Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 5, n° 13, Dezembro de 2010 devarim devarim Artigos dos Rabinos Sérgio Margulies e Dario Bialer Quantas Humanidades? por Raul Gottlieb Uriel da Costa por Gabriel Mordoch Bnei Anussim por Martinho Faustino Xavier Júnior Literatura, artes visuais e música: A arte judaica em três dimensões Traduzindo Amós Oz Paulo Geiger Um olhar sobre as Ketubot Leila Danziger A parceria entre Noa e Mira Awad Ricardo Gorodovitz
Conta uma lenda que quando aquele que é con siderado por muitos o maior rabino da era me dieval Rashi segurou pela primeira vez seu recém-nascido neto, Jacob ben Meir, no colo, a criança tocou com sua mãozinha o tefilin na cabeça do avô. Daí Rashi teria predito que a criança se tornaria um grande erudito e que discordaria da forma como o avô portava seu tefilin.
Eu penso que é muito forte a possibilidade desta histó ria ser uma fábula para entreter certas pessoas. Dificilmen te o avô estaria vestindo os tefilin usados na reza no mo mento em que viu seu neto pela primeira vez. Além dis so, Rashi era um excepcional estudioso e professor, e não um vidente místico. Provavelmente a lenda foi inventada para satisfazer a visão de mundo dos que não se con formam com o fato de que existem pessoas que são “sim plesmente” brilhantes e que dispensam a ajuda de poderes sobrenaturais.
Mas como toda boa lenda ela tem um fundo de verda de. Pois o neto de Rashi, que ficou conhecido para a poste ridade como Rabeinu Tam, efetivamente discordou de vá rias posições defendidas por seu avô, inclusive sobre como dispor os pergaminhos dentro dos tefilin. Até hoje existem dois modelos de tefilin: o que segue as instruções de Rashi, que é o mais usado, e o que segue as instruções de seu neto. Isto nos ensina duas coisas: por um lado aprendemos que houve uma época em que contestar assuntos rituais e re ligiosos não era considerado uma heresia desqualificadora e, por outro lado, observamos que as gerações posteriores acharam uma forma de valorizar múltiplas visões em vez de se estreitar em apenas uma.
Uma curiosidade sobre o embate intrafamiliar e trans geracional de Rashi com Tam é a mezuzá. Rashi a queria na vertical, Tam, na horizontal. Os ashquenazim a colo cam na diagonal, reverenciando ambos.
Respeitar um enorme leque de opiniões é, sem a me nor dúvida, um dos legados das gerações que nos antecederam na vivência judaica. Um dos aspectos mais caracte rísticos de nossa tradição é o fato de que a mais forte tra dição de todas é admitir novas visões e colocá-las em prá tica, conforme os anseios, as necessidades e a sensibilida de comunitária.
E Devarim se mantém fiel a esta herança. Por nossas pá ginas passaram e continuarão passando diversas opiniões e visões de judaísmo e de mundo. Nem todas refletem a po sição institucional da ARI, ou até mesmo de parte de seus membros, mas seguramente pensamos que conhecê-las e estudá-las tem valor inestimável para o nosso futuro como judeus e cidadãos do mundo.
Devarim é a prova que existe pensamento criativo ju daico-brasileiro e que estamos inseridos na grande cadeia contemporânea de judeus inquietos com o seu judaísmo, que buscam novas respostas a antigas e novas perguntas. Que não se conformam com o ditado, frequentemente fa lacioso, que “sempre foi assim” e que entendem que é nos so papel manter ativa a mente investigativa do povo ju deu ao mesmo tempo em que praticamos um judaísmo sem compromissos para com a simplificação. Somos mo vidos pelo mesmo impulso que levou Rabeinu Tam a res peitosamente contestar seu supervenerado avô Rashi sem se sentir prisioneiro de uma visão única, mesmo quando muito renomada.
Evelyn Freier Milsztajn Presidente da ari
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editorial
Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 5, n° 13, Dezembro de 2010
P R es ID ente DA ARI evelyn Freier Milsztajn
R A b I nos DA ARI sérgio R. Margulies Dario e bialer
D IR eto R DA Rev I stA Raul Cesar Gottlieb
Conselho eDI to RIA l beatriz bach, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio R. Margulies
eDI ção
Roney Cytrynowicz (editora narrativa Um) eDI ção D e A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) Paola nogueira • tainá nunes Costa
F oto GRAFIA s istockphoto.com
Rev I são D e t exto Mariangela Paganini
Colaboraram neste número: Rabino Dario e bialer, leila Danziger, Gabriel Mordoch, Martinho Faustino xavier Júnior, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio R. Margulies.
os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI.
os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.
A revista Devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br devarim@arirj.com.br Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ biblioteca virtual Devarim: www.docpro.com.br/devarim
devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.
sumário
Simples lugares com a benção do sagrado Rabino Sérgio R. Margulies 3
Hagadá, Halachá e a insensatez da fragmentação Rabino Dario E. Bialer 9
As entrelinhas da história de Israel: como traduzir Amós Oz Paulo Geiger 17
Portais, amor e júbilo: um olhar artístico sobre a Ketubá Leila Danziger 23
Deve haver algum outro caminho Entrevista com Achinoam Nini (Noa) e Mira Awad por Ricardo Gorodovitz 30
Quantas Humanidades?
Raul Cesar Gottlieb 39
Uriel da Costa, o anjo torto lusitano Gabriel Mordoch.................................................................................. 47
Os Bnei-anussim ou simplesmente anussim: provas vivas da eternidade do povo judeu Martinho Faustino Xavier Júnior 55
Em Poucas Palavras 61
Cócegas no Raciocínio Paulo Geiger 64
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s imples lugares com a benção do sagrado
“não há nada que não tenha o seu lugar” (Pirkei Avot – Ética dos Pais)
rabino sérgio r. margulies
As cavernas
Soterrados e isolados, os mineiros do Chile estavam numa caverna ca vada nas profundezas da terra pelos homens em busca da riqueza.
Foram resgatados num ato que gerou comoção mundial.
A caverna moldada pela natureza ou pela mão humana pode ser um refúgio escolhido ou tornar-se o lugar de isolamento para quem não tem outra opção senão esconder-se como o profeta Eliahu (Elias). Relata o Tanach (Bíblia) que no período do Rei Ahab (século 9 a.e.c.) foi perseguido por com bater a idolatria e escondeu-se na caverna. Se a caverna era natural, o artifício da mão humana opressora tentava soterrar suas ideias.
Também o rabino Shimon ben Iochai, a quem é atribuída a autoria do livro cabalista Zohar, perseguido no século 2 da era comum pelo Império Romano, isolou-se na caverna. A intolerante mão do império que ceifava a liberdade im pôs a ele o isolamento por anos. De modo similar há o relato de um sobrevi vente do Holocausto que se escondeu numa caverna. Ali, num esconderijo cavado pela ação da natureza, protegia-se, pois sua existência era inaceitável para a insana criação humana da ideologia nazista.
Quem resgatou estes e tantos outros que estavam escondidos nas caver nas? Não havia humanidade comovida. Ao contrário, havia humanidade co nivente.
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Os resgates
Talvez tivessem sido salvos por Adão e Eva. De acordo com uma interpreta ção judaica do texto bíblico, a expulsão deles do paraíso permitiu que se tornas sem seres humanos capacitados a enfren tar as vicissitudes da vida. O paraíso em sua representação da perfeição não retra ta a vida e tolhe o crescimento. Portanto, o paraíso paradoxalmente não é o paraíso. Fora do paraíso poderiam encontrar o pa raíso não num lugar específico, mas sim em seus corações. Ensina o dito chassídi co: “O paraíso está em nossos corações”.1 Fora do paraíso físico tinham a opção de construir um paraíso espiritual em seus corações. Deste modo, se o paraíso não era o pa raíso, a caverna inóspita talvez pudesse não ser tenebrosa desde que conseguissem encontrar por mais difícil que fosse algo em seus corações.
O paraíso em sua representação da perfeição não retrata a vida e tolhe o crescimento. Portanto, o paraíso paradoxalmente não é o paraíso. Ensina o dito chassídico: “O paraíso está em nossos corações”.
nho braços e pernas, olhos e ouvidos, mas não sei o porquê de minha existência e por que fui criado”. Rebbe Simcha Bu nam disse: “Eu também não sei, então vamos compartilhar do jantar juntos”. A parábola ensina que dúvidas eternas não são ilusoriamente satisfeitas com respostas efêmeras. O compartilhar de uma mesa de refeição é a resposta. No lugar deste encontro há presença divina.
A espiritualidade
Talvez tivessem sido salvos pela mensagem do patriar ca bíblico Iaacov (Jacob), que em sua andança repleta de tormentas adormeceu sobre um travesseiro de pedra (sím bolo da dureza de sua vida) e, ao despertar, exclama: “En tão há Deus neste lugar e eu somente não sabia” (Bereshit/ Gênesis 28:16). Com estas palavras ecoando em seus corações, conseguiram encontrar Deus até mesmo ali no isola mento imposto das cavernas.
Talvez estes e tantos que se esconderam tivessem sido salvos das cavernas por causa das tavernas. Na Europa Oriental finda a Idade Média judeus viajavam de um lu gar para outro. Rabinos visitavam comunidades, leigos iam para cidades maiores visitar os mestres, vários eram merca dores, uma vez que a atividade comercial fora a única fa cultada aos judeus na época do feudalismo, muitos fugiam de condições precárias de vida e das perseguições sistemá ticas. Para estes tantos viajantes as tavernas eram lugar de encontro e descanso nas quais se confraternizariam com outros viajantes judeus. A caverna simboliza o isolamen to e a taverna o compartilhar. No compartilhar é sentida a presença de Deus, pois é no relacionamento cultivado independentemente do lugar, até mesmo numa taverna que a presença divina se encontra.
Certa vez o rabino Chanoch procurou seu mestre Rebbe Simcha Bunam (1765-1827): “Eu estou vivo, te
A espiritualidade não é inerente ao lugar, mas brota através do vínculo estabelecido em determinado lugar. Neste sentido, pontua o rabino contemporâneo Lawrence Kushner, não há termo no hebraico clássico para espiritualidade. Como a espiritualidade não é destituída do material não há necessidade de um termo específico.2 A espiritualidade está no ato concreto do vínculo. Por isso, mesmo uma caverna e uma taverna podem ser sagradas e lá se encontrar espiritualidade.
O Templo de Jerusalém, do qual hoje resta o Muro das Lamentações, era considerado e o Muro por conse quência é considerado como o lugar sagrado do judaís mo. A sacralidade deles emerge dos vínculos passados lá constituídos que fazem parte da nossa memória coletiva e nutrem nossa dimensão espiritual.
O lugar do Templo
O Templo foi construído onde o patriarca Avraham (Abrahão) quase sacrificou seu filho Itschak (Isaac) no epi sódio narrado na Torá. O que o levou a esta atitude?
Avraham havia rompido com seu pai, Terah, vendedor de ídolos, a fim de instaurar uma fé não idolátrica. Ago ra Avraham temia o rompimento com seu próprio filho e agiu demonstrando sua força. É uma força aparente dian te do dilema interno em que se digladiam o poder de con trolar o outro e o amor de um pai capaz de entender os caminhos de seu filho. O lugar do Templo representa os con flitos internos, as emoções fracionadas e os pensamentos confusos. Ter estado no Templo hoje no Muro é depa rar-se com nossa dimensão fragmentada, nossas dúvidas e anseios para então integrar nosso ser.
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O lugar do Templo e do Muro remonta a um segundo dilema de Avraham: entre a obediência à ordem divina de sa crificar seu filho Itschak e o amor que tem a este. O lugar é sagrado porque dele emerge a percepção dos dilemas da vida, das difíceis opções que temos que fazer. A opção amparada pelas referências dos valores dos personagens de nossa religião ganha um contorno de sacralidade, pois um diálogo que rompe a solidão da deci são é estabelecido.
A espiritualidade não é inerente ao lugar, mas brota através do vínculo estabelecido em determinado lugar.
Não há termo no hebraico clássico para espiritualidade. Como a espiritualidade não é destituída do material não há necessidade de um termo específico. Ela está no ato concreto do vínculo.
O Templo também foi o lugar em que o terceiro patriarca do povo judeu, Iaa cov (Jacob), teve o seu sonho. Segundo a interpretação da tradição oral judaica, o Templo foi transportado para o lugar em que Iaacov sonhava. A sacralidade é trans portável. No lugar em que estamos po demos construir um templo que seja a casa de nossos so nhos. Por isso, mesmo com a estrutura física do Templo destruída pelos babilônios, os profetas bíblicos afirmaram que nossas comunidades e nossos lares são como peque nos templos meat mikdash –, lugar em que vínculos po dem ser construídos tornando-se sagrados.
O ritual e a mensagem do Templo
No solene Dia do Perdão, o Iom Kipur, o Cohen hagadol (Sumo Sacerdote) entrava num recinto dentro do Templo de Jerusalém que somente ele, e uma única vez por ano, poderia entrar para proclamar o nome divino. O Cohen ha-gadol tinha em sua cintura amarrada uma cor da para que a comunidade pudesse resgatá-lo do recinto exclusivo. A espiritualidade não estava no êxtase do Co hen ha-gadol, mas sim na proteção comunitária através de seu resgate. A espiritualidade é o vínculo que une a comunidade ao seu líder religioso sem o qual o Cohen ha-ga dol ficaria isolado, simbolicamente soterrado. Ao ser res gatado, pôde cumprir sua missão e pôde proclamar a santidade do seu ato.
No ano 70 da era comum, o Templo que havia sido restaurado foi destruído pelos romanos. O desespero foi atenuado pela força de uma nova mensagem. Expulsos, os dispersos poderiam levar a mensagem da Torá para os
quatro cantos do mundo. O sagrado era a mensagem cultivada neste Templo.
O paradigma de valorizar a mensa gem remonta ao recebimento da Torá no Monte Sinai após o povo de Israel ter fu gido da escravidão do Egito antigo. As pi râmides cultuadas no Egito são imóveis; a Torá é móvel. A pirâmide aponta para cima indicando que o sagrado é acima, a Torá veio do Monte, demonstrando que o sagrado é na Terra. A pirâmide é fecha da; a Torá é um rolo a ser aberto e estuda do: o sagrado está para ser construído. A pirâmide é do faraó. A Torá é do povo. O sagrado está na relação que o povo estabe lece através do estudo da Torá.
O novo Templo
O renascimento do sionismo no século 19 resgatou o sonho milenar judaico de criar em seu antigo lar a Ter ra de Israel o novo Estado. Surgiu em 1903 a proposta de fornecer um território como refúgio a judeus persegui dos naquele período na região da Uganda. Esta proposta foi rejeitada, mas por que não aceitá-la, afinal o lugar não é sagrado e sim o que nele se faz? Exatamente por isto: na Terra de Israel, e não em outro lugar, o povo judeu tem presença ininterrupta. Descartar este vínculo é como ar rancar a raiz de uma árvore, rompendo o vínculo de sa cralidade com a terra que dá esteio ao Estado na época a ser estabelecido.
Nos anos prévios ao estabelecimento do Estado seto res religiosos ortodoxos criticavam os pioneiros de orien tação socialista. O rabino-chefe daquele período da Ter ra de Israel, Avraham Kook (1865-1935), disse que o trabalho dos pioneiros no dreno das terras equivalia à construção do Templo sendo, assim, inquestionavelmen te essencial. O reconhecimento do valor do convívio e a complementaridade dos diferentes permitem o sagrado emergir em dado lugar.
Mesmo que impedidos de visitar o Muro pelos que su cessivamente dominavam Jerusalém, o Muro continuou envolto de sacralidade ao ser a referência unificadora dos anseios das preces judaicas emitidas de qualquer lugar do mundo. Após 1967, quando o povo judeu teve readquiri
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da a liberdade de visitar o Muro, a sacralidade foi manti da porque o Estado de Israel assegurou aos muçulmanos o direito de visitar e cuidar da Mesquita, construída séculos após o Templo e localizada ao lado do Muro.
Os lugares Daquele que é O Lugar
Um dos atributos de Deus é ha-makom, termo hebrai co que significa “O Lugar”. Fisicamente os lugares são de marcados. Geram posse. Caim, o primeiro assassino des crito na Torá, anseia a posse seu nome vem do verbo hebraico adquirir. A posse exclusiva do que é de todos po tencializa mortes. Qual o lugar daquele que se chama “O Lugar”? Todo lugar. Se fosse somente algum lugar, induziria à morte. É a tentativa de confinar Deus/O Lugar que torna a religião instrumento de poder. É a possibilidade de transcender Deus/O Lugar que torna a religião instru mento do sagrado.
Os vários lugares das cavernas às tavernas, do Templo aos santuários familiares e comunitários podem ser pre enchidos pelo sagrado. A literatura rabínica traz a seguinte imagem: Na maré alta uma caverna localizada numa mon tanha rochosa à beira-mar fica cheia, mas o oceano não fica mais vazio. Quando a maré desce, a água sai e a caverna fica mais vazia, mas o oceano não fica mais cheio. Assim, a fonte divina, em Sua infinitude, pode preencher qualquer caverna, qualquer lugar. Mas temos que perceber isto. E optar por isto. Em suas jornadas o povo judeu fez sua op ção. Que continue sendo a nossa.
Notas
1. Movimento místico judaico surgido na Europa Oriental no século 18. 2. A influência de outras culturas levou a ser cunhado no hebraico contemporâneo a palavra ruchaniut.
Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union Colle ge (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
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Ilustração de manuscrito judaico medieval; segundo Rashi, os baús devem estar cheios de livros, mas estes devem ser lidos e entendidos.
Hagadá, Halac H á e a insensatez da fragmentação
rabino dario e. bialer
Quando no final do século XIX e início do século XX a miséria e os po groms na Europa forçaram populações judaicas inteiras a se deslocar para regiões inóspitas do mundo, financiados em muitos casos pelo legendário Barão de Hirsch, começou a gestar-se uma fusão interes sante entre o judaísmo que estas populações traziam e as tradições locais.
Os primeiros a chegar à Argentina se instalaram no campo, longe das gran des cidades e, pela primeira vez na história, receberam uma parcela de ter ra para trabalhar e recomeçar suas vidas. Assim ganharam o apelido de “gaú chos judeus”.
Trabalharam com entusiasmo e começaram a prosperar economicamente. Aprenderam a preparar um bom churrasco e a tomar chimarrão, mas não se es queceram das hagadot, das lendas ensinadas por seus pais e, para muitos, a ha lachá continuava sendo a única lei válida para guiar suas vidas.
Foi assim que a congregação de uma das colônias judaicas dos Pampas se reuniu para fazer uma pergunta ao grande rabino Itzchok Spector, o gênio da yeshivá de Kovne, na Lituânia.
A consulta era se estava permitido ou não dar de beber ao gado no shabat. Como não existiam moinhos de vento, a água tinha que ser extraída de um poço, usando para isso um cavalo que puxava o balde de água.
Mas no shabat é proibido cavalgar! E também conduzir o cavalo com a cor reia. Como fazê-lo trabalhar e tirar a água, se existe a obrigação de dar descanso aos animais no sábado?
Então os gaúchos judeus, não tiveram nenhuma ideia melhor do que or denar ao seu gado que parasse de beber! Que esperasse até depois do shabat...
Para ser significativo, o estudo precisa ser um diálogo, uma discussão intensa e aberta, sem preconceitos e com absoluto respeito pela pessoa com quem estamos dialogando/discutindo.
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Mas acontece que o gado argentino é tão ignorante que não conhece a halachá! E co meçou a protestar, a mugir tão forte que atra palhava as rezas, e até a atacar as pessoas.
Contam também que as vacas mais ve lhas ficaram tão irritadas que, em sinal de protesto, não quiseram tomar água nem no domingo... As coisas ficaram muito feias...
O que fizeram? Alguns jovens decidiram tirar o pesado balde do poço, eles mesmos, sem a ajuda do cavalo, para saciar os ani mais. Até que um deles, estudioso da Torá, disse que não era possível fazer isso, pois se ria uma transgressão ainda maior...
