, que eu conheci o rabino David Hartman z’l, um dos pensadores mais brilhantes do século 20. Foi numa palestra sobre Pessach que ele me cativou para sempre.

Ai estava ele, um rabino ortodoxo, discípulo do célebre Rav Soloveitchik, dizendo que, embora se sentisse muito feliz por ser parte do povo judeu preparandose para a festa de Pessach, estava francamente entediado pela atmosfera e pela temática que o cercava.

Estou enfadado pelo tipo de conversa que escuto em torno de mim, por um nível de discurso que parece não avançar nada além da preocupação excessiva com as minúcias do ritual haláchico.

As prateleiras dos supermercados estão repletas com uma sempre crescente variedade de matzot, as famílias dedicam o fim de semana antes do Pessach lavando assoalho, toalhas, cortinas e lençóis (me pergunto como esses tecidos podem não ser kasher le Pessach, visto que nunca os vi comendo pão) e até mesmo lavando de novo montanhas de roupas. Todos falam sobre limpeza, receitas e kasherut: Você segue o costume ashkenazi de não comer kitniyot [arroz, milho, soja, feijão, etc.] ou você segue o costume sefaradi? Você tem que comer matzá shmurá [preparada sob supervisão estrita] para cumprir com a mitsvá na noite do seder? E qual a quantidade exata de matzá que você deve comer para completar a mitsvá?

Nada disso responde as perguntas essenciais de Pessach, pois não conectam o judaísmo com o sentimento de realização ao qual anseia o ser humano.

Como ser ortodoxo e moderno

O professor David Hartman, falecido em fevereiro em Jerusalém, cidade onde morou os últimos 40 anos de sua vida e onde criou um seminário de estudos que leva o nome de seu pai, mostrou ao israelense e ao mundo uma alternativa de fé ao establishment ultraortodoxo. Ele mostrou que se pode ser ortodoxo e moderno, com mente e alma abertas para abraçar todas as linhas do judaísmo. Essa foi a missão do Shalom Hartman Institute durante esses anos todos.

A vida inteira ele lutou para mostrar como o judaísmo é um assunto bastante sério e profundo para questionar, pensar, refletir e voltar a questionar. Assim foi até o último dia: um anárquico da Lei. Um revolucionário do espírito da Lei.

Má nishtaná ha Laila haze? O que diferencia os seres humanos? O que faz de um homem um ser excepcional, que deixa sua marca em milhares de pessoas? No dia do seu enterro, seu filho Donniel falou diante do túmulo de seu pai:

Quando eu era jovem e te acompanhava levando os livros de uma sala de aula a outra, as pessoas me falavam de como você era especial, de como você tinha transformado a vida deles para sempre.

E talvez um dos segredos desse poder, dessa capacidade de inspirar e transformar a vida de tantas pessoas, seja que você não tentava compreender o mundo, mas mudá-lo.

A realidade não te definia, era só a base a partir da qual você começava a imaginar e projetar a visão de um ser humano melhor, de um judaísmo melhor e de um Israel melhor. Por isso as pessoas te admiravam e te amavam. Porque viam em você o melhor que elas poderiam chegar a ser.

E é por isso que quando uma pessoa era tocada por você, ela já não continuava sendo a mesma.

David Hartman foi um homem realmente inspirador. Um sonhador apaixonado e convicto de que todas as leis da vida judaica devem sempre ser uma opção de vida para as pessoas.

Ele viveu dentro das tradições de Israel, mas sempre olhou para fora. Declarou com veemência que a tradição judaica é importante simplesmente por ser portadora de um profundo humanismo. Essa é a sua riqueza.

Hartman a denomina “tradição interpretativa”, pois está por cima de qualquer sectarismo dogmático. Para essa tradição, o estudo, além de ser o centro de sua experiência, é uma contínua revelação que demanda ser interpretada de forma coletiva.

