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Rabino Sérgio R. Margulies
o milagre e a mitsvá
rabino sérgio r. margulies
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“Tudo isto se assemelha, para vós, com um documento selado que homens entregam a alguém que sabe ler, pedindo: ‘Rogo-te, lê isto para mim’, e recebem por resposta: ‘Não posso, porque o documento está selado’. E o documento é entregue a alguém que não é versado, dizendo: ‘Por favor, lê isto’, e lhe respondem: ‘Não sei ler’.”
(Profeta Ieshaiahu/Isaías 29:1112)1
“Nós guardamos o Livro por milhares de anos e ele tem nos guardado.” (David Ben Gurion, 18861973)
O livro
Contase que, aflito com o destino de seu domínio, um imperador perguntou a seu assessor se ele acreditava em milagres. Diante da resposta positiva pediu uma prova da existência dos milagres ao que prontamente o assessor afirmou: ‘Os judeus!’
A existência judaica pode se situar na esfera dos milagres tanto por superar as previsões de seu desaparecimento quanto por sua contribuição para o bem da humanidade. Este milagre é fruto do valor atribuído à educação e ao estudo. Neste sentido, o livro – como fonte de conhecimento – tornase o elemento central da vida judaica.
O próprio culto religioso do shabat e das festividades gira em torno da leitura e aprendizado de textos dos livros bíblicos. Para a tradição judaica “o livro é o mais prazeroso dos amigos... contém palavras antigas e novas, o passado e o presente. Fala dos mortos e conta muito da vida. É um amigo que deO livro estudado não é um objeto. É uma voz. A voz da tradição representada por contínuas gerações que já estudaram e permanecem estudando. Um diálogo se estabelece. Não basta reverenciar a Torá, é preciso dar a ela relevância, o que acontece através da conversa proporcionada pelo estudo.
senvolve seu talento”, (Abraham ibn Ezra, 10981164).
Ser judeu é um ato de escolha. Mesmo quem recebe a condição judaica de seus pais necessita escolher. A escolha requer conhecimento. Em nossas orações diárias afirmamos que o preceito do estudo da Torá equivale a todos os demais.2 Sem conhecimento não há como escolher. Sem escolha não há como praticar, de modo consciente, os ensinamentos religiosos. Sem estudo o religioso tornase fanático. Tornase servil seguidor de ditames alheios à sua própria existência. O conhecimento dá autoestima. Fortalece o ser. Possibilita a integridade.
O leitor
A Torá começa com a segunda letra do alfabeto hebraico, beit. A ideia é que seja uma casa – em hebraico bait, palavra de sonoridade similar ao nome da letra – convidativa. A Torá convida cada um e todos a entrar no mundo do estudo e aprendizado. Este estudo transcorre através de uma conversa. O livro estudado não é um objeto. É uma voz. A voz da tradição representada por contínuas gerações que já estudaram e permanecem estudando. Um diálogo se estabelece. Não basta reverenciar a Torá, é preciso dar a ela relevância, o que acontece através da conversa proporcionada pelo estudo.
Uma parábola conta que um discípulo percebeu seu mestre lendo seguidamente a mesma página do Talmud – livro que debate as leis judaicas – e então perguntou o motivo disso. O mestre respondeu: ‘A página é a mesma, mas eu não sou o mesmo’. A leitura cria condições para que haja uma reflexão da vida cuja jornada não é estática: mudamos com o tempo ao incorporarmos novas percepções e adquirirmos distintos ensinamentos. Assim, a palavra do livro – ainda que a mesma – entra no âmago do ser por distintos filtros perceptivos moldados ao sabor das vivências.
O diálogo leitorlivro transcorre paralelamente ao diálogo que cada um estabelece com si próprio. A palavra do livro é lida e internamente escutada a cada singular momento de modo antes não concebido. A mensagem do livro não é congelada. Uma vez que o leitor muda, igualmente se altera o significado da palavra. A estrutura dos livros de estudo judaicos é permeável a fim de que das palavras e frases sejam extraídos novos significados. As palavras da Torá são escritas somente com as consoantes, permitindo que diferentes vogais, em consequência de distintas leituras interpretativas, sejam colocadas. Ao leitor que muda e que, portanto, interpreta de maneira nova, o texto vai falando de modo diferente. Em acréscimo, o texto da Torá é lido por intermédio de uma musicalidade que dá sentido à construção das frases. De modo similar, uma vez que o Talmud não traz pontos para indicar perguntas ou exclamações, Rashi (10401105) anota em seu comentário talmúdico como o texto deve ser lido, por exemplo, com espanto ou com calma. A melodia direciona o sentido do texto. Com o tom de sua voz o leitor constrói o livro. Os livros são construídos. Não constituem mensagens impositivas. O leitor cresce, desenvolvese, aprimorase.
Cada nova geração também é um novo leitor e traz para as mesmas palavras novos significados: “Cada geração escuta na Bíblia seus próprios desejos, esperanças e pensamentos... leem o mesmo livro, e ainda assim de muitas maneiras tornase um livro diferente para cada uma delas” (Rabino Leo Baeck, 18731956).
Novos livros
Do diálogo entre leitor e livro, que propicia o emergir de novos significados às palavras, nascem livros. O ato é contínuo e permanente, pois a busca pelo sentido das palavras não congeladas causa ebulição das ideias. Estas geram palavras que compõem livros. A cada leitura, um comentário. A cada comentário, outro comentário, e assim sucessivamente, num somatório de concepções intermináveis. Um livro nunca fecha. Abrese em outro.
