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Rabino Sérgio Bergman
padre Jorge: meu raBino
rabino sérgio Bergman
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Como bispo de Roma, na pedra angular da herança de Pedro, foi ordenado Santo Padre nosso querido Padre Jorge. Que, como primado da Argentina, era conhecido como o cardeal Bergoglio e hoje é Francisco, o Papa de todos. Um pároco para o mundo. Um homem de serviço, intelectualmente sólido, espiritualmente elevado, exemplarmente humilde. Um homem de Deus, um pastor próximo aos pobres – a quem visitava já não só como próximos, mas como irmãos –, um ser de reflexão, de profunda oração e de ação transformadora.
Uma referência ampla à qual todos acudiam e que não se negava a receber para escutar com especial atenção todo aquele que quisesse consultálo, sem distinção. Um mestre, que era nossa referência para aprender tanto ou mais do que dizia, escrevia e pensava sobre aquilo que encarnava na ação e traduzia numa pedagogia do espírito, o ser no fazer.
Autenticidade, integridade, audácia, coerência, consistência, bondade, humildade, serviço, caridade, amor, oração, estudo, testemunho, docência, civismo, patriotismo, clamor, denúncia, verdade, coragem, exemplo. Seus valores não são somente gestos, são as firmes fundações sobre as quais se constitui, em uma nova envergadura, quem, com um perfil mais discreto, se eleva à máxima ordenação de ser um dos líderes do mundo, em quem muitos de nós já veem um novo farol, um rumo claro daquilo que este novo evangelho anuncia.
A boa nova de um tempo novo, no qual o papa Francisco será já não apenas cabeça da Igreja Católica, mas um líder para a humanidade, que espera referênQuando pude visitá-lo no Vaticano, na primeira audiência para as diferentes religiões, me apresentei dizendo: “Estou diante do Papa Francisco e me reencontro com meu rabino Bergoglio”. Propôs que orássemos juntos e compartilhamos uma bênção.
cias claras de como nos reencontrarmos na fraternidade universal, que nos restitui como verdadeira família.
Além disso, nos convoca para a reconciliação e recuperação do rumo de nos tornarmos mais humanos, revelando o que em nós há de divino, e consolidando, na unidade da diversidade, que diferentes religiões, culturas, tradições, nações são expressões singulares de um mesmo destino, que é redimir, salvar o sentido do humano e fazer do mundo um lar de todos e da humanidade. A família na qual, como irmãos, todos tornamos a nos sentar em torno de uma mesma mesa, onde a ninguém deve faltar dignidade de pessoa e possamos celebrar o banquete do bom pão e bom vinho, do terreno e do eterno, sendo construtores da ponte que une a terra e o céu.
A experiência do diálogo inter-religioso
Supero, não com pouco esforço, a emoção inicial de querer dar testemunho do muito que nos une, da amizade que cultivo no coração, do privilégio de conhecêlo e de ter tido a graça de assumílo como minha referência, guia e mestre. Assim, me refiro ao Padre Jorge, ao meu querido Bergoglio, como “meu rabino”, “meu mestre”. Quando pude visitálo no Vaticano, na primeira audiência para as diferentes religiões, me apresentei dizendo: “Estou diante do Papa Francisco e me reencontro com meu rabino Bergoglio”. Propôs que orássemos juntos e compartilhamos uma bênção.
Quando nos despedimos, voltou a me pedir, como sempre fez, que rezasse por ele. Não pude deixar de insistir em que, como Francisco, rezasse por todos nós. A divina providência intercedeu a seu favor para que ele chegasse a ser ordenado como Papa. Precisamos da mesma intervenção para que nós, argentinos, possamos voltar a ser uma nação e os seres humanos, uma fraternal família de irmãos.