O que não se pode permitir é que se disponha do Muro das Lamentações como se fosse uma sinagoga particular, e se prendam as mulheres por querer estudar e ler Torá. Isso em Israel hoje pode ser punido com a prisão numa delegacia.
Conseguiram finalmente que Avraham Rozenfeld redigisse em hebraico a pergunta ao Rebe Itzchok, pe dindo, indiretamente – é claro –, que encontrasse um jeitinho de dar uma autorização rabínica para quebrar o sábado e dar de beber aos animais, para que tudo voltasse à normalidade.
Enviaram a carta e meses depois chegou a esperada res posta.
Novamente toda a congregação se reuniu, abriram o enve lope com cuidado e, com entusiasmo, viram o selo da yeshivá da Lituânia e reconheceram o nome do grande rabino que as sinava, mas não tinha mais nada! O papel estava em branco!
Desesperado, quem tinha a carta em mãos mudou de óculos e aí, com alívio, descobriu seis palavras! Apenas seis pala vras que responderiam todas as suas dúvidas e que foram de claradas em voz alta diante de toda a congregação:
“Por favor, não façam perguntas estúpidas...”
Eu escuto essa história (que, acreditem, é verídica! Aconteceu na Colonia Mauricio em Entre Ríos, Argen tina, fundada em agosto de 1889, e foi escrita pelo escri tor idischista Marcos Alpersohn1) e sinto uma mistura de sensações. De um lado, o relato engraçado, absurdo, e, de outro lado, a preocupação por preservar as leis, coisa que eu respeito enormemente, mas, junto com isso, a estupidez de que a observância da lei se sobreponha ao espíri to da própria lei.
Se para preservar o descanso do animal no sábado vamos lhe proibir que beba ou que se alimente até provocarlhe a morte, mas, aí sim, uma morte perfeitamente halá chica, pois o shabat não foi transgredido, então ou efeti vamente somos muito estúpidos ou não entendemos bem do que se trata o judaísmo!
Esse relato acontece num período histórico no qual diversas ideologias es tão se formando. De um lado a reforma clássica que não necessariamente coincide com a reforma atual e que priorizou o monoteísmo ético como essência do juda ísmo, descartando a Torá enquanto lei. Por outro lado o nacionalismo secular fez do povo de Israel sua principal preocu pação, descartando Deus, o monoteísmo e também a Torá. Já a ultraortodoxia, na sua ânsia em defender a observância da lei, enfatiza a supremacia da Torá, iden tificando-a com o Shulchan Aruch, e co locando-a acima do próprio Deus e do povo de Israel, o que leva ao condutismo religioso.2
A dialética da hagadá e a halachá
Consultar os rabinos e dedicar uma boa parte do dia e da vida ao estudo tem sido uma prática vital no judaísmo, ou, parafraseando o sociólogo Pierre Bourdieu, seu capital social mais importante. No Talmud, tratado de kedushin, nossos sábios discutem o que é mais importante: a ação ou o estudo? Rabi Tarfon responde: a ação; Rabi Akiva: o estudo. E por qual opção se inclinam nossos sábios? O estudo é mais importante, porque através dele se chega à ação. Mas esse es tudo, para ser significativo, precisa ser um diálogo, uma discussão intensa e aberta, sem preconceitos e com abso luto respeito pela outra pessoa com quem estamos dialo gando/discutindo. Caso contrário, a experiência transfor madora do estudo se converte numa transferência unidire cional de informações e explicações. Essa situação é defini da por Bachia Ibn Pakuda em seu livro Os Deveres do Co ração, do século XI, como uma atividade que forma “bur ros que carregam livros”.
A imagem do burro que carrega livros aparece pela primeira vez no Corão, Sura 63, versículo 5. No Talmud (Meguilá 28b), ao contrário, se definem estes sábios como “baús cheios de livros”, e mesmo parecendo positiva a conotação textual, Rashi, em sua interpretação sobre esta passagem, afirma que esta caracterização se aplica aos que se “encheram” de livros sem tê-los jamais entendido.
Os ensinamentos mishnaicos e talmúdicos e, funda mentalmente, todos os livros que posteriormente interpre
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Porta da Sinagoga Eliahu Hanavi, na parte antiga de Jerusalém; segundo nossos sábios, o estudo é mais importante do que a ação, porque através deste se chega à ação.
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tam o Talmud (em sua imensa maioria, o Talmud da Babilônia) transmitem hagadot e halachot. A hagadá é uma lenda que procura transmitir um significado e nos inspirar a pensar e a sentir de determinada forma. A halachá não se preocupa com esse tipo de mensagens; ocupa-se em deter minar a práxis a ser aplicada para a vida do indivíduo e da comunidade. Hagadá e halachá são categorias que convi vem no judaísmo há dois mil anos. Gostaria de dizer que de forma complementar, mas infelizmente muitas vezes não foi isso o que aconteceu.
Graças a fatores históricos e sociológicos, as autorida des rabínicas quase sempre se apegaram mais à halachá, não só porque quase não escreveram hagadot, mas porque reiteradamente alimentaram o desprezo popular por elas.
A hagadá que aparece no Talmud, tratado Sotá (p. 40a), descreve clara e sinteticamente como as pessoas mais simples (a grande maioria do povo) simpatizavam muito mais com as hagadot, enquanto que os sábios permanen temente se ocupavam em destacar a necessidade de que a halachá prevalecesse.
Rabi Abahu e Rabi Chyia bar Aba chegaram à mesma ci dade ao mesmo tempo. Cada um dos sábios se apressou a dar uma palestra.
Rabi Chyia fez uma exposição baseada em halachá enquanto Rabi Abahu baseou-se na hagadá.
As pessoas se amontoaram em torno de Rabi Abahu e não prestaram muita atenção a Rabi Chyia, que ficou com o coração partido.
Mas Rabi Abahu o consolou com a seguinte parábola:
“Dois homens chegaram um dia a uma cidade. Um ven dia pedras preciosas e pérolas, e o outro, adornos de lantejou las. O que fez a multidão? Foi atrás do que vendia as bugi gangas, que era o que eles tinham oportunidade de comprar!”
Essa forma de pensar foi semeando a ideia de que um sábio que dedicava seu tempo a hagadá o desperdiçava, enquanto que quem interpretava a halachá estava trazen do um aporte decisivo ao judaísmo, mesmo quando clara mente a grande maioria do povo não concordava com esse critério, e talvez seja por isso que as duas, hagadá e hala chá, continuam vigentes.
Nas palavras do iluminado filósofo e rabino Abraham Joshua Heschell, a halachá representa o esforço em mol dar nossa vida conforme um modelo fixo, entanto que a hagadá é a expressão da luta incessante do homem, que com frequência desafia os moldes e as limitações. A hala chá é a racionalização da vida. Define e especifica, põe li
Ilustração medieval retratando Noé carregando sua Arca; a Halachá decreta enquanto a Hagadá inspira.
mites e impõe medidas. A hagadá reflete as relações humanas, com Deus e consigo mesmo. A halachá se ocupa com cada lei e cada mandamento. A hagadá da totalida de da vida. Uma é a lei e a outra o signifi cado da lei. A halachá é a expressão literal, e a hagadá nos introduz num âmbito que está além dos limites da expressão. A ha lachá nos dá normas para a ação. A haga dá, uma visão do propósito da vida. A ha lachá decreta enquanto a hagadá inspira.
A halachá, na hagadá israelense
Entrelaçar hagadá e halachá é um desafio antiquíssimo. Em nossos dias essa te mática é especialmente relevante, funda mentalmente em Israel aonde parecem se desvanecer as palavras proféticas de Theo dor Hertzl, “Im tirtzu ein zo hagadá – Se quiseres não será uma lenda”, diante do atropelo da halachá por uma minoria ultraortodoxa que exerce o monopólio da vida religiosa oficial, o que em Is rael tem um enorme impacto político, civil e social, sem falar do econômico. Quem é judeu e quem não é, o reco nhecimento das conversões de pessoas que vivem seu dia a dia como qualquer outro judeu, como vai ser o enter ro de seus entes queridos, como contrair casamento, tudo depende de um único, unilateral e irrecorrível tribunal rabínico ortodoxo.
Hagadá e halachá são categorias que convivem no judaísmo há dois mil anos. Graças a fatores históricos e sociológicos, as autoridades rabínicas quase sempre se apegaram mais à halachá, não só porque quase não escreveram hagadot, mas porque reiteradamente alimentaram o desprezo popular por elas.
ria nada bom que isso acontecesse. Eu, que assumo em minha vida e em meu ra binato, um critério pluralista, aceito e ce lebro com quem pensa diferente; portan to, concordo que as facções ortodoxas se jam ouvidas em Israel e expressem sua po sição, mas sem imposição!
Enquanto eu escrevo essas linhas, avança o projeto de lei de David Rotem, que procura aprofundar essa desigual dade no nível de que seja uma lei nacional. “Existe um úni co judaísmo, não três (...) e a única forma de viver é con forme a halachá ortodoxa, e não conforme a uma halachá conservadora ou reformista se é que existe tal coisa”.
Rotem não quer a unidade nacional, quer extinguir as diferenças e impor a sua verdade. Minha reflexão é que “durante dois mil anos fomos um povo sem terra e hoje não podemos nos permitir ter uma terra sem povo”. Em qualquer povo é evidente nem todo mundo pensa igual. Sem pre existem diferenças e o Estado é responsável por garan tir que todas as vozes sejam ouvidas, e as diferentes ideias devidamente representadas.
Não precisamos pensar todos de forma igual. Não se
Deve-se recuperar no moderno Esta do os valores ancestrais de Israel, de res peito, de inspiração, de férrea discussão e bastante humildade para reconhecer no outro o mesmo fervor e a mesma legiti midade para interpretar os valores da tra dição e expor as próprias ideias, na inte gração do texto com o contexto e a vivên cia na lei no espírito que só cada espírito e alma comprometida pode lhe outorgar. Israel precisa hoje de um rabinato plura lista para garantir que todas as vozes se jam ouvidas e ratificar as palavras do Tal mud: “Elu vê elu divrei elhoim chaim –Ambas as palavras – as de Hillel e de Shamai – são as pala vras do Deus vivo (ou do Deus da vida)”. Esta frase é uma referência aos ensinamentos de Rabi Aba3, que descreveu as discussões incessantes dessas duas escolas de pensamen to, até que certo dia Deus aparece como mediador, legitima a ambos, mas indica que a halachá deve ser confor me a escola de Hillel, porque os discípulos desta escola se comportavam de modo sempre amável, eram gentis, edu cados e humildes; ensinavam os pareceres de ambas as es colas e não apenas isso, mas sempre apresentavam antes o parecer do adversário.
Que bom seria recuperar esse espírito criativo! Sem a pretensão de nos sentirmos os donos da verdade ou os guardiões da lei, e, de coração e mente abertas, encarar uma discussão construtiva para um Israel mais democrá tico e um judaísmo mais significativo. Hoje essa possibi lidade se parece muito com uma hagadá, uma fábula tão bonita quanto afastada da realidade social.
Devemos insistir em integrar e manter as diferenças nos sentando ao redor da mesma mesa como nossos sábios (eles sim eram sábios!) nos ensinaram. Esse seria o ideal. Mas a realidade é que em Israel e na diáspora um grande setor da ortodoxia não aceita sentar-se à mesma mesa que reformistas e conservadores.
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Nesse caso vamos manter um rabinato ortodoxo e criar outro liberal e por que não um “rabinato” laico e deixar que os cidadãos escolham qual deles os represen ta melhor de acordo com suas crenças.
Eu aceito que eles não gostem do que eu ensino como rabino, e que não acei tem o que nossas congregações praticam. O que não se pode aceitar é a deslegitima ção do judaísmo não ortodoxo, que soma mais de 80% do povo judeu. O que não se pode tolerar é que o Estado de Israel en tregue seus cidadãos em mãos de uma mi noria com comportamentos e reações fun damentalistas. O que não se pode permitir é que se disponha do Muro das Lamenta ções como se fosse uma sinagoga particu lar, e se prendam as mulheres por querer estudar e ler Torá. Isso em Israel hoje pode ser punido com a prisão numa delegacia.
Nas palavras de Abraham Joshua Heschell, a halachá representa o esforço em moldar nossa vida conforme um modelo fixo, enquanto que a hagadá é a expressão da luta incessante do homem, que com frequência desafia os moldes e as limitações.
A halachá nos dá normas para a ação. A hagadá, uma visão do propósito da vida.
O establishment ultraortodoxo, eterni zado no poder, se parece bastante com os senhores feudais encerrados num castelo medieval, com seus dirigentes ocu pados em construir cercas e muros em vez de lares. Muros trancados com chaves, mas sem janelas. E assim parece que o espírito do judaísmo é uma prisão, e não um regozijo.
Eu acredito que não há alegria senão no entendimen to. Na compreensão de que de forma alguma a função pri mária da halachá é de restringir, negar, privar e limitar. As normas são observadas para alcançar uma existência mais nobre e mais profunda, com mais cuidado e mais sensibi lidade. Para viver uma vida mais plena e mais feliz.
Existe também a ideia de que no universo da lei a ob servância só pode ser ou tudo ou nada. Que retirando-se um tijolo o prédio todo é derrubado. Essa afirmação não está justificada nem histórica nem teologicamente. Exis tem inúmeros exemplos de normas que não contavam com a aceitação popular e foram rejeitadas, enquanto que ou tras leis foram respeitadas.
Qualquer um sabe que no judaísmo a vida é o mais importante e que, para salvar uma alma, qualquer nor ma da Torá pode ser transgredida. Isso acontece porque a alma é mais importante do que a lei. Não se deve depreciar a halachá, mas também não se deve depreciar as pes soas e suas necessidades.
E se não gostamos que alguém venha e nos fale quem é judeu e quem não é, ou que nos acusem de que não estamos sen do “suficientemente judaicos”; se acredi tamos que em nossos dias devam existir diversas propostas, pois existem múltiplas formas todas válidas de ser judeu, desde os mais dogmáticos aos livres pensado res, deve-se instalar a consciência de que o judaísmo sempre foi assim, multifacetado, mas essa vitalidade não é uma heran ça que se obtém e, sim, um compromisso que se assume. Não existem grandes segre dos. Se a continuidade do judaísmo nos pré-ocupa, vamos nos ocupar, instalando a consciência de que se pode estudar ju daísmo sem o clichê de responder sempre: “Assim está escrito”, e começar a escrever novos livros com novas ideias, para que a interpretação da lei continue sendo a ins piração de um mesmo povo com ideias diversas, e evitar continuar nos desgastando e fragmentan do com as perguntas (realmente estúpidas) de quem tem a verdade e quem tem o direito de impor a sua vontade.
Notas
1. Nasceu em Lantzroin (Rússia) em 1860 e faleceu em Buenos Aires em 24 de ju nho de 1947. Chegou a Entre Ríos com o primeiro grupo de imigrantes, financia dos pelo legendário Barão de Hirsch. Sua obra mais importante foi Colonia Mau ricio, escrita em 1922 em iídiche e traduzida ao hebraico em 1930. Vários especia listas consideram-na a melhor obra da literatura iídiche argentina.
2. O campo condutista é uma corrente psicológica nascida do impulso de figuras destacadas no estudo e na pesquisa da psicologia, entre os quais se destacam Pa vlov, Betcherev, Sechenov e Watson. Este último propõe o conductismo como sendo o condicionamento dos comportamentos humanos na formação de hábi tos. Os seres humanos representam constantemente e esta representação é a nos sa conduta. Em muitas ocasiões, alguma entidade exterior solicita que atuemos de uma determinada forma, ou somente espera que o façamos (e nós aceitamos). Estas condutas solicitadas são as que o condutismo moderno distingue das con dutas naturalmente existentes em todo indivíduo. A conduta reflexiva, por sua vez, não está incluída na conduta operante. Não se nega que hajam consciência, sensações, sentimentos, imagens e pensamentos, mas o importante é que para os condutistas estes eventos não são a causa da conduta. Neste sentido a halachá funciona como estímulo para a ação do indivíduo, independentemente de seus pensamentos e suas emoções
3. Talmud Babli, Eruvin 13b.
O rabino Dario Ezequiel Bialer atualmente serve na Associação Religiosa Israelita - ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Meyer, em Buenos Aires, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém.
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a s entrelin H as da
H istória de i srael: como traduzir a mós o z
paulo geiger
Este artigo não é de crítica literária. É o relato de uma experiência, a partir do desafio de tentar escrever em português alguns livros que Amós Oz escreveu em hebraico como Oz os escreveria se escrevesse em português. E não seria exatamente esta, afinal, a tarefa de um tradutor?
Não é uma crítica literária. É o registro dos ecos, da ressonância, das impres sões que perduram após cada ponto final de cada tradução de cada livro de Oz. Assim como a música de um concerto ao qual acabamos de assistir e que nos acompanha na saída do teatro, ao adormecermos e nos dias seguintes, as his tórias de Amós Oz nunca são apenas o produto do talento de um contador de histórias que se expressa num texto, analisável segundo os parâmetros da litera tura; mais do que isso, são causadoras de uma impressão profunda, persecutó ria, quase tão obsessiva quanto o jeito de narrá-las, e talvez por isso.
Amós Oz usa tons pastéis para pintar telas de colorido intenso. Fala do cotidiano com a naturalidade realista do próprio cotidiano, sempre hesitan do, nunca afirmando peremptoriamente; e dessas possibilidades, desse potencial de todas as coisas que ‘podem ser’, ou existir, como contraponto daqui lo que (talvez) realmente é e existe, resulta aquilo que, mesmo ‘sendo’, nun ca é definitivo, nunca é o ponto final, e nem mesmo o ponto final de cada li vro é o fim da(s) história(s) que conta. E esse cotidiano trivial, em que o que existe é o ponto de partida de outras possibilidades, é que é, afinal, a grande
Amós Oz usa tons pastéis para pintar telas de colorido intenso. Fala do cotidiano com a naturalidade realista do próprio cotidiano, sempre hesitando, nunca afirmando peremptoriamente.
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aventura, o colorido desenhado em pastéis, o drama e a comédia (desde a fina comédia das ironias até a mais grotesca, tipo pastelão).
Em Rimas da vida e da morte, algu mas horas da noite de um escritor e dos personagens reais que encontra a cami nho de sua conferência, e durante a con ferência, transformam-se em histórias e protagonistas, a ponto de não mais ha ver distinção entre o que é história real e o que é criação literária. Em geral, o processo de um escritor é o inverso do processo do leitor. Aquele codifica a rea lidade em ficção, este decodifica a ficção como realidade.
Mas neste livro os processos se con fundem, e o leitor é obrigado a ser cúm plice do escritor nas jornadas de sua imaginação, seja na ficção, seja na reali
Sou testemunha pessoal do talento descritivo de Oz, porque também andei, como o escritor-personagem, pelas mesmas ruas de Tel Aviv em noites de verão, porque conheço o hospital Ichilov por dentro, porque testemunhei a nostalgia, às vezes irônica, de outros moods israelenses num passado não muito distante.
dade. É o romance do romance, as possi bilidades da literatura a se confundirem com as da própria vida. Tudo que acon tece nessa noite em Tel Aviv, e a partir dela na imaginação de outros momen tos de outros lugares, acontece na cabe ça e nas palavras do personagem, perso nagem que também é o narrador do que acontece consigo mesmo.
E, como em todos os livros de Oz, a paisagem, o mood do país ou de cada um de seus subcenários, seus contextos his tóricos e culturais demarcam vivamen te tudo o que acontece ou não aconte ce. Neste caso particular, sou testemu nha pessoal do talento descritivo de Oz, porque também andei, como o escritorpersonagem, pelas mesmas ruas de Tel Aviv em noites de verão, porque conhe ço o hospital Ichilov por dentro, porque
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testemunhei a nostalgia, às vezes irônica, de outros moo ds israelenses num passado não muito distante.
