Viola da Terra - Crónicas

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CRÓNICAS RAFAEL COSTA CARVALHO DA VIOLA TERRA

FICHA TÉCNICA

Título: VIOLA DA TERRA – CRÓNICAS

Autor: Rafael Costa Carvalho email: rcarvalhoazores@gmail.com

Prefácio: Santos Narciso

Edição: Rafael Carvalho©

Revisão: Gina Carvalho

Fotografia na badana: TM / Fernando Resendes Execução Gráfica: Nova Gráfica, lda Sandra Fagundo

Tiragem: 250 exemplares ISBN: 978-989-33-2276-5

Depósito Legal: 488343/21

Apoio:

AGRADECIMENTOS

Um agradecimento ao Jornal Atlântico Expresso pelo desafio de escrever uma série de crónicas sobre a Viola da Terra, e a todos os que leram a rubrica semanal e foram dando apoio e sugestões.

Obrigado a todos os que contribuíram com o seu conhecimento para o enriquecimento de cada crónica, e com a cedência de fotografias.

Um grande agradecimento ao Sr. Santos Narciso pela sua disponibilidade imediata para prefaciar este livro.

Obrigado à minha esposa, Sílvia Silveira, pelo trabalho de rever comigo cada crónica no sentido de tornar a escrita mais directa e compreensível para todos.

Obrigado à minha irmã Gina Carvalho pela revisão gramatical dos textos do livro.

Obrigado à Direção Regional da Cultura. Dedicado à minha esposa Sílvia e ao meu filho Henrique.

PREFÁCIO

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VIOLA DA TERRA, CRÓNICAS…

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DA VIOLA, SUAS CORDAS E SEUS NOMES… .................................................... 23

AFINAÇÕES DA VIOLA… ................................................................................................. 27

RASGUEADOS, PONTEADOS E OUTRAS QUESTÕES… ............................. 31

TRASTOS, PONTOS, ESPELHOS E VAIDADES… .............................................. 33

SÍMBOLOS, SAUDADES, COROAS E FORTUNA… 37

REPERTÓRIOS DA VIOLA… ........................................................................................... 43

A VIOLA NÃO SE ENSINAVA, APRENDIA SE… 49

CANTIGAS À VIOLA… ........................................................................................................ 53

A VIOLA E O CONVÍVIO… ............................................................................................... 57

A VIOLA E O CARNAVAL… .............................................................................................. 61

A VIOLA E A CANTORIA… ............................................................................................... 65

A VIOLA E OS FOLIÕES… ............................................................................................... 69

A VIOLA NO CONSERVATÓRIO REGIONAL DE PONTA DELGADA… . 75

ENCONTROS DE VIOLAS, AMIZADES E PARTILHAS… 83

ENCONTROS DE VIOLAS AÇORIANAS… ............................................................. 89

DIA DA VIOLA DA TERRA… 95

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 99

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ÍNDICE

Índice de figuras

Fig. 1 – Esquema da viola com 5 ordens de cordas. Imagens do Livro “Método para Viola da Terra – Iniciação”. .. 24

Fig. 2 e 2.1 – Viola de 12 e de 15 cordas. Fotografia de Rafael Carvalho e Bruno Bettencourt. 24

Fig. 2.2 – Viola de 18 cordas. Fotografia de Raimundo Leonardes. 25

Fig. 3 – Esquema de afinação da Viola de 5 Ordens (1.ª ordem em Ré). Imagens do Livro “Método para Viola da Terra – Iniciação”.

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Fig. 4 – Esquema de afinação da Viola de 5 Ordens (1.ª ordem em Mi). Imagens do Livro “Método para Viola da Terra – Iniciação”. ............................................................................................................................................... 28

Fig. 5 – Diferentes afinadores da Viola da Terra. Fotografias de Rafael Carvalho. ................................................. 34

Fig. 6 – Esquema da Viola de Dois Corações. Imagens do Livro “Método para Viola da Terra – Iniciação”. ............ 34

Fig. 7 – Diferentes formas do cavalete. Fotografias de Rafael Carvalho. .............................................................. 38

Fig. 8 – Formas de abertura do tampo harmónico. Fotografias de Rafael Carvalho. ............................................ 39

Fig. 9 – Representação da Coroa do Espírito Santo. Fotografias de Rafael Carvalho. ............................................ 39

Fig. 10 e 10.1 – Imagem da capa e contracapa do trabalho “São Miguel em Viola da Terra”. ................................ 45

Fig. 11 – Audição do Dia da Criança em 2018 na Igreja do Colégio. Alunos da Classe de Viola da Terra do Conservatório Regional de Ponta Delgada e alunos da Escola de Violas da Fajã de Baixo. Fotografia de Ana Sousa. .......................... 52

Fig. 12 – Imagem de um excerto do livro “Summer in the Azores with a Glimpse of Madeira”, de C. Alice Baker, de 1882. 58

Fig. 13 – Folia do Espírito Santo da Ilha de São Miguel. Edição postal, final de Séc. XIX. Casa Havaneza. 70

Fig. 14 e 14.1 – Desfile com Bezerros acompanhado com Filarmónica e Viola, Ilha Terceira. Revista “Ilustração Portugueza”, 9 de Março de 1914.

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Fig. 15 – Partitura da “Folia do Espírito Santo”. 73

Fig. 16 – Diário dos Açores, Fevereiro de 1983. 76

Fig. 17 – “I Dia da Viola da Terra”, Junho de 2009. Conservatório Regional de Ponta Delgada. 78

Fig. 18 – II Encontro de Violas de Arame, 2010 – Igreja de São Paulo, Ribeira Quente. 84

Fig. 19 – Cartazes das 10 edições do Festival Violas do Atlântico. 86

Fig. 20 – I Encontro de Violas Açorianas, Auditório Municipal da Povoação. Setembro de 2011. 90

Fig. 21 – As Violas do Encontro de Violas Açorianas 2019.

Fig. 22 – A Viola e a Mulher. Página da Revista do CORDAS World Music Festival.

Fig. 23 – Logotipo do “Dia da Viola da Terra”.

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PREFÁCIO

“Partilhar, questionar, aprender e ensinar um instrumento que não se ensi‑ nava… aprendia se!” Aqui está o melhor resumo que se poderia fazer sobre este livro. Rafael Carvalho marca o ritmo e a substância desta obra com estes quatro verbos, que dizem tudo: partilhar, porque a arte não existe para si mas para os outros, questionar, porque todo o caminho se faz de interrogações que se tornam (ou não) oportunidades de decisão, aprender, porque a sede de saber só se mata com tempos e modos de aprendizagem, e ensinar, porque o dom de transmitir conhecimentos é o mais belo corolário do saber.

Por isso mesmo, este livro não precisa de qualquer prefácio. E muito menos um prefácio de alguém para quem a viola da terra continua um mistério na sua execução e na multiplicidade dos seus sons que nos levam a infini tos de tempo e ternura de passado. Criei‑me embalado por esses sons. Da Ribeira Quente, onde Rafael Carvalho nasceu a 22 de Setembro de 1980, à “minha Ribeira das Tainhas”, poucas léguas vão e, com certeza que os mes mos ou semelhantes acordes vibravam nas ruas e casas, festas e arraiais, em tempos de Natal e Reis, Estrelas e Matanças, Carnaval e Espírito Santo, baile rodado ou furado, sapateia, saudade ou desgarrada!

Eles e elas, mãos tisnadas de trabalho, dedilhavam a viola da terra, com corações, por vezes sangrando, unindo arte e alma aos dois corações que consagram tão belo e nosso património.

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Sempre achei extraordinário o título que Rafael Carvalho escolheu para as suas inesquecíveis crónicas no semanário “Atlântico Expresso”, “9 Ilhas, 2 Corações”. Essencialmente porque como magistralmente define o autor “não têm de ser os 2 Corações da Viola. É muito mais do que isso: corações que nos unem há séculos, mesmo quando circular entre as Ilhas era privilégio só de alguns, mas em que o bater do pé nos temas mais picadinhos e que convi davam ao baile ou o aperto forte no peito de quem escutava as “Saudades” era igual”. Porque o tanger da Viola sempre uniu os Açorianos.

É preciso, porém, que se diga que este livro, apesar do seu título “ Viola da Terra – Crónicas” é muito mais que a recolecção das crónicas publicadas no Atlântico Expresso. Elas aqui estão, algumas com adaptações e actualização e outras que em livro ganham a sua própria vida, pois que estórias de vida são de alguém que, na sua juventude, nos dá já um testemunho que não tenho receio de classificar único e entusiasmante e que marca as últimas décadas no campo da música nos Açores.

Rafael Costa Carvalho começou a aprender a arte da viola da terra em 1994, com esse grande mestre e entusiasmo do nosso folclore, Carlos Quental, e no ano seguinte já começou a dar formação na Escola de Viola da Terra da Ribeira Quente, terra que marca pelas suas iniciativas, entre as quais a de membro fundador do Grupo de Violas/Foliões da Ribeira Quente em 1996 e do grupo “Musica Nostra” em 2005.

Foi membro do Grupo Folclórico São Paulo de 1993 a 2005 e colaborou com os Grupos Folclóricos das Camélias (Furnas), São Pedro (Lomba do Cavaleiro), Água Retorta, Fajã de Baixo e o da Associação Académica da Universidade dos Açores

Como ele próprio escreve no seu espaço da blogosfera, em 1996 estreou ‑se a acompanhar as Cantigas ao Desafio, com o seu colega Jaime Braga ao Violão, conseguindo, ainda que com alguma dificuldade no

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princípio, afirmar a Viola da Terra neste género musical, que havia sido substituída pela Guitarra Portuguesa. Nesta última década teve o prazer de acompanhar ao Desafio, Desgarrada e Velhas, cantadores como Jorge Rita, João Luís Mariano, Lupércio Albergaria, António Silva, António de Sousa, José Eliseu, João Ângelo, Mota, João Leonel, José Fernandes, Vasco Aguiar, Manuel Antão entre outros.

Foi também responsável pela Escola de Viola da Terra e Violão da Ribeira Quente que já formou, nos últimos 20 anos, dezenas de músicos que têm assegurado a continuidade dos grupos e tradições que existiam na Freguesia e estavam em vias de se extinguir.

Formou em 2005 com Ricardo Melo e Ana Medeiros o trio Musica Nostra com o qual lança o primeiro trabalho discográfico em 2010 "Cantos da Terra". O mesmo grupo actua em 2008 no X Aniversário da Orquestra Regional Lira Açoriana, num Concerto inédito para Orquestra e Viola da Terra. Este grupo também já actuou nas 9 Ilhas dos Açores, tendo ainda actuado em Bruxelas por duas vezes, no Teatro da Trindade e nos espaços Fnac do Colombo e Alfragide.

É formador da Escola de Viola da Terra da Fajã de Baixo. Foi também Formador de Viola da Terra na Academia de Música da Povoação de 2007 a 2010.

Exerce funções docentes (professor provisório) de Viola da Terra, desde o ano lectivo 2008/2009, no Conservatório Regional de Ponta Delgada. Desenvolveu o primeiro Programa Mínimo de Viola da Terra Micaelense para o Conservatório Regional de Ponta Delgada, da Iniciação ao V Grau.

Com o seu saber e com o número de solicitações sempre a crescer, participou no I Encontro de Violas de Arame, de 11 a 13 de Setembro de 2009, em Castro Verde, representando os Açores com a Viola da Terra.

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Estiveram também presentes Pedro Mestre (Viola Campaniça), José Barros (Viola Braguesa) e Vitor Sardinha (Viola de Arame – Madeira), e organizou em 2010, no Conservatório Regional de Ponta Delgada, o II Encontro de Violas de Arame com a presença também do tocador de Viola Brasileira Chico Lobo.

Tem desenvolvido um conjunto de aulas de Viola da Terra online para apoio às pessoas que não têm acesso a um professor de Viola da Terra, e tem mantido o site www.violadaterra.webs.com, o primeiro site dedi cado unicamente à Viola da Terra e que tem uma actualização muito frequente no seu Blogue.

