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Rabino Sérgio R. Margulies
simples lugares com a benção do sagrado
“não há nada que não tenha o seu lugar” (Pirkei Avot – Ética dos Pais)
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As cavernas
rabino sérgio r. margulies
Soterrados e isolados, os mineiros do Chile estavam numa caverna cavada nas profundezas da terra pelos homens em busca da riqueza. Foram resgatados num ato que gerou comoção mundial.
A caverna moldada pela natureza ou pela mão humana pode ser um refúgio escolhido ou tornar-se o lugar de isolamento para quem não tem outra opção senão esconder-se como o profeta Eliahu (Elias). Relata o Tanach (Bíblia) que no período do Rei Ahab (século 9 a.e.c.) foi perseguido por combater a idolatria e escondeu-se na caverna. Se a caverna era natural, o artifício da mão humana opressora tentava soterrar suas ideias.
Também o rabino Shimon ben Iochai, a quem é atribuída a autoria do livro cabalista Zohar, perseguido no século 2 da era comum pelo Império Romano, isolou-se na caverna. A intolerante mão do império que ceifava a liberdade impôs a ele o isolamento por anos. De modo similar há o relato de um sobrevivente do Holocausto que se escondeu numa caverna. Ali, num esconderijo cavado pela ação da natureza, protegia-se, pois sua existência era inaceitável para a insana criação humana da ideologia nazista.
Quem resgatou estes – e tantos outros – que estavam escondidos nas cavernas? Não havia humanidade comovida. Ao contrário, havia humanidade conivente.
Os resgates
O paraíso em sua e Talvez Eva. De tivessem acordo sido com salvos por Adão uma interpretarepresentação da perfeição não ção judaica do texto bíblico, a expulsão retrata a vida e deles do paraíso permitiu que se tornas- tolhe o crescimento. sem seres humanos capacitados a enfren- Portanto, o paraíso tar sua as vicissitudes representação da da vida. O paraíso em perfeição não retraparadoxalmente não ta a vida e tolhe o crescimento. Portanto, é o paraíso. Ensina o paraíso paradoxalmente não é o paraíso. o dito chassídico: Fora do paraíso poderiam encontrar o pa- “O paraíso está em raíso não num lugar específico, mas sim nossos corações”. em seus corações. Ensina o dito chassídico: “O paraíso está em nossos corações”.1 Fora do paraíso físico tinham a opção de construir um paraíso espiritual em seus corações. Deste modo, se o paraíso não era o paraíso, a caverna inóspita talvez pudesse não ser tenebrosa desde que conseguissem encontrar – por mais difícil que fosse – algo em seus corações.
Talvez tivessem sido salvos pela mensagem do patriarca bíblico Iaacov (Jacob), que em sua andança repleta de tormentas adormeceu sobre um travesseiro de pedra (símbolo da dureza de sua vida) e, ao despertar, exclama: “Então há Deus neste lugar e eu somente não sabia” (Bereshit/ Gênesis 28:16). Com estas palavras ecoando em seus corações, conseguiram encontrar Deus até mesmo ali no isolamento imposto das cavernas.
Talvez estes e tantos que se esconderam tivessem sido salvos das cavernas por causa das tavernas. Na Europa Oriental finda a Idade Média judeus viajavam de um lugar para outro. Rabinos visitavam comunidades, leigos iam para cidades maiores visitar os mestres, vários eram mercadores, uma vez que a atividade comercial fora a única facultada aos judeus na época do feudalismo, muitos fugiam de condições precárias de vida e das perseguições sistemáticas. Para estes tantos viajantes as tavernas eram lugar de encontro e descanso nas quais se confraternizariam com outros viajantes judeus. A caverna simboliza o isolamento e a taverna o compartilhar. No compartilhar é sentida a presença de Deus, pois é no relacionamento cultivado –independentemente do lugar, até mesmo numa taverna –que a presença divina se encontra.