Em Cenas da vida na aldeia, histórias de personagens que se cruzam em seus roteiros distintos numa pequena aldeia israelense, o real e o surreal perdem qualquer fron teira divisória, o que pode ser e o que é são quase a mes ma coisa, o misterioso sobe ao primeiro plano como insi nuação de alternativas para a vida pacata dos habitantes da aldeia: Uma vez mais, drama e comédia, medo e esperan ça, amargura e amor, adesões e abandonos, surgimentos fantásticos e desaparecimentos misteriosos coexistem em todas as suas cores na rotina diária e cinzenta de Tel Ilan.
Para Amós Oz, mais uma vez, a realidade é quase uma ficção, no processo inverso da criação literária. O que não acontece pode acontecer, ou já está acontecen do, ou é só uma ilusão? Um jovem desapareceu a cami
nho de sua amorosa (e um tantinho incestuosa) tia, ou é só o medo e a solidão dela que a fazem imaginar tal coi sa? Tem alguém cavando sob as fundações da casa do ve lho e rabugento ex-líder trabalhista? Quem? O porão de uma casa será a masmorra do homem que a quer derru bar, como num conto de Edgar Allan Poe? A mulher do funcionário da prefeitura desapareceu, seria coincidên cia ele ser, a partir daí, insistentemente seguido por um cão? Teria algum futuro a paixão de um adolescente pela bela e madura bibliotecária da aldeia? Que presença se manifesta, numa noite de canto coletivo, no quarto em que um jovem se matou sob a cama dos pais? O surreal e o irreal serão apenas ângulos de visão do real?
Uma certa paz é uma história de crises. A crise de um país novo, Israel, um ano e meio antes de junho de 1967, quando enfrentaria e venceria uma tríplice alian
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o texto de Amós oz por Paulo Geiger
Depois
de traduzir para a Com panhia das Letras quatro livros de Amós Oz, refiz meu concei to de que a boa tradução consiste em expressar num bom português aqui lo que o autor expressara em sua pró pria língua. Aprendi que traduzir Amós Oz – e talvez isso valha para todo autor – é principalmente sintonizar com seus sentimentos, suas ideias e suas possí veis lembranças, entrar o mais possível em sua cabeça, seu coração e seu es tômago, e escrever em português do mesmo jeito que ele escreveria se es crevesse em português.
Em Oz isso quer dizer, muitas ve zes, relativizar ‘boas regras’, abrir mão de ‘textos redondos’ para fazê-los ás peros e angulosos, nem sempre man tê-los fluentes porque são às vezes es pasmódicos, não buscar coerência onde a incoerência é que prevalece.
Por exemplo:
Oz é repetitivo. Repete palavras, re pete situações, insiste em certos ter mos, como uma nota em baixo contí nuo; usa refrões, insiste em evocações recorrentes, porque assim acontece na vida e nas histórias que ele cria.
Oz mistura tempos verbais, o futuro
como presente e até como passado, o presente como passado, às vezes num mesmo período, fazendo lembrar o esti lo bíblico, mas sem a letra ‘vav’ inverso ra da Bíblia, que faz o futuro valer como passado. O tempo gramatical em Oz é escravo, não senhor, do tempo literá rio. Um parágrafo pode começar ten do um sujeito como relator e terminar na voz de outro.
Oz nunca se refere a quantidades definidas, é sempre dois ou três, dez ou doze, porque a quantidade exata não é importante, seus números retra tam conceitos, não quantidades.
Oz não dá importância a ‘continuís mos’, a trama não precisa ser coeren te nos fatos, só na impressão que eles suscitam. Em “Rimas”, um personagem é tio de um outro no início do livro, mas é primo no fim. Em “Uma certa paz”, uma mulher tem cabelos cortados cur tos quando descrita pela primeira vez, mas os tem em bastas tranças que lhe coroam a cabeça ‘dois ou três’ (à la Oz) dias depois. (Falei com o autor sobre o primeiro caso, ele respondeu que era proposital).
Oz usa abundantemete a metáfora explícita, a comparação de situações
com alternativas paralelas; as pessoas agem e as coisas acontecem “como que...”, “como se...”, ampliando a descri ção do ‘real’ com um substrato simbó lico ou ilustrativo do ‘possível’.
As entrelinhas de Oz são quase tão poderosas quanto as linhas escritas. Nelas habitam suas lembranças pes soais, os contextos históricos de Israel e do povo judeu, canções, poemas, le mas e slogans. Nelas se retrata a épo ca, o lugar, o mood de uma geração.
Finalmente: em Oz, quem descreve a realidade (ou a máscara da realida de, como queria o teatro grego) não é o autor, mas seus personagens. São eles que dão o tom e a direção.
Por tudo isso, muitas vezes decidi comprometer a fluência, tão necessá ria na leitura de ficção, e acrescentar notas que permitissem ao leitor pene trar no mundo não visível, mas tão pre sente na história, para usufruir do que é mais importante numa leitura, e fun damental em Oz: enxergar a totalidade do contexto, e nele ver um fragmento representativo do mundo e da humani dade. (Este texto foi originalmente pu blicado no Blog da Editora Companhia das Letras.)
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ça de inimigos e a ameaça existencial que eles representavam, e ao mesmo tempo consolidaria, com a vitória, a já em cur so transformação de seu modelo pio neiro original numa sociedade fundada nos valores capitalistas da eficiência e da competição, para desencanto dos perso nagens, que também é o desencanto do autor. A crise do kibutz, uma comunida de que se apoia em princípios de pionei rismo, coletivismo e igualdade, quando seus filhos buscam inspiração em outros modelos, comprometendo o modelo dos pais. E a crise individual de um desses fi lhos, que procura uma saída para a mesmice e a autoanulação que ele pensa lhe estar sendo imposta pela sociedade cole tivista, ao sair para uma aventura drás tica e redentora, e afinal descobrir que a grande aventura é a vida em si mesma, em seu cotidiano aparentemente cinzento, mas intensa mente colorido em suas multifacetas.
Depois de traduzir quatro livros de Amós Oz, refiz meu conceito de que a boa tradução consiste em expressar num bom português aquilo que o autor expressara em sua própria língua. Aprendi que traduzir Amós Oz é principalmente sintonizar com seus sentimentos, suas ideias e suas possíveis lembranças.
um embate mortal, uma em busca da in dependência nacional, outra decidida a não permiti-lo. Histórias de uma comu nidade de imigrantes da Europa que ain da não achou seu lugar nas agrestes pai sagens e nos costumes da Terra Prometi da, mas que a adotou irremediavelmente como pátria, inclusive porque não tem outra alternativa. Não sem sofrimento, não sem pesadelos, não sem crises internas e externas.
Oz viveu essa transição, que ele trata com grande vi gor descritivo, como sempre através da visão e das pala vras de seus personagens, entre os quais figuras tão re ais como o primeiro-ministro Eshkol, tão representativas como o líder do kibutz e de uma geração de líderes ide alistas, tão irritantes como o jovem fugitivo de persegui ções e humilhações, eco de Spinoza, e que ainda busca no kibutz a sociedade ideal, e que contrapõe seu idealis mo arrogante ao desespero suicida de seu novo amigo, o herói da história, com quem compartilha a mulher dese quilibrada num incrível, implausível, tão grotesco quan to idílico triângulo. O drama, a ironia, o trivial mistu ram-se num cenário que também é um personagem, seja na Galileia, seja nos desertos do Neguev e da Jordânia, descritos com um êxtase que certamente retrata o amor que lhes tem o escritor. E por fim, como coroamento de todas as crises existenciais, a volta à realidade, aos valo res, à simplicidade épica do dia a dia.
E em O monte do mau conselho Oz conta três histó rias de Jerusalém, pouco antes do estabelecimento do Estado de Israel, três histórias entrelaçadas, quase que uma história só. Histórias de uma cidade (e de um país dividido) entre duas populações que se preparam para
De novo misturam-se personagens quase banais com excêntricos vultos, como as irmãs musicistas, o inquilino radical, o misterioso visitante que talvez nem tivesse existido, cruzando com figu ras emblemáticas da história real, como Arthur Ruppin, o comissário inglês Alan Cunningham, Martin Buber e Agnon. Para tecer, bem à moda de Oz, a teia in trincada que abrange o real e o fantástico, o material e o simbólico, o explícito e o implícito, o ingênuo e o satí rico, como os inevitáveis opostos que formam a realida de, não só a ‘realidade’ ficcional literária, em que não há impossíveis, mas a realidade em si, onde tudo é possível.
Quanto à maneira de expressar, à forma com que con ta sua história e descreve o contexto, Oz escreve em li nhas e entrelinhas (veja o box “O texto de Amós Oz”), explícita e implicitamente, cheio de alusões históricas, li terárias e políticas, apoiado em símbolos e paradigmas, o que faz com que suas histórias se enredem em outras rea lidades, de outros tempos e lugares. Seu texto não é line ar, não respeita o continuísmo como fator de plausibili dade e realidade, às vezes é anguloso e espasmódico como aquilo que retrata; o texto é parte da história, está dentro dela, nunca é a de um narrador externo; os conflitos, as emoções, as ideias chegam ao leitor a partir dos per sonagens, e não do autor. Porque, afinal, é no autor Oz, bem como no leitor de Oz, que residem todos os perso nagens que vivem a história.
O mundo de Oz é Israel, Jerusalém, um kibutz na Ga lileia, uma aldeia nos montes de Menashe, as ruas de Tel Aviv. Ele mesmo vive à beira do deserto, em Arad. Ao des crever essas paisagens em suas histórias, vemos que nelas cabe o mundo. Este mundo e todos que talvez existam.
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p ortais, amor e júbilo: um ol H ar artístico sobre a Ketubá
leila danziger
Em 2007, a Fundação Adi Dermer, sediada em Jerusalém e dedicada a incentivar a produção artística contemporânea em contato com o judaísmo, organizou um seminário em torno da questão: Qual é a expressão judaica em arte e design? Artistas, historiadores da arte, escri tores e rabinos tentaram responder à pergunta, gerando um conjunto de textos extremamente heterogêneo e significativo da complexidade da questão. O que há em comum a todas as respostas é apenas o vigoroso e livre embate com as tradições culturais e religiosas, numa perspectiva nada dogmática, sempre atenta aos desafios do presente, e voltada decididamente para a pluralidade.
Até meados do século 20, a pouca propensão do judaísmo para as artes vi suais apresentava-se como uma verdade não contestada. A obediência ao segun do mandamento é ainda apontada por alguns como a causa de um suposto es casso desenvolvimento da visualidade na cultura judaica. No entanto, uma vi são mais atenta e desconfiada de certas alegações nos ajuda a colocar em dúvi da essa afirmação, mesmo antes do aparecimento da arte moderna, momen to em que os artistas judeus inscrevem-se no panorama mais amplo da histó ria da arte ocidental, sendo reconhecidos ao lado de artistas de outras origens culturais e nacionais.
Em um livro de título bastante provocativo O judeu sem arte1 –, Kalman Bland afirma que a falta de representações de Deus não significa que a cultura judaica não praticasse várias modalidades de artes visuais, sempre relacionadas às práticas religiosas e comunitárias. O autor diz que a propalada ausência das
As expressões artísticas judaicas guardam as marcas das migrações, da passagem pelas diversas culturas que acolheram os judeus, de modo mais ou menos feliz. Mantendo um eixo de valores tradicionais, as manifestações artísticas no judaísmo revelam um aspecto compósito, multifacetado, cuja vocação acentuada é o dinamismo, única forma de sobreviver em um mundo que lhe foi sempre hostil, em intensidades diversas, conforme o momento e o local.
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artes visuais no judaísmo é uma construção recente, que passou a vigorar somente a partir do século 18. Aliás, bas ta uma visita aos museus judaicos espalhados pelo mundo para que se desfaça a confusão entre a pouca ênfase con ferida à representação da figura humana no judaísmo e a ausência de criação plástica, claramente desenvolvida em objetos rituais, iluminuras e na arquitetura das sinagogas. Bland recusa a ideia, bastante difundida, de que os gregos desenvolveram a visão e os judeus a audição. Com ironia, afirma que os sentidos foram bem distribuídos por todos os povos e que essa distinção é o resultado de um etnocentrismo fora de moda, que simplifica imensamente particu laridades culturais.
Uma das mais belas expressões artísticas judaicas é o contrato de casamento a Ketubá –, cuja finalidade é re gulamentar as obrigações do noivo em relação à noiva e
fez surgir peças gráficas que escapam ao aspecto de mero documento. A qualidade visual destas obras não está ape nas na valorização do alfabeto hebraico, dando origem a peças de beleza abstrata, o que já demonstraria o desen volvimento de uma visualidade sofisticada e vigorosa. Nas Ketubot encontramos também a representação de diver sos motivos e temas: estruturas arquitetônicas, cenas bíbli cas, paisagens de Jerusalém, animais, guirlandas de flores, emblemas nacionais e, também, representações do júbilo e até da sensualidade dos noivos.
Uma leitura atenta de uma Ketubá não apenas no que diz respeito aos termos do contrato, mas a todos os sig nos gráficos e citações bíblicas que compõem o documento nos permite compreender boa parte das relações estabe lecidas pelas comunidades judaicas com a tradição e tam bém com a cultura do país em que se insere. Não há exage
Figura 1. Detalhe de uma Ketubá de Veneza, Itália, 1707, gravura colorida à mão sobre pergaminho.
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ro em afirmar que as Ketubot são verdadeiros compêndios de sociologia e histó ria judaica, demonstrando o alto grau de influência do mundo exterior na cultura judaica e em seus hábitos. Contudo, gos taria de refletir apenas sobre alguns aspec tos sensíveis que materializam as informa ções contidas nestas obras.
Portal
O motivo mais recorrente na Ketubá é o Portal, representado sob influências arquitetônicas diversas e emoldurando o texto do contrato propriamente dito. Vale lembrar a importância simbólica da porta no judaísmo, presente metaforicamente em diversas ora ções, e devendo ser efetivamente marcada pela palavra de Deus, contida na mezuzá. A atualidade simbólica e poé tica da porta na cultura judaica é encontrada em alguns poemas de Yehuda Amichaï, que nos oferece a experiência de um tempo adensado pela presença da tradição. A sim ples observação de um casal que bebe leite e mel na varan da de um café situado estrategicamente na Porta de Ja ffa é o que basta para que aos olhos do poeta a vida pro saica adquira nova dimensão conectada a outros portais.2
Em O judeu sem arte, Kalman Bland afirma que a falta de representações de Deus não significa que a cultura judaica não praticasse várias modalidades de artes visuais, sempre relacionadas às práticas religiosas e comunitárias.
que essa forma espiralada tenha surgido em Bizâncio, sob Constantino, e se tor nou célebre em meados do século 17, pela sua utilização por Gian Lorenzo Bernini, na construção do baldaquino, instalado no interior da Basílica de São Pedro, em Roma. Com a presença destas “colunas salomônicas” em Roma, os católicos pre tendiam afirmar, de forma visível e elo quente, a continuidade entre a Bíblia e o Novo Testamento. Percebemos então, a partir do motivo do Portal na Ketubá, uma complexa rede de transmissões entre judaísmo, cristianismo e islamismo. Somos levados assim a refletir sobre o
Na Ketubá, o Portal pode evocar a entrada em uma era messiânica, mas significa, sobretudo, o ingresso em uma nova vida iniciada pelo casamento e pode ser visto como o elemento de ligação entre o espaço amplo da comunidade e o espaço mais íntimo da família, que é fundada naquele contrato. A representação do Portal torna-se especialmen te popular nas comunidades judaicas da Itália, nos séculos 17 e 18, onde as Ketubot ilustradas adquiriram alto nível de qualidade artística, tendo sido amplamente impulsiona das pela presença dos refugiados judeus da Espanha3 Estes introduzem na Ketubá italiana o arco arquitetônico mourisco, típico da Espanha medieval, desenvolvido, como sa bemos, sob a presença islâmica na península ibérica. Con tudo, a partir de 1589, no intervalo de uma geração, estes arcos modificam-se, passando a demonstrar forte influên cia do barroco italiano, sobretudo ao ser sustentado pela coluna em espiral ascendente (fig. 1). Estas colunas são chamadas salomônicas, pois se acreditava que eram assim as colunas do templo de Jerusalém, embora hoje saibamos
Figura 2. Ketubá de Pádua, Itália, 1732, têmpera, pó de ouro, lápis e tin ta sobre pergaminho.
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que me parece ser uma das maiores riquezas e singularida des do judaísmo: a capacidade de interagir produtivamen te com diversas tradições no tempo e no espaço, assimi lando aspectos de outras culturas e influenciando-as por sua vez. Vale lembrar que na célebre Encyclopédie de Diderot e D’Alembert (século 18), o verbete dedicado aos ju deus destacava que, dispersos por entre todas as nações, eles eram de grande importância como elemento de liga ção entre os povos.4
Sendo assim, é inevitável que as expressões artísticas judaicas guardem as marcas das migrações, da passagem pelas diversas culturas que acolheram os judeus, de modo mais ou menos feliz. Mantendo um eixo de valores tradi cionais apreendidos à luz da atualidade e voltados para a valorização da vida as manifestações artísticas no ju daísmo revelam um aspecto compósito, multifacetado, cuja vocação acentuada é o dinamismo, única forma de sobreviver em um mundo que lhe foi sempre hostil, em in tensidades diversas, conforme o momento e o local.
Em meio às comunidades judaicas italianas em con tato com a produção artística barroca, encontramos al guns dos mais interessantes exemplos dessa interação sin gular. Em uma Ketubá de Pádua, de 1732 (fig. 2), vemos a conjugação de vários motivos. Ao tema do Portal, soma-
se um políptico com cenas bíblicas, os doze signos do zo díaco, guirlandas de flores, a benção dos Cohanim e uma vista de Jerusalém rodeada de montanhas, como manda o Salmo: “Assim como um colar de montanhas contorna Jerusalém, a proteção do Eterno envolve seu povo perpe tuamente” (125: 2). É interessante notar que, apesar das várias apropriações estilísticas, as imagens e os textos in tegram-se de modo único, constituindo um tecido visual de extrema singularidade e coesão harmônica, tanto sob o ponto de vista formal quanto simbólico. Se os elementos isolados da obra revelam empréstimos, a soma das partes resulta em um conjunto que é inegavelmente identificado como pertencente à cultura judaica. Nas artes, o resultado de dois mais dois pode ser cinco, seis ou algo imensurável.
Ruth e Boaz
A presença da narrativa bíblica é notável nestes docu mentos, pois cabe ao texto investir a obra de seu sentido mais precioso, ao mesmo tempo em que integra seu espaço visual de forma única. Encontramos citações dos salmos re forçando a simbologia do portão como entrada na era mes siânica “Esta é a porta do Eterno, pela qual entrarão os jus tos” (118: 20). Contudo, mais significativo ainda me pare
Figura 3. Detalhe de uma Ketubá de Livorno, Itália, 1746, têmpera sobre pergaminho, 82 x 54 cm.
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ce o fato de que a passagem mais recorrente, nas Ketubot do Ocidente e do Orien te, é retirada do Livro de Ruth, quando Boaz afirma seu compromisso perante ela viúva e estrangeira sob os olhos dos mais velhos e próximo ao portão da ci dade, local onde aconteciam importan tes fatos da vida comunitária (4:11-14).
Sabemos que, ao ficar viúva, Ruth de veria casar-se com seu cunhado, mas ele também havia morrido. O parente mais próximo deveria então assumir o compro misso. Para Boaz poder casar-se com ela, este parente deveria antes repudiá-la e é isto que ele o obriga a fazer na porta da cidade. Desse modo, encontramos no casal Ruth e Boaz interessante entrelaçamento entre o amor e a lei, pois a decisão de Boaz pelo compromisso com Ruth só acontece após uma cena de grande tensão e delicada sensualidade. Obedecendo ao conselho da sogra, certa noite Ruth procu ra Boaz, enquanto ele dorme, e pede: “Cobre-me com teu manto para ser meu redentor, já que és meu parente mais próximo.” Creio que, na sutileza do texto, percebemos o compromisso ético (a obrigação de oferecer amparo) e algo que poderíamos aproximar ao amor romântico, como se fossem mesmo juntos e inseparáveis. Boaz obedece a lei, mas também contempla a subjetividade de sua escolha, de seu desejo. Nada mais apropriado como ideal de um casamento que se inicia, ainda mais porque dessa união, três gerações mais tarde, surgirá o Rei David.