Em 2010 participa no Projecto Azorecombo – Transmutações para Viola da Terra num Concerto para Viola da Terra e Música Electrónca onde tocou com @c (Miguel Carvalhais e Pedro Tudela) e Vitor Joaquim

Em Junho de 2010 é convidado para tocar na Inauguração da Exposição "A arte do Violeiro", no Museu de Vila Franca do Campo, pelo Dr. Rui de Sousa Martins, tendo ao Violão o tocador Dinis Raposo e ainda Carlos Estrela à Viola da Terra.

Organiza desde 2009 o “Dia da Viola da Terra” no Conservatório Regional de Ponta Delgada e é o responsável e Director Musical da Orquestra de Violas da Terra formada em Fevereiro de 2010 e que conta actualmente com cerca de 30 elementos, todos tocadores de Viola da Terra da Ilha de São Miguel.

Organizou com a Associação de Juventude Viola da Terra o “I Encontro de Violas Açorianas” a 2 e 3 de Setembro de 2011 que envolveu a presença de tocadores de 5 Ilhas dos Açores, Flores (José Serpa), Graciosa (António Reis), Pico (Orlando Martins), Terceira (Lázaro Silva) e São Miguel (Rafael

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Carvalho. Um evento que a Viola aguardou cerca de 5 séculos nos Açores para que se concretizasse.

Concluiu o Curso Básico de Viola da Terra no Conservatório Regional de Ponta Delgada, tendo sido o primeiro músico Micaelense a submeter‑se a exame de V Grau de Viola da Terra.

Colaborou com a RTP Açores no programa "Açores 9 Ilhas na Europa" com a gravação do genérico numa junção do "Hino à alegria" com uma "Sapateia", tendo ainda gravado um tema de cada Ilha para ser passado ao longo dos programas da Série documental.

Lançou em Fevereiro de 2012 o seu primeiro CD a solo "Origens" com 10 temas instrumentais, 5 dos quais temas originais, o que constituiu o primeiro trabalho do género na Viola da Terra nos Açores.

O tema "Mouraria" do seu CD "Origens" foi utilizado como genérico do "Programa das Festas" da RTP Açores, num projecto de Vasco Pernes e Rui Machado.

Em Novembro de 2013 lançou o seu primeiro livro "Método para Viola da Terra – Iniciação" com partituras de iniciação ao instrumento, ilustrações de Luís Cardoso, e, ainda, com vídeos de apoio online de todas as peças e exercícios. Para além disso o Método para Viola da Terra adoptou o Príolo como mascote.

Lançou em Setembro de 2014 o seu segundo CD "Paralelo 38" que resgata algumas variações de temas tradicionais, continua a sua vertente de novos temas originais, e combina, ainda, instrumentos como Contrabaixo, Violoncelo, Violino, Gaita‑de Foles, Violão e Percussão.

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Colaborou no CD "Chi‑Coração" da multi instrumentista Açoriana BIA, com a participação em 4 temas com Viola da Terra.

Colaborou com o Realizador Zeca Medeiros no seu filme "O Livreiro de Santiago" executando um dos temas do filme em Viola da Terra.

Em Outubro de 2015 lançou o seu segundo livro "Método para Viola da Terra – Básico" com partituras, acordes e vídeos de apoio online de todas as peças e exercícios.

Compôs o tema "Gente Franca" para a série televisiva da RTP Açores, com o mesmo nome, produzida por Vasco Pernes.

A 28 de Maio de 2016 participa no espectáculo comemorativo dos 75 anos da RDP Açores e Sata Air Açores, num evento que decorreu no Teatro Micaelense. Nessa gala musical foi convidado a tocar num quarteto formado para a ocasião com Manuel Costa Júnior, Manuel Canarinho, Manuel Rocha e Rafael Carvalho.

Em Outubro de 2016 editou o seu terceiro livro o "Método para Viola da Terra – Avançado".

Colaborou com o Realizador Zeca Medeiros na série televisiva de 11 episódios "Viola de Dois Corações", executando em Viola da Terra um tema tradicional de cada Ilha dos Açores.

Colaborou com Sérgio Ávila e José Serra com temas musicais originais para o programa "Jovens Cientistas dos Açores".

Foi convidado a participar com um momento musical em duo, com o seu irmão César Carvalho, na cerimónia de atribuição de título Honoris

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Causa ao Dr. Jaime Gama que decorreu a 6 de Março de 2017 na Aula Magna da Universidade dos Açores.

Em 2017 editou o seu terceiro álbum a solo, intitulado de “Relheiras”, com 7 originais seus para Viola da Terra. Em 2018 editou o álbum duplo “9 Ilhas, 2 Corações”, com 80 modas tradicionais Açorianas, modas de todas as Ilhas dos Açores. Em 2019 apresenta “Um Natal à Viola”, um álbum com 14 músicas de Natal.

Em 2020 edita o álbum “Sons no Tempo”, com o trio Origens, que fundou em 2016 com a Violinista Carolina Constância e o irmão César Carvalho ao Violão.

Em 2021 apresenta o seu 6.º álbum a solo, “Cordas do Mundo”, numa viagem musical por várias sonoridades do mundo, pelos sons da Viola da Terra.

Caber tanto em 40 anos de vida é um fenómeno que a poucos é dado, mas que Rafael Carvalho assume com uma simplicidade e autenticidade que dele fazem um verdadeiro mestre na música e no saber estar que demonstra sempre e ao todos na sua já proverbial disponibilidade.

É importante deixar este registo aqui, porque, muitas vezes, somos prontos a elogiar a e reconhecer valores que vão sendo importados ao sabor das modas e dos interesses e relegamos para o plano do esquecimento ou da indiferença o valor e a garra dos nossos que, na obscuridade e no quase anonimato de cada dia, vão engrandecendo a nossa Terra e preservando as nossas tradições.

Para além do aspecto didático de muitas das crónicas destes livro que nos ensinam coisas, como “Da viola, suas cordas e seus nomes”, “Afinações da viola”, “Rasgueados , ponteados e outras questões”,

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“Trastos, pontos , espelhos e vaidades”, ou ainda esta magnífica crónica/ capítulo intitulado “Símbolos , saudades , coroas e fortuna”,

Rafael Carvalho, de forma encantadora, pois a sua linguagem, eivada de simplicidade é, ao mesmo tempo cativante e sugestiva, ainda nos leva aos mais diversos momentos e ambientes em que a viola é rainha, tais como convívios, carnaval, cantorias e foliões.

Os muitos encontros, seminários, eventos culturais e exibições que se vão multiplicando por essas ilhas, mostram aquilo que o autor deste livro vem defendendo e que prova o trabalho que ele e mais uns quantos têm feito pela divulgação e ensino da viola da terra. Da ideia de que era um “instrumento dos antigos”, passou‑se para a realidade de hoje, com centenas e centenas de jovens de todos os Açores a dar vida, uso e amor à viola da terra, numa verdadeira “ressurreição”, mais valiosa ainda porque da aprendizagem meramente empírica e oral se passou para um ensino técnico, metodológico e organizado.

E cabe aqui uma referência muito especial ao escritor e investigador Manuel Ferreira, autor de “O Barco e o Sonho”, popularizado pela série televisiva realizada pela RTP/Açores, que, conjuntamente com o Padre João Caetano Flores, nos anos oitenta do século passado, muito contribuíram para o ressurgir do entusiasmo em volta da viola de dois corações, a que dedicaram um número completo do Boletim “Despertar”, da Ribeira Chã, que viria a dar origem ao livro “Viola de dois corações”, editado em 1990 e mais tarde reeditado em 2010 e apresentado no Coliseu Micaelense, num memorável espectáculo em que, entre outros artistas e grupos, esteve Rafael Carvalho, com o seu “Grupo de Violas da Terra” e a “Escola da Violas da Ribeira Quente”. Tudo isto no mesmo dia em que outro investigador e cultor da história dos Açores, General Ferreira Almeida, apresentava o seu livro “A Viola de Arame dos Açores”.

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Podemos dizer, pois, que Rafael Carvalho representa e aparece como um elo intergeracional nos caminhos da afirmação de tão popular instrumento. As crónicas escritas para o “Atlântico Expresso” e que aqui ganham nova vida e perenidade, são uma pauta escrita a letras de ouro, numa história que tem sido composta a várias vozes e expandida em acordes maiores e menores, em que cada dedilhar e cada ponto significam um acto de amor aos nossos antepassados e um testamento valioso para o futuro da nossa música, do nosso folclore e da nossa etnografia.

E este livro de Rafael Carvalho é para qualquer leitor, um presente cheio de futuro. Que vale a pena ler e divulgar, pelo talento, pela dedicação e acima de tudo pelo amor que destas páginas se desprende, neste verdadeiro hino de “9 ilhas, 2 corações”.

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VIOLA DA TERRA, CRÓNICAS…

No ano de 2018, ao longo de várias semanas, o Jornal “Atlântico Expresso”, da Ilha de São Miguel, publicou uma série de crónicas que escrevi sobre a Viola da Terra.

Quem me conhece e ao trabalho que desenvolvo sabe que o meu principal objectivo, como formador, palestrante, ou em cima dos palcos que percorro, é sempre de explicar e transmitir o que sei, o que pesquiso e vou aprendendo sobre a Viola, nos Açores e não só, procurando desmistificar preconceitos, aproximar diferentes realidades e contextos culturais e realçar a riqueza da nossa diversidade cultural.

Histórias, características, contextos, intervenientes, afinações, técnicas, simbologia, eventos, diferenças, semelhanças… são tudo informações que importa dar a conhecer, divulgar e debater. Partilhar, questionar, aprender e ensinar um instrumento que não se ensinava… aprendia‑se! “É difícil aprender Viola”! “Os jovens não se interessam”! “Antigamente é que era”!...

Tudo comentários que ouvimos frequentemente, frases que se repetem no tempo, mas que em nada contribuem para que haja uma efectiva mudança de paradigma.

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Acima de tudo, o mais importante é que se fale, toque, divulgue e se aprecie a nossa Viola! Respeitar o passado, beber da essência deixada pelos velhos mestres e, como eles também o fizeram no seu tempo, trazer o nosso cunho pessoal para o que tocamos e garantir a continuidade para as gerações vindouras.

“9 Ilhas 2 Corações” foi o nome que escolhi para a rubrica semanal no Jornal! Não têm de ser os 2 Corações da Viola. É muito mais do que isso: corações que nos unem há séculos, mesmo quando circular entre as Ilhas era privilégio só de alguns, mas em que o bater do pé nos temas mais picadinhos e que convidavam ao baile ou o aperto forte no peito de quem escutava as “Saudades” era igual.

O Tanger da Viola sempre uniu os Açorianos.

Da parte dos leitores fui recebendo boa aceitação. Pessoas que seguiram, semanalmente, a rubrica “9 Ilhas, 2 Corações” foram solicitando textos, outros foram enviando mensagens de apoio. De várias Ilhas dos Açores, Arquipélago da Madeira e Continente Português, fui recebendo diversos contactos de leitores que acompanharam os artigos através do jornal, das redes sociais ou do meu blogue. Algumas destas crónicas foram depois republicadas no Jornal “Ilha Maior”, da Ilha do Pico.

Veio depois o sonho de reunir estes artigos em livro. Algumas crónicas fundiram‑se por abordarem temáticas comuns, outras foram revistas para transmitir uma realidade mais actual.

Decidi estruturar o livro seguindo três critérios: primeiro, temos as crónicas que apresentam a Viola nas suas características e técnicas, repertórios e simbologia. Em segundo lugar, passamos para uma temática de alguns dos contextos onde a nossa Viola intervém. Essas duas partes têm uma abordagem e uma escrita mais pessoal. Algumas delas contam

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experiências passadas na primeira pessoa. Na terceira parte, nas últimas crónicas do livro, reuni os artigos que têm uma componente mais factual e onde o texto é mais descritivo. Abordam‑se iniciativas, datas e actividades, com um estilo de narração menos pessoal.

