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Paulo Geiger

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Gabriel Mordoch

Gabriel Mordoch

as entrelinHas da História de israel: como traduzir amós oz

paulo geiger

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Este artigo não é de crítica literária. É o relato de uma experiência, a partir do desafio de tentar escrever em português alguns livros que Amós Oz escreveu em hebraico como Oz os escreveria se escrevesse em português. E não seria exatamente esta, afinal, a tarefa de um tradutor?

Não é uma crítica literária. É o registro dos ecos, da ressonância, das impressões que perduram após cada ponto final de cada tradução de cada livro de Oz. Assim como a música de um concerto ao qual acabamos de assistir e que nos acompanha na saída do teatro, ao adormecermos e nos dias seguintes, as histórias de Amós Oz nunca são apenas o produto do talento de um contador de histórias que se expressa num texto, analisável segundo os parâmetros da literatura; mais do que isso, são causadoras de uma impressão profunda, persecutória, quase tão obsessiva quanto o jeito de narrá-las, e talvez por isso.

Amós Oz usa tons pastéis para pintar telas de colorido intenso. Fala do cotidiano com a naturalidade realista do próprio cotidiano, sempre hesitando, nunca afirmando peremptoriamente; e dessas possibilidades, desse potencial de todas as coisas que ‘podem ser’, ou existir, como contraponto daquilo que (talvez) realmente é e existe, resulta aquilo que, mesmo ‘sendo’, nunca é definitivo, nunca é o ponto final, e nem mesmo o ponto final de cada livro é o fim da(s) história(s) que conta. E esse cotidiano trivial, em que o que existe é o ponto de partida de outras possibilidades, é que é, afinal, a grande Amós Oz usa tons pastéis para pintar telas de colorido intenso. Fala do cotidiano com a naturalidade realista do próprio cotidiano, sempre hesitando, nunca afirmando peremptoriamente.

Foto: Bel Pedrosa / Editora Companhia das Letras

aventura, o colorido desenhado em pastéis, o drama e a comédia (desde a fina comédia das ironias até a mais grotesca, tipo pastelão).

Em Rimas da vida e da morte, algumas horas da noite de um escritor e dos personagens reais que encontra a caminho de sua conferência, e durante a conferência, transformam-se em histórias e protagonistas, a ponto de não mais haver distinção entre o que é história real e o que é criação literária. Em geral, o processo de um escritor é o inverso do processo do leitor. Aquele codifica a realidade em ficção, este decodifica a ficção como realidade.

Mas neste livro os processos se confundem, e o leitor é obrigado a ser cúmplice do escritor nas jornadas de sua imaginação, seja na ficção, seja na realidade. É o romance do romance, as possibilidades da literatura a se confundirem com as da própria vida. Tudo que acontece nessa noite em Tel Aviv, e a partir dela na imaginação de outros momentos de outros lugares, acontece na cabeça e nas palavras do personagem, personagem que também é o narrador do que acontece consigo mesmo.

E, como em todos os livros de Oz, a paisagem, o mood do país ou de cada um de seus subcenários, seus contextos históricos e culturais demarcam vivamente tudo o que acontece ou não acontece. Neste caso particular, sou testemunha pessoal do talento descritivo de Oz, porque também andei, como o escritorpersonagem, pelas mesmas ruas de Tel Aviv em noites de verão, porque conheço o hospital Ichilov por dentro, porque

Sou testemunha pessoal do talento descritivo de Oz, porque também andei, como o escritor-personagem, pelas mesmas ruas de Tel Aviv em noites de verão, porque conheço o hospital Ichilov por dentro, porque testemunhei a nostalgia, às vezes irônica, de outros moods israelenses num passado não muito distante.

testemunhei a nostalgia, às vezes irônica, de outros moods israelenses num passado não muito distante.

Em Cenas da vida na aldeia, histórias de personagens que se cruzam em seus roteiros distintos numa pequena aldeia israelense, o real e o surreal perdem qualquer fronteira divisória, o que pode ser e o que é são quase a mesma coisa, o misterioso sobe ao primeiro plano como insinuação de alternativas para a vida pacata dos habitantes da aldeia: Uma vez mais, drama e comédia, medo e esperança, amargura e amor, adesões e abandonos, surgimentos fantásticos e desaparecimentos misteriosos coexistem em todas as suas cores na rotina diária e cinzenta de Tel Ilan.