Por isso, a Torá se lê em voz alta e se discute em grupos, possibilitando o diálogo entre as opiniões do passado e as ideias dos mestres e alunos do presente. Todos podem expressar o que pensam e sentem com a mesma validade daqueles sábios. “O mestre, mais do que aquele que sabe, que se escolhe por sua sabedoria, é aquele que pode dar vida ao que se sabe”.1

Daí um dos grandes livros de David Hartman, A heart of many rooms, inspirado na seguinte passagem talmúdica:

As escrituras dizem: Essas palavras... aquelas palavras. Todas as palavras foram dadas pelo Senhor da Criação, abençoado seja Ele, portanto procure um coração de muitos quartos para abrigar tanto as palavras da escola Shamai como as palavras da escola de Hillel. (Talmud de Babilônia, tosefta, Sotá 7:12)2

Os muitos quartos representam como cada pessoa deve se preparar internamente para estar predisposta a uma vida com incertezas e ambiguidades, na qual todas as palavras, as que gostamos mais e as que gostamos menos, possam coexistir dentro de nós, num coração com espaço para opiniões dissímiles.

Quem pensa que unicamente “essas” são as palavras de Deus e não “aquelas” está abandonando o espírito in

terpretativo do Talmud. No judaísmo, cada pessoa tem pleno direito a formar sua própria opinião e escolher as palavras dos sábios pelos quais sente mais afinidade, pois uma tradição viva é exatamente o oposto da obediência cega.

Uma tradição viva também pode dar a uma pessoa uma perspectiva crítica sobre a realidade social contemporânea, outorgandolhe uma distância útil que a capacita para avaliar crenças e práticas vigentes. Isso dá acesso a uma visão alternativa das possibilidades humanas. Ao mesmo tempo, essa mesma tradição resulta ser objeto de desafio quando as pessoas entram em contato com novos valores e possibilidades na cultura circundante, o que, indefectivelmente, afeta suas intuições morais e suas atitudes, pois a moralidade não se desenvolve de forma abstrata afastada da realidade na que nascem e vivem os seres humanos.

Obediência e liberdade

O ser judeu está em permanente construção. E para isso deve estar ligado com o que acontece dentro e com o que acontece fora.

Quando o professor Hartman, que cresceu numa família ortodoxa em Brooklin, reivindica a tradição, ele está dizendo que o cumprimento de preceitos religiosos é importante, mas que a quantidade de mitsvot que cada um vai cumprir e como vai se apropriar das tradições é uma questão puramente pessoal.

Em termos de Heschel, se trata de uma interrelação entre a obediência a uma autoridade e teologia espiritual espontânea pessoal e livremente escolhida.3

Essa é a tensão que existiu sempre entre tradição e mudança. Toda tradição viva atravessa esses dilemas. Nem ser tão rígido para que esses valores não sejam uma opção de vida, nem que essas normas sejam apenas um carimbo na testa e não mais do que isso.

Uma das passagens prediletas de Hartman era:

Que a Torá nunca seja para ti um decreto antiquado, mas uma troca num decreto recém-emitido, feito no máximo há dois, três dias... Mas Ben Azzai dizia: nem mesmo como um decreto de dois ou três dias, senão que tenha sido emitido hoje mesmo. (Pesikta de Rab Kahana, piska 12:12)