Há ainda muito para escrever, partilhar, debater e dar a conhecer sobre a Viola, mas será um trabalho para aventuras futuras. Este livro compila apenas os artigos escritos no espaço temporal já referido.

Espero que estas crónicas possam ajudar a que se conheça, respeite e compreenda um pouco melhor a nossa Viola e o seu importante papel na nossa Cultura Açoriana.

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DA VIOLA, SUAS CORDAS E SEUS NOMES…

Começo por apresentar a nossa Viola: as suas características e os vários nomes por que é conhecida nas nossas Ilhas e no nosso País.

A Viola tocada nos Açores é um instrumento com a caixa em forma de “8”, com tampo harmónico paralelo às costas, sendo constituída por 12 cordas.

Estas 12 cordas são dispostas em 5 ordens (parcelas), sendo a 1.ª, 2.ª e 3.ª ordem dupla e a 4.ª e 5.ª ordem tripla (do som mais agudo para o mais grave).

Tentando simplificar, isto quer dizer o seguinte: em comparação, por exemplo, com um “Violão”, mais conhecido de todos, este tem 6 cordas e a cada corda corresponde uma ordem simples: 6 cordas = 6 ordens, uma vez que cada corda é tocada/pressionada individualmente. No caso da Viola da Terra, sempre que se pressiona uma ordem de cordas estamos a pressionar, em simultâneo, 2 cordas (ordens duplas) ou 3 cordas, (ordens triplas). Daqui que tenhamos um instrumento com 12 cordas, mas divididas em 5 ordens.

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No entanto, no caso da ilha Terceira, temos uma excepção a estas características, uma vez que a Viola que hoje mais se toca naquela Ilha é a de 15 cordas: Viola de 6 ordens. Temos, neste caso, um instrumento que tem a 1.ª, 2.ª e 3.ª ordem dupla e a 4.ª, 5.ª e 6.ª ordem tripla. Esta Viola também aparece, pontualmente, nas Ilhas Graciosa e de São Jorge.

Apesar de haver exemplares do instrumento e registos da sua existência no passado, a Viola de 12 cordas na Ilha Terceira é, hoje, um instrumento que quase não se toca, exceptuando um ou outro tocador mais resiliente.

Fig. 1 – Esquema da viola com 5 ordens de cordas Fig. 2 e 2.1 – Viola de 12 cordas e Viola de 15 cordas
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Há ainda registo de uma Viola de 18 cordas, com 7 ordens (3 duplas e 4 triplas), da qual se conhece pelo menos um exemplar na Ilha Terceira.

Fig. 2.2 – Viola de 18 cordas

Nos tempos mais antigos, as nossas Violas eram apenas denominadas de “Violas”, sem distinções por Regiões nem pelas suas diferentes características. De Norte a Sul do País e nos seus dois Arquipélagos tocava‑se “a Viola”. Com o passar dos tempos, a nossa Viola passou a chamar‑se de “Viola de Arame”: ganhou esse nome por as suas cordas serem de Arame.

A título de exemplo, nas recolhas do Professor Artur Santos, nos Açores, na década de 50 e 60, vem sempre referido o executante como tocador de “Viola de Arame”. Não só ele como outros investigadores referem‑se assim à “Viola” tocada nos Açores e em todo o território Português.

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Entretanto, com a necessidade de se identificar de modo mais imediato as Violas em cada Região, definiram‑se nomes por que passaram a ser conhecidas: Viola Braguesa, Viola Beiroa, Viola Toeira, Viola Amarantina, Viola Campaniça, Viola de Arame Madeirense e, no caso dos Açores, Viola da Terra.

Esta família de 7 Violas de Arame Portuguesas (podendo haver outros nomes utilizados em cada Região) é a que é mais conhecida e, de certo modo, aceite pelos que tocam, investigam e escrevem sobre a Viola em Portugal.

No caso dos Açores, o nome de Viola da Terra é o que prevaleceu e é o mais conhecido de todos. No entanto, há quem chame o instrumento de Viola Regional, Viola Açoriana, Viola Terceirense (no caso da Viola de 15 Cordas) e, ainda, de Viola de Dois Corações, podendo haver ainda mais designações utilizadas.

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AFINAÇÕES DA VIOLA…

A Viola de Arame em Portugal tem variantes na sua forma de afinar. Temos exemplos de afinações idênticas entre Regiões, de afinações diferentes dentro da mesma Região, como podemos ter afinações que aparentam ser completamente distintas, mas onde há uma semelhança na relação dos intervalos musicais (distância de uma nota a outra), que as aproxima muito mais do que é comum pensar‑se.

Há quem sinta a necessidade de tentar encontrar e justificar a existência de uma afinação original e comum a todas as Violas de Arame. Entendo que é, da mesma forma, importante aceitar essa diversidade como algo que surgiu dentro do contexto de cada local, fruto do passar dos anos, das necessidades de quem tocava, da exigência do repertório, sendo esta diferença motivo de grande riqueza para todos, e nunca o contrário.

Nos Açores temos diferentes afinações, de acordo com determinada Ilha e com as características do instrumento. Mesmo dentro da mesma Ilha, pontualmente, há alterações à afinação da Viola, para se tocar este ou aquele tema.

No entanto, são duas as afinações principais e mais utilizadas. No caso das Ilhas de Santa Maria e de São Miguel, a Viola afina em Ré, Si, Sol, Ré, Lá (afinação da ordem mais aguda para a mais grave). Temos, depois,

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nas restantes sete Ilhas (Terceira, Pico, Faial, São Jorge, Graciosa, Flores e Corvo), uma outra afinação, onde só se altera, em relação à fórmula anterior, a 1.ª ordem de cordas, a mais aguda (ordem “prima”), passando o Ré a ser afinado em Mi. A afinação nessas Ilhas é de Mi, Si, Sol, Ré, Lá. Estas são as afinações da Viola de 12 cordas divididas em 5 ordens.

Fig. 3 – Esquema de afinação da Viola de 5 Ordens (1ª ordem em Ré)

Fig. 4 – Esquema de afinação da Viola de 5 Ordens (1ª ordem em Mi)

Na Ilha Terceira, no caso da Viola de 6 ordens, a afinação é Mi, Si, Sol, Ré, Lá, Mi.

Temos, depois outros casos peculiares, como nas Flores, de onde recebi um testemunho de um músico que lá fez recolhas, em que um dos tocadores de Viola afinava a primeira ordem em Ré para tocar um “Fado Antigo”, referindo estar a “afinar à moda de São Miguel”.

Na Ilha de São Miguel era comum alterar‑se a afinação da 5ª ordem (a mais grave) baixando‑a de Lá para Sol, para se tocarem as “Sapateias”. Também poderia ocorrer em mais algum tema executado na tonalidade de Sol. Esta alteração permitia ao Tocador ter o “Bordão de Sol” como uma espécie de “nota pedal” que vai sendo pulsada em intervalos

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regulares, ao longo da execução da melodia, para manter a sustentação de som. Esta situação ainda se verifica nos nossos dias.

Quanto mais formos investigando, conhecendo e conversando com Tocadores de várias Ilhas, de várias idades, melhor poderemos compre ender as particularidades das nossas Violas. Há as generalizações sobre estas temáticas que são importantes conhecer e que ajudam a diferenciar mais facilmente cada caso, mas cada Tocador e cada Viola têm a sua história pessoal.

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RASGUEADOS, PONTEADOS E OUTRAS QUESTÕES…

A Viola da Terra tem uma enorme riqueza e diversidade nas nossas Ilhas: desde aspectos diferenciados de construção, de repertório, de contextos onde é tocada e diferentes técnicas de execução. Um Arquipélago, pequeno como o nosso, tem tratado a Viola com muito carinho, diver sidade e com abordagens técnicas, que, sendo distintas, só contribuem para a sua valorização.

Abordo a questão das diferentes técnicas de execução da nossa Viola: Nas Ilhas de Santa Maria, São Miguel e Flores, a Viola é tocada (tangida, ponteada) recorrendo ao polegar da mão direita. Quer isto dizer que a pulsação das cordas com a mão direita é efectuada apenas com o polegar, independentemente da velocidade e dificuldade das passagens.

No caso das Ilhas Graciosa, São Jorge e Terceira, a Viola é ponteada com o indicador. A melodia das modas é executada com o indicador, ficando para o polegar a tarefa de tocar os baixos (ordens de cordas mais graves). É importante assinalar que, em São Jorge, por exemplo, quando estão a fazer acompanhamentos (acordes), fazem‑no de modo rasgado.

Há diferentes formas de aplicar a combinação da execução com o indi cador (melodia) e polegar (acompanhamento, baixos, nota pedal) nestas

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Ilhas. Há executantes que utilizam o polegar de forma mais regular, “enchendo” a música que executam com melodia e acompanhamento quase em simultâneo. Outros executantes utilizam o polegar de modo mais pontual, tocando o “baixo” em momentos mais “dispersos” ao longo da melodia. Esta combinação é algo que varia, acima de tudo, de acordo com gosto pessoal e conhecimentos de cada um, não havendo uma forma de execução que se possa considerar mais correcta em relação à outra. O importante, a meu ver, é que se conheça, estude e explore estas duas formas de articulação entre os dedos e que se aplique da melhor forma, de acordo com cada contexto musical.

Nas Ilhas do Faial e do Pico, a Viola é tocada com a técnica do rasgado (rasgueado). A função de “pontear” a melodia recai sobre o bandolim e o violino. Deste modo, cabe à Viola o papel de garantir o “ritmo” da música, de manter a dinâmica e vivacidade dos bailes. Há tocadores que referem que a Viola também faria solos, pontualmente, mas que, no contexto dos bailes e serões de Chamarritas, a Viola é rasgada para melhor se afirmar e se fazer ouvir.

O Corvo é a única Ilha na qual desconhecemos registos de executantes de Viola da Terra na actualidade.

Havendo estas 3 técnicas tradicionais de execução: polegar, indicador e polegar e o rasgado, que, de modo generalista, podemos identificar e atribuir a cada Ilha, a realidade é que o contexto de cada Ilha, de cada momento musical, dos conhecimentos de cada músico podem condicionar e orientar para determinada execução. Há, ainda, novas explorações técnicas do instrumento no presente, de acordo com as linguagens musicais que cada um revê na Viola, fruto das suas próprias influências. Independentemente disso, o conhecimento das técnicas tradicionais (técnicas historicamente informadas) é fulcral para o real conhecimento do instrumento.

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TRASTOS, PONTOS, ESPELHOS E VAIDADES…

A Viola tem a caixa em forma de “8”, tampo, ilhargas, costas, braço e pá/ cabeça.

Na cabeça temos as cravelhas/afinadores. Antigamente, as cravelhas eram de madeira, utilizadas ainda hoje, mas com menor expressão. As cravelhas de madeira foram sendo substituídas por cravelhas metálicas pela facilidade de afinação. Também já se começa a utilizar outros materiais nos afinadores, a imitar o cravelhal antigo, e com outras garantias de afinação. Há Ilhas em que o cravelhal privilegiado pelos músicos é em forma de leque: o mesmo esquema de afinação da Guitarra Portuguesa.

Na pá temos, ainda, o espelho. Refira‑se que alguns exemplares de instrumentos mais antigos não tinham espelho. Aliás, em algumas Ilhas, essa situação quase não ocorre! O espelho acabou por ser colocado, segundo os Velhos Mestres, para o Tocador se aprimorar antes de se apresentar em palco, penteando o cabelo e desfazendo a barba: vaidades de quem pretendia tocar a Viola sempre bem apresentado e mantendo uma reputação de elegância.

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No braço temos a escala e os trastos: a escala é rasa com o tampo em determinados modelos, mas, também, aparece sobreposta ao tampo em algumas Ilhas. Os trastos são as peças metálicas que dividem a escala (ao espaço entre cada trasto chamamos de pontos).