Na Ketubá, o Portal pode evocar a entrada em uma era messiânica, mas significa, sobretudo, o ingresso em uma nova vida iniciada pelo casamento e pode ser visto como o elemento de ligação entre o espaço amplo da comunidade e o espaço mais íntimo da família, que é fundada naquele contrato.
feito e a França de Luis XVI também” 5 , mas é o modo de lidar com a opressão, a discriminação e a exclusão que nos permi te compreender e avaliar verdadeiramente os valores de determinado sistema social. Dessa forma, a preferência pelo Livro de Ruth, mencionado em diversas Ketubot, reafirma as complexas relações entre amor e ética e sua importância na construção da família e da sociedade. Além disso, Ruth é aquela que opta pela fé judaica, que aceita a Torá, e esta escolha consciente é, para Emmanuel Lévinas, um dos aspectos fundamentais do judaísmo, pois o filóso fo afirma: ninguém é judeu sem sabê-lo, o judaísmo é uma extrema consciência.6
É importante ressaltar que Ruth inscreve-se nas três ca tegorias de pessoas consideradas fragilizadas pela Torá, e que, portanto, devem ser amparadas o estrangeiro, a viú va e o órfão. A orfandade de Ruth pode ser compreendi da pelo fato de que, após perder o marido, ela decide que não retornará à sua família, o que seria mais seguro e acon selhável, preferindo ao invés disso permanecer próximo à sogra e continuar seguindo as leis judaicas. A valorização da figura de Ruth, em sua extrema fragilidade, nos lem bra a incrível atualidade da visão social presente na Torá. Em entrevista recente, Zygmunt Bauman afirma sua con vicção de que uma sociedade deve ser avaliada pela maneira como trata os desvalidos. “Se você olha a sociedade pelo lado de quem é favorecido, então o Egito Antigo era per
Figura 4. Ketubá de Jerusalém, 1807, aquarela sobre papel, 73 x 47 cm.
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Embora a passagem bíblica que relata o casamento de Ruth e Boaz seja a mais citada, o casal mais representado é Adão e Eva. Na parte superior de uma Ketubá de Livor no, de 1746, vemos os dois deitados no Jardim do Éden, em frente à arvore da vida, protegidos pelos querubins e suas lâminas flamejantes (fig. 3). Observe-se que a ima gem de Eva mostra a influência de diversas representações de Venus, realizadas no século 16 como a Venus de Urbi no, de Ticiano (1538).
Enquanto na pintura italiana a nudez feminina é vela da pela mão estrategicamente situada à frente do corpo, na Ketubá de Livorno, a guirlanda de flores possui esta função, o que não elimina a sedução da pose de Eva, estendi da lateralmente, com os ombros elevados de modo a va lorizar os seios. Nas ondas de seu cabelo e na delicada in clinação do rosto percebemos que o artista conhecia tam bém a tão famosa Venus de Botticceli. O acesso às obras
do Renascimento, Maneirismo e Barroco se torna possí vel, em toda a Europa e nos países do Oriente, a partir de reproduções feitas em gravura em cobre, amplamente di fundidas nos séculos 17 e 18.
Júbilo e modernidade
Nosso olhar contemporâneo, treinado em mais de cem anos de arte moderna, permite valorizar algumas Ketubot que guardam o frescor de um gesto espontâneo e certa incompletude. Este é o caso de uma obra realiza da em Jerusalém em 1807 (fig. 4). Pintada em aquare la sobre papel (e não sobre pergaminho como a maioria dos exemplares italianos), esta Ketubá me parece espe cialmente atual e distanciada da racionalidade predominante na arte ocidental desde o Renascimento até mea dos do século 19, período ao longo do qual o desenho (associado à razão) deve controlar a cor (associada à emo ção). Luminosa e apropriando-se com desembaraço de motivos arquitetônicos e florais, possui qualidades que serão valorizadas apenas na modernidade a liberdade do pincel que segue sem um traçado rígido anteceden do à execução. Acredito ser possível compará-la a alguns desenhos e pinturas de Henri Matisse, cuja trajetória co meçaria cerca de 80 anos depois.
A comparação com o pintor francês, cuja obra é ple na de alegria e júbilo (coisa rara na arte do século 20), me parece significativa e de grande ajuda para entendermos o espírito da Ketubá, pois sua vocação mais autêntica é projetar a felicidade futura, associando a fundação da nova família à era messiânica um continuum de paz, justiça e alegria. Mas o aspecto processual presente nesta obra de Jerusalém que não parece ainda pronta, mas em execu ção nos lembra a importância da ação, das escolhas in dividuais para preparar a chegada do Messias, que, como afirmou Kafka, “só virá quando não for mais necessário, só virá um dia após a sua chegada, não virá no último dia, mas depois do último dia”.7
A intensidade da cor submetendo-se com dificuldade ao traçado rígido preexistente é visível também nas Ke tubot que testemunham interações com a arte dos paí ses islâmicos, onde praticamente não encontramos repre sentações da figura humana, e sim motivos florais (figs. 5 e 6). No Islã, o veto à representação (de modo mais rí gido que no judaísmo, creio) e a proibição da impren
Figura 5. Ketubá caraíta, Kirk-Yer, Pensínsula Criméia, têmpera sobre pergaminho, 72 x 53 cm, 1719.
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sa faz com que a arte islâmica desenvolva formas de caligrafia especialmente ri cas. Como observa Peter Burke, os im périos otomano, persa e mughal manti veram-se como impérios manuscritos ou “Estados caligráficos” até cerca de 1800, quando então a imprensa é permitida.8 Assim, não é surpreendente que as Ke tubot orientais desenvolvam sofistica dos padrões geométricos e florais. Mas é também interessante lembrar que o motivo floral já aparece na descrição da menorá que Bezalel deve criar, segundo prescrições divinas, como encontramos no Êxodo (25: 31-40).
Ao acompanharmos o desenvolvi mento da Ketubá ilustrada, percebemos
A intensidade da cor submetendo-se com dificuldade ao traçado rígido preexistente é visível também nas Ketubot que testemunham interações com a arte dos países islâmicos, onde praticamente não encontramos representações da figura humana, e sim motivos florais.
que os artistas responderam às deman das da comunidade, mas estavam igual mente atentos às transformações artísti cas de seu tempo, conectados ao que havia de mais contemporâneo em seu en torno cultural imediato. Notamos tam bém que não há fixação em uma técni ca artística específica, mas uma adapta ção contínua à tecnologia dos diferentes momentos, pois existem Ketubot ilus tradas à mão (utilizando aquarela, têm pera, pó de ouro, entre outros) como também impressas. Assim, creio que a arte da Ketubá en frenta hoje desafios semelhantes aos que enfrentam os objetos rituais: como recu sar a repetição de modelos cristalizados e estabelecer uma relação produtiva entre o passado e o presente? Como atualizar uma deman da artística que remonta a 2.500 anos, data do mais an tigo fragmento de Ketubá encontrado na ilha de Elefan tina, no Egito? O que cabe, portanto, aos atuais criado res de Ketubot é viver experiências significativas e vigo rosas tanto com a tradição judaica quanto com a arte de seu tempo, em que a proliferação indiscriminada de ima gens exige um trabalho rigoroso de qualificação e atribui ção de sentido. Assim, quem sabe, a Ketubá continuará sendo um documento sensível, capaz de testemunhar as complexas relações entre o indivíduo, o casal, a família, a comunidade, Israel e o mundo.
Notas
1. Bland, Kalman P., The art less Jew: medieval and modern affirmations and denials of the visual, New Jersey, Princeton University Press, 2001.
2. Amichaï, Yehuda. La vielle Ville, in Poèmes de Jerusalèm Paris, Ed. De l’Eclat, 2008.
3. Sabar, Shalom. Ketubbah: The art of the Jewish marriage Contract Jerusalem, The Israel Museum, 2000.
4. Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences des Arts e des Métiers (articles choi sis), vol. 2, Paris, Flammarion, 1986.
5. Citado por Jurandir Freire Costa, “A ética é sempre uma aposta arriscada”, in: Pro sa & Verso, O Globo, 30/10/2010.
6. Lévinas, Emmanuel. Difficile Liberté Paris, Albin Michel, 1984.
7. Löwy, Michäel. Redenção e Utopia: o Judaísmo libertário na Europa Central – um estudo de afinidade eletiva São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
8. Burke, Peter. O que é História Cultural?, Rio de Janeiro, Zahar, 2008.
Leila Danziger é artista plástica e professora dos cursos de gra duação e pós-graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Figura 6. Ketubá de Mosul, Iraque, aquarela e pó de ouro sobre papel, 63 x 45 cm, 1837.
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d eve H aver algum outro camin H o entrevista com Achinoam nini (noa) e Mira Awad
Noa, Ricardo Gorodovits e Mira Awad antes do show em São Paulo.
Fotografias cedidas por Jaime Barzellai, agen te de Noa e de Mira Awad na América do Sul.
ricardo gorodovitz
Conhecida mundialmente como Noa, a cantora israelense Achinoam Nini esteve no Brasil em agosto deste ano para um show promovido pela Congregação Israelita Paulista CIP –, em que se apresentou em conjunto com a cantora Mira Awad, também israelense, de origem árabe. Graças ao apoio do agente da turnê na América do Sul, Jaime Barzellai, Devarim realizou naquela oportunidade uma entrevista com as duas.
Na chegada ao teatro, vimos uma Noa apressada, certamente preocupada com os aspectos técnicos da apresentação, acompanhada dos músicos Guil Dor, professor e parceiro musical de Noa desde que iniciou a carreira, e de Gadi Seri, um original e conhecido percussionista israelense. Ainda amamentando sua ter ceira filha e, por isso mesmo, acompanhada pela mãe, Noa é uma estrela em Is rael com sólida carreira internacional.
Mira, ao contrário, chegou distribuindo sorrisos, aguardando o momento de “passar o som” talvez com a confiança de quem tem em Noa uma parceira, amiga e motivadora há quase dez anos.
Conversamos com Noa num lugar um pouco mais tranquilo do teatro onde os ensaios e testes prosseguiam. Levamos a Devarim número 12, para mostrar de que revista somos e qual mensagem transmitimos, e identificávamos esta en trevista como importante para nosso público. Ao ver o nome do rabino Michael Melchior na capa, abriu um sorriso e disse que o conhecia e gostava de suas co locações. Junto com o CD de música brasileira com que a presenteamos, es
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tava estabelecida a empatia necessária para um bom batepapo. A partir daí sua sedutora simpatia fez-se presente e a força de suas convicções foi a tônica de nossa conversa.
Somente pouco antes do show, já no camarim, conse guimos conversar com Mira, enquanto se maquiava. Ain da assim, houve tempo suficiente para entender por que as duas artistas identificaram, uma na outra, uma parcei ra que reunia as qualidades artísticas e os interesses polí ticos que permitiram a longa convivência de palco que mantêm até hoje. Não tão conhecida quanto Noa, Mira impressiona pela firmeza, por não fugir de assuntos polê micos e pela enorme admiração por Noa, que transparece sempre que a menciona.
Para conhecer um pouco mais sobre Noa e Mira, suge rimos a visita à página de cada uma na Wikipédia, respectivamente http://en.wikipedia.org/wiki/Achinoam_Nini e http://en.wikipedia.org/wiki/Mira_Awad e ainda os si tes de ambas, http://www.noasmusic.com/ e http://www. myspace.com/miraawad.
Entrevista com Noa
Devarim: Sobre seu trabalho com Mira, algo que enten demos ser importante para os leitores de Devarim, a apro ximação se deu mais por uma questão musical, artística, ou por afinidades políticas?
Noa: Essa ligação se deu... bem, antes de mais nada, todo este tema surgiu por uma vontade de ter uma ação de integração com um cantor palestino. De fato, não era a primeira vez, já havia feito diversos shows deste tipo. Por exemplo, entre os mais famosos, cantei com Cheb Khaled, muito conhecido no mundo árabe.1 Também cantei com outros menos conhecidos, de diversos países, inclusive de Israel, como Rim Banna e Amal Murkus, ambos palesti no-israelenses.2 Aliás, tentei também ter uma colaboração com palestinos dos territórios, mas não tive sucesso. Devo dizer de forma bem clara: eles não quiseram, para minha tristeza. Mas, de fato não os culpo, entendo que a situação para eles é bastante complicada, seja pela ótica dos senti mentos, seja pela política.
Noa procurou Mila para gravar “We can work it out”, dos Beatles.
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Devarim: Mas a música deles chega a você em Israel?
Noa: Muito pouco, preciso procurar bastante, certamente não nas comunida des judaicas, eventualmente nas árabes.
Devarim: E eles não têm interesse nes sa divulgação?
Noa: Eles não têm essa motivação de fazer qualquer coisa em conjunto com judeus ou israelenses porque isso pode ria prejudicá-los junto ao seu público. Eu, da minha par te, não tenho a mesma preocupação, nunca quis fazer esse tipo de ponderação, talvez para frustração do meu produ tor (risos)... esse tipo de concessão, se vou ou não agradar ao meu público. Eu realmente procuro fazer aquilo em que acredito. Eu acho que se eu acredito em algo, não devo es tar sozinha no mundo, e aqueles que têm as mesmas cren ças serão o meu público; eventualmente os que discorda rem não serão, vou abrir mão deles. Então, como ia dizen do, tive shows conjuntos com artistas árabes, como Kha leb, também vale mencionar Nabil Salameh, do Líbano, ele é espetacular ele faz parte do grupo que foi refugia do no Líbano, depois emigrou para a Itália, e foi lá que o
conheci. Com ele, em especial, talvez seja com quem mais fiz shows, fora a Mira...
Devarim: E voltando à Mira...
Noa: Ah! Sim, claro, mas era impor tante dar essa visão dos antecedentes, por que assim fica claro por que a procurei. Eu buscava alguém para gravar comigo a música “We can work it out”, dos Beatles, eu queria cantar junto com uma cantora palestina. Encontramos Mira por acaso. Ela, naquela época (2002) estrelava o musical “My Fair Lady” em Israel, e se falava muito dela, uma árabe estrelan do uma produção israelense. Houve um talk show e Guil a viu na televisão. Se impressionou muitíssimo com ela, com sua personalidade.
Devarim: Guil Dor...
Noa: Isso, Guil Dor, que é meu parceiro há vinte anos. Ele é realmente extraordinário. Em resumo, ele me ligou e disse: achamos! Eu perguntei: ok, mas você a ouviu can tar? Ele respondeu: não (risos). E como você sabe que é ela? Ele disse: pode confiar nisso, ela sabe pensar, é pro funda. Vamos nos encontrar com ela. Portanto, nossa pri
Para Noa, a música e outras manifestações artísticas podem abrir caminhos para a aproximação política.
Noa: Nós nos ligamos não pela música iemenita ou árabe, senão justamente pela música norte-americana e inglesa: Joni Mitchell, Paul Simon, Beatles, esse tipo de canção.
meira ligação foi no nível intelectual, gostamos da personalidade dela. E ela é re almente uma mulher maravilhosa, muito inteligente. Então nos encontramos e vi mos que tínhamos muito em comum na parte musical. Temos muitas músicas em comum que gostamos. Gostamos muito das músicas dela que ouvimos...
Devarim: A origem da sua família, sua musicalidade iemenita, contribuiu de al guma forma?
Noa: Não, de fato não. Nós nos li gamos não pela música iemenita ou ára be, senão justamente pela música norteamericana e inglesa: Joni Mitchell, Paul Simon, Beatles, esse tipo de canção. Nós somos cantoras e compositoras e acho que estes artistas que citei influenciaram pes soas como nós, que fazem as duas coisas, traduzindo uma percepção do mundo.
Devarim: E trazem também o sentido humanitário de seu trabalho...
Noa: E também a poesia, tenho muito interesse pelas letras, escrever canções que sejam profundas e significati vas e ao mesmo tempo bonitas e originais. Meu trabalho não se baseia em replicar os hits mais recentes ou adotar a moda do momento. Mas, sim, reflete minha alma, com toda sua complexidade, fala da condição humana, o que quer que isso represente. Isso era o que nós duas estávamos fazendo e percebemos que tínhamos muito em comum a partir deste ponto de vista. E também temos visões políti cas próximas. Eu não diria idênticas, mas próximas. Cer tamente temos discrepâncias no jeito que vemos as coisas, mas concordamos nos aspectos mais importantes.
Devarim: Ou seja, próximas o bastante para poderem fa lar a respeito.
Noa: Sim, claro, especialmente quando fomos para o Eurovision3, que foi nosso grande momento. Antes disso gravamos uma canção juntas e convidei Mira para partici par de inúmeros shows comigo, ao redor do mundo, even tos onde estive, shows na televisão. Quando surgiu o Eu rovision, bem, eu nunca tive muito interesse nisso, nun
ca gostei muito deste tipo de coisa. Mira, ao contrário, gostava muito, especialmen te quando era criança. Eu cresci nos Esta dos Unidos, onde o Eurovision não existe, não é conhecido por lá. Quando che guei em Israel, ouvi falar um pouco, mas não tive interesse, realmente. Mas quando me ofereceram a oportunidade de repre sentar Israel, dois anos atrás, para o festi val de 2009, eu pensei: “Bem, talvez ago ra seja o momento certo de aceitar”. Pri meiro porque eu já estava bem encami nhada em minha carreira, e eu digo isso porque o Eurovision não estaria me de finindo, me dando um formato; ao contrário, de certa forma eu o estaria defi nindo com esta participação. E em segun do lugar porque percebi que poderia atingir muitos milhões de pessoas com uma mensagem na qual acredito e pela qual vinha trabalhando há anos. Achei que a parceira ideal para isso seria a Mira. Nós já nos conhecía mos há oito anos. Eu perguntei a ela o que achava da ideia. Ela riu e disse: “Oh! Uau! Será uma loucura”. “Vai ser uma verdadeira montanha russa!” E ela me perguntou de volta: “Você está pronta para isso?” E eu disse sim, vamos fazer!
Devarim: Isso porque vocês estariam representando jun tas o Estado de Israel...
Noa: Por causa de todas as coisas que aconteceram, nós não podíamos imaginar que haveria uma guerra.4 Isso foi uma catástrofe. As pessoas censuravam a ela, a mim, a nós duas, Israel, sempre violentamente. Foi realmente um pro blema, um problema enorme. Mas nós conseguimos supe rar isso tudo. E fomos com a música “There must be ano ther way”5, que também vamos apresentar hoje. Acho que a letra da música é realmente linda, ela transmite a mensagem sem ser piegas, sem ser óbvia. Ela não é inocente ou delicada, amortecida. Ela diz “quando choro, choro por nós duas”, o que representa...
Devarim: que há uma dor a ser compartilhada... Noa: ...que precisa ser compartilhada! O problema é que ela não está sendo suficientemente compartilhada... Acho que nós fazemos mais isso; eu, quando choro, cho Noa: As pessoas tendem a focar em suas próprias dores somente. Acham que têm o monopólio da dor, o monopólio da justiça, da verdade, o que eles não têm. Por isso dizemos que deve haver outro caminho. E não estamos dispostas a nos render ao destino de uma guerra sem fim para as gerações futuras: tem que haver outro caminho.
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ro por nós e por eles; não sei quanto isso ocorre com as outras pessoas, mas é isso que eles deveriam pensar em fazer, por que, se somente a sua dor é percebida...
Devarim: O que você diz é que a nossa dor não é percebida por eles...