Na experiência do diálogo interreligioso, aprendemos que as palavras compartilhadas são respeitosa e plasticamente traduzidas no mundo de cada interlocutor. Então, quando digo “rabino”, não estou me referindo à minha ordenação, minha formação, minhas referências no judaísmo, aos mestres da tradição rabínica, mas ao senti
Acredito que me do que o termo adquire por sua própria encontrar com um mestre como Jorge tradução na tradição dos primeiros cristãos. “Rabi” significa ‘mestre’. Portanto, me refiro à função do magistério, e, na
Bergoglio me permite minha visão, a partir do Evangelho e da reconhecê-lo como meu tradição judaica, ao rabi, enquanto mesrabi e como referência. tre, um conceito que os judeus e cristãos
Referência de quê? podemos compartilhar em relação a Jesus. Acredito que me encontrar com um
Em primeiro lugar, mestre como Jorge Bergoglio me permite referência teológica, reconhecêlo como meu rabi e como rereferência espiritual, ferência. Referência de quê? Em primeiro referência no âmbito lugar, referência teológica, referência espidas religiões. ritual, referência no âmbito das religiões. Foram muitos os que envidaram esforços nos tempos em que o diálogo interreligioso não era politicamente correto, já que um pensamento preconciliar continuava imperando para além da realização do Concílio Vaticano II. A convivência é a unidade mínima necessária para construir comunidade. Assim nos tornamos conscientemente seres sociais. Viver na situação do outro é conviver. Implica no valor de compartilhar. No livro Celebrar la diferencia escrevi que “o diálogo interreligioso é uma dimensão, uma experiência espiritual de encontro. Cada um coloca o outro num lugar de autenticidade, de integridade e de reconhecimento; enquanto outro, que é diferente nas suas crenças, expressa sua fala e eu a recebo para aprender, sem deixar de ser quem sou, nem renunciar à minha própria fala”.1 Considero importante lembrar e tornar presente àqueles que são referência das diversas religiões, porque na dimensão que terá Jorge Bergoglio como papa Francisco, esta questão será fundamental na sua agenda. Porque ele é beneficiário de uma tradição, felizmente. E estimo que eu também, porque temos mestres em comum, depois de um percurso compartilhado. Aqueles de nós que sabem quem é Bergoglio não duvidam de sobre quais bases, valores, liderança e visão podemos nos inscrever como discípulos e apóstolos para sair pelo mundo para compartilhar a boa nova. Um evangelho segundo Francisco é, para mim, um compromisso de nos somarmos ao enorme desafio no qual, sem desconhecer a própria singularidade da pertinência daquilo que é próprio da Igreja Católica Apostólica Romana, há um ho
rizonte estendido para toda a família humana.
Tive a oportunidade de conhecer pessoas que trabalham com ele, que dão conta dessa dimensão de transformação na sua forma de liderar e me permito fazer parte do grupo daqueles que foram transformados pela sua liderança. Acredito que essa liderança transformacional é um atributo geral da liderança jesuíta.
Linguagem simples e clara
Uma especial sensibilidade para saber escutar a quem precisa ser escutado e falar para orientar os liderados surpreende essa intuição para focar numa pessoa em particular e gerar uma interação e entrar no canal de vibração de cada um. Esse é um dos atributos da maneira de Bergoglio liderar. Sua linguagem simples, clara, direta, sem meias palavras nem rodeios, sem prescrever e sempre com um rumo claro para orientar, fiel à sua formação jesuíta, utilizando tanto a parábola, a metáfora ou a própria citação bíblica, que, sem deixar de lado a gíria e sua essência portenha, encontra o jeito de empregar a hipérbole onde dá a conhecer exatamente o que pensa, sente e orienta a quem tem o privilégio de se saber guiado por ele.
Quando ainda era cardeal, tinha assumido uma tarefa vocacional de “pontífice” construtor de pontes recebendo, escutando, falando com todos aqueles que a ele se referiram, afirmando coincidências e tecendo acordos assentados em bases comuns de convergência.
Já ordenado como Francisco, também demonstrou, com a generosidade que somente os grandes têm – que também na sua dimensão de estadista sabe marcar a diferença por elevação e não pela imposição como vencedor –, não reagir às misérias dos medíocres que migraram em poucas horas da desqualificação e da calúnia à fanática veneração de uma falsa conversão dos seus corações midiaticamente expostos após uma década de desconhecimento e mau trato, degradandoo à falsa categoria de “chefe da oposição”.
Somente um grande, que tem visão transcendente e exerce uma liderança jesuíta, que ainda por cima se torna franciscano, pode se conduzir sempre da mesma forma e deixar evidência, citando o Evangelho, que “ninguém é profeta na sua terra” e, como ele nos lembrou, que “Deus não se cansa de perdoar”, então obviamente ele também não.
É preciso inovar
Bergoglio chega a ser Francisco não só pela sua simpatia, seu carisma, sua linguagem simples e próxima das

pessoas, sua intelectualidade, mas porque, do ponto de vista estratégico, encarna uma mudança paradigmática. O modelo anterior está esgotado, é preciso inovar. Uma renovação baseada na engenhosidade, na dimensão heroica de agir conforme as próprias convicções, fiel à tradição dos atributos na liderança jesuíta.