Para Amós Oz, mais uma vez, a realidade é quase uma ficção, no processo inverso da criação literária. O que não acontece pode acontecer, ou já está acontecendo, ou é só uma ilusão? Um jovem desapareceu a caminho de sua amorosa (e um tantinho incestuosa) tia, ou é só o medo e a solidão dela que a fazem imaginar tal coisa? Tem alguém cavando sob as fundações da casa do velho e rabugento ex-líder trabalhista? Quem? O porão de uma casa será a masmorra do homem que a quer derrubar, como num conto de Edgar Allan Poe? A mulher do funcionário da prefeitura desapareceu, seria coincidência ele ser, a partir daí, insistentemente seguido por um cão? Teria algum futuro a paixão de um adolescente pela bela e madura bibliotecária da aldeia? Que presença se manifesta, numa noite de canto coletivo, no quarto em que um jovem se matou sob a cama dos pais? O surreal e o irreal serão apenas ângulos de visão do real?

Uma certa paz é uma história de crises. A crise de um país novo, Israel, um ano e meio antes de junho de 1967, quando enfrentaria e venceria uma tríplice alian-

o texto de Amós oz por Paulo Geiger

Depois de traduzir para a Companhia das Letras quatro livros de Amós Oz, refiz meu conceito de que a boa tradução consiste em expressar num bom português aquilo que o autor expressara em sua própria língua. Aprendi que traduzir Amós Oz – e talvez isso valha para todo autor – é principalmente sintonizar com seus sentimentos, suas ideias e suas possíveis lembranças, entrar o mais possível em sua cabeça, seu coração e seu estômago, e escrever em português do mesmo jeito que ele escreveria se escrevesse em português.

Em Oz isso quer dizer, muitas vezes, relativizar ‘boas regras’, abrir mão de ‘textos redondos’ para fazê-los ásperos e angulosos, nem sempre mantê-los fluentes porque são às vezes espasmódicos, não buscar coerência onde a incoerência é que prevalece.

Por exemplo:

Oz é repetitivo. Repete palavras, repete situações, insiste em certos termos, como uma nota em baixo contínuo; usa refrões, insiste em evocações recorrentes, porque assim acontece na vida e nas histórias que ele cria.

Oz mistura tempos verbais, o futuro como presente e até como passado, o presente como passado, às vezes num mesmo período, fazendo lembrar o estilo bíblico, mas sem a letra ‘vav’ inversora da Bíblia, que faz o futuro valer como passado. O tempo gramatical em Oz é escravo, não senhor, do tempo literário. Um parágrafo pode começar tendo um sujeito como relator e terminar na voz de outro.

Oz nunca se refere a quantidades definidas, é sempre dois ou três, dez ou doze, porque a quantidade exata não é importante, seus números retratam conceitos, não quantidades.

Oz não dá importância a ‘continuísmos’, a trama não precisa ser coerente nos fatos, só na impressão que eles suscitam. Em “Rimas”, um personagem é tio de um outro no início do livro, mas é primo no fim. Em “Uma certa paz”, uma mulher tem cabelos cortados curtos quando descrita pela primeira vez, mas os tem em bastas tranças que lhe coroam a cabeça ‘dois ou três’ (à la Oz) dias depois. (Falei com o autor sobre o primeiro caso, ele respondeu que era proposital).

Oz usa abundantemete a metáfora explícita, a comparação de situações com alternativas paralelas; as pessoas agem e as coisas acontecem “como que...”, “como se...”, ampliando a descrição do ‘real’ com um substrato simbólico ou ilustrativo do ‘possível’.

As entrelinhas de Oz são quase tão poderosas quanto as linhas escritas. Nelas habitam suas lembranças pessoais, os contextos históricos de Israel e do povo judeu, canções, poemas, lemas e slogans. Nelas se retrata a época, o lugar, o mood de uma geração.

Finalmente: em Oz, quem descreve a realidade (ou a máscara da realidade, como queria o teatro grego) não é o autor, mas seus personagens. São eles que dão o tom e a direção.

Por tudo isso, muitas vezes decidi comprometer a fluência, tão necessária na leitura de ficção, e acrescentar notas que permitissem ao leitor penetrar no mundo não visível, mas tão presente na história, para usufruir do que é mais importante numa leitura, e fundamental em Oz: enxergar a totalidade do contexto, e nele ver um fragmento representativo do mundo e da humanidade. (Este texto foi originalmente publicado no Blog da Editora Companhia das Letras.)