Certa vez o rabino Chanoch procurou seu mestre Rebbe Simcha Bunam (1765-1827): “Eu estou vivo, tenho braços e pernas, olhos e ouvidos, mas não sei o porquê de minha existência e por que fui criado”. Rebbe Simcha Bunam disse: “Eu também não sei, então vamos compartilhar do jantar juntos”. A parábola ensina que dúvidas eternas não são ilusoriamente satisfeitas com respostas efêmeras. O compartilhar de uma mesa de refeição é a resposta. No lugar deste encontro há presença divina.
A espiritualidade
A espiritualidade não é inerente ao lugar, mas brota através do vínculo estabelecido em determinado lugar. Neste sentido, pontua o rabino contemporâneo Lawrence Kushner, não há termo no hebraico clássico para espiritualidade. Como a espiritualidade não é destituída do material não há necessidade de um termo específico.2 A espiritualidade está no ato concreto do vínculo. Por isso, mesmo uma caverna e uma taverna podem ser sagradas e lá se encontrar espiritualidade.
O Templo de Jerusalém, do qual hoje resta o Muro das Lamentações, era considerado – e o Muro por consequência é considerado – como o lugar sagrado do judaísmo. A sacralidade deles emerge dos vínculos passados lá constituídos que fazem parte da nossa memória coletiva e nutrem nossa dimensão espiritual.
O lugar do Templo
O Templo foi construído onde o patriarca Avraham (Abrahão) quase sacrificou seu filho Itschak (Isaac) no episódio narrado na Torá. O que o levou a esta atitude?
Avraham havia rompido com seu pai, Terah, vendedor de ídolos, a fim de instaurar uma fé não idolátrica. Agora Avraham temia o rompimento com seu próprio filho e agiu demonstrando sua força. É uma força aparente diante do dilema interno em que se digladiam o poder de controlar o outro e o amor de um pai capaz de entender os caminhos de seu filho. O lugar doTemplo representa os conflitos internos, as emoções fracionadas e os pensamentos confusos. Ter estado no Templo – hoje no Muro – é deparar-se com nossa dimensão fragmentada, nossas dúvidas e anseios para então integrar nosso ser.
O lugar do Templo – e do Muro – remonta a um segundo dilema de Avraham: entre a obediência à ordem divina de sacrificar seu filho Itschak e o amor que tem a este. O lugar é sagrado porque dele emerge a percepção dos dilemas da vida, das difíceis opções que temos que fazer. A opção amparada pelas referências dos valores dos personagens de nossa religião ganha um contorno de sacralidade, pois um diálogo que rompe a solidão da decisão é estabelecido.
O Templo também foi o lugar em que o terceiro patriarca do povo judeu, Iaacov (Jacob), teve o seu sonho. Segundo a interpretação da tradição oral judaica, o Templo foi transportado para o lugar em que Iaacov sonhava. A sacralidade é transportável. No lugar em que estamos podemos construir um templo que seja a casa de nossos sonhos. Por isso, mesmo com a estrutura física do Templo destruída pelos babilônios, os profetas bíblicos afirmaram que nossas comunidades e nossos lares são como pequenos templos – meat mikdash –, lugar em que vínculos podem ser construídos tornando-se sagrados.
O ritual e a mensagem do Templo
No solene Dia do Perdão, o Iom Kipur, o Cohen hagadol (Sumo Sacerdote) entrava num recinto dentro do Templo de Jerusalém que somente ele, e uma única vez por ano, poderia entrar para proclamar o nome divino. O Cohen ha-gadol tinha em sua cintura amarrada uma corda para que a comunidade pudesse resgatá-lo do recinto exclusivo. A espiritualidade não estava no êxtase do Cohen ha-gadol, mas sim na proteção comunitária através de seu resgate. A espiritualidade é o vínculo que une a comunidade ao seu líder religioso sem o qual o Cohen ha-gadol ficaria isolado, simbolicamente soterrado. Ao ser resgatado, pôde cumprir sua missão e pôde proclamar a santidade do seu ato.