A escala da Viola de 5 ordens (12 cordas) tem 12 pontos no braço e 9 pontos sobre o tampo, podendo haver oscilações do número de pontos sobre o tampo. No caso da Viola de 6 ordens (15 cordas), esta Viola tem 10 pontos sobre o braço e 6 a 9 sobre o tampo (podendo também variar de um construtor para outro).

Fig. 5 – Diferentes afinadores da Viola da Terra Fig. 6 – Esquema da Viola de Dois Corações
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Quando temos Violas com 12 pontos sobre o braço e mais 9 sobre o tampo temos uma Viola com uma escala de 21 pontos. Esta situação é única no contexto das Violas em Portugal. Da família de Violas de Arame a que pertence a Viola da Terra e que já antes referi (Amarantina, Beiroa, Braguesa, Campaniça, Madeirense e Toeira), o caso Açoriano é o único onde a Viola ocorre com 12 pontos sobre o braço. Esta situação, bastante particular, merece destaque e já justificava um estudo mais aprofundado por parte dos investigadores das nossas Violas, uma vez que permite a execução de uma oitava musical na distância que vai entre a corda solta e pressionada no 12.º ponto. As Violas da Terra mais antigas que conhecemos de registos fotográficos, dos nossos museus ou mesmo na posse de colecionadores, apresentam esta característica.

Actualmente, começaram‑se a construir outras Violas de Arame com os 12 pontos no braço, sendo algo afirmado como uma “evolução” para uma maior exploração do instrumento. No caso da Viola Brasileira (Caipira), descendente das Violas Portuguesas, essa evolução dos 10 para os 12 pontos também ocorreu há décadas, como uma necessidade de exploração maior do instrumento.

Como podemos explicar que nos Açores a Viola tenha essas caracterís ticas há pelo menos século e meio? Será que é daí que resulta termos a Viola com mais repertório tradicional instrumental de todas no nosso País? São questões que, normalmente, não parecem fascinar os inves tigadores, mas que reflectem uma evolução, no caso da Viola Açoriana, séculos antes das suas congéneres Continentais e Madeirense.

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SÍMBOLOS, SAUDADES, COROAS E FORTUNA…

Há histórias que foram passadas, oralmente, ao longo dos anos, e que ajudam a compreender a história e a importância da Viola da Terra na vida dos Açorianos, por intermédio da simbologia que o povo revê nos embutidos do tampo harmónico.

A principal história popular em torno da nossa Viola diz respeito aos seus dois corações: o coração que sai da Ilha e o coração que fica na Ilha. A procura de uma melhor vida, o “salto” nas baleeiras, a emigração, deixando a terra natal, a família e os amigos. Acredita‑se que estes dois corações da Viola são o símbolo dessa “Saudade” que persegue os Açorianos há séculos. Os corações estariam ainda ligados por um cordão, terminando numa lágrima – a lágrima da Saudade. Há quem defenda que a forma de losango, quase sempre apresentada no final desse cordão, representaria o “Ás de ouros”, uma vez que os que emigravam faziam‑no em busca da fortuna.

Foi esta a primeira história que ouvi sobre a Viola, pela boca do meu Professor, Carlos Quental, na minha primeira aula de viola, aos 13 anos de idade. Ainda antes de colocar os dedos sobre as cordas e experimentar o seu som eu já estava fascinado pelo instrumento.

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Os corações poderão ser também a representação do amor, da ligação entre as pessoas, não tendo, necessariamente, de ser algo ligado apenas à emigração e à Saudade. Outros falam de amores proibidos, celebrados para sempre no “rosto” da Viola, sem que mais ninguém, senão os dois amantes, soubesse a quem se dirigia a mensagem de amor.

No cavalete da Viola diz‑se que estaria representado o “Açor”, pois reconhece‑se a forma de um bico de pássaro e de um olho. Esta situação é comum a muitos modelos de Viola, mas não é exclusiva e obrigatória. Muitas vezes encontra‑se as extremidades dos Cavaletes em forma de rabo de baleia ou apenas de forma angular ou quadrada, sem mais qualquer adorno.

No fundo do tampo harmónico os embutidos mais frequentes são os da flor‑de‑lis ou da Lira. Há quem veja nessa flor‑de‑lis a representação da espiga de trigo e, com isso, a alusão ao trabalho árduo dos campos. Há quem interprete como sendo a figuração das plantas, da natureza dos Açores. Outros, ainda, vêem a forma de bigodes ou o relevo/ recorte das Ilhas. Estes embutidos variam de um construtor para outro, havendo exemplos em formas de pássaro, de peixes, das montanhas, de vaso de flores, ou outros, de acordo com a imaginação/marca de cada construtor ou com pedidos directos dos tocadores. A isto chamamos de “personalização das violas”. É algo que acontecia no passado e continua a acontecer nos nossos dias.

Fig. 7 – Diferentes formas do cavalete
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Quanto à abertura do tampo harmónico esta costuma ser em forma de dois corações, com três corações entrelaçados (viola de 5 bocas), com duas liras a substituir os corações, com abertura circular ou abertura oval.

Uma outra interpretação do cordão que une os dois corações da Viola aparece‑nos ao rodarmos o instrumento 180 graus. As pessoas viam nesse cordão a forma da Coroa do Espírito Santo. As Festas do Divino Espírito Santo são as maiores Festas dos Açores, celebradas em todas as Freguesias de todas as Ilhas do Arquipélago. Ter esta eventual represen tação da Coroa no tampo da Viola é algo que acrescenta uma mística, respeito e solenidade ao instrumento. Em algumas Ilhas a Viola aparece a acompanhar as Coroações, a distribuir Pensões, a fazer Peditórios para as Irmandades ou outras funções consoante cada tradição local.

Em relação ao espelho o mesmo serviria para o tocador se pentear ou para desfazer a barba antes de tocar.

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Fig. 8 – Formas de abertura do tampo harmónico Fig. 9 – Representação da Coroa do Espírito Santo
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São estas algumas das crenças e visões populares em torno dos símbo los embutidos e pormenores de construção da Viola! Não sendo consi deradas como provas históricas, entendo que são pormenores e crenças que tornam a Viola ainda mais nossa, mais próxima dos sentimentos das pessoas e mais próxima das tradições dos Açorianos.

A Viola está também associada a muitas histórias, expressões e brincadeiras, devido à sua importância no quotidiano das pessoas e também à forma como as pessoas gostavam de aformosear a transmissão de ensinamentos:

O meu professor Carlos Quental dizia sempre que há 3 coisas que não se emprestam nem ao nosso melhor amigo: a mulher, o carro e a viola. Era uma expressão já muito antiga e que tem a sua razão de ser. Muitas vezes as pessoas esquecem‑se de devolver o que pediram emprestado. Doutras vezes devolvem com defeito! Estou sempre a falar de Violas, claro!

Dizem ainda tocadores de viola em várias partes do País, em jeito de brincadeira e para antecipar alguma crítica, que “o Tocador passa metade do concerto a afinar a Viola e a outra metade a tocar com ela desafinada!”

“Corda nova não casa com corda velha!” Esta é uma certeza dos tocadores de Viola quando rebenta uma corda. Se quiserem poupar cordas e tempo, substituindo apenas a corda rebentada, deixam de conseguir afinar aquela ordem de cordas. A corda nova não afina com a corda velha pelas diferenças de desgaste e elasticidade. Conseguimos afinar as duas cordas soltas mas depois na oitava já se nota uma diferença enorme na altura dos 2 sons. O melhor é trocar sempre as duas cordas quando uma rebenta.

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No Brasil há muitos tocadores (denominados por violeiros naquele País) que usam fitas coloridas amarradas no braço da viola como forma de protecção divina, sendo usadas principalmente na “Folia de Reis” (Folia do Divino). São seis as cores principais usadas e que têm uma explicação baseada na bíblia: a fita branca representa o Menino Jesus, a fita azul Nossa Senhora e a fita rosa São José, completando a Sagrada Família. Já as fitas amarela, vermelha e verde representam o ouro, incenso e a mirra ofertadas pelos 3 Reis Magos. O meu Mestre Carlos Quental chegou a estudar estes testemunhos da mística das fitas na Viola Caipira e defendia o seu uso nas nossas Violas aquando da integração em cerimónias do Espírito Santo.

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REPERTÓRIOS DA VIOLA…

As nossas Violas necessitam de ser tocadas e ouvidas para se poderem afirmar na actualidade. Por todo o País vemos cada vez mais pessoas interessadas no estudo da Viola e na procura e criação de repertório para o instrumento.

Há Violas para as quais o repertório tradicional instrumental conhecido é muito pouco e quase inexistente. Não quer dizer que essas Violas não possam executar todo o género de música, mas deve‑se compreender que a sua execução tradicional baseava‑se em rasgar acordes. Essas Violas, nesses contextos, não tinham um papel solista, nem se conhece repertório a solo para as mesmas.

Noutros casos há mesmo uma inexistência de registos de repertório, o que deixa os tocadores de Viola da actualidade sem muitas bases de estudo. Desse modo, os tocadores têm adaptado repertório e criado peças originais para os instrumentos.

No caso dos Açores temos um vasto repertório a solo para a Viola, com centenas de modas que são executadas nas nossas Violas, nas várias Ilhas, ao longo das diversas manifestações culturais do ano.

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Há em algumas Ilhas peças de um nível de execução extremamente elevado e só ao alcance dos tocadores mais virtuosos. Ao mesmo tempo encontramos muitas variações do mesmo tema, em que cada tocador dava o seu cunho pessoal, acrescentando melodias e ornamentações que o destacavam de imediato em relação aos outros.

Pezinhos, Sapateias, Saudades, Chamarritas, Remas, Auroras e tantos outros temas fazem parte do nosso quotidiano há séculos, com variações de um tocador para outro e de uma freguesia para outra. Há quem assuma que tal se deve à nossa insularidade, que ajudou a manter e a preservar este conhecimento. No entanto, continuamos sem conseguir descortinar a origem de toda esta riqueza musical por não ter paralelo na realidade das restantes Violas do País.

Temos modas dos Reis, das Estrelas, do Carnaval, do Espírito Santo, dos Arraiais hoje assumidos por grupos folclóricos e grupos de chamarritas! Modas dos bailes de roda, da Cantoria, das Velhas e do Pezinho dos Bezerros, dos Ranchos de Natal e das “Rambóias” de amigos. Temos, ainda, peças “solitárias”, que podem ser tocadas só por uma Viola ou por duas Violas: uma Viola “sola” e a outra acompanha modas que dispensam a voz e que dispensam bailaricos, para serem tocadas e apreciadas em silêncio. Felizmente, este repertório foi sendo passado entre várias gerações, começando a ser registado desde cedo.

A “Library of Congress”, na Califórnia, tem registos dos anos 30 com tocadores de Viola da Terra emigrados naquele Estado e onde se encontram temas que todos hoje reconhecem no nosso Cancioneiro Açoriano.

O filme “Quando o mar galgou a terra”, realizado por Henrique Campos, rodado na Ilha de São Miguel e apresentado em 1954, teve na sua banda sonora os sons da Viola da Terra com o tocador Francisco Sabino,

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acompanhado ao Violão por Bento de Lima. Há mais de 60 anos a Viola da Terra já figurava na banda sonora de um filme com as suas bonitas melodias!

No final da década de 60, em São Miguel, Francisco Sabino grava um LP com 4 temas a solo em Viola da Terra: “Sapateia”, “Chamarrita”, “Saudade” e “Bailho da Povoação”, apresentando algumas variações com um elevado grau de dificuldade de execução. Este trabalho parece não merecer destaque perante os académicos que estudam as nossas Violas, mas terá sido o primeiro trabalho a solo de um tocador de Viola no nosso País.