ça de inimigos e a ameaça existencial que eles representavam, e ao mesmo tempo consolidaria, com a vitória, a já em curso transformação de seu modelo pioneiro original numa sociedade fundada nos valores capitalistas da eficiência e da competição, para desencanto dos personagens, que também é o desencanto do autor. A crise do kibutz, uma comunidade que se apoia em princípios de pioneirismo, coletivismo e igualdade, quando seus filhos buscam inspiração em outros modelos, comprometendo o modelo dos pais. E a crise individual de um desses filhos, que procura uma saída para a mesmice e a autoanulação que ele pensa lhe estar sendo imposta pela sociedade coletivista, ao sair para uma aventura drástica e redentora, e afinal descobrir que a grande aventura é a vida em si mesma, em seu cotidiano aparentemente cinzento, mas intensamente colorido em suas multifacetas.

Oz viveu essa transição, que ele trata com grande vigor descritivo, como sempre através da visão e das palavras de seus personagens, entre os quais figuras tão reais como o primeiro-ministro Eshkol, tão representativas como o líder do kibutz e de uma geração de líderes idealistas, tão irritantes como o jovem fugitivo de perseguições e humilhações, eco de Spinoza, e que ainda busca no kibutz a sociedade ideal, e que contrapõe seu idealismo arrogante ao desespero suicida de seu novo amigo, o herói da história, com quem compartilha a mulher desequilibrada num incrível, implausível, tão grotesco quanto idílico triângulo. O drama, a ironia, o trivial misturam-se num cenário que também é um personagem, seja na Galileia, seja nos desertos do Neguev e da Jordânia, descritos com um êxtase que certamente retrata o amor que lhes tem o escritor. E por fim, como coroamento de todas as crises existenciais, a volta à realidade, aos valores, à simplicidade épica do dia a dia.

E em O monte do mau conselho Oz conta três histórias de Jerusalém, pouco antes do estabelecimento do Estado de Israel, três histórias entrelaçadas, quase que uma história só. Histórias de uma cidade (e de um país dividido) entre duas populações que se preparam para

Depois de traduzir um embate mortal, uma em busca da inquatro livros de Amós Oz, refiz meu conceito dependência nacional, outra decidida a não permiti-lo. Histórias de uma comunidade de imigrantes da Europa que ainde que a boa tradução da não achou seu lugar nas agrestes paiconsiste em expressar sagens e nos costumes da Terra Prometinum bom português da, mas que a adotou irremediavelmente aquilo que o autor como outra pátria, inclusive alternativa. Não porque não tem sem sofrimento, expressara em sua não sem pesadelos, não sem crises interprópria língua. Aprendi nas e externas. que traduzir Amós De novo misturam-se personagens

Oz é principalmente quase banais com excêntricos vultos, sintonizar com seus como as radical, o irmãs musicistas, o misterioso visitante inquilino que talvez sentimentos, suas nem tivesse existido, cruzando com figuideias e suas possíveis ras emblemáticas da história real, como lembranças. Arthur Ruppin, o comissário inglês Alan Cunningham, Martin Buber e Agnon. Para tecer, bem à moda de Oz, a teia intrincada que abrange o real e o fantástico, o material e o simbólico, o explícito e o implícito, o ingênuo e o satírico, como os inevitáveis opostos que formam a realidade, não só a ‘realidade’ ficcional literária, em que não há impossíveis, mas a realidade em si, onde tudo é possível. Quanto à maneira de expressar, à forma com que conta sua história e descreve o contexto, Oz escreve em linhas e entrelinhas (veja o box “O texto de Amós Oz”), explícita e implicitamente, cheio de alusões históricas, literárias e políticas, apoiado em símbolos e paradigmas, o que faz com que suas histórias se enredem em outras realidades, de outros tempos e lugares. Seu texto não é linear, não respeita o continuísmo como fator de plausibilidade e realidade, às vezes é anguloso e espasmódico como aquilo que retrata; o texto é parte da história, está dentro dela, nunca é a de um narrador externo; os conflitos, as emoções, as ideias chegam ao leitor a partir dos personagens, e não do autor. Porque, afinal, é no autor Oz, bem como no leitor de Oz, que residem todos os personagens que vivem a história. O mundo de Oz é Israel, Jerusalém, um kibutz na Galileia, uma aldeia nos montes de Menashe, as ruas de Tel Aviv. Ele mesmo vive à beira do deserto, em Arad. Ao descrever essas paisagens em suas histórias, vemos que nelas cabe o mundo. Este mundo e todos que talvez existam.

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