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Paulo Geiger
o Que sim (Continuação de “o que não, sim. e o que sim?”)
paulo geiger
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No último ‘Cócegas’, depois de refletir sobre como as ideologias proativas e conceituais cederam lugar aos processos de negação do contrário – ou do diferente – como única forma de afirmar a si mesmas, propus aos leitores, e a mim também, refletir sobre uma visão proativa de um grande ‘sim’ para o povo judeu, para o Estado nacional do povo judeu e para um modelo de relações entre eles. Como se estivéssemos de novo ao pé do Sinai, escolhendo nossos compromissos e nosso caminho através de um deserto que precisamos atravessar antes de atingir uma terra prometida, um objetivo, uma forma de vida. A travessia e a terra como meios indispensáveis para podermos construir um futuro baseado na identidade que resulta dessas escolhas. Ou seja, para que antes de, inevitavelmente, termos de nos defender daqueles que nos rejeitam e querem destruir, saibamos exatamente aonde queremos chegar, e o que vamos defender.
Reitero aqui, mais uma vez, o conceito fundamental de que toda identidade se baseia na consciência (memória) de quem se é, de onde se veio e onde se está, e em ter, a partir daí, uma intenção de futuro. Sem isso, ninguém (pessoa, instituição, nação) tem como dar um passo sequer. Ao longo de 4.000 anos de existência, a história judaica resulta de uma visão proativa de um futuro a partir de uma identidade, e da decisão de mantê-la. Essa visão fez o povo judeu ancorar seu comportamento num sistema ético especificamente codificado, para atravessar um deserto, criar uma nação na terra que era seu centro antes mesmo do início da jornada, criar os mecanismos que sustentaram essa visão durante 2.000 anos de dispersão como um caminho de retorno, depois criar o mecanismo de retorno adequado ao mundo contemporâneo. E finalmente voltar, e ser de novo uma nação estabelecida, dona de seu destino, livre para continuar a jornada.
Para onde? O que sim? Três processos perturbaram o processo proativo da história judaica e a visão clara de um ‘sim’, de um futuro desejado e visado: 1) a necessidade de o povo judeu na dispersão sobreviver às perseguições, ao isolamento, à assimilação, processos decorrentes da dispersão judaica, que fizeram dos mecanismos defensivos (o ‘não’ ao ‘não’ do outro) o determinante da visão judaica de continuidade. Defender-se da entrada dos inimigos (antissemitismo, pogroms) e da saída dos irmãos (assimilação) exigiu criar muralhas (gueto, barreiras culturais e religiosas) como defesa. Defender o judaísmo tornou-se mais importante do que vivê-lo. O judaísmo nos usou para viver, em vez de nós o usarmos para viver; o ‘não’ ao ‘não’ substituiu o ‘sim’; 2) a necessidade de a nação judaica restabelecida ter de continuar esse mesmo processo, ou seja, enfrentar uma realidade de ameaça existencial, na qual a sobrevivência, a defesa, o ‘não’ ao ‘não’ tornou-se prioritária à construção de um caminho proativo que vise chegar a um objetivo vivencial claro, judaico, como continuação do caminho iniciado ao pé do Sinai; em Israel também primeiro é preciso defender-se das ameaças, mesmo que isso implique a prevalência do que não se pode fazer, em detrimento de – pelo menos saber – o que se quer fazer como projeto nacional, como nação do povo judeu; 3) a divisão do povo judeu em duas realidades distintas: metade vive em seu Estado nacional, metade vive na dispersão, e esta metade, ao contrário da visão de Herzl, não ‘está em marcha’. Será possível imaginar um futuro comum, um processo comum, uma ideologia comum, uma cultura comum, um programa comum para dois grupos que, muitas vezes, têm até interesses vitais opostos? Em outras palavras, o sionismo ainda existe ou o pós-sionismo já é uma realidade inevitável? Existirá um ‘sim’ comum aos judeus da dispersão e aos de Israel?
Não é resposta fácil, nem mesmo para um eventual messias. Eu a imagino mais ou menos assim: sim ao conceito milenar que resistiu 4.000 anos de que o povo judeu continua a ser um povo só, e na busca consciente de um futuro comum; sim à intenção de futuro que quer manter essa unidade apesar da divisão atual; sim ao compromisso com o judaísmo, com sua visão ética (nos vários níveis de religiosidade e de bases filosóficas em que se expressa), com o comportamento que constitui sua identidade, com a visão de justiça que foi sua grande contribuição à humanidade; sim a um Israel judaico (nos valores como nos símbolos), Estado-nação do povo judeu, Estado de todos os seus cidadãos, inserido no campo democrático e progressista da humanidade, pluralista, pacifista, convivendo com todos os povos; sim à sua busca de uma solução de paz em que, sem sacrificar a segurança, consciente dos perigos e das ameaças, desconfiando até prova em contrário das verdadeiras intenções de seus inimigos, assim mesmo admita assumir riscos até o limite possível para que sua existência livre e soberana não se realize sobre escombros de sua ética judaica, uma solução que o defenda de ser vítima sem o transformar em opressor; sim ao sionismo como a visão de que o povo judeu é um povo só, seu centro é Sion, em Sion se estabeleceu Israel, seu Estado nacional, que é o músculo do povo judeu; sim à ideia de que o papel contemporâneo do sionismo é manter todos os segmentos do povo judeu e o Estado de Israel interligados por pontes permanentemente iluminadas, para que por meio delas se mantenha a unidade e por elas transitem, sempre, todos os judeus que assim quiserem, ou precisarem; sim a um futuro judaico assim construído por todos os judeus.
Essa visão contemporânea de um maamad Sinai (com perdão por algum exagero na metáfora) exige também a reafirmação de naassé venishmá. Para vir a ser um programa de construção de um futuro a partir da realidade de hoje. Para ser o bastião a ser defendido, o sim como definição, um caminho judaico que seja a continuação lógica da história judaica.
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