Como mestre, forjou um espírito nos seus alunos e discípulos, porém não só conseguiu isso através da interação pessoal com todos aqueles que fomos influenciados e moldados pelos seus ensinamentos, mas fez escola numa tradição que se revela na trajetória das instituições que liderou. Então, todo o conteúdo se transformou em liderança. Uma forma de liderar com esse perfil discreto que lhe é característico, porém que não diminuiu o impacto de transformar a realidade na qual operava um exemplo que deixou rastro. Nem sempre foi possível antecipar como reagiria perante os novos desafios que a realidade da sociedade argentina impunha, mas a originalidade pela qual circulava não desviava a linha de conduta que o antecedia, como a coerência com os conteúdos doutrinários, espirituais e exemplares que marcavam um caminho que nos conduzia ao mesmo destino.
Um homem de Deus e dos homens. Um mestre que, refugiado na intimidade da oração e do encontro com seu interior, fortalecia a raiz de uma fé inquebrantável, que o orientava, mesmo nas tempestades das inclemências da sociedade que havia perdido o norte dos seus valores, encontrava na sua voz calada e suave a força do clamor profético de não ceder diante do poder, a mundanidade, a aparência da vaidade da soberba, mas de dizer a verdade que autenticamente permitia um meio de continuar insistindo nos valores que encontravam virtude nas ações que o tempo e o lugar requeriam, sem ser necessariamente as que as multidões seguiam, confundidas muitas vezes pelo consumo, a superficialidade dos meios de comunicação, a moda ou aquilo que demagogicamente era imposto a partir do abuso do poder, para ficar do lado dos vencedores ao invés de sustentar os princípios com fidelidade.
Sua figura não eclipsa a pessoa que ele é, mas a engrandece e a expande sem lhe roubar a naturalidade. Ampli
Bergoglio chega a fica seu ser e seu fazer numa nova escaser Francisco não só pela sua simpatia, la, que não causa distorção, mas a emoção de saber quem é e quem não deixa de ser, quando ele próprio nos pede para reseu carisma, sua zarmos “para que não se ache” (“para que linguagem simples e no se la crea”2), expressão portenha, quapróxima das pessoas, se como um antídoto necessário pelo simsua intelectualidade, ples fato de ser um argentino assumido, mas sem presunção.mas porque, do ponto Não apelamos para transformálo de vista estratégico, num mito, mas sim num arquétipo. Sua encarna uma mudança pessoa, Jorge, sua trajetória como Bergoparadigmática. O glio, nos proporcionam um recurso de remodelo anterior está ferência espiritual de valores e agora ordenado como Francisco, o estadista em esgotado, é preciso quem poderemos ter um recurso pedagóinovar. gico, didático, exemplar, para adotar durante seu papado como mestre a boa nova de sair pelo mundo fazendo igreja. Já não só para uma religião, um dogma ou a própria fé, mas numa evolução humanista de uma civilização, porque o mundo carece de uma luz orientadora de sentido, não para o que se diz, mas para o que é ensinado com o fazer. É neste ponto, como alunos e discípulos, que queremos nos assumir como novos apóstolos do seu evangelho.
Notas
1. Bergman, Sergio. Celebrar la diferencia. Unidad en la diversidad, Buenos Aires, Ediciones B, 2009. 2. Nota do tradutor: a gíria portenha usada por Bergman (que tem o sentido de “para que a pessoa não fique convencida / deslumbrada com si mesmo”) foi traduzida por uma gíria carioca de mesmo sentido. Sérgio Bergman é rabino reformista, ativista social e político argentino. Bergman serve como rabino na Congregación Israelita de la República Argentina – Cira (Buenos Aires) –, é presidente executivo da Fundación Judaica e presidente da Fundación Argentina Ciudadana. É mestre em educação pela Universidade Hebraica de Jerusalém, mestre em Literatura Rabínica pelo Hebrew Union College e mestre em Estudos Judaicos pelo Jewish Teological Seminar. Também é deputado da legislatura da Cidade de Buenos Aires. Traduzido do espanhol por Ana Beatriz Torres, intérprete de conferências e tradutora, membro da Associação Internacional de Intérpretes de Conferência, da Associação Profissional de Intérpretes de Conferência e do Sintra – Sindicato Nacional dos Tradutores.