Fig. 10 e 10.1 – “S. Miguel em Viola da Terra” – Francisco Sabino, década de 60

Numa altura em que as peças tradicionais a solo para Viola eram algo quase inexistente nos registos das várias regiões de Portugal e em que algumas Violas começavam a ser consideradas quase extintas, tínhamos esta particularidade nos Açores.

Nas recolhas do Professor Artur Santos do final da década de 50 e início da década de 60, editadas em vinil e mais recentemente em CD,

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encontramos peças com a Viola a solo ou a acompanhar a voz. São registos que comprovam o virtuosismo dos Tocadores de Viola e a diversidade de repertório.

Seguiram‑se outros trabalhos, com outros tocadores e intervenientes, e ainda álbuns só de Viola, que continuam a ser editados na actualidade. Desses trabalhos editados, numa vertente a solo com a Viola da Terra, importa referir as seguintes edições:

Os álbuns do Mestre Miguel de Braga Pimentel: “Sons d’Outrora”, de 1997, onde ele regista 20 modas instrumentais do repertório da Viola em São Miguel, “A Roda do Ano”, em 2002, e “Preciosos Imprevistos”, em 2010.

“À Viola – José Luís Lourenço”, com 13 modas tradicionais da Terceira, numa fusão da Viola Terceirense com outros instrumentos, é editado em 2002 em memória desse exímio tocador da Viola Terceirense, já falecido, num trabalho de recolha áudio de Paulo Henrique Silva.

“As Violas dos Açores” é outro importante trabalho de recolhas, editado em 2017 por Emiliano Toste e inserido numa coleção da editora Açor sobre a música regional Açoriana. Conta com 41 músicas de várias Ilhas do Açores.

O Grupo de Violas da Ilha Terceira editou, em 2013, o álbum “Percurso pelas Ilhas”.

Hélio Beirão, com a Viola de 15 Cordas, editou na Califórnia o trabalho “Dona Viola Minha Dama”.

Também com a Viola de 15 Cordas, Evandro Meneses editou, em 2019, o seu primeiro álbum a solo “Fados & Guitarradas”, em formato digital, e em 2020, com o Duo Cordibus, apresenta o álbum “Raízes”.

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“A Relva e as suas músicas” foi o álbum editado pela Escola de Violas da Relva, em Outubro de 2012, em memória do Mestre José de Oliveira, fundador da escola.

Em 2018, o músico Micaelense Ricardo Melo apresenta‑se a solo com o álbum “Entre primas, segundas e toeiras”.

A título pessoal, aventurei‑me em Fevereiro de 2012 com o meu primeiro álbum a solo, “Origens”, com temas tradicionais da Ilha de São Miguel, mas, também, com 5 temas originais. Seguiu‑se, depois, “Paralelo 38”, em 2014, “Relheiras”, em 2017, “9 Ilhas 2 Corações”, em 2018, e “Um Natal à Viola”, em 2019.

Estas edições acima enumeradas são um importante contributo para o conhecimento, registo e valorização da nossa Viola, nessa vertente mais a solo, mas temos ainda muitos outros trabalhos que foram editados nas nossas Ilhas por músicos, grupos, pesquisadores da nossa música e das nossas Violas, que importa conhecer, ouvir e divulgar.

Devemos estar gratos pela riqueza que chegou aos nossos dias, em vez de só lamentarmos muito do que se perdeu! Isto aconteceu no passado e vai continuar a acontecer no presente. A nossa missão é continuar a investigar e a registar o máximo possível, fazer uso das tecnologias, imortalizar a nossa música e a nossa cultura popular, pois é ela que melhor define quem somos enquanto pessoas e enquanto povo.

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A VIOLA NÃO SE ENSINAVA, APRENDIA‑SE…

Já ouvi esta afirmação proferida por mais do que um Tocador da “velha geração”.

O ensino da Viola foi sendo feito por transmissão oral ao longo dos séculos. Há quem denomine de “ensinar de ouvido”, “ensinar por imitação”, “ensinar ponto a ponto”, havendo designações diferentes de acordo com as expressões de cada local.

Nos nossos dias, a transmissão oral continua a ser a principal forma de ensinar os instrumentos tradicionais portugueses. No entanto, em relação ao passado, a grande diferença será terem surgido escolas de Violas, aulas em associações ou outras Instituições que passaram a promover o ensino destes instrumentos.

No passado não existiam escolas de Violas, não havia locais nas freguesias ou aldeias onde as pessoas se podiam dirigir para aprender estes instrumentos. O ensino era feito dentro da mesma família de Tocadores e quem não tivesse alguém na família que soubesse tocar dificilmente teria acesso à aprendizagem.

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Mesmo entre familiares seria frequente não haver um momento de ensino propriamente dito. O pai poderia passar a noite a tocar, mas não dedicar tempo a ensinar o filho. Como é que o filho aprendia? Via, ouvia, fixava, memorizava auditivamente. Depois, na ausência do pai, lá experimentava colocar os dedos na Viola e produzir sons. Muitas vezes esse atrevimento de tocar na Viola do Pai resultaria numa grande reprimenda.

Alguns aprenderam ouvindo tocar na rua ou espreitando pela porta do vizinho, indo depois para casa experimentar na Viola, persistindo até conseguirem reproduzir um som que se assemelhasse ao que escutaram. Muitas variações que conhecemos hoje, sobre o mesmo tema tradicional, surgiram devido à forma de aprendizagem de ouvido e quase autodidacta de grande parte dos tocadores.

O Tocador era uma pessoa que tinha algum estatuto em cada freguesia, pois sem ele não havia festa, não havia convívio e bailarico. Ser convidado para tocar em alguma festa podia garantir mais alguma comida em cima da mesa para a família e até mesmo uma refeição oferecida fora de casa, e isso era, em tempos de grande pobreza do nosso País, uma mais‑valia para qualquer lar. Neste contexto é de compreender a grande resistência das pessoas em partilharem os seus conhecimentos musicais, como em qualquer outra profissão.

Felizmente, os tempos foram mudando e alguns “Mestres” passaram a ensinar em escolas de violas, em grupos folclóricos que tinham interesse em formar novos Tocadores, casas do povo e sociedades recreativas, que queriam ter escolas de Violas, ou tunas que fizessem apresentações musicais. Os instrumentos tradicionais passaram a ser ensinados com mais regularidade por um Tocador conhecedor do instrumento e do repertório e já com abordagens de ensino menos “restritivas”. A aprendizagem passou a estar ao alcance de mais pessoas, as próprias

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instituições passaram a adquirir instrumentos para emprestar aos alunos, que não os pudessem adquirir, e foi‑se criando uma estrutura de continuidade na oferta do ensino destes instrumentos.

Não há Escolas de Violas em todas as Ilhas dos Açores, mas tem‑se assistido a um acréscimo de interesse dos mais novos em frequentar este tipo de cursos, fruto de um trabalho de divulgação da Viola cada vez maior por parte de diversos músicos e algumas entidades. É de aproveitar o momento de grande dinamismo que vivemos com as nossas Violas para tentar potenciar, em todas as Ilhas, o aparecimento dessas Escolas.

No entanto, uma das afirmações que mais tenho ouvido ao longo dos meus anos de estudo da nossa Viola é a seguinte: é muito difícil aprender a tocar Viola! As justificações vão variando, mas a afirmação mais comum é de que “é difícil a sua aprendizagem por ser um instrumento que tem muitas cordas”.

Este preconceito foi ficando tão enraizado na mente e cultura das pessoas que é frequente ouvir o mesmo comentário da boca de jovens, de amantes da Viola e até de desconhecidos quando tomam o primeiro contacto com o instrumento.

Defendo que a Viola é um instrumento que está ao alcance de qualquer pessoa que decida investir o seu tempo na sua aprendizagem. O aperfeiçoamento de conhecimentos, repertório, técnicas, esse, sim, como em qualquer outro caso, exige muitos anos de estudo.

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É difícil tocar Viola como é difícil tocar Trompete, Piano, Violino, Violão, Clarinete, Bandolim… Não é mais difícil aprender a tocar Viola do que nenhum outro instrumento. É preciso vontade e motivação, uma Viola (com cordas) e alguém com vontade de partilhar conhecimentos.

Fig. 11 – Audição do Dia da Criança na Igreja do Colégio
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CANTIGAS À VIOLA…

Um pouco por todas as Ilhas dos Açores sempre foi frequente fazerem‑se “Cantigas à Viola”. Sobre a Viola conhecem‑se várias quadras, que foram sendo passadas, oralmente, ao longo dos séculos, havendo variantes dos versos entre as diversas Ilhas do Arquipélago.

A Viola tem dez cordas, Juntamente dois bordões; E, acima do cavalete, Também tem dois corações.

Viola, minha Viola, Viola, minha alegria; Eu não te posso largar, Pois és minha companhia.

A Viola sem a prima É como a filha sem pai, Cada corda, um suspiro, Cada suspiro, seu ai.

As quadras saíam improvisadas a meio de um bailarico, ou a meio de um despique, e podiam visar o instrumento ou o Tocador. O Tocador era alvo

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de admiração por parte das pessoas pela sua capacidade de tocar e de impulsionar ambientes de verdadeira festa.

O Tocador de Viola, Toca com grande primor; Por isso muito lhe quero, É o meu primeiro amor.

Ó Tocador de Viola Repenica‑me esses dedos; Se faltar alguma corda, Aqui tens os meus cabelos.

Algumas quadras poderiam ser de carácter elogioso, como descrito acima, mas outras tinham o cunho de espicaçar o Tocador, com uma crítica subjacente.

O Tocador de Viola É um grande comilão; Deixa as moças no terreiro, Vai à caixa tirar pão.

Viola, minha Viola, Viola de pau de aresta; Viola, estás incapaz

Ou o Tocador não presta.

O Tocador de Viola Merece uma rapariga Daquelas que andam no mato Comendo os olhos à silva.

Qualquer assunto do dia‑a‑dia podia dar fruto a um bom despique, dependendo do contexto onde se estava a tocar, a cantar e a balhar. O Tocador, parte fulcral em qualquer destas situações, tinha de ser men cionado, havendo os que melhor se sabiam defender, respondendo em

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improviso à letra. Também poderia acontecer que algum Tocador, mais sensível de temperamento, pudesse não aceitar bem as brincadeiras e “arrumar a Viola no saco”. Aí já não havia mais cantoria, bailaricos ou festa e, acreditem, as piadas sobre o Tocador ficariam suspensas largos meses.

É disto que vive a nossa cultura popular: do convívio, da partilha e da provocação saudável, que gera risos e boa disposição, com a imaginação e talento dos improvisadores sabendo insinuar o suficiente para enten dermos aonde querem chegar, mas sem ultrapassarem os limites.

A Viola é um sino, O Tocador o pendente; Deus lhe dê muita saúde Para divertir bem a gente.

Para além dessas quadras populares (de autoria desconhecida), cantadas e/ou declamadas desde tempos passados e recolhidas em várias Ilhas do nosso Arquipélago, entendo ser importante que se conheçam outras cantigas: poemas de autores contemporâneos, que dedicaram parte da sua obra à valorização da Viola nos Açores.

Um dos grandes exemplos de Poetas que escreveram sobre a nossa Viola será Vitorino Nemésio. No seu livro “Festa Redonda – Décimas & Cantigas de Terreiro, Oferecidas ao Povo da Ilha Terceira” pp. 77 79, dedica um poema à Viola de 15 Cordas da Ilha Terceira intitulado “Cantigas à minha Viola”. Deixo aqui o registo de 2 quadras desse poema:

Ó Viola encordoada

Com quinze cravos de aposta, Minha pêra acinturada, Minha maçã da Bemposta

Minha Viola de luxo, Minha enxada de cantar, Meu instrumento de fogo, Caixinha do meu chorar!

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No mesmo livro, o Escritor Açoriano dedica quadras ao Tocador de Viola. Ele próprio foi aprendiz de Viola com o afamado Mestre de Viola Terceirense Laureano Correia dos Reis:

Senhor Mestre da Viola, Aqui cheira a violetas: Será de uns olhos azuis, Por detrás de cravelhas pretas.