Assim, os conteúdos se atualizam, as verdades se fle

Nós somos o produto xibilizam e a tolerância e o entendimende uma cultura na qual somos fieis à tradição to prevalecem. Assim, se torna um texto vivo que nos ensina e emociona. E talvez dessa forma se possam condensar um quando exercemos a dos pensamentos centrais do pensamenreinterpretação. Esse to hartmantiano. capital simbólico coloca Ele vê o judaísmo em termos de pacsobre as costas do to, sem por isso acreditar que esse pacto seja eterno e inalterável. Como todo bom povo de Israel uma casamento, precisa de instâncias de avacarga diferente a liação e, quando necessário, de mudança outros povos. das condições. O relato bíblico é uma primeira fase. Cheia de pactos entre Deus e muitos dos personagens emblemáticos do judaismo e da humanidade. Nessa narrativa, o denominador comum é a obediência. O pacto funciona na medida em que as duas partes o obedecem. E quando o homem não obedece, Deus se enfurece. Assim surgem as histórias do dilúvio de Noé, da destruição de Sodoma e as ameaças constantes à geração do deserto, entre outras. O segundo momento desse pacto inclui não apenas a necessidade de obedecer aos mandamentos, mas também a responsabilidade de interpretar a palavra de Deus. Essa etapa coloca o homem num plano superior. Além de cumprir a vontade divina, tem o direito de interpretar a lei e de implementála da forma que melhor entender, mesmo se isso for contra o desejo de Deus. A decisão dos homens prevalece e sobre isso sobram exemplos na Mishná e no Talmud. A terceira etapa para Hartman é o Sionismo, porque é evidente que Israel ocupa um lugar destacado em sua vida, tendo deixado a sua Nova York de nascença para construir um judaísmo alternativo em Jerusalém. Quando o judeu errante dá o passo histórico e decisivo de acabar com dos mil anos de exílio, a consciência de pacto alcança sua maior expressão de responsabilidade. Essa tradição interpretativa, que tinha tomado em suas mãos a interpretação da lei a partir dos dias talmúdicos, ainda tinha deixado em mãos de Deus o destino históricomaterial do povo. Isso muda quando os sionistas acabam com o desterro e assumem a responsabilidade de sua história. O que Hartman destaca é que só o povo do Talmud poderia outorgar ao homem tanta liberdade para continuar servindo a Deus e simultaneamente mudando as regras do

jogo. O Sionismo alterou o dogma religioso de que o messias chegará por vontade divina e com ele o retorno a Sion.

Aprender a mudar

O homem é capaz de mudar. O homem está obrigado a mudar! Em seu último livro The God who hates lies (que título brilhante! Um Deus que odeia as mentiras…) ele insta aos laicos a se aproximarem do judaísmo e aos ortodoxos a se tornarem genuinamente religiosos aceitando que devem aprender a mudar.

Eu sugiro que talvez o maior desafio ao sistema haláchico que herdamos seja a emergência de um Estado soberano no território bíblico judaico.

A realidade do Estado de Israel desafia o sistema haláchico desenvolvido em grande parte no exílio a reavaliar algumas de suas mais profundamente arraigadas atitudes e classificações.

O que significa para um sistema, desenvolvido sob condições diaspóricas de falta de poder, o confronto com as realidades da autonomia política e da força militar? Qual é a resposta haláchica apropriada para as realizações deste sonho milenar?4

Nós somos o produto de uma cultura na qual somos fieis à tradição quando exercemos a reinterpretação.

Esse capital simbólico coloca sobre as costas do povo de Israel uma carga diferente a outros povos. Israel. Não pode ser uma nação que compartilhe apenas seu destino histórico e político.

Hartman lutou por um povo judeu que deve empenharse em ser, como no passado, uma comunidade com objetivos espirituais comuns. Isso significa que a realidade israelense deve alimentar a renovação do pacto. E assim surgem as perguntas:

Será que é possível criar uma comunidade com valores compartilhados por todos? Ou será que devemos nos conformar com que o único sentido da união entre todos os judeus se limite à luta pela sobrevivência?

Hartman já não está entre nós para responder esses questionamentos, mas nos deixa seu singular aporte a essa maravilhosa tradição interpretativa para elaborarmos nossas respostas.

Notas

1. Calles, Roger, prólogo a La tradicion interpretativa. Ed. Altamira, 2004. 2. Hartman, David. A heart of many rooms. Ed. Jewish Lights, 1999. 3. Ver Heschel, A. J. O problema da polaridade em Deus em busca do homem. 4. Hartman, David. The God who hates lies. Confronting & Rethinking Jewish Tradition, 2011.

O rabino Dario Ezequiel Bialer serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Aires, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém.

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