Inovar a Torá é considerado a realização de um mandamento religioso, sugere o rabino cabalista do século 13 Jacob ben Sheshset. A inovação não é um rompimento, é justamente a valorização da Torá: resgata sua vitalidade, não permitindo que se torne irrelevante para as vidas.
Dentro de cada livro inovador – como o Talmud – há vários livros, pois diversas opiniões são registradas. As opi
niões são distintas, frequentemente discordantes entre si. Algumas refletem pontos de vistas majoritariamente aceitos, outras minoritárias. Todas são incluídas. Isto demonstra o aspecto pluralista e inclusivo do judaísmo. Afinal, descartar uma visão em detrimento de outra é desdenhar algum leitor. Rejeitar uma posição – ainda que em desacordo com ela – pode incorrer no risco de impor o totalitarismo da ideia única. A partir dai, então, não se daria luz às novas ideias. Não tardaria em obscurecer a vida espiritual judaica. O debate murcharia. O pensar encolheria. O tolhimento prevaleceria. O anseio pelo exercício do poder recrudesceria, afinal alguém teria que decidir quais ideias abortar.
As estantes
Na profusão de inovações, interpretações, comentários e na busca de entendimento conforme cada época e lugar, várias coletâneas de pensamento surgem. Ora, referendam umas às outras, ora se opõem em suas perspectivas. Na estante judaica há espaço para todas: tanto para o racionalista Maimônides (11351204) quanto para o místico a ele contemporâneo, Nachmânides (11941270); tanto para o ortodoxo Samson Hirsch (18081888) quanto para o reformista Richard Hirsch (1926 ); tanto para o hebraísta Chaim Bialik (18371934) quanto para o escritor iídiche Scholem Aleichem (18591916), entre praticamente incontáveis outros exemplos.
Esta multiplicidade literária tem sido decisiva na vitalidade judaica. Algumas das mais dramáticas tentativas de exterminar o povo judeu – como a Inquisição e o Holocausto – foram acompanhadas da queima dos livros de estudo judaicos. Queimálos intencionava extirpar uma fonte que abastece o espírito e a mente judaicos. Queimálos, ainda mais em praça pública como nestes casos foi feito, tentava demonstrar a inocuidade do judaísmo. Não bastava, para estes detratores, queimar o judeu na fogueira e no forno, era necessário também eliminar o judaísmo e evidenciar sua invalidade. Porém, mantiveramse os judeus. Mantevese o judaísmo. Os livros continuam. Mesmo antes do advento do processo de impressão continuavam os livros. Os antigos e os novos. Os leitores prosseguem.
A biblioteca
Por vezes o convívio nas estantes judaicas foi severamente ameaçado. As bibliotecas empobrecidas. O monumental trabalho filosófico de Maimônides, O Guia dos Perplexos, foi banido no século 13. No século 16, Baruch Spinoza, em função de sua obra filosófica, foi considerado herege. No século 18, o pensamento chassídico condenado à supressão pela visão então predominante de seus opositores, o que seria o equivalente a retirar das bibliotecas judaicas textos de Baal Shem Tov (17001760). No século 20, livros de oração com liturgia baseada na formulação teológica do rabino Mordechai Kaplan (18591916) foram


execrados. Na verdade, muito antes o Talmud foi rejeitado por Karaitas (grupo que somente aceitava a literalidade da Torá) e várias de suas interpretações pelos Saduceus. Seja como for, cada um destes livros, entre tantos outros, faz parte da ampla biblioteca judaica que cresce continuamente e na qual há sempre lugar para a diversidade. E discordância.
O autor
Discordam os livros entre si. Discordam os autores entre si, bem como os leitores entre si. Também pode discordar cada leitor de si próprio. Conta uma passagem da literatura rabínica que dois rabinos eram companheiros de estudo. Um pergunta para o outro: “Por que você discorda tanto de mim?” A resposta: “Não fique chateado, frequentemente eu discordo de mim mesmo”. Esta antiga narrativa do folclore judaico adquire contornos contemporâneos conforme descreve o rabino Arthur Hertzberg (19212006). Ele era aluno do rabino Mordechai Kaplan no Seminário rabínico. Após uma apresentação, o professor demoliu cada ponto de sua exposição. Arthur então argumentou que aquilo era o que o próprio professor havia dito na última quintafeira. O professor Kaplan fitou os olhos do aluno e disse: “Mas Arthur, eu cresci desde quintafeira”. Concluiu Herztberg que o professor discordou dele somente para provar que o aluno estava errado3 .
Ou, talvez, simplesmente para fazêlo pensar. Ou talvez para sugerir que poderia mudar e ver a questão sob outro ângulo. Ou, quem sabe, a fim de prover ingredientes intelectuais para que fosse tanto leitor quanto autor. Este é o chamado judaico: ser ávido leitor e motivado autor.
O santuário
A tradição judaica ensina que cada casa é um pequeno santuário sagrado. Assim, tal como em cada sinagoga há uma Arca Sagrada que guarda os rolos da Torá, em cada lar deve haver livros para praticarmos a mitsvá (mandamento religioso) de cultivar as palavras já lidas e as que serão relidas, as já escritas e as que serão reescritas.
Notas
1. Bíblia Hebraica, Editora Sefer, D. Gorodovits e J. Frindlin, São Paulo, SP, Brasil, 2006. 2. A oração é extraída do Talmud, tratado Shabat 127a. 3. Hertzberg, A. e HirtManheimer, A., Jews: The Essence and Character of a People”, Harper San Francisco, 1998. Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