Noa: As pessoas tendem a focar em suas próprias dores somente. Acham que têm o monopólio da dor, o monopólio da justiça, o que eles não têm. Ou o mo nopólio da verdade, que ninguém possui. Por isso dizemos que deve haver outro ca minho. Não estamos definindo que cami nho será este, ou afirmando que temos to das as respostas, mas temos muitas ideias sobre estas res postas. E, de qualquer forma, não estamos dispostas a nos render ao destino de uma guerra sem fim para as gerações futuras: tem que haver outro caminho.
Mira: Claro que houve um encontro na música, descobrimos que nossas vozes combinam muito bem, é bem raro encontrar vozes tão compatíveis. E claro que para mim era uma oportunidade incrível, cantar com alguém “grande” como Noa.
Entrevista com Mira
Devarim: Em que língua seria melhor fa larmos, hebraico ou inglês? Acho melhor em inglês, não?
Mira: Por que não, ambas são segun da língua para mim.
Devarim: Sinto por não falar nada de ára be, é algo que todos em Israel deveriam aprender, com certeza.
Mira: Obrigado por pensar assim, eu também acho.
Devarim: Bem, vamos começar. Você tem feito shows com Noa já há algum tempo...
Mira: Sim, já há quase dez anos.
Devarim: E você já a conhecia?
Devarim: Quanto você imagina que a música pode con tribuir para isso, oferecendo alternativas?
Noa: Acredito que a música e outras manifestações ar tísticas podem abrir caminhos para o relacionamento, para a aproximação, sem abrir mão da sua qualidade. Acredito muito no que faço e como faço e creio ter conseguido al cançar muitas pessoas com uma mensagem com a qual te nho um compromisso.
Devarim: Há algo que nunca perguntaram, algo que você gostaria de mencionar e que não teve oportunidade antes?
Noa: Tenho no meu blog uma espécie de “plano de paz” que escrevi, algo muito simples, que a meu ver vale a pena repetir sempre. Pensei muito nisso, até que consegui organizá-lo. É bem curto. E acho que é o único caminho. Ele tem três passos: Reconhecer, Desculpar, Partilhar. É nisso que acredito, integralmente. Acho que é a coisa cer ta. Desculpar para os israelenses é algo muito importan te, conecta-se com a ideia de que “quando choro, choro por nós dois” (pelos dois povos). Se há algo que eu gosta ria de ver impresso seria isso. Exatamente como escrevi. É algo com o que me comprometo, que resume tudo em que acredito (ver p. 36).6
Devarim: Bem, acho que concluímos. Agradeço muito, em nome da Devarim.
Mira: Claro, ela é famosíssima em Israel. Eu tinha dis cos dela, gostava da sua música. Eu estava no supermer cado e recebi a ligação de uma mulher que pergunta: “É a Mira?” e eu respondi: “Sim, sou” e ela seguiu: “Não sei se você me conhece, sou a Achinoam Nini”. Isso soa mais ou menos como: “Não sei se você me conhece, sou o Leonard Cohen”7 (risos), ri um bocado e disse: “Claro que conheço você”. Marcamos um encontro para o dia seguinte e pare ce simples ao dizer, mas realmente foi assim, rapidamen te houve uma química entre nós, descobrimos que gosta mos das mesmas coisas.
Devarim: Você acha que houve uma conexão quanto à música ou...
Mira: Claro que houve um encontro na música, des cobrimos que nossas vozes combinam muito bem, é bem raro encontrar vozes tão compatíveis. E claro que para mim era uma oportunidade incrível, cantar com alguém “grande” como Noa. E pensei: ok, vamos fazer isso, não sabemos no que vai dar, quanto tempo vai durar. Já tínha mos tido colaborações diversas antes, nada foi construído para ser de um jeito ou outro. E eu também atribui muito valor a este trabalho com Noa no nível mais humano, com alguém tão fantástico, acabamos ficando amigas, e aqui es tamos, dez anos depois, seguindo juntas e buscando coisas novas, essa é a parte que torna nossa história única.
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Devarim: Perguntei a Noa, vou perguntar a você também: você acha que a ori gem iemenita dela ajudou de alguma for ma neste encontro entre vocês?
Mira: Não é a origem iemenita, mas a mistura, ela ser resultado de uma mis tura cultural, tal como eu sou também uma mistura, então isso nos aproxima, nós duas sabemos como é ser parte de um ambiente multicultural.
Devarim: Mostrei suas fotos ao pessoal do meu escritório e todos achavam que você era judia e Noa era árabe!
Mira: Pois é... nós duas fomos criadas em ambientes multiculturais, sabe mos como é crescer num lugar e ir para outro, temos muita coisa em comum nes te aspecto. E também fazemos esta fusão na nossa música. Ela pega sua origem ie menita e mistura com pop e rock e jazz, ela coloca tudo numa mesma panela, mistura e cria algo dela. Acho que faço o mesmo. Eu aproveito minhas raízes e misturo com as influências que tive ao longo da vida. Esse é também um ponto de encontro para nós duas.
Mira: Nós duas fomos criadas em ambientes multiculturais, sabemos como é crescer num lugar e ir para outro, temos muita coisa em comum neste aspecto. E também fazemos esta fusão na nossa música. Ela pega sua origem iemenita e mistura com pop e rock e jazz, ela coloca tudo numa mesma panela, mistura e cria algo dela. Acho que faço o mesmo.
Mira: Na verdade não, eu fiz alguns trabalhos fora, como atriz. Eu também sou uma atriz...
Devarim: E você ainda trabalha como atriz?
Mira: Sim, claro. Fiz alguns traba lhos em Roma, em Londres e Nova Ior que, mas não vivi realmente nesses luga res, não por um período mais longo, en tão não considero que vivi em qualquer outro lugar.
Devarim: Houve um evento em Lon dres, no dia da independência de Israel, no ano passado, do qual você faria parte junto com Noa... Li que houve ameaças à sua participação, mas também que você não se sentia tão confortável em partici par; o que houve de fato?
Devarim: Você teve vontade ou a oportunidade de viver fora de Israel durante algum tempo?
Mira: Eu não me apresento no dia da independência, não por conta de algo específico, mas por que é uma data muito complicada, um dia cujo cenário é duplo, e até o momento em que perceba a situação da mi noria palestina em Israel efetivamente resolvida, não me sinto confortável para celebrar este dia. Eu espero que um dia isto se torne passado e este milhão e meio de árabes que vivem em Israel sejam parte efetiva do país, o que sig
“Aqui estamos, dez anos depois, seguindo juntas e buscando coisas novas, esta é a parte que torna essa história única”, diz Mira.
Plano de Paz por Achinoam nini
1. R E conh E c ER
Cada lado deve reconhecer os direi tos do outro à vida, liberdade, indepen dência, identidade, o direito de flores cer, o direito a uma existência pacífica. Este é o primeiro e mais crítico está gio do plano. Sem reconhecimento for mal, por escrito, assinado pelos líderes reconhecidos de cada nação, nenhum avanço poderá ser feito.
2. D ES cu L pa R
Ambos os lados infligiram coisas ter ríveis ao outro, em nome deste ou da quele ideal. Uma vez que a perda de uma vida equivale à morte de toda a humanidade, deverá haver um verda deiro e profundo remorso quanto a es tas ações, uma apresentação de des culpas verdadeiras de cada um dos la dos pela dor e angústia que causaram.
3. c o M pa R ti L ha R
Cada lado deve abrir mão de seus sonhos por um “algo” completo. So mente pelo compromisso com o outro a paz pode efetivamente ser alcança da. Desta forma, num pequeno pedaço de terra podemos criar dois países, Is rael e Palestina, vivendo pacificamente e respeitando-se mutuamente.
http://noa-the-singer.blogspot.com/
nifica ter as mesmas obrigações e ter os mesmos direitos, o que ainda não temos.
Devarim: Como você é recebida pelo público nos shows ou peças, como se relacionam com você?
Mira: Acho que você vai precisar perguntar isso para o público... (risos). Alguns lugares me recebem melhor, ou tros menos.
Devarim: E você se sentiria à vontade de chamar uma can tora israelense judia para cantar num show seu?
Mira: Claro, certamente.
Devarim: E você acha que há pessoas que a percebem com sentimentos negativos, por conta deste seu trabalho?
Mira: Com certeza há árabes e judeus que não gostam do que faço. E daí? Sou uma cantora, uma artista, isso é o que eu faço, aquilo em que acredito, tenho a liberdade das minhas crenças; se não quiserem vir ao meu show, não ve nham. Acho que, mesmo assim, terei audiência o bastante para sustentar minha carreira artística.
Devarim: Pelo que ouvi até aqui, você terá mesmo!
Mira: Obrigado.
Devarim: Há algo que você não disse, que em geral não é ou não foi perguntado, algo que esteja faltando e você queira acrescentar?
Mira: Você me pegou, não vou ter chance de pensar muito agora, já estou com a cabeça voltada para o show... talvez possamos voltar a falar depois do show...
Devarim: Em nome da Devarim agradeço muito por sua entrevista.
Notas
1. Cheb Khaled é provavelmente o mais famoso cantor da Argélia. Num show em Nova Iorque, em 2001, onde se apresentaram também, por exemplo, Bono e Pe ter Gabriel, Noa cantou com Khaleb a música “Imagine”, de John Lennon, em in glês, árabe e hebraico.
2. Ambos são árabe-israelenses, mas Noa se referiu a eles como palestino-israelenses, forma que optamos por manter.
3. Eurovision é um dos mais conhecidos festivais de música da Europa, disputado desde 1956 por representantes de diversos países, a maioria europeus, cada edição sendo realizada na capital do país vencedor da edição anterior. Todos os países co bertos pela Rede Europeia de Radiodifusão estão habilitados à participação, entre eles Israel e diversos países árabes. Israel iniciou sua participação em 1973, tendo sido o vencedor em 78, 79 e 98. Nenhum país árabe aceitou participar do festival junto com Israel, até o momento. O Marrocos participou em 1980, quando Isra el esteve ausente.
4. A guerra mencionada é o conflito em Gaza, em janeiro de 2009. O anúncio oficial de que Noa seria a representante de Israel no Eurovision de 2009 se deu em 11 de janeiro, com o país em ebulição em torno deste tema. Mira foi anunciada como co-participante algum tempo depois. Pode-se, portanto, entender bem o quanto foi corajosa a decisão de ambas nestas circunstâncias.
5. “Deve haver algum outro caminho”. A música foi cantada em hebraico, inglês e árabe.
6. Atendendo ao pedido, reproduzimos num box à parte um resumo escrito por ela em seu blog.
7. Leonard Cohen é poeta e compositor canadense.
Ricardo Gorodovits é engenheiro, ativista comunitário e boguer da Chazit Hanoar.
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Quantas Humanidades?
raul cesar gottlieb
AWorld Union for Progressive Judaism WUPJ –, associação guarda chuva das comunidades religiosas reformistas judaicas, à qual a ARI é afiliada, é uma das organizações não governamentais formalmente acreditadas junto à Organização das Nações Unidas ONU.
O representante da WUPJ no Conselho de Direitos Humanos da ONU é o historiador inglês David G. Littman1, um dos mais reconhecidos expoentes na luta pelos direitos humanos no mundo. Acompanhando suas atividades to mei conhecimento de um fato surpreendente, não apenas por sua relevância, mas também porque parece ser desconhecido por todos nós.
O fato é que, diferentemente do que todos acreditamos, não existe unani midade entre os países membros da ONU sobre o que sejam os direitos hu manos que a organização se propõe a garantir. É isto mesmo que vocês leram: uma quantidade considerável de países membros repudia a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 10 de dezembro de 1948 pela Assem bleia Geral da organização.
A ONU se define com as seguintes palavras:
As Nações Unidas são uma organização internacional fundada em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, por 51 países comprometidos com a manu tenção da paz e da segurança internacionais, com o desenvolvimento de rela ções amistosas entre as nações e com a promoção do progresso social, de me lhores padrões de vida e dos direitos humanos 2
Uma das primeiras comissões formadas pela ONU foi a de Direitos Humanos, uma das poucas comissões cuja autoridade provém diretamente da carta de fundação da organização.
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O preâmbulo da carta assinada em 26 de junho de 1945, e que entrou em vigor em 24 de outubro daque le mesmo ano, determina o que levou à fundação da or ganização:
Nós, os povos das Nações Unidas, estamos determina dos a: (...) reafirmar a fé nos direitos humanos fundamen tais, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igual dade de direitos entre homens e mulheres e das nações grandes e pequenas (...).3
E logo em seu artigo primeiro, terceiro item, a car ta reza:
O objetivo das Nações Unidas é (...) conseguir a coo peração internacional na solução dos problemas interna cionais de caráter econômico, social, cultural ou humani tário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião (...).4
Não foram palavras vãs atiradas ao vento. A partir dos 51 membros fundadores de 1945, a ONU se fortaleceu
sendo hoje, indubitavelmente, o principal fórum interna cional para um enorme leque de assuntos, que cobre pra ticamente todos os aspectos das relações internacionais. Atualmente, a organização tem 192 países membros, e milhares de instituições não governamentais acreditadas. A ONU é a mais abrangente organização política jamais construída pela humanidade.
E percebe-se claramente que o conceito de “direitos hu manos” é um dos pilares que justificaram a fundação da ONU, conforme atestam tanto o preâmbulo de sua car ta de formação como a definição de seus objetivos. É fácil entender os motivos que levaram a predominância dos di reitos humanos na construção da ONU. O final da Segun da Guerra Mundial, em maio de 1945, revelou ao mundo, com toda sua assustadora clareza, os horrores cometidos pela Alemanha Nazista sob um aparato “legal” de Estado.
Horrores legalmente cometidos sim, posto que as leis raciais da Alemanha e da Itália foram formalmente ado tadas pelas estruturas políticas legais que governavam es
Assembléia Geral das Nações Unidas, na sede da ONU, em Nova York.
Cristian Lazzari /
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tes países. E seu alcance foi estendido aos territórios conquistados em guerra, num processo igualmente legal segundo os acordos internacionais da época. A sor te dos cidadãos de um país era, pelas leis internacionais então vigentes, uma ques tão interna do país, que podia assim im por a grupos de sua população todos os ti pos de restrições de seus direitos. Inclusi ve ao direito à vida.
A questão dos direitos humanos, ponto fundamental do processo de fundação da ONU, saiu enfraquecida no embate com a realidade política.
A desumanidade nazista despertou o mundo para a necessidade de uma legislação supranacio nal que garantisse os direitos individuais das pessoas, in dependentemente de quaisquer considerações. O conceito de que todos os indivíduos possuem direitos iguais, fundamentais e inalienáveis é o pilar fundamental da Idade Mo derna e se fortaleceu politicamente ao longo dos séculos 15 e 16, ganhando expressão política definitiva na decla ração de independência dos Estados Unidos da América (1776) e depois na Revolução Francesa (1789). O nazis mo deixou clara a necessidade de proteger o cidadão con tra seu governo no que diz respeito aos direitos humanos. A ONU, como entidade supranacional, foi concebida para ser a defensora destes direitos.
A comissão de Direitos Humanos
É evidente que não bastava mencionar vagamente “direitos humanos” nos documentos da nova organiza ção mundial. Era necessário definir precisamente o que isto significava. Com este objetivo, uma das primeiras comissões formadas pela ONU foi a de Direitos Hu manos, uma das poucas comissões cuja autoridade pro vém diretamente da carta de fundação da organização. Eleanor Roosevelt, viúva do presidente norte-america no Franklin Roosevelt, foi nomeada presidente desta co missão de 18 membros, cuja primeira decisão foi desen volver, como primeiro passo, uma declaração de direitos humanos. É importante notar que a ONU opera através de “tratados”, “declarações” e “recomendações”. Endossar uma declaração é um fato muito relevante do ponto de vista moral e político. A declaração é um instrumento mais forte do que uma recomendação, mas é mais fraca que um tratado, visto que este, depois de firmado, passa a ser parte da lei internacional.
Então já se percebe que a questão dos direitos humanos, ponto fundamental do processo de fundação da ONU, saiu en fraquecida logo em seu primeiro embate com a realidade política.
Em 10 de dezembro de 1948 a co missão apresentou à Assembleia-Geral da ONU o texto que constitui a Decla ração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). O texto foi aprovado com o voto favorável de 48 países membros, com nenhum voto contrário e com oito abstenções: os seis países comunistas, a África do Sul (então sob o regime do apartheid) e a Arábia Saudita.
A declaração foi considerada uma vitória para a huma nidade e a Assembleia-Geral da ONU recomendou que “seja disseminada, mostrada, lida e exposta principalmente em escolas e outras instituições educacionais”.5 Creio que vale a pena visitar alguns de seus trinta artigos:
Artigo 1º: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consci ência, devem agir uns para com os outros em espírito de fra ternidade.
Artigo 2º: Todos os seres humanos podem invocar os direi tos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.
Artigo 5º: Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
Artigo 18º: Toda pessoa tem direito à liberdade de pensa mento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. 6
É inegável que pelo menos no papel havia sido cons truído um mundo melhor. Porém, infelizmente, este mundo melhor ficou apenas no papel.
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Da abstenção à rejeição
Sete das oito abstenções registradas na Assembleia-Geral que ratificou a DUDH já foram ultrapassadas: as dos seis países do bloco comunista (com o final da guer ra fria) e a da África do Sul (com o fi nal do regime do apartheid). Mas a oitava abstenção, a da Arábia Saudita, não ape nas continua vigente, como se agravou.
A Arábia Saudita se define como um país islâmico, governado pela lei religio sa islâmica, denominada Sharia. Consi derando que nenhuma lei humana pode se sobrepor à lei divina, foi impossível para a Arábia Saudita aceitar a DUDH como sendo aplicável no país. Em 1948 ela decidiu apenas se abster de aprovar a DUDH, mas com a evolução dos acontecimentos a abs tenção virou rejeição e, pior ainda, a rejeição se ampliou por outros países.
A covardia política, que faz a ONU silenciar quanto à agressão aos direitos fundamentais dos seres humanos que vivem sob a lei islâmica, se esconde atrás de uma problemática conceituação denominada “relativismo cultural”, pela qual é errado impor a todas as culturas os valores emanados de uma delas.
ocupa posição central e que isto acontece em todos os níveis, pessoal, comunitário e até político. Mas voltemos ao tema cen tral deste texto.
O processo de islamização dos países do Oriente Médio se consolidou defini tivamente com a Revolução Iraniana de 1979. A nova constituição do país deixou claro que a Sharia prevalece no Irã, con forme declarou sem nenhum constrangimento o representante do Irã na ONU em 1984:
Pois a partir da guerra árabe-israelense de 1967 o isla mismo ressurgiu nos países do Oriente Médio, que, com exceção da Arábia Saudita, não recorriam até aquele mo mento à religião em seus esquemas políticos. Esquemas estes todos totalitários, é certo, porém apoiados no na cionalismo moderno, sem fulcro na religião. A formidá vel derrota dos países árabes que agrediram o Estado de Israel provocou grande comoção nas massas islâmicas do Oriente Médio e os regimes não hesitaram em usar a re ligião como instrumento para a perpetuação de seu po der totalitário.