Nos tempos actuais verificamos que se continua a escrever poesia sobre a nossa Viola, suas tradições e suas especificidades. Em 2019, o escritor Virgílio Vieira dedica dois poemas à Viola da Terra no seu livro de Poesia intitulado “Entre Silêncios”. No poema “Viola de Dois Corações” pode‑se ler esta quadra:

Gémeos os dois corações São a alma dos olhos teus. A tradição dos Foliões Tem a voz dada por Deus.

Cantas e choras emoções! Mundo fora andam amores Unindo os seus corações Por ti, Viola dos Açores.

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A VIOLA E O CONVÍVIO…

A nossa Viola era o instrumento que impulsionava o convívio entre as pessoas nas nossas Ilhas após longos dias de trabalho. Hoje a Viola continua a ter esse papel congregador em vários contextos.

Em momentos de apresentação musical gosto sempre de falar um pouco desta vertente da Viola e da forma como esta fazia as comunidades envolverem‑se. Com esta ideia em mente, recorro a textos de 3 livros que ajudarão a visualizar essa realidade.

Um dos textos mais bonitos que já li sobre a Viola é de Dias de Melo no seu livro “As Pedras Negras”. Não sendo possível transcrever todo o texto, faço uma pequena sinopse da narrativa que culmina num capítulo intitulado: “Noite do Casamento. Folguedos, Latas, Violas e Cantigas”.

A história principal é a de um jovem que abandona a Ilha do Pico, dando “o salto” numa baleeira. Seguiram‑se anos de muita fome, muito esforço, sofrimentos, desgostos e trabalho duro. Um dia, ele regressa a casa já melhor da vida e para se casar.

No dia em que o filho partiu, o pai arrumou a Viola e a família “entrou de luto”. O Pai nunca mais tocou Viola, nunca mais se cantou nem bailou naquela casa. Anos depois, o filho regressou, já melhor de vida e com

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a intenção de vir casar à terra natal. Na altura da festa do casamento, e com todos querendo bailar, imediatamente, o pai decidiu encordoar a Viola, “sacudiu o pó e as teias de aranha (…) e, de olhos em brasa, rasgava estridente a chamarrita: chamarrita nova, chamarrita velha, chamarrita de cima, chamarrita de baixo e mais a do meio e a choradinha…”

Uma outra bonita crónica integra o livro “Summer in the Azores with a Glimpse of Madeira”, de C. Alice Baker, de 1882, intitulada “A Ball in the Furnas”, que descreve uma noite de baile nas Furnas. Os visitantes queriam experienciar um baile e acabaram por conseguir assistir a um. Descreve‑se que estava a haver alguma demora e começou a circular

costa carvalho Fig. 12 – Excerto do livro “Summer in the Azores with a Glimpse of Madeira”
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a piada de que o tocador levava sempre 3 meses a vestir‑se para um baile. Acabou por chegar o Tocador, cantando, tocando, mais bem vestido do que todos os restantes. Assim que entrou em casa logo os homens se colocaram atrás dele, até formarem uma roda, à qual se juntaram as mulheres. Assim estiveram a cantar e dançar, ao ritmo da Viola, em quadras quase sempre improvisadas.

Um outro grande apaixonado pela Viola era o Tenente Francisco José Dias. No seu livro “Cantigas do Povo dos Açores” há um trabalho único na recolha de temas com a transcrição para voz e Viola. Ele dedica vários capítulos a falar sobre a Viola, referindo‑a como “a mola real a incentivar à folgança; a companhia mais íntima dos ranchos (…). A Viola era o chamariz”.

No Capítulo “Festas do Menino Jesus”, ele faz uma narrativa deliciosa sobre um momento de Serão e Convívio que seria, certamente, o espelho de muitas freguesias por todo o Arquipélago. Refere as moças sentadas no quarto e a mães nas cadeiras por detrás delas. Os jovens na rua, com os pais, por falta de espaço no quarto, e, mesmo nas noites frias, com o coração quente pela expectativa de bailarem com a rapariga que tinham “em vista”. Os Tocadores chegavam, “importantes, cheios de presunção, com os instrumentos levantados no ar p’ra dar nas vistas…”. Depois passavam à afinação, demorada, de modo propositado, para fazerem render a expectativa e a atenção dos presentes. Toda a gente aguarda, sem conseguir conter o entusiamo e a ansiedade de começar o bailarico.

A horas tantas, quando o Tocador decidiu, finalmente, que a Viola estava afinada, começaram então a formar‑se os pares, os rapazes e raparigas solteiras, e formar a roda, e depois os casados para completar. Depois… depois bailava‑se toda a noite, cantava‑se, sorria‑se.

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Mas, sem a Viola, como fariam aqueles rapazes e aquelas raparigas para estarem juntos, para encostar uma mão, para uns sussurros malandros entre o derriço da noite?

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A VIOLA E O CARNAVAL…

A nossa Viola sempre teve um papel activo no quotidiano dos Açorianos, acompanhando o povo nas festividades e ajuntamentos, ao longo de todo o ano. Normalmente, só pela Quaresma é que a Viola era arrumada em sinal de respeito, durante todo o período de preparação para a Celebração da Páscoa.

Do Natal aos “Reis” ou no “Cantar às Estrelas”, a Viola estava e está presente, com maior ou menor incidência do que no passado, consoante a realidade de cada local.

Estas tradições têm a particularidade de promoverem o convívio entre as pessoas: nos ensaios, arranjos de letras e músicas, na elaboração das vestimentas, nas deslocações, no frenesim dos bastidores, nos momentos de apresentação (em palco ou pelas ruas) e, depois, na confraternização final, depois de um trabalho bem feito. Há, certamente, a vontade e o objectivo de apresentar um resultado artístico de qualidade, mas a motivação do trabalho conjunto e da celebração de amizades é provavelmente o maior catalisador por detrás de cada grupo.

A Viola aparece no seio destas tradições, fazendo e mantendo o seu papel, graças ao esforço e empenho dos que a ela se dedicam.

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O Carnaval não é excepção e, nestas festas, a Viola marca a sua presença.

Uma das grandes tradições da Ilha Graciosa, no Carnaval, são os Serões com “Modas de Viola”. As “Modas Novas” e as “Modas Velhas” dão o mote para grandes bailes de roda, onde o Tocador aparece, tocando e cantando, mas também integrando a roda e fazendo parte do Baile.

Esta tradição passou das casas particulares para os grandes Salões e é comum a vários espaços recreativos da Ilha. Mesmo havendo as Bandas que animam os Bailes de Carnaval, estas interrompem a sua actuação, a meio da noite, para dar espaço aos acordes e solos das Violas da Terra, e aos Bailes com “Modas de Viola”. Esta é uma convivência musical que a Graciosa tem sabido perpetuar com jovens e velhos Tocadores.

Outra tradição é a das “Danças de Carnaval”. Em várias Ilhas dos Açores estas Danças ocorrem, cada qual com características próprias.

A Viola, mais uma vez, assume a sua presença, dando um contributo que já remonta a muitas décadas. A Viola pode aparecer acompanhada de outras Violas, ao lado do Violino, Bandolim, Acordeão e até acompanhada por instrumentos de sopro.

Em alguns locais, as “Danças de Carnaval” eram e são interpretadas só por homens. No caso de Água Retorta, esta Dança da década de 50 do século passado era bailada só por homens. Metade deles vestia‑se, assim, de mulher. A Dança aparece acompanhada por dois Tocadores de Viola. Esta tradição repete‑se, anualmente, na “Dança de Carnaval” da Vila da Povoação.

Na Ilha Graciosa, por outro lado, há registos da década de 50 de “Danças de Carnaval” já com homens e mulheres, o que deve ter representado um grande avanço nas nossas Ilhas para a época.

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Na Ilha Terceira temos os “Bailinhos de Carnaval”. É a tradição que mais pessoas movimenta no nosso Arquipélago em torno desta temática. São momentos de grande entusiamo com Salões cheios para assistirem às apresentações dos vários grupos, trazendo a sátira popular envolvida em momentos musicais e com representações teatrais de elevada qualidade.

A Viola da Terra aparece nesses Bailinhos, mas com pouca expressão! No entanto, nos últimos anos, tem‑se assistido a uma retoma da presença da Viola Terceirense nos grupos e sente‑se que há uma vontade de muitos músicos de a tornar uma presença mais assídua nos Salões.

As nossas Violas, na realidade, são instrumentos de pouca “potência acústica” (projecção de som). Se tentarmos compreender o contexto musical actual dos Bailinhos, os mesmos incluem muitos instrumentos: acordeão, bandolim, violão, violino e instrumentos de sopros. No meio de tudo isto a Viola não se consegue fazer ouvir. O Tocador de Viola prefere integrar o Bailinho, tocando outro instrumento, pois, mesmo dando o melhor de si, a Viola fica “abafada” pelos restantes.

Estes vários exemplos tiveram o intuito de documentar a presença da Viola nestas manifestações populares, que decorrem um pouco por todas as Ilhas dos Açores. Retratando o passado, valorizando as tradições e revelando a presença que a Viola ainda tem no presente, principalmente, num mundo em mudança vertiginosa, mas que a Viola e os seus intervenientes teimam em acompanhar.

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A VIOLA E A CANTORIA…

O Cantar ao Improviso tem uma forte ligação à Viola nas nossas Ilhas. Nas Cantigas ao Desafio, Desgarradas, Velhas e Pezinhos a Viola é o instrumento de eleição para acompanhar a improvisação e genialidade dos Cantadores.

A “Cantoria”, tocada usualmente na tonalidade de Lá menor, acaba por ser a forma de improviso mais comum no nosso Arquipélago e tem ganho uma nova vitalidade com o aparecimento de dezenas de jovens Cantadores na última década. Do mesmo modo, a Viola, que era a acompanhante “original” e imprescindível a qualquer Cantoria, também começou a reaparecer com grande força nos últimos anos, recuperando um lugar que tinha sido tomado, principalmente, pela Guitarra Portuguesa.

É certo que há Ilhas onde a Viola poderá ter estado sempre mais presente, mas há outras realidades em que a mesma esteve fora dos palcos das Cantigas ao Desafio por muitos e muitos anos.

Sobre este assunto recordo algumas histórias que vivi quando comecei a integrar de modo frequente as Cantorias, tocando Viola da Terra a partir dos meus 16 anos e sempre acompanhado ao Violão pelo colega Jaime Cardoso.

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Em 1996 uma das primeiras Cantorias em que toquei foi na Ribeira Seca, de Vila Franca do Campo. Quando chegámos ao local, havia já alguns “velhotes” à espera para confraternizar com os Cantadores, contar histórias e reviver cantigas “míticas” que ficaram na memória das gentes. Lembro‑me de ouvir um dos velhotes lamentar: “pela forma do saco, aquilo é uma Viola, não é uma guitarrinha! Já não vai haver aqueles sons repenicados”. Pode parecer um comentário ofensivo, mas não era. A Viola já pouco aparecia em palcos da Cantoria na Ilha de São Miguel. Os próprios Cantadores assim o referiam, habituados a percorrer as muitas freguesias da Ilha. Ou eram acompanhados à Guitarra Portuguesa e Violão, ou só com Violão e, até, com o Acordeão.

A Cantoria lá começou e dei as primeiras notas da melodia que costumava tocar, repenicando o mais que podia, “dobrando a voz na Viola” e preenchendo os vazios dos Cantadores nas pequenas hesitações. Hora e meia a duas horas depois, terminada a Cantoria, subiram todos ao palco para a Desgarrada. Puxei o arpejo bem repenicado, em Lá Maior, que me ensinara o Mestre Carlos Quental, e a noite terminou em boa disposição. No final, os mesmos velhotes, que haviam torcido o nariz à forma da Viola dentro do saco, foram os primeiros a vir falar connosco, entusias mados. Diziam que nunca tinham ouvido uma Viola repenicar assim (e isso só prova que o povo tem a memória curta) e que um deles tinha ainda uma Viola em casa, que tinha sido do Pai, que fora um grande Tangedor de Viola. Desde esse dia que essa situação foi‑se repetindo, com histórias semelhantes, em vários locais.