No ano 70 da era comum, o Templo que havia sido restaurado foi destruído pelos romanos. O desespero foi atenuado pela força de uma nova mensagem. Expulsos, os dispersos poderiam levar a mensagem da Torá para os
A espiritualidade não quatro cantos do mundo. O sagrado era a é inerente ao lugar, mas brota através do mensagem cultivada neste Templo. O paradigma de valorizar a mensagem remonta ao recebimento da Torá no vínculo estabelecido Monte Sinai após o povo de Israel ter fuem determinado lugar. gido da escravidão do Egito antigo. As pi-
Não há termo no râmides cultuadas no Egito são imóveis; hebraico clássico para a Torá é móvel. cima indicando A pirâmide aponta para que o sagrado é acima, a espiritualidade. Como Torá veio do Monte, demonstrando que a espiritualidade não é o sagrado é na Terra. A pirâmide é fechadestituída do material da; a Torá é um rolo a ser aberto e estudanão há necessidade de do: o sagrado está para ser construído. A um termo específico. pirâmide é do faraó. A sagrado está na relação Torá é do povo. O que o povo estabeEla está no ato concreto lece através do estudo da Torá. do vínculo.
O novo Templo
O renascimento do sionismo no século 19 resgatou o sonho milenar judaico de criar em seu antigo lar – a Terra de Israel – o novo Estado. Surgiu em 1903 a proposta de fornecer um território como refúgio a judeus perseguidos naquele período na região da Uganda. Esta proposta foi rejeitada, mas por que não aceitá-la, afinal o lugar não é sagrado e sim o que nele se faz? Exatamente por isto: na Terra de Israel, e não em outro lugar, o povo judeu tem presença ininterrupta. Descartar este vínculo é como arrancar a raiz de uma árvore, rompendo o vínculo de sacralidade com a terra que dá esteio ao Estado na época a ser estabelecido. Nos anos prévios ao estabelecimento do Estado setores religiosos ortodoxos criticavam os pioneiros de orientação socialista. O rabino-chefe daquele período da Terra de Israel, Avraham Kook (1865-1935), disse que o trabalho dos pioneiros no dreno das terras equivalia à construção do Templo sendo, assim, inquestionavelmente essencial. O reconhecimento do valor do convívio e a complementaridade dos diferentes permitem o sagrado emergir em dado lugar. Mesmo que impedidos de visitar o Muro pelos que sucessivamente dominavam Jerusalém, o Muro continuou envolto de sacralidade ao ser a referência unificadora dos anseios das preces judaicas emitidas de qualquer lugar do mundo. Após 1967, quando o povo judeu teve readquiri-

da a liberdade de visitar o Muro, a sacralidade foi mantida porque o Estado de Israel assegurou aos muçulmanos o direito de visitar e cuidar da Mesquita, construída séculos após o Templo e localizada ao lado do Muro.
Os lugares Daquele que é O Lugar
Um dos atributos de Deus é ha-makom, termo hebraico que significa “O Lugar”. Fisicamente os lugares são demarcados. Geram posse. Caim, o primeiro assassino descrito na Torá, anseia a posse – seu nome vem do verbo hebraico adquirir. A posse exclusiva do que é de todos potencializa mortes. Qual o lugar daquele que se chama “O Lugar”? Todo lugar. Se fosse somente algum lugar, induziria à morte. É a tentativa de confinar Deus/O Lugar que torna a religião instrumento de poder. É a possibilidade de transcender Deus/O Lugar que torna a religião instrumento do sagrado.
Os vários lugares – das cavernas às tavernas, doTemplo aos santuários familiares e comunitários – podem ser preenchidos pelo sagrado. A literatura rabínica traz a seguinte imagem: Na maré alta uma caverna localizada numa montanha rochosa à beira-mar fica cheia, mas o oceano não fica mais vazio. Quando a maré desce, a água sai e a caverna fica mais vazia, mas o oceano não fica mais cheio. Assim, a fonte divina, em Sua infinitude, pode preencher qualquer caverna, qualquer lugar. Mas temos que perceber isto. E optar por isto. Em suas jornadas o povo judeu fez sua opção. Que continue sendo a nossa.
Notas
1. Movimento místico judaico surgido na Europa Oriental no século 18. 2. A influência de outras culturas levou a ser cunhado no hebraico contemporâneo a palavra ruchaniut.
Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union College (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