Numa pequena digressão, creio ser interessante notar que a guerra de 1967 também trouxe a religião para den tro do ambiente político do país vitorioso Israel. A colo nização dos territórios conquistados em 1967 é um movi mento revestido de fortíssimo componente religioso a par tir da percepção de alguns que a vitória havia sido milagro sa. “Se Deus nos deu soberania sobre os territórios da Bí blia é porque quer que os ocupemos”, pode ser uma tradu ção simplificada do pensamento dos religiosos-nacionalis tas que se lançaram à colonização de Cisjordânia, Gaza e Sinai. Chego a não muito original conclusão de que acontecimentos agudamente inesperados têm o poder de des pertar a crença em esquemas onde a intervenção celestial
A nova ordem política [do Irã] é (...) integralmente aderente e harmônica às mais profundas convicções morais e re ligiosas do povo e desta forma represen ta as crenças tradicionais morais, cultu rais e religiosas da sociedade Iraniana. Ela não reconhece nenhuma autoridade (...) além da Lei Islâ mica (...) convenções, declarações, resoluções ou decisões de organizações internacionais que contrariam o Islã não têm validade na República Islâmica do Irã. (...) A Decla ração Universal dos Direitos do Homem, que representa o entendimento secular da tradição judaico-cristã, não pode ser implementada pelos muçulmanos e não é aderente ao sistema de valores reconhecido pela República Islâmica do Irã; o país portanto não hesitará em violar suas provisões.7
Antes de prosseguir é importante entender que a Sharia (“forma” ou “caminho” em árabe), a lei religiosa do Islã, é um corpo multifacetado emanado das interpretações por parte de eruditos e de autoridades religiosas islâmicas sobre as revelações divinas contidas no Alcorão e sobre a Sunah os ditos e a vivência do profeta Maomé. Mesmo sendo a Sharia a lei de Deus, ou talvez justamente por sê-la, visto que Deus se revela para cada homem de uma forma dife rente, ela não é uniforme, tendo adeptos de diferentes es colas de pensamento islâmico versões diferentes sobre pon tos da Sharia. Diferentes países e culturas também man têm diferentes interpretações da lei islâmica.
O processo de formação da lei religiosa islâmica se assemelha ao da lei judaica. Ambas compartilham um for mato evolutivo provocado pela especificidade dos diferen tes entornos históricos e políticos onde viveram os judeus e os muçulmanos. Nelas, também é possível encontrar di ferentes interpretações válidas para a mesma situação. A
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Sharia e a Halachá compartilham o mesmo nome, posto que esta última pode ser traduzida do hebraico por “cami nho” e nem uma nem a outra são adequadas para abrigar o sistema jurídico das modernas nações-estado que com põem o entorno político em que vivemos.
Direitos humanos e direitos islâmicos
Voltando à questão dos direitos humanos, a rejeição da DUDH sob a falsa alegação de que a mesma era fruto da tradição judaico-cristã e, como tal, incompatível com o is lamismo, objetivava legitimar regimes totalitários usando para isto a questão religiosa. O livro Islam and Human Ri ghts, de Ann Elizabeth Mayer, professora associada de Es tudos Jurídicos da Wharton School da Universidade da Pensilvânia, lança uma importante luz sobre esta questão ao analisar os esquemas dos direitos humanos usados pe los regimes islâmicos do Oriente Médio.8
Porque mesmo rejeitando a DUDH estes regimes tinham que manter uma aparência moderna, não podendo confessar ter retornado à escuridão dos esquemas políticos da Idade Média. Assim que, depois de longas deliberações e discussões, em 1990 os 45 países membros da Organi zação da Conferência Islâmica, reunidos no Cairo, apro varam a “Declaração Universal Islâmica dos Direitos Hu manos” (DUIDH).
A estrutura da DUIDH é semelhante à da DUDH, com, a meu ver, três aspectos singulares. O primeiro é que em muitos artigos é feita a ressalva que a “Lei” está acima daquele dispositivo. Por exemplo:
Artigo 1º: A vida humana é sagrada e inviolável (...) ninguém pode ser exposto à tortura ou morte, exceto sob a autoridade da Lei.
Artigo 2º: O homem nasce livre. Nenhuma transgres são ao seu direito de liberdade pode ser realizada, exceto sob a autoridade da Lei.
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Artigo 12º: Cada pessoa tem o direito de se expressar conforme suas convic ções, desde que se mantenha dentro dos limites da Lei (...) é dever e direito de to dos os muçulmanos protestar e lutar con tra a opressão (dentro dos limites estabe lecidos pela Lei), mesmo que isto envolva desafiar a mais alta autoridade do Estado.9
E a nota explanatória que conclui a declaração informa que a “Lei” citada ao longo de todo o documento é a lei religio sa Sharia. Ora, conforme vimos, a Sharia é um corpo volátil que depende das in terpretações específicas da autoridade re ligiosa, frequentemente nomeada pela autoridade política. Logo, os direitos islâmi
Os direitos islâmicos parecem se concentrar num único direito: aquele de concordar com o poderoso. A permissão para protestar e lutar contra a opressão dentro dos limites estabelecidos pelo opressor chega a ser patética pelo cinismo explícito que dela emana.
cos parecem se concentrar num único direito: aquele de concordar com o pode roso. A permissão para protestar e lutar contra a opressão dentro dos limites estabelecidos pelo opressor chega a ser patéti ca pelo cinismo explícito que dela emana. Igualmente constrangedoras são a proibi ção da tortura em todas as situações onde o Estado resolva não torturar e a liberda de de expressão dentro dos limites impos tos pelo Estado.
O segundo aspecto revelador da real intenção da DUIDH é a explicação cons tante no documento que sua versão em árabe é a original, o que por si só não teria nenhum problema caso a tradução para o
Palácio da Paz, sede da Corte Internacional de Haia, na Holanda.
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inglês fosse fiel ao original. Porém, conforme esclarece Ann Mayer no capítulo quarto de seu livro, este não é o caso. Em muitas situações as duas versões divergem de forma significativa, como, por exem plo, no artigo 14º que em inglês parece garantir o direito à livre associação, mas que em árabe garante apenas o “direito” de formação de associações de propaga ção do Islã. Isto cria a certeza de que o do cumento aprovado no Cairo é realmente uma fachada para legitimar na ONU re gimes totalitários.
O que efetivamente assusta na DUIDH é a aceitação passiva dos demais países membros da ONU, que não reagiram minimamente contra esta brutal e mal disfarçada agressão aos princípios fundadores da organização.
E o terceiro e último aspecto que me parece relevante é a palavra “universal” aposta ao rótulo da declaração. Ora, ou a declaração é islâmica ou é universal. Ou ela abrange toda a humanidade ou parte dela. O ab surdo de algo ser considerado simultaneamente univer sal e islâmico é tão eloquente que dispensa mais palavras.
No entanto, infelizmente, não há nada de surpreen dente nos formatos criativos que as ditaduras encontram para exercer seus desígnios políticos de opressão a suas desafortunadas populações e de assédio aos países que as ameaçam com a explícita demonstração dos benefícios da liberdade. O que efetivamente assusta na DUIDH é a acei tação passiva dos demais países membros da ONU, que não reagiram minimamente contra esta brutal e mal dis farçada agressão aos princípios fundadores da organização.
A covardia política, que faz a ONU silenciar quanto à agressão aos direitos fundamentais dos seres humanos que vivem sob a lei islâmica, se esconde atrás de uma proble mática conceituação denominada “relativismo cultural”, pela qual é errado impor a todas as culturas os valores ema nados de uma delas. Como se a noção de liberdade do in divíduo possa ser subordinada a um entorno cultural es pecífico sem aleijá-la irremediavelmente. Como se um ser humano, por ter nascido muçulmano, não tenha as mes mas faculdades e aspirações que seus semelhantes de ou tras religiões e aprecie viver oprimido debaixo de ditadu ras. O relativismo cultural traz em seu bojo uma odiosa e indisfarçável carga racista: liberdade é bom para “nós”, mas não para “eles”.
Assim que, sob este ensurdecedor silêncio, continuam se sentando em torno da Comissão de Direitos Huma nos da ONU países que têm entendimento divergente so
bre o que o conceito significa. A Líbia e a Arábia Saudita fazem parte atualmente da Comissão, sem a necessidade de subs crever sua carta fundadora, e mais ainda, subscrevendo uma versão da mesma que despreza os seus princípios básicos.
Neste panorama não é de se estranhar que surjam de dentro da ONU análises que, por exemplo, comparam o sionismo ao racismo, que atribui à Tumba dos Patriarcas Abraão e Sara, Isaque e Rebeca, Jacó e Leah o status de “monu mento nacional palestino”, ou que con cluem pela necessidade da destruição de Israel para a manutenção da paz mundial. Os sublimes ideais que impulsionaram a construção de uma organiza ção supranacional dedicada à proteção dos direitos fun damentais e inalienáveis do ser humano não foram su ficientes para manter esta organização aderente aos seus princípios, uma vez iniciado o duro embate dos interes ses comerciais e políticos.
A ONU, formada após a Segunda Guerra Mundial, su cedeu a Liga das Nações, formada após a Primeira. Am bas tinham a intenção de garantir a paz no mundo. Espero que não seja necessária uma terceira conflagração para que as entidades políticas democráticas finalmente entendam a sua responsabilidade na manutenção do simples conceito de que nosso planeta é habitado por apenas uma espécie de humanos, sem nenhum tipo de adjetivação.
Notas
1. Sobre a biografia de Littman e seu trabalho junto à ONU desde 1986, acessar o Google e a Wikipédia com “David G Littman”.
2. Extraído e traduzido do site http://www.un.org/en/aboutun/index.shtml A ênfa se foi adicionada.
3. Extraído e traduzido do site http://www.un.org/en/documents/charter/preamble. shtml A ênfase foi adicionada.
4. Traduzido do site http://www.un.org/en/documents/charter/chapter1.shtml.
5. Traduzido do site http://www.un.org/en/documents/udhr/index.shtml.
6. Tradução copiada do site da ONU www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language. aspx?LangID=por
7. Said Raja’i-Khorasani, representante do Irã na ONU, na Assembleia-Geral da ONU em 7 de dezembro de 1984.
8. Publicado em 1999 por Westview Press, quarta edição, 2007.
9. Extraído e traduzido do site http://www.alhewar.com/ISLAMDECL.html.
Raul cesar Gottlieb, engenheiro, é ex-chaver da Chazit Hanoar, conselheiro da ARI, vice-presidente da WUPJ América Latina e di retor da revista Devarim
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Ao desembarcar em Amsterdã, em 1615, Gabriel adotou um novo nome, símbolo do início de uma nova vida, tornando-se Uriel.
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u riel da c osta, o anjo torto lusitano
gabriel mordoch
Atrajetória de Uriel da Costa (Porto, 1584/5 Amsterdã, 1640) é um dos exemplos mais radicais do choque cultural intrínseco ao encontro entre conversos portugueses e o judaísmo normatizado ocorrido no século 17.1 Uriel, nascido aliás Gabriel, foi descendente de famílias que possivelmente enfrentaram tanto a expulsão da Espanha em 1492 quanto o batismo massivo imposto em Portugal em 1497. Portanto, ao que tudo indi ca, Uriel fez parte da segunda ou terceira geração de conversos portugueses já ambientados no cristianismo católico.
De maneira esquemática, pode-se dizer que sua desconfiança quanto a cer tos dogmas católicos, principalmente no que diz respeito ao mundo vindou ro e à salvação da alma, o levaram a analisar e perceber contradições entre os livros de Moisés e o Novo Testamento. Convencido da veracidade da lei mo saica, Uriel da Costa resolveu adotar o judaísmo, de modo que se viu obriga do a deixar Portugal para praticá-lo abertamente. Em 1615, desde o porto da cidade de Viana do Castelo, junto com sua família, Uriel embarcou rumo a Amsterdã, onde começava a se estabelecer uma comunidade judaica de back ground converso.2
Ao desembarcar em Amsterdã, em 1615, o converso de Porto realizou o rito de passagem da circuncisão e, como era o costume, adotou um novo nome símbolo do início de uma nova vida. O ex-Gabriel, ora Uriel, pela primei ra vez em sua vida se depara com uma comunidade judaica organizada e que professa sua fé abertamente. Seus integrantes, ex-cristãos novos, ora “judeus novos”, tratavam de (com maior ou menor sucesso) adaptar-se ao judaísmo
O derradeiro texto de Uriel da Costa, publicado em latim em 1686 por um teólogo protestante holandês, veio a ser traduzido às mais diversas línguas. Em seu caráter universalista, o Exemplar Humanae Vitae representa um grito de liberdade que reverbera até hoje.
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das mitzvot, o qual Uriel da Costa pouco conhecia.
A expectativa de Uriel da Costa foi proporcional à sua decepção. Ao cabo de alguns dias ele percebeu que os costumes e regulamentos halachicamente orientados não correspondiam exatamente àqueles prescritos pela lei de Moisés.
Aqueles que são inadequadamente cha mados de sábios judeus, conta Uriel em sua autobiografia, haviam inventado coisas que são contraditórias à pureza que a observação da lei exige. Por isso, não pude conterme, considerando que agradaria a Deus se defendesse livremente a lei. Estes sábios, ju deus de agora, que mantêm seus costumes e engenho maligno combatendo duramen te em favor da seita e instituições dos detes táveis fariseus, não sem esperança de lucro e de modo similar a como antanho lhes fora justamente imputado, para obter os primei ros assentos no templo e as primeiras sauda ções no fórum, não aceitaram que os contestaste nem no mais mínimo, senão que exigiram que seguisse docilmente seus pas sos; se não fizesse assim, me ameaçavam com excluir-me da co munidade e da convivência de todos os demais, tanto no que concerne às coisas divinas como às humanas.3
Que coisas haveriam inventado aqueles “inadequada mente chamados de sábios judeus”? Por que, em pleno sécu lo 17, Uriel da Costa faz lembrar os (detestáveis) fariseus seita religiosa-política judaica da época do Segundo Tem plo que emergiu enquanto grupo diferenciado logo após a revolta dos Macabeus (165-160 a.e.c.)?
Guardiões da Lei Oral, supostamente entregue a Moi sés no Monte Sinai junto com a Lei Escrita, os fariseus, se gundo Uriel da Costa, se equivocaram em situar ambas as leis num mesmo patamar de sacralidade. Em sua ótica pu rista, a Lei Oral base do Talmud representa um acrés cimo indevido, e mesmo pecaminoso, à doutrina original. A redação da Lei Oral, através da qual o judaísmo farisaico viria a perpetuar-se, se achava, assim, em contradição com entre outros o seguinte imperativo de Moisés: Não acrescentareis sobre a coisa que eu vos ordeno, e não subtrai reis dela, para que guardeis os preceitos do Eterno, vosso Deus, que eu vos ordeno (Deuteronômio, 4-2).
Muito embora fosse impossível, na Europa urbana do século 17, ansiar por um judaísmo fiel ao estilo bíblico, mode lado há milhares de anos no deserto do Sinai, Uriel da Costa talvez sim tenha espe rado encontrar um judaísmo que não fos se exclusivamente orientado pelos conti nuadores do antigo farisaismo.
Uma crítica à comunidade sefardita
Habitando em Hamburgo4, para onde havia se mudado após curta temporada em Amsterdã, Uriel da Costa toma cora gem e redige uma relação de práticas que, segundo ele, não passam de invenções tal múdicas e que, portanto, carecem de fun damento por exemplo: a maneira rabí nica tradicional de realizar a circuncisão, o uso rabínico dos filactérios e o acrésci mo de um dia à festa de Pessach fora da Terra de Israel. Determinado, Uriel envia sua crítica à comunidade sefaradita de Veneza, refúgio de ex-conversos e o mais importante centro do judaísmo de extração ibérica da Europa ocidental de então.5
Os parnassim (dirigentes comunitários) da congregação veneziana solicitariam a colaboração de Leon de Mo dena (1571-1648), o celebrado rabino ashkenaze da cida de, na finalidade de rebater o ousado ataque. Modena exi giu que Uriel expressasse arrependimento publicamente caso contrário os parnassim da comunidade sefaradita de Hamburgo deveriam excomungá-lo.
Como as desculpas não vieram, em 1618 Uriel da Cos ta foi excomungado na cidade hanseática. Além do mais, no mesmo ano também o excomungaram in absentia em plena sinagoga hispano-portuguesa de Veneza, numa lúgu bre cerimônia detalhadamente descrita pelo próprio Leon de Modena.6 Para completar o serviço, o rabino veneziano redigiria duas obras que refutam a crítica de Uriel: Magen ve-Tsinah (Escudo e Armadura) e Kol Sakhal (Voz de um Tolo). A verve racionalista de Leon de Modena não o im pediu de valorizar a tradição rabínica: sem ela, o povo de Israel, uma vez na diáspora, não teria sido capaz de man ter sua coesão e unicidade.7
Uriel aparentemente não abandonou Hamburgo, onde Habitando em Hamburgo, Uriel da Costa redige uma relação de práticas que, segundo ele, não passam de invenções talmúdicas e que, portanto, carecem de fundamento – por exemplo: a maneira rabínica tradicional de realizar a circuncisão, o uso rabínico dos filactérios e o acréscimo de um dia à festa de Pessach fora da Terra de Israel.
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esteve ocupado com atividades comerciais, bem como com a redação de um novo texto. Em 1623, entretanto, os re gistros da comunidade sefaradita de Amsterdã, em seu idioma característico, assim atestam:
Os senhores deputados da nação fazem saber a Vsms. como tendo noticia que hera vindo a esta Cidade hum homem que se pôs por nome Uriel Abadat.8 E que trazia muitas opiniões erradas, falsas e hereticas cõtra nossa santissª lei pellas quais já em Amburgo e Veneza foi declarado por herege e excomun gado e dezejando reduzilo á verdade fizerão todas as diligen cias necessarias por vezes com toda a suavidade, e brandura por meo de Hahamim e Velhos de nossa nação, a que ditos sennrs deputados se acharão prezentes. E vendo que por pura pertinacia, e arrogancia persiste em sua maldade e falsas opi niões, ordenão com os Mahamadot das chilot. E co sobre di tos hahamim, apartalo como homem ja enheremado, e maldi to da L. del Dio, e que lhe não fale pessoa alguma de nenhu ma qualidade, nem homem nem molher, nem parente nem estranho, nem entre na casa onde estiver, nem lhe dem favor
algum nem o comuniquem com pena de ser comprehendido no mesmo herem e de ser apartado de nossa communicação.9
Ironicamente, o teor da linguagem da minuta, confor me notam Salomon & Sassoon (1993: 15), faz lembrar o estilo dos registros da Inquisição portuguesa. Quanto ao recurso da excomunhão (herem), é sabido que ele foi amplamente empregado pelos dirigentes da comunidade sefaradita de Amsterdã (bem como de outros centros da diáspora sefaradita ocidental, conforme visto) até fins do século 17, constituindo uma das principais vias discipli nadoras dentro destas jovens comunidades cuja identidade judaica tão somente começava a delinear-se, e que portanto precisavam desenvolver estratégias, nem sempre sutis, para manter sua coesão.10
O tema do mundo vindouro
Ao retornar a Amsterdã, Uriel da Costa tentaria pu blicar o texto no qual vinha trabalhando. Entretanto, os
Em Amsterdã, Uriel da Costa se depara, pela primeira vez em sua vida, com uma comunidade judaica organizada e que professa sua fé abertamente.
Alexei Popkov /
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manuscritos seriam interceptados por um tal Dr. Samuel da Silva (1570-1631). Este médico, igualmente portuense e com passagem por Hamburgo, ex-con verso e ora zeloso “judeu-novo”, seria o encarregado de refutar a nova crítica de Uriel da Costa, dirigida desta vez contra a doutrina da imortalidade da alma e res surreição dos mortos. 11
É sabido que os livros de Moisés silenciam quanto ao tema do mundo vindouro, apresentando causas e consequências tão somente relacionadas à vida neste mundo.
De fato, é sabido que os livros de Moi sés silenciam quanto ao tema do mundo vindouro, apresentando causas e conse quências tão somente relacionadas à vida neste mundo O explícito silêncio da Es critura com respeito ao mundo vindouro foi, desde sempre, uma árdua e incômo da tarefa para os exegetas. Na ótica bibli cista de da Costa, a doutrina da imortali dade da alma e ressurreição dos mortos era, portanto, mais uma das inovações introduzidas pelos fariseus à doutrina divina original. Não por acaso, a retórica de Uriel da Cos ta iria cristalizar contrapercepções reciprocamente inspira
O explícito silêncio da Escritura com respeito ao mundo vindouro foi, desde sempre, uma árdua e incômoda tarefa para os exegetas.
das no mesmo período histórico. Leon de Modena e outros detratores (entre eles o emblemático Menasseh ben Israel) o acu sariam de saduceísmo. Os saduceus, opositores dos fariseus durante os tempos do Segundo Templo, não aceitaram a supre macia da Lei Oral e tampouco a crença na imortalidade da alma e são tidos como os predecessores da seita Caraita.
Não obstante, em 1624 Uriel da Cos ta consegue publicar uma contrarresposta ao tratado do Dr. da Silva. Intitulada Exa me das Tradições Phariseas conferidas com a lei escrita, a obra representa uma sínte se expandida de todas as críticas redigidas por da Costa anteriormente.
Logo após sua publicação, o Exame das Tradições Phariseas foi totalmente banido. Uriel foi encarcerado por cerca de dez dias e liberado sob fiança. A obra duplamente ofensiva (dado que a imor talidade da alma é um alicerce tanto da tradição rabínica quanto cristã) foi condenada às chamas públicas, acendi
Vivendo em Hamburgo, Uriel da Costa redige uma relação de práticas que, segundo ele, não passam de invenções talmúdicas sem fundamento.
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Mapa de Amsterdã; na Europa urbana do século 17, Uriel da Costa ansiava por um judaísmo fiel ao estilo bíblico e modelado no deserto do Sinai.
das provavelmente por iniciativa da própria comunidade judaica amsterdanesa outro procedimento que faz lembrar os métodos da instituição inquisitorial.12
Passados alguns anos, Uriel foi acusado de não cum prir leis de kashrut e obrigado a desculpar-se publicamen te, mediante humilhantes condições as quais não aceitou, de modo que foi anatemizado e isolado da comunidade da qual já estava parcialmente excluído. Em 1639, estrangeiro em Amsterdã, não considerado nem judeu e nem cristão e já farto da solidão devastadora, Uriel admitiria enfrentar a
reconciliação, conduzida através de uma vexaminosa ceri monia, descrita em sua breve autobiografia (Exemplar Humanae Vitae) cuja redação foi finalizada momentos an tes de suicidar-se, em abril de 1640. Este derradeiro texto, publicado em latim em 1686 por um teólogo protestante holandês, veio a ser traduzido às mais diversas línguas. Em seu caráter universalista, o Exemplar Humanae Vitae representa um grito de liberdade que reverbera até hoje.
Desde então, e principalmente a partir da Haskalah (Iluminismo judaico) dos séculos 18 e 19, Uriel da Cos
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o filtro comunitário por Raul Cesar Gottlieb
Aperplexidade
de Uriel da Cos ta ao constatar que o judaís mo praticado na Amsterdã do século 17 diferia em aspectos funda mentais do judaísmo que havia ideali zado através de suas leituras, encontra um intrigante paralelo com o fenômeno contemporâneo, descrito por Haym So loveitchick, em seu texto “Rupture and Reconstruction: the Transformation of Contemporary Orthodoxy”, publicado no volume 28 do número 4 da revista Tradition em 1994.
Soloveitchick constata que a partir da segunda metade do século passa do a ortodoxia moderna se movimentou na direção de um aumento do rigor nas práticas rituais e atribui o fenômeno ao entorno de liberdade política em que vi vem os judeus desde o século 18.
Neste novo entorno ser judeu é uma opção e não, conforme aconte cia na Europa central até o século 18, um destino. Ser judeu religioso e ser judeu religioso ortodoxo são igualmen te opções.
Decorre daí que todos os elemen tos, incluindo vestuário, alimentação, e objetos rituais, utilizados nas atividades
corriqueiras da vida passam a ser sím bolos que demonstram uma opção po lítica e como tal ganham um papel au sente no passado.
Enquanto eram essencialmente ins trumentos de uso diário estes elemen tos evoluíram conforme sua usabilidade e o gosto familiar e comunitário. No mo mento em que se tornaram símbolos de uma opção política, passaram a ocupar o primeiro plano e seu formato tornouse objeto de estudo religioso, tendo a nova geração perscrutado minuciosa mente os múltiplos textos que os regu laram ao longo dos séculos, à procura das definições mais rigorosas.
O traço de união entre o processo que ocorreu com Uriel da Costa, des crito por Gabriel Mordoch, e o da orto doxia moderna no século 20, conforme a brilhante percepção de Haym Solo veitchick, é que ambos procuraram a li teratura judaica para nutrir uma opção política definida previamente ao estu do dos textos.
Não obstante terem os processos ocorridos em circunstâncias completa mente diversas, em ambos se percebe o mesmo fenômeno de recorrer à lite
ratura para referendar uma determina da percepção de como deveria ser a vida judaica ideal.
O balanço entre a percepção fami liar-comunitária, sempre atenta ao mun do exterior, e a tradição recebida é que impulsiona o judaísmo e o faz adquirir novos formatos.
Todas as comunidades judaicas vi vem diariamente o embate que impul siona a construção dos novos rumos e formatos. Somos obrigados a traçar li nhas de conduta adequadas à sensibi lidade de cada nova situação e é atra vés do poderoso filtro comunitário, que referenda o que é aceito e o que é rejei tado, que o judaísmo, em todas as suas vertentes, avança transformando-se.
A vida de Uriel da Costa e a vivên cia da ortodoxia moderna do sécu lo 20 demonstram quão inadequada é a pergunta “o que está escrito na Torá?”, feita com o objetivo de identi ficar critérios de validação de uma de terminada prática.
O filtro comunitário é o que efetiva mente responde à eterna questão de uma tradição em constante mudança: “Até que ponto é possível mudar?”
Cidade do Porto, em Portugal, onde Uriel da Costa nasceu em 1584/85.
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ta é considerado um pioneiro da moder nização e pluralização do judaísmo. Além disso, sua trágica história virou símbolo da luta contra todos os tipos de coerção e intolerância religiosas.
Referências bibliográficas
Da Costa, Uriel. Espejo de una vida humana (Exem plar Humanae Vitae). Edición crítica de Gabriel Albiac. Madrid, Hiperión, 1985.
_____. Examination of Pharisaic Traditions (Exame das Tradições Phariseas) Facsimile of the unique copy in the Royal Library of Copenhagen, sup plemented by Semuel da Silva’s Treatise on the Immortality of the Soul. Translation, notes and introduction by H.P. Salomon and I.S.D. Sas soon, Leiden, E.J. Brill, 1993.
Fishman, Talia. Shaking the Pillars of Exile: “Voi ce of a Foll”, an Early Modern Jewish Critique of Rabbinic Culture Stanford, Stanford Universi ty Press, 1997.
Gebhardt, Carl. Die Schriften des Uriel da Costa Amsterdã Heidelberg London, 1922.
Todas as comunidades judaicas vivem diariamente o embate que impulsiona a construção dos novos rumos e formatos. Somos obrigados a traçar linhas de conduta adequadas à sensibilidade de cada nova situação e é através do filtro comunitário, que referenda o que é aceito e o que é rejeitado, que o judaísmo avança transformando-se.
Kaplan, Yosef. An alternative path to moderni ty: the Sephardi Diaspora in Western Europe , cap. 5: “The Social Functions of the Herem” Brill, Leiden-Boston-Köln, 2000, pp. 108-142.
Notas
1. Os conversos portugueses, mais comumente chamados de cristãos-novos, também ficaram conhecidos por marranos, termo carregado de conotação depreciativa. Em hebraico, o termo em pregado pela historiografia é anussim literalmente “forçados”.
2. O famoso artigo nº 13 da União de Utrecht (1579) garantia a liberdade de credo na República Holandesa.
3. Exemplar Humanae Vitae Traduzido da versão castelhana de Gabriel Albiac, Espejo de una vida humana, p. 31.
4. Nesta cidade havia então uma comunidade judaica com o mesmo perfil da amsterdanesa.
5. Esta lista, intitulada Propostas contra a tradição, foi reproduzi da no original português por Gebhardt (1922: 22-26).
6. Relatione de tutti riti, costumi e vita degl’Hebrei. De acordo com Salomon & Sassoon (1993: 10) este texto de Leon de Mo dena se encontra no Archivio do Stato di Venezia, Santo Uffi cio, b. 94.
7. Sobre Leon de Modena conferir Fishman (1997).
8. Nenhum historiador soube explicar o significado do nome “Abadat” e, no entanto, não há dúvida que se trata do próprio Uriel da Costa.
9. Livro dos Termos da Ymposta da nação Principiado em 24 de Se bat. 5382, fo.12. Reproduzido por Gebhardt, idem, pp. 181-182.
10. Sobre a função social da excomunhão na comunidade sefa radita de Amsterdã conferir Kaplan (2000).
11. A obra do Dr. Samuel da Silva, intitulada Tratado da Immor talidade da Alma, foi publicada em Amsterdã em 1623.
12. O Exame das Tradições Phariseas foi considerado totalmente perdido até 1990, quando uma cópia foi encontrada na Biblio teca Real de Copenhagen.
Gabriel Mordoch é mestrando em Línguas e Literaturas Judaicas na Universidade Hebraica de Jerusalém.
Uriel da Costa enviou sua crítica à comunidade sefaradita de Veneza, refúgio de ex-conversos e o mais importante centro do judaísmo de extração ibérica da Europa ocidental de então.
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o s b nei-anussim ou simplesmente anussim 1
Provas vivas da eternidade do povo judeu
martinho faustino Xavier júnior
“E estabelecerei a Minha aliança entre Mim e ti, e entre tua semente depois de ti, nas suas gerações, numa aliança eterna, para ser teu Deus, e de tua semente depois de ti” (Bereshit – Gênesis 17:7).
Com essa inquebrantável promessa do Eterno gostaria de dar início à abordagem pessoal de um tema que sempre causa acaloradas dis cussões na Diáspora e/ou em Israel: como os bnei-anussim devem ser (re)integrados ao ambiente judaico. À primeira vista pode até parecer que é um assunto que não merece tanta atenção, no entanto, não é tão simples assim.
Pois, basta que um(a) filho(a) “dos forçados” descubra que tem uma série de afinidades (mesmo que inconsciente) com o pensamento e a maneira de ser do judaísmo e pretenda retornar ao seio do povo judeu e receberá as seguintes informações: ou comprova que a sua linha matrilinear é judaica e ao longo dos séculos a mesma não sofreu qualquer ruptura ou só por meio de um longo e, às vezes, dispendioso processo de conversão ao judaísmo é que poderá ser (re) admitido(a) como judeu/judia.
Sem querer polemizar com tal linha de pensamento e de ação, quer quei ra-se ou não, os bnei-anussim são pessoas que trazem dentro de si aspectos ge néticos e comportamentais que irremediavelmente remontam e/ou se identi ficam com o Povo da Aliança. Por mais que modernamente muitos não quei
É bom deixar bem claro que os anussim não são fantasmas e/ou personagens de velhos alfarrábios. Eles, sim, são seres humanos profundamente interessados no resgate de suas raízes, cheios de vida e de ideais, descendentes daqueles judeus e judias que, por longos períodos, tiveram de criar os mais incríveis artifícios para se esconder e/ou fugir dos agentes inquisitoriais e de suas torpes ações.
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A causa dos bnei anussim remonta a um tempo de luta e desespero ante a sanha assassina da Inquisição.
ram ver ou compreender a causa dos anussim, não há como ignorá-la.
Pois ela remonta a um tempo de luta e desespero; de medo e solidão; de simulação e desamparo ante a sanha assassina dos agentes da Inquisição2 na Espanha e depois em Portugal, que, com ferro e com fogo, tinham um único propósito em seus gélidos corações: extirpar da Península
Ibérica e de suas colônias e possessões ultramarinas e qui çá, caso houvesse um domínio da mesma em todo o mun do até então conhecido, qualquer indício ou mesmo res quício da então chamada “heresia” judaica.
No entanto, é bom deixar bem claro que os anussim não são fantasmas e/ou personagens de velhos alfarrábios. Nunca o foram. Eles, sim, são seres humanos profunda
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mente interessados no resgate de suas raízes; cheios de vida e de ideais; descenden tes daqueles judeus e judias que, por lon gos períodos, tiveram de criar os mais in críveis artifícios para se esconder e/ou fu gir dos agentes inquisitoriais e de suas tor pes ações, visto que, como extremamente bem ressaltado por um autor “(...) A In quisição não foi fruto da desinformação e autoilusão católica, mas sim produto cuida dosamente elaborado pela Igreja. As táticas empregadas demonstram que a Inquisição sabia perfeitamente o que fazia”.3
Nunca se deve esquecer que a Inqui sição ibérica durou cerca de 300 anos e durante todo esse período, evidentemen te, muitas das tradições e costumes judai cos só conseguiram chegar a esses sobre viventes por meio de vagas lembranças e práticas que se perpetuaram na intimida de de suas famílias e que não têm relação alguma com o cristianismo que lhes foi imposto. Costumes tais como: não aceitar que um ser humano possa ser a encarnação do Deus Único; rejeitar consciente ou inconscientemente fre quentar cerimônias de outras religiões ou credos; não co mer carne com sangue e dos animais tidos como “carregados”, como o porco, o coelho, a rã, a cobra; rejeição à in gestão dos chamados frutos do mar (camarão, lagosta, os tra, etc.); não fazer orações para “santos” e qualquer outro tipo de ídolo; não aceitar ser chamado de filho desse(a) ou daquele(a) “senhor(a)”; varrer o lixo de suas casas sempre pela porta dos fundos e nunca pela porta da frente (uma reminiscência que aponta haver a lembrança que à porta principal da moradia a presença divina se fazia mais pa tente pela presença da mezuzá); serem filhos de casamen tos endogâmicos, ou seja, de pais que são ou eram primos entre si e, por consequência, serem netos de avôs e avós que também eram primos entre si; serem abençoados por seus pais e abençoarem seus filhos colocando as mãos so bre suas cabeças; fazer orações antes de todas as refeições; acender velas ou castiçais às sextas-feiras à noite no inte rior das moradias; enfim, uma série de comportamentos e práticas que inquestionavelmente remontam ao judaísmo.
O fato de muitos dos anussim só recentemente se descobrirem como elos da longa corrente de vida judaica não os desqualifica em nada. Cada um deles representa uma indescritível vitória sobre a opressão, o desespero, a tortura e morte que pairou sobre o povo judeu por conta da Inquisição.
os desqualifica em nada. Muito pelo con trário. Cada um deles representa uma in descritível vitória sobre a opressão, o de sespero, a tortura e morte que pairou sobre o povo judeu por conta da Inquisi ção. Eles são belíssimos exemplos de que, apesar de tudo, a semente de Israel não foi e nunca será extinta. Eles trazem em seus corações e mentes resquícios de um judaísmo que era praticado clandestina e heroicamente; um judaísmo que já não ti nha mais rabinos e livros de orações; um judaísmo em que a circuncisão não po dia ser praticada por motivos mais do que óbvios; um judaísmo em que não mais se podia ouvir os belíssimos cantos sina gogais e dos quais só restaram sussurros quase inaudíveis; um judaísmo no qual o hebraico foi sendo gradativamente esque cido e se transformando em algo incom preensível; um judaísmo em que as sinagogas foram substituídas por construções precárias e localizadas em locais ermos e de difícil acesso; enfim, um judaísmo que foi ges tado em um verdadeiro labirinto que, ao longo do tempo, foi se constituindo como única maneira de salvar o pouco que restou após a catástrofe inquisitorial.
Para nós, que vivemos na modernidade, não é fácil compreender e/ou ter empatia com uma causa que remon ta às histórias e lembranças daqueles que foram alcançados pelos tentáculos da “santa” Inquisição, que “piedosamen te” “(…) concedia às vítimas o ‘benefício’ da escolha: os que se confessassem arrependidos, (…), eram primeiro mortos pelo garrote e depois queimados; os teimosos iam direto para a fo gueira”.4 Para que tenhamos um exemplo do que foi a ação da Inquisição em terras brasileiras, vejamos a descrição da Visitação do Santo Ofício à Capitania da Paraíba – 1595:
“
O fato de muitos dos anussim só recentemente se des cobrirem como elos da longa corrente de vida judaica não
Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1595, aos 6 dias do mês de janeiro, dia da festa dos Reis, entrou o Senhor Visitador do Santo Ofício destas partes do Brasil Heitor Furtado de Mendonça, com seus oficiais, nes ta cidade Filipéia [de Nossa Senhora das Neves segun do topônimo da capital paraibana], capitania da Paraíba, tendo mandado primeiro a carta de Sua Majestade ao capi tão e governador dela por Sua Majestade, Feliciano Coelho de Carvalho, o qual (porquanto ora nela não há ouvidor ou
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juiz, nem vereador, nem câmara) adminis tra tudo o da governança e da justiça, don de o dito capitão e governador os principais e muitos de a cavalo e de pé saiu fora a re cebê-lo e nela foi bem recebido de todos. E no mesmo dia se publicou à missa na esta ção da Igreja Matriz dela, um mandado dele Senhor Visitador em que declarava que aos oito do mês de janeiro, no domingo pró ximo seguinte, haveria de celebrar-se nela o ato da publicação da Inquisição e haver o sermão da fé e proibia não houvesse outra pregação no dito dia...
“
Como amplamente evidenciado, os anussim são oriundos de um mundo em frangalhos e impregnado de lembranças de uma tenebrosa e profunda escuridão que se abateu sobre os judeus durante o transcorrer da História.
...No edito da fé dá o Senhor Visitador 15 dias de termo para de toda a dita capitania da Paraíba virem perante ele denunciar o que por qualquer modo soube rem que qualquer pessoa tenha dito, feito ou cometido contra nossa santa fé católica e o que tem a santa madre igreja. E no edito da graça concede o dito Senhor 15 dias de graça e per dão, para que, os que neles vierem de toda a dita capitania da Paraíba perante ele confessar suas culpas e fazer delas in teira e verdadeira confissão, sejam recebidos com muita benig nidade e não lhes dê pena corporal nem penitência pública, nem se lhes sequestrem, nem confisquem seus bens, como me lhor e mais largamente se contém e declara nos ditos editos”.5
Como amplamente evidenciado, os anussim são oriundos de um mundo em frangalhos e impregnado de lem branças de uma tenebrosa e profunda escuridão que se abateu sobre os judeus durante o transcorrer da História. Por isso, exigir desses sobreviventes uma prova de sua linha matrilinear judaica é um requisito absolutamente fora de proporção e impossível de ser atendido por qualquer um deles. Apesar de que, por conta da perseguição a que foram submetidos seus antepassados, suas origens judaicas estão mais do que provadas, já que “(...) a perseguição aos cris tãos-novos tinha, antes de tudo, um caráter de discriminação racista: eram perseguidos, presos e penitenciados devido à sua ascendência judaica. Se eram ou não hereges, criptojudeus, se praticavam o judaísmo em segredo, na verdade pouco interes sava ao Tribunal, como é possível ver pelo próprio desenvol vimento do processo inquisitorial, em que o réu tinha sempre que se confessar culpado para salvar sua vida”.6
E essa prova inconteste os anussim trazem gravadas em seus corpos, espíritos e mentes. Eles são testemunhos vi vos de que, mesmo após séculos de opressão e dor, a pro
messa do Eterno ao Patriarca Jacob, de que “(...) será a tua semente como o pó da terra, e te fortalecerás, ao oeste, ao les te, ao norte e ao sul; e por ti serão benditas todas as famílias da terra, e por tu pos teridade” (Bereshit Gênesis 28:14), nun ca foi quebrada.
Justamente por isso uma conversão ao judaísmo significaria que a conversão for çada a que foram submetidos os seus an tepassados foi e continua sendo válida até hoje; uma conversão ao judaísmo impli caria renegar toda uma belíssima e heróica história de resistência ao arbítrio e à mor tandade inquisitorial; uma conversão ao judaísmo significaria ser tratado como um não judeu e, por isso mesmo, jamais ser reconhecido como tendo um passado judaico, pois, uma conversão ao judaísmo, “(...) significa ‘ingresso’ no judaísmo; ‘adesão’ e ‘adoção’. O candidato adere ao ju daísmo e o adota, enquanto o judaísmo adota um novo adep to. É tudo bonito, solene e comovente. Mas, é uma morte his tórica e espiritual de seu passado, nesse ato solene, ignorado, negado e recusado”.7
A grandiosidade do judaísmo é, justamente, não ser tão somente uma religião. Judaísmo é também uma for ma bem particular de ser e existir neste mundo. Uma dessas formas é não se deixar abater pelas agruras e pelos dis sabores. Os anussim têm essas características. Pois desde o momento que se reconhecem como judeus sofrem as mais variadas objeções e, no entanto, sempre caminham de ca beça erguida ante seus detratores, pois creem firmemen te que “(...) Aqueles que têm esperança depositada em Mim não ficarão envergonhados” (Isaías 49:23).
Os anussim não querem tomar ou solapar o espaço de nenhum grupo já integrante das valorosas hostes judai cas. Nunca foi esta a intenção. Eles só reivindicam o espa ço que, de fato e de direito, sempre tiveram dentro do ju daísmo. Aliás, estão tão somente cumprindo uma das eta pas que precedem a chegada do Messias8, ou seja, a reunião dos dispersos de Israel. Referido retorno é notório no meio judaico, pois é previsto em várias passagens do Tanach.9
Por outro lado, não se pode de uma hora para outra e sem os devidos cuidados promover o retorno ao seio do povo judeu de todo aquele(a) que se diz descendente dos anussim: cada indivíduo que queira retornar ao povo ju
7 A Inquisição Ibérica durou cerca de 300 anos e durante esse perío do tradições e costumes judaicos se tornaram lembranças e práticas da intimidade familiar.
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Quando a religião fala somente em nome da autoridade, sua mensagem se torna sem sentido.
deu deve ter sua história individual minuciosamente inves tigada por rabinos sérios e de coração aberto. Pois só as sim eles saberão “separar o joio do trigo”, visto que, den tre o(a)s possíveis candidato(a)s ao retorno podem exis tir pessoas inescrupulosas e que só queiram extrair bene fícios materiais e pessoais com a condição de judeu/judia retornado(a). Que durante e mesmo após este depuramen to (cujo tempo de duração variará em cada caso concreto) o(a) candidato(a) ao retorno será apresentado(a) às tradições, aos mandamentos e ao idioma hebraico, pois, por conta das nefandas privações impostas a seus antepassa dos, não lhe foi possível receber no ambiente familiar tão rica e singular herança. Que, por fim, lhe deve ser ensina do que “(...) A unidade interna, ahavat Yisrael, paz e har monia salvaguardam até contra a punição pelo pior casti go; mas quando ‘seu coração está dividido, eles suportarão a sua culpa’ (Oséias 10:2).
Apesar da idílica observância ritual dos dias do Segundo Templo, as divergências, o ódio gratuito e as discórdias provo caram a destruição do Bet Hamikdash (transliteração nos sa) e a atual galut”.10
Como nota final, gostaria de deixar para reflexão da queles que ainda não se compadeceram da questão anus sim o sábio alerta do rabino e filósofo judeu Abraham Joshua Heschel (1907-1972): “(...) Quando a fé é com pletamente substituída pelo credo, o culto pela disciplina, o amor pelo hábito; quando a crise de hoje é ignorada pelo esplendor do passado; quando a fé se torna um mero ob
jeto herdado em vez de uma fonte de vida; quando a reli gião fala somente em nome da autoridade em vez da com paixão, sua mensagem se torna sem sentido”.11
Notas
1. Bnei-anussim, filhos dos forçados ou “ben anús” (filho forçado) ou ainda judeus marranos São os descendentes de judeus portugueses e espanhóis que foram obri gados a se converter ao cristianismo pela imposição da “Santa Inquisição” No Bra sil, os Bnei- anussim são encontrados principalmente em regiões de antiga coloni zação como na região nordeste e na região sudeste. Wikipédia Enciclopédia Vir tual. Disponível em <Wikipédia org/wiki/B%27nei_anussim>. Acessado em 208-2010
2. Inquisição em Portugal e no Brasil O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi instalado oficialmente na Espanha em 1478 e em Portugal em 1536, a pedido da Coroa e aprovado pelo Papa para punir qualquer infração contra os dogmas da re ligião católica. Seu principal alvo foi o judaísmo, seguido de diversas práticas con sideradas heréticas, como o homossexualismo, a sodomia, feitiçaria, bigamia, as proposições heréticas e blasfêmias (…). Adaptado do Portal Rumo à Tolerância.
3. Diesendruk, Arnold. Os Marranos em Portugal (1920-1950), p. 14.
4. Scliar, Moacir. Judaísmo – Dispersão e Unidade, p. 113.
5. Pinto, Zilma Ferreira. A Saga dos Cristãos-Novos na Paraíba, pp. 181-182.
6. Disponível em <http://www.scribd.com/doc/7352068/Lina-GF-Silva-OS-JU DEUS-E-A-INQUISICAO>. Acesso em 24.09.10.
7. Dias Medeiros, João Fernandes. Nos passos do retorno, p. 177.
8. Messias, adaptação do termo hebraico Mashíach (ungido). Pessoa escolhida por Deus para redimir, reconstruir o Templo, trazer os exilados de volta a Israel e ser o guia para o mundo inteiro.
9. Tanach, acrônimo de Torá (Lei), Neviím (Profetas) e Chetuvím (Escritos). Torá es crita; aquilo que os não judeus chamam de Antigo Testamento.
10. Schochet, Jacob Immanuel. Mashiach: O Princípio de Mashiach e a Era Messiâni ca na Lei e na Tradição Judaica, p. 53.
11. Heschel, Abraham Joshua. Deus em Busca do Homem, p. 19.
Martinho Faustino Xavier Júnior, advogado militante em João Pes soa, Paraíba, e membro da Sinagoga Braz Palatnik em Natal, Rio Grande do Norte (http://sinagogabrazpalatnik.webs.com).
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e m p oucas palavras
Ainda a Mezuzá
Recebemos
e-mail de Helio Cher man, a quem agradecemos, co mentando sobre a seção “Pilpul” da úl tima Devarim. Apresentamos o texto re cebido em versão condensada:
“A velha piada poderia ser aplicada ao Pilpul? Disse o rabino ao seu au xiliar: Ele tem razão, ela tem razão e você também. Os dois articulistas, não ortodoxos (é óbvio), têm a mesma vi são o judaísmo liberal admite mudan ças, adaptações e evolução, porém, ve jam, considera necessário estudar, ler e agir para avaliar se os fundamentos não foram afetados pelas mudanças.
O segundo expositor... ao admitir a impressão do conteúdo da mezuzá im põe condições que, em última análi se, são as mesmas a serem obedeci das pelo sofer... Ora, por que então não usar o pergaminho e escrever na forma tradicional?
Delegar ao sofer, desde que proce
dendo da forma preconizada, não des merece o valor da delegação, que, em última análise, seria delegada à secre tária, ao computador e à impressora. O sofer, porém, o fará mantendo a beleza da forma e a conexão com o passado revelador. Escrever o claf não deve ser banalizado, ao contrário, deve ser valo rizado. E o Pilpul também.”
Comentamos que, apesar de próxi mas, as opiniões apresentadas se dis tanciavam quando uma defendia a im portância do modelo tradicional para o claf da mezuzá, enquanto a outra pre conizava maior liberalidade quanto à forma da impressão. Ambas são visões da Devarim, e é natural que tenham afi nidade, ainda que divirjam.
Mas talvez um importante e polêmi co aspecto tenha ficado de fora da dis cussão, aspecto este defendido no email que recebemos: quem (ou o quê) determina que um sofer é válido?
Ao transferir a elaboração do per gaminho (ou impresso) para o escri vão, entramos na seara fundamental para o judaísmo liberal, que é a indis pensável quebra do monopólio da vi são ortodoxa do certo e do errado no judaísmo. Consideramos um sofer re ligioso liberal, seja ele profissional ou não, escreva ele apenas um claf para uso pessoal ou milhares para comercia lizá-los tão válido quanto o sofer orto doxo, visão cujo reverso provavelmen te não será aceito.
Se há, portanto, um aspecto de con vergência nas opiniões apresentadas, este certamente relaciona-se ao fato de que, seja para compor um claf impres so, seja para fazê-lo manuscrito sobre pergaminho, o sofer, adequadamente preparado e inspirado, não deve estar restrito ao universo e aos métodos da ortodoxia.
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Indignação seletiva
Em artigo publicado no diário vir tual American Thinker em setem bro último, Fred Gottheil descreve sua odisseia para buscar apoio a uma pe tição a favor dos direitos humanos ne gados a homossexuais e contrária aos abusos cometidos contra mulheres em boa parte dos países árabes.
A iniciativa se deu após chegar às suas mãos uma petição, também rela cionada à defesa dos direitos huma nos, condenando o Estado de Isra el após a campanha militar em Gaza. Essa petição, endereçada ao presi dente norte-americano Obama, critica va Israel severamente, demonizando-o com termos recorrentes como “limpe za étnica”, “crimes contra a humanida de”, “regime racista” e assim por dian te. Criada pelo acadêmico que lhe deu nome, a petição Lloyd foi subscrita por nada menos que 900 pessoas, a maio ria acadêmicos americanos, mas tam bém canadenses, britânicos e até mes mo israelenses.
Ainda que uma dúzia de universi dades concentrasse a maioria das as sinaturas, os subscritores da petição eram ligados a 150 diferentes insti tuições.
Frente ao enorme interesse na de fesa dos direitos humanos suposta
mente infringidos por Israel, qual não foi a surpresa de Gottheil ao perceber a baixíssima adesão à sua petição a fa vor das minorias tiranizadas por gover nos árabes.
Sua petição não generalizava as acusações, mas condenava as práti cas exercidas ou apoiadas por líde res religiosos, políticos e até mesmo acadêmicos, tais como assassinatos para defesa da honra, mutilação geni tal, agressão a esposas. Ela era acom panhada por farta documentação pu blicada por agências das Nações Uni das, pelo Alto Comissariado para Di reitos Humanos, por ONGs relaciona das à defesa destes direitos e por jor nais acadêmicos diversos.
A petição de Gottheil não mencio nava a petição Lloyd, nem sequer era direcionada ao presidente americano, mas tão somente para disponibilidade em domínio público, da melhor e mais acessível maneira.
Todos os que assinaram a petição Lloyd foram procurados, posto que a nova petição defendia o mesmo senti do de justiça que os fizera apoiar o tex to anterior. Foram cortadas da lista pes soas estranhas ao mundo acadêmico e os não americanos, reduzindo-se então a mesma a 675 pessoas.
O resultado foi que apenas 30 pes soas responderam, sendo que destes exíguos 27 concordaram em apoiar a petição. Ou seja, menos de 5% do to tal. “Mais de 95% dos que assinaram a petição Lloyd”, escreve Gottheil, “cen surando Israel por violação dos direi tos humanos, não se sentiram motiva dos a condenar a discriminação contra homossexuais e mulheres no restante do Oriente Médio.”
A pesquisa de Gottheil não para por aí. Ele identificou que 25% dos acadê micos procurados lidavam profissional mente com questões ligadas ao estudo de gênero e/ou das mulheres, ou seja, pessoas que presumidamente seriam mais sensíveis às agressões sofridas por minorias sexuais e mulheres.
Ele conclui que muito se pode aprender sobre a natureza humana e o entendimento sobre o que signifi cam justiça social e direitos humanos para boa parte do universo acadêmi co americano. Aparentemente, para boa parte do mundo acadêmico nor te-americano a luta pelos direitos hu manos não é um valor absoluto. Ela está sujeita a um filtro que seleciona perpetradores e vítimas. Qual seria o resultado de pesquisa semelhante nas universidades brasileiras?
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Perigosa deserção
“Rabinosnão estão comprome tidos com as restrições da de mocracia”, declarou o rabino da cida de de Elon More, na Cisjordânia, Elia quim Levanon, um dos rabinos mais in fluentes da ideologia nacional-religiosa que impulsiona a colonização israelen se nos territórios ocupados em 1967.
Num debate ocorrido em 13 de ou tubro, que discutiu a participação de rabinos nos embates políticos, o rabi no Levanon afirmou que o sistema de mocrático de governo e de tomada de decisão “distorce a realidade”, porque cria meios-termos falsos de compro missos mútuos, enquanto os rabinos estão comprometidos unicamente com a Torá – a “verdade absoluta” segundo ele – e não com a democracia.
Ele declarou que os rabinos não têm o privilégio de manter suas opini ões para si mesmos, inclusive quando elas contradizem os valores da demo cracia. “As pessoas são obrigadas a di
zer meio café, meio chá1, afirmou ele, mas os rabinos são livres para ter pen samentos puros e claros, mesmo quan do suas observações parecem estra nhas. Rabinos podem dizer coisas que os políticos, legalistas e pensadores democráticos não podem.”
Os conceitos proferidos pelo rabi no Levanon soam estranhos por vários motivos: de um lado ele advoga uma situação moral e ética especial para os rabinos, quando em toda a litera tura e legislação judaica é claríssimo que o papel de um rabino é o de en sinar, apoiar e, por vezes, dirigir a co munidade, sem que se tenha notícia de mitzvot praticadas unicamente por rabinos. A obrigação de falar a verda de é de todos.
Em seguida ele diz que a Torá é a verdade absoluta, mas não explica que para chegar à verdade da Torá cada um deve dialogar com Deus a seu modo e que no momento em que, por princípio
básico e irremovível, Deus é indefinível, fica impossível definir qual a única ver dade da Torá.
Mas o que é mais perigoso é o dis tanciamento dos ideais democráticos defendidos pelo rabino Levanon. Ele se aproxima perigosamente da argu mentação que criou a teocracia totali tária do Irã, que infelicita sobremanei ra a vida de suas minorias e de sua dissidência interna. Sendo uma minús cula minoria no mundo e, desta for ma, tendo constantemente posições dissidentes, nós judeus deveríamos valorizar a democracia, reconhecer o fato de que é apenas por conta dela que somos cidadãos iguais nos países onde vivemos e nos engajar com vigor em sua defesa.
1. Isto é uma alusão a uma piada contada na época do primeiro ministro Levi Eshkol, tido pela impren sa como hesitante. Ao ser perguntado pelo garçom se queria chá ou café ele teria respondido: misture, por favor, meia xícara de cada...
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Noúltimo ‘Cócegas’, depois de refle tir sobre como as ideologias proati vas e conceituais cederam lugar aos processos de negação do contrário – ou do diferente – como única forma de afirmar a si mesmas, propus aos leitores, e a mim tam bém, refletir sobre uma visão proativa de um grande ‘sim’ para o povo judeu, para o Esta do nacional do povo judeu e para um mode lo de relações entre eles. Como se estivés semos de novo ao pé do Sinai, escolhen do nossos compromissos e nosso caminho através de um deserto que precisamos atra vessar antes de atingir uma terra prometi da, um objetivo, uma forma de vida. A tra vessia e a terra como meios indispensáveis para podermos construir um futuro baseado na identidade que resulta dessas escolhas. Ou seja, para que antes de, inevitavelmente, termos de nos defender daqueles que nos rejeitam e querem destruir, saibamos exata mente aonde queremos chegar, e o que va mos defender.
Reitero aqui, mais uma vez, o conceito fundamental de que toda identidade se ba seia na consciência (memória) de quem se é, de onde se veio e onde se está, e em ter, a partir daí, uma intenção de futuro. Sem isso, ninguém (pessoa, instituição, nação) tem como dar um passo sequer. Ao longo de 4.000 anos de existência, a história ju daica resulta de uma visão proativa de um futuro a partir de uma identidade, e da de cisão de mantê-la. Essa visão fez o povo ju deu ancorar seu comportamento num siste ma ético especificamente codificado, para atravessar um deserto, criar uma nação na terra que era seu centro antes mesmo do início da jornada, criar os mecanismos que sustentaram essa visão durante 2.000 anos de dispersão como um caminho de retorno, depois criar o mecanismo de retorno ade quado ao mundo contemporâneo. E final mente voltar, e ser de novo uma nação es tabelecida, dona de seu destino, livre para continuar a jornada.
Para onde? O que sim? Três processos perturbaram o processo proativo da história judaica e a visão clara de um ‘sim’, de um fu turo desejado e visado:
1) a necessidade de o povo judeu na dispersão sobreviver às perseguições, ao isolamento, à assimilação, processos de
correntes da dispersão judaica, que fize ram dos mecanismos defensivos (o ‘não’ ao ‘não’ do outro) o determinante da visão judaica de continuidade. Defender-se da entrada dos inimigos (antissemitismo, po groms) e da saída dos irmãos (assimilação) exigiu criar muralhas (gueto, barreiras cultu rais e religiosas) como defesa. Defender o judaísmo tornou-se mais importante do que vivê-lo. O judaísmo nos usou para viver, em vez de nós o usarmos para viver; o ‘não’ ao ‘não’ substituiu o ‘sim’;
2) a necessidade de a nação judaica restabelecida ter de continuar esse mesmo processo, ou seja, enfrentar uma realidade de ameaça existencial, na qual a sobrevivên cia, a defesa, o ‘não’ ao ‘não’ tornou-se prio ritária à construção de um caminho proativo que vise chegar a um objetivo vivencial cla ro, judaico, como continuação do caminho iniciado ao pé do Sinai; em Israel também primeiro é preciso defender-se das amea ças, mesmo que isso implique a prevalên cia do que não se pode fazer, em detrimen to de – pelo menos saber – o que se quer fazer como projeto nacional, como nação do povo judeu;
3) a divisão do povo judeu em duas rea lidades distintas: metade vive em seu Es tado nacional, metade vive na dispersão, e esta metade, ao contrário da visão de Herzl, não ‘está em marcha’. Será possível imagi nar um futuro comum, um processo comum, uma ideologia comum, uma cultura comum, um programa comum para dois grupos que, muitas vezes, têm até interesses vitais opos tos? Em outras palavras, o sionismo ainda existe ou o pós-sionismo já é uma realidade
Xyno aulo g eiger
inevitável? Existirá um ‘sim’ comum aos ju deus da dispersão e aos de Israel?
Não é resposta fácil, nem mesmo para um eventual messias. Eu a imagino mais ou menos assim: sim ao conceito milenar que resistiu 4.000 anos de que o povo judeu continua a ser um povo só, e na busca cons ciente de um futuro comum; sim à inten ção de futuro que quer manter essa unida de apesar da divisão atual; sim ao compro misso com o judaísmo, com sua visão ética (nos vários níveis de religiosidade e de ba ses filosóficas em que se expressa), com o comportamento que constitui sua identida de, com a visão de justiça que foi sua gran de contribuição à humanidade; sim a um Israel judaico (nos valores como nos sím bolos), Estado-nação do povo judeu, Esta do de todos os seus cidadãos, inserido no campo democrático e progressista da hu manidade, pluralista, pacifista, convivendo com todos os povos; sim à sua busca de uma solução de paz em que, sem sacrificar a segurança, consciente dos perigos e das ameaças, desconfiando até prova em con trário das verdadeiras intenções de seus ini migos, assim mesmo admita assumir riscos até o limite possível para que sua existência livre e soberana não se realize sobre escom bros de sua ética judaica, uma solução que o defenda de ser vítima sem o transformar em opressor; sim ao sionismo como a vi são de que o povo judeu é um povo só, seu centro é Sion, em Sion se estabeleceu Is rael, seu Estado nacional, que é o músculo do povo judeu; sim à ideia de que o papel contemporâneo do sionismo é manter todos os segmentos do povo judeu e o Estado de Israel interligados por pontes permanente mente iluminadas, para que por meio delas se mantenha a unidade e por elas transitem, sempre, todos os judeus que assim quise rem, ou precisarem; sim a um futuro judai co assim construído por todos os judeus.
Essa visão contemporânea de um maa mad Sinai (com perdão por algum exagero na metáfora) exige também a reafirmação de naassé venishmá. Para vir a ser um pro grama de construção de um futuro a par tir da realidade de hoje. Para ser o bastião a ser defendido, o sim como definição, um caminho judaico que seja a continuação ló gica da história judaica.
o Q ue sim de “o que não, sim. que sim?”)
64 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
(Continuação
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cócegas no raciocínio