Uma outra história de que me recordo com frequência decorreu em Ponta Garça, também no final da década de 90. A Junta de Freguesia organizava uma Cantoria de dois dias com os mais conhecidos Cantadores da Ilha e, ainda, com Cantadores de renome da Ilha Terceira e outros emigrados nas nossas Comunidades dos Estados Unidos e Canadá. Era um dos maiores Festivais em torno da Cantoria na Ilha de São Miguel.

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Fomos lá tocar durante alguns anos, eu na Viola e o Jaime Cardoso no Violão, acompanhando nomes como Vasco Aguiar, Manuel Antão, José Fernandes, José Eliseu, Tio João Ângelo, João Luís Mariano e muitos outros. Numa das edições, chegados mais cedo, estávamos a ver o cartaz do evento que referia o grande final com as “Velhas” entre José Eliseu e o Tio João Ângelo. Eu conhecia mais ou menos a melodia, mas nunca a tinha tocado em público e cheguei a comentar com o meu colega que seria divertido de ouvir! Também me questionei sobre quem viria tocar as “Velhas”?

Passou o tempo, os Cantadores chegaram, mas nem mais um Tocador. Conheci pela primeira vez o José Eliseu e o Tio João Ângelo. Em conversa com eles compreendemos que nós é que iriamos acompanhar as “Velhas”, algo que a comissão organizadora não se lembrou de nos informar! O José Eliseu, enorme Cantador e excelente pessoa, imediatamente se dispôs a ensaiar um pouco connosco.

Tudo decorreu bem durante a Cantoria e ao longo do Serão, mas, na altura das “Velhas”, depois de eu fazer a primeira introdução, o Tio João Ângelo não entrava. Dei mais uma volta na melodia e ele continuava a não cantar. O Cantador José Eliseu veio segredar-me ao ouvido: “ele está à espera que dobres a melodia”. Assim fiz, “dobrei a melodia”, e o Tio João Ângelo então arrancou nos seus improvisos. Enganei‑me muito nesse dia porque não conseguia controlar o riso, mas ninguém pareceu notar, pois toda a gente se ria também com a moda das “Velhas”.

Esta partilha foi um pouco mais pessoal, reflectindo a forma como tive a felicidade de viver uma parte da minha vida ligado ao improviso popular. A Viola acompanha estas manifestações populares e muitas outras. Cada Tocador e Cantador terá centenas de histórias para contar e para partilhar.

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Recomendo a pesquisa e leitura das dezenas de publicações de Líduino Borba sobre esta temática e seus intervenientes. No livro “Improvisadores da Ilha de São Miguel” encontra‑se a seguinte quadra de Vasco Aguiar sobre a Viola:

Para cantar um fadinho Não é preciso ir à escola

É dar ao corpo um jeitinho

Ao compasso da Viola.

Outro livro que me fascinou ler chama‑se “Aurora e Sol Nascente – Turlu e Charrua – Confidências”, de Mário Pereira da Costa, e que aconselho a todos. Regista‑se uma cantiga do Charrua, ainda em início de carreira, a um Tocador de Viola:

Toca‑me nessa Viola, Ó rapaz da minha estima, Faz dessa mão uma bola Girando abaixo e acima.

A qualidade dos Poetas Populares Açorianos é inigualável na realidade nacional: quer na forma da rima, versatilidade de conteúdos e bom gosto nas palavras. Claro que, com a Viola a acompanhar bem repenicada, as “Cantigas” saem mais fluidas. Esta conversa ouvi-a do Cantador Capelense João Luís Mariano inúmeras vezes.

Por altura dos Impérios, das Festas de Freguesia, dos Peditórios e das Folias nas nossas Ilhas e nas nossas Comunidades, vejam com outros olhos e oiçam de outra forma estes enormes artistas. Se tiverem oportunidade, peçam para conhecer as suas histórias.

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A VIOLA E OS FOLIÕES…

Em várias Ilhas do Arquipélago os Foliões aparecem a integrar procissões, peditórios para a Coroa, distribuição de pensões ou a animar Salões que promovem as Sopas do Espírito Santo.

Sobre os Grupos de Foliões do Arquipélago, mais especificamente em São Miguel, deixo um texto que foi elaborado por Renato Cordeiro, membro integrante da Folia das Feteiras, em São Miguel, aquando do evento “A Viola Que Nos Toca I”, em 2015, no Teatro Micaelense: “A Folia tem como função narrar todos os acontecimentos relativos ao Império: realizar anúncios (como o Mordomo Novo), agradecimentos (cozinheiras e criadores, etc), peditórios para o Império, entrega de pensões, ou como acontecia muitas vezes, para ajudar alguma família ou pessoa em dificuldade. A sua origem, descende dos jograis das cortes antigas, tendo o povo adoptado o mesmo sistema, criando em cada ilha particularidades distintas. Temos grupos com apenas a presença de 3 homens, acompanhados de percussão (bombos e testos), ou com um número variável, como acontece em S. Miguel, acompanhados de instrumentos de corda e pandeiro.

A Folia da ilha de S. Miguel, embora com algumas diferenças ou particula ridades de freguesia para freguesia, é distinta em toda a região, devido à sua vestimenta (opa e mitra) e a utilização de instrumentos de corda, dando

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Fig. 13 – Folia do Espírito Santo, Ilha de São Miguel

relevo à viola da terra e à rebeca (violino), assim como no seu canto, onde tem um forte uso do improviso.

O número de foliões varia, não sendo fixo, mas como mínimo têm de ser 3: o porta‑bandeira e pandeiro, viola e rebeca. O número máximo depende dos recursos de cada localidade, mas não deveria ser mais do que 7 pessoas. Antigamente, muitas vezes, este número se reduzia ao mínimo devido à dimensão das casas e pela presença de mais pessoas aquando da entrega de “pensões”.

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A Folia é, geralmente, formada a partir do cantador principal, que pode falar com mais um outro para o ajudar. Os instrumentos são de acordo com os existentes na freguesia, sendo dois indispensáveis: o pandeiro e a viola da terra. Depois de formada, a Folia é dividida em duas partes funcionais: a dianteira (cantadores principais) e a traseira (cantadores que em coro repetem a dianteira e os instrumentos). Outra particularidade: a Folia, para sair, tem que ter consigo a Bandeira, e, para ser Folia, tem que ter pandeiro”.

O Tenente Francisco José Dias, no seu Livro “Cantigas do Povo dos Açores”, editado em 1981 pelo Instituto Açoriano de Cultura, refere que “a Folia, até meados do século passado, era o mais importante agrupamento musical havido nos Açores. Em toda a função religiosa ou profana, a Folia tomava parte. Até nos casamentos, os pais, os noivos e os próprios convidados, gostavam dos elogios que o Cantador da Folia improvisava. Todavia, a acção da Folia nas Festas do Divino Espírito Santo, só se manteve até ao aparecimento das Filarmónicas, se bem que em alguns lugares, mesmo com a Filarmónica a dois passos, ainda a utilizam, como da Atalhada à Lagoa, do João‑Bom e Pilar à N. Sª da Ajuda (Bretanha) e como da Candelária aos Ginetes, etc.”

O Tenente Francisco Dias acrescenta ainda: “Nas Folias Açorianas, espe cialmente nas de Santa Maria, da Vila Nova – Ilha Terceira – e da Ribeira Funda – Ilha do Faial – a melodia de cada uma, de carácter oriental, provêm do “Lingui‑lingui” árabe, a “lenga‑lenga” ou canto narrativo mais recitado do que cantado. (…) Os cantos das Folias de S. Miguel e de outros semelhan tes usados nas Folias de outras Ilhas, são mais melodiosos; deixaram‑se influenciar pela música ocidental e por isso tornaram‑se menos primitivos”.

São testemunhos sobre a importância da Folia do Espírito Santo no nosso quotidiano, que vai vivendo da persistência dos seus elementos e da renovação que alguns grupos conseguem fazer. Noutros casos não se conseguem passar estas tradições, extinguindo‑se as Folias em diversas localidades e começou‑se a verificar a aposta dos Mordomos em ter a

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Filarmónica ao invés da Folia. No entanto, em diversos locais, Foliões e Filarmónica convivem sem “atropelos”, fazendo cada qual o seu papel ao longo dos dias das Festas, e, até, em algumas freguesias, vão se revezando a tocar nas Procissões.

Em conversa com o Tocador de Viola da Terra Terceirense, Bruno Bettencourt, ele esclarece que com o desaparecimento dos Foliões naquela Ilha a melodia mais associada às Festas do Espírito Santo é o Pezinho.

“Na sexta‑feira antes da função (o almoço dado pelo Imperador/Mordomo), o gado que irá ser abatido para a confecção da comida e para as esmolas/ pensões é enfeitado com flores de papel e fitas e percorre as ruas da freguesia. Logo atrás vão os cantadores, as Violas e a filarmónica. Enquanto decorre o desfile, a filarmónica toca o “Pezinho dos Bezerros”. O desfile vai parando em frente à igreja, ao império, à porta dos criadores que ajudaram a criar o gado para a festa e à porta de outras pessoas que o Imperador entenda. Aí “cala ‑se” a filarmónica e começam as Violas a tocar o “Pezinho” (conhecido como “Pezinho dos Bezerros), para que, de improviso, os cantadores agradeçam em nome do Imperador. Aqui na Terceira é a moda mais ligada ao Espírito Santo. Ainda se vê velhotes que usam chapéu que mal ouvem o pezinho, o tiram logo da cabeça em sinal de respeito.”

Fig. 14 e 14.1 – Desfile com Bezerros acompanhado com Filarmónica e Viola, Ilha Terceira
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Esta multiplicidade de testemunhos ajuda a confirmar a grande riqueza cultural das Festas do Espírito Santo no nosso Arquipélago e a enorme diversidade de tradições que se verificam de uma freguesia para outra. Cada localidade acabou por tornar muito sua a forma de celebrar o Espírito Santo.

Em relação à Folia da Ilha de São Miguel, a versão mais usual é tocada, normalmente, em modo maior, na tonalidade Sol. Há, no entanto, versões cantadas em modo menor, mas com menos regularidade. Deixo aqui uma partitura para Viola da Terra, que transcrevi de uma versão que conheço: “Folia do Espírito Santo” (Sol Maior).

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Fig. 15 – Partitura da “Folia do Espírito Santo”
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Termino com algumas quadras que se podia ouvir na Folia do Espírito Santo retiradas do livro “Cantigas do Povo dos Açores”.

Meu Divino Espírito Santo

A vossa capela cheira –Cheira a cravo, cheira a rosa, Cheira a flor de laranjeira.

Já o Divino chegou

À Porta da nossa igreja

Voando aqui poisou P’ra que toda a gente o veja

O Divino Espírito Santo Traz a Graça que Deus mandou Traz consigo Divino Manto P’ra cobrir quem atrás ficou.

E, no final, dando a beijar a Bandeira, cantamos na minha Freguesia, Ribeira Quente:

Dai a Bandeira a beijar, Ela o Divino encerra.

Que Ele queira abençoar Todos os povos da Terra.

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A VIOLA NO CONSERVATÓRIO REGIONAL DE PONTA DELGADA…

A Viola da Terra (Viola de Arame dos Açores) está associada ao Conservatório Regional de Ponta Delgada desde 1983. No ano letivo 1982/83 (com início de aulas no 3.º período), a Viola da Terra começa a ser leccionada nesta Escola. As aulas funcionaram em regime de Curso Livre e numa metodologia de ensino “por imitação” (de ouvido).

O primeiro formador de Viola da Terra, nessa modalidade de Curso Livre, foi o Mestre Miguel de Braga Pimentel. Sobre esta entrada da Viola para o Conservatório foram publicados alguns artigos de jornal.

O jornalista João Silva Júnior, em Fevereiro de 1983, num artigo intitu lado “A Viola da terra vai ressurgir”, referindo uma quantidade de iniciativas ligadas a cursos de folclore e de Viola, escreve:

“Contactando de como veria o Conservatório Regional uma aula dessa natu‑ reza, a sua directora, Sra. D. Natália Santos Silva, se mostrou perfeitamente receptiva à inclusão de uma tal aula, aliás, a mesma resposta que nos deu um Sr. Dr. Jorge Forjaz, director dos Assuntos Culturais dos Açores, ao falar‑lhe sobre o tema. Para esse fim abordámos o subchefe da PSP Miguel Pimentel, competente executante de Viola da Terra, que toca por música (a maioria dos

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tocadores fá‑lo de ouvido) e admitimos que venha a ser um dos candidatos à regência desse instrumento no Conservatório de Ponta Delgada”.

No mesmo ano há um novo artigo a referir que “7 alunos passaram em «Viola da Terra»”, referindo o nome dos primeiros sete alunos que tiveram nota positiva no primeiro ano do curso (que funcionou no 3.º período) bem como do papel que o jornal teve na abertura do Curso pois refere que “na sequência de artigos insertos no nosso jornal, o Conservatório Regional de Ponta Delgada abriu um curso de «Viola da Terra».” No artigo há uma clara gralha no nome do professor da disciplina que foi Miguel de Braga Pimentel e não José de Braga Pimentel.

Fig. 16 – Diário dos Açores, Fevereiro de 1983
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Também nesse regime de Curso Livre passaram pelo Conservatório Regional, como formadores de Viola da Terra, Alfredo Gago da Câmara (1986/87 e 1987/88), Mário Jorge Ventura (1988/89) e Ricardo Jorge Lima Melo (1999/2000).

No ano letivo 2005/06, o professor Ricardo Jorge Lima Melo apresenta ao Secretário Regional da Educação, José Gabriel do Álamo Meneses, e ao Conselho Executivo do Conservatório Regional de Ponta Delgada, presidido por Ana Paula de Medeiros Andrade Constância, uma proposta de inclusão da Viola da Terra no Curso Curricular (ensino oficial). A Viola da Terra passou, assim, a ser reconhecida em todas as Escolas de Ensino Artístico da Região, inclusa na listagem oficial dos instrumentos a leccionar no Curso Básico. O Conservatório passou a contar, anualmente, com uma turma de 5 alunos, entre 2005 e 2008, dado o regime de acumulação lectiva do docente da disciplina.

Entre 2005 e 2008 há registo de uma Audição partilhada entre os alunos da Classe de Viola da Terra e da Classe de Flauta de Bisel, e, ainda, a participação de alguns alunos no “3.º Concurso para instrumentos de Corda”, em Junho de 2006. O Concurso era aberto a todos os músicos que desejassem participar (de dentro ou de fora da escola), de acordo com os escalões e idades regulamentadas. Neste concurso participaram 3 alunos de Viola da Terra do Conservatório no Escalão A e um aluno no Escalão B. Nesse Escalão participou, também, um aluno da Escola de Viola da Terra da Ribeira Quente.

Apesar da oficialização do Curso Básico de Viola da Terra, a disciplina encontrava-se numa fase ainda muito experimental. O professor Rafael Costa Carvalho, responsável pela disciplina desde 2008/09 até à atualidade, foi incumbido de estruturar o Curso Básico, produzindo a documentação, repertório e directrizes que lhe servissem de base. Nesse ano a classe começou a funcionar com 7 alunos, passando para

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10 alunos no ano seguinte. Desde 2010/11 até ao presente ao letivo a classe passou a contar, anualmente, com 14 alunos inscritos.

Em 2008/09, a classe arranca com 7 alunos e assinalam‑se Audições de Classe em todos os períodos lectivos. No 3.º período, numa tentativa de dar a conhecer a existência do curso no Conservatório e de aproximar as várias Escolas de Violas da Ilha, o professor da Classe promove o “Dia da Viola da Terra” na Escola, onde participaram alunos do Conservatório, alunos da Escola de Violas da Fajã de Baixo, alunos da Escola de Violas da Ribeira Quente e alunos da Academia de Música da Povoação. No ano seguinte, o “II Dia da Viola da Terra” decorreu no Auditório Municipal da Povoação, com apresentações musicais por Escolas, mas onde, pela primeira vez, todos se juntaram para tocar dois temas em conjunto, no final do evento. Em 2011, como resultado deste esforço conjunto, surgiu o primeiro estágio e Concerto da “Orquestra de Violas da Terra da Ilha de São Miguel”.

Fig. 17 – “I Dia da Viola da Terra”, Junho de 2009
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A grande dificuldade prendia-se com a falta de repertório escrito para Viola da Terra, bem como a falta de exercícios de escalas ou estudos de desenvolvimento da técnica. Os mesmos têm sido elaborados pelo Professor da disciplina, mas com a grande preocupação de formar os alunos no repertório tradicional e próprio da Viola da Terra, adaptando algumas peças da Guitarra Clássica, Guitarra Portuguesa, bandolim e Violino, não esquecendo que a base da formação tem de ser a música do nosso Cancioneiro. Este trabalho já levou a que editasse 3 livros do seu “Método para Viola da Terra. Também têm ajudado a este processo de estruturação da disciplina os livros editados pelo Professor Ricardo Melo: “Introdução ao Estudo da Viola da Terra Micaelense” e “Miguel de Braga Pimentel – Biografia Toada”.

No ano letivo 2009/10, surge a primeira Classe de Conjunto de Violas da Terra, com 3 alunos inscritos. No ano letivo 2018/19, a classe comemorou o seu décimo aniversário com um concerto que incluiu alunos de vários departamentos da escola. A Classe de Conjuntos conta, hoje, com 8 alunos.

No ano letivo 2010/11, o professor Rafael Carvalho fez exame autopro posto de 5.º Grau de Viola da Terra, sendo o primeiro exame do género na instituição e no nosso país. Teve como júri: Lázaro Silva (professor de Viola da Terra na Escola Tomás de Borba, Ilha Terceira), Gianna De Toni e João Macedo (professores de Guitarra Clássica do Conservatório de Ponta Delgada).

No ano letivo 2011/12, a aluna Beatriz Cordeiro Almeida fez o primeiro exame de 5.º grau de Viola da Terra, como aluna interna e como conclusão do Curso Básico no Conservatório, sendo o primeiro exame do género realizado na instituição e no nosso país. O júri contou com Lázaro Silva, Gianna De Toni e Rafael Carvalho.

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O desafio seguinte foi a oficialização do Curso Secundário de Viola da Terra para que os alunos que concluíram o Curso Básico pudessem dar seguimento aos seus estudos.

Depois de vários anos de trabalho, a intenção de homologar o Curso Secundário de Viola da Terra nos Açores, após proposta do grupo parlamentar do PSD, foi aprovada por unanimidade pela Assembleia Legislativa dos Açores, a 13 de Janeiro de 2016. Por orientação do Secretário Regional da Educação e Cultura, Avelino de Freitas de Meneses, foi nomeada pelo Conservatório Regional de Ponta Delgada uma comissão de 5 professores, que teve a função de criar um “Programa para o Curso Secundário de Viola da Terra”. O grupo de trabalho foi constituído por Gianna De Toni, Helena Raposo, Lázaro Silva, Rafael Carvalho e Válter Tavares. Depois de formulado o documento, e após várias fases de melhoria do mesmo, o Curso Secundário de Viola da Terra foi aprovado por despacho do Director Regional da Educação José António Simões Freire a partir do ano letivo 2017/18.

No ano letivo 2017/18, o professor Rafael Carvalho fez a sua Prova de Aptidão Artística (exame autoproposto de 8.º Grau) de Viola da Terra, sendo o primeiro exame do género na instituição e no nosso país, e que teve como júri: Ana Paula Andrade, Lázaro Silva, Gianna De Toni e João Macedo.

Esta oficialização de um curso curricular de Viola da Terra (Viola de Arame), no Curso Básico e Secundário, na Região Autónoma dos Açores, é um caso pioneiro no nosso País.

Todas estas conquistas só foram possíveis graças ao envolvimento, esforço e alerta da sociedade (civil e política), de pais, alunos e professores e pela disponibilidade contínua da escola em acarinhar a nossa Viola. Todos estes intervenientes têm contribuído para que a Viola

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da Terra seja hoje vista como um exemplo no Ensino Oficial da Viola de Arame no nosso País e no ensino dos Instrumentos Tradicionais.

Aproveitando a deixa de J. Silva Júnior, em 1983, no sentido de utilizar a palavra escrita e a sensibilização dos Jornais para alertar as entidades competentes sobre estas matérias, relembra‑se que a disciplina de Viola da Terra no Conservatório Regional de Ponta Delgada já tem uma lista de espera de novos alunos há muitos anos e que um novo horário já se justifica há muito tempo.

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ENCONTROS DE VIOLAS, AMIZADES E PARTILHAS…

As nossas Violas iniciaram um processo de aproximação com o intuito de criar um movimento colectivo de valorização do instrumento: aprender com as realidades e dificuldades uns dos outros, partilhar ideias, conhecimentos e repertórios.

Os “Encontros de Violas de Arame” começaram a surgir nos últimos anos, havendo mesmo um “Encontro” que já existe há mais de uma década. Em 2009, em Castro Verde, o músico Pedro Mestre, Tocador de Viola Campaniça e ensaiador de Grupos Corais Alentejanos, organizou, juntamente com a “Viola Campaniça Produções Culturais”, o “I Encontro de Violas de Arame Portuguesas”. Este Encontro tornou‑se um importante “motor” na valorização da Viola de Arame no nosso País e criou uma rede de contactos entre músicos que se dedicam, cada qual na sua Região, à preservação da Viola de Arame.

Neste Encontro participaram José Barros (Viola Braguesa), Pedro Mestre (Viola Campaniça), Rafael Carvalho (Viola da Terra) e Vítor Sardinha (Viola de Arame Madeirense), protagonizando nas oficinas momentos de diálogo com vários músicos e investigadores presentes, falando da realidade e contextos das Violas nas suas Regiões, executando temas e trocando informações. Os quatro músicos realizaram ainda 2 Concertos.

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A importância deste Encontro, e que o destaca de outros, é que juntou esta quantidade de Violas mantendo uma continuidade até ao presente. Em 2010, o “II Encontro de Violas de Arame” foi realizado nos Açores, organizado pelo músico Açoriano Rafael Carvalho, contando com os mesmos elementos da primeira edição, mas onde também esteve presente o músico Chico Lobo com a “Viola Caipira” do Brasil (Viola descendente das Violas de Arame Portuguesas). O Encontro teve, em anos seguintes, mais algumas edições no Alentejo, sendo que, em 2018, participou pela primeira a Viola Terceirense (Viola de 15 Cordas) pelas mãos do músico Bruno Bettencourt.

Fig. 18 – II Encontro de Violas de Arame, 2010 – Igreja de São Paulo, Ribeira Quente

Desde 2009 começaram a ser convidados Tocadores de outras Violas de Arame Portuguesas, pelo valioso trabalho que estavam a desenvolver nas suas Regiões. Viola Caiçara (Brasil) e Viola Beiroa (2013),Viola Amarantina (2015), Viola Toeira (2017). A edição de 2019 decorreu pela primeira vez na Madeira.

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O Encontro de Violas de Arame teve duas edições no Brasil, em 2015 e 2016, com o nome de “Mostra Internacional de Violas de Arame”. Em 2021, com a situação de pandemia mundial originada pela infecção pela COVID 19 que assolou o mundo, a “III Mostra Internacional de Violas de Arame” decorreu em formato on‑line e contou, pela primeira vez, com a Viola da Terra. Estas três edições foram produzidas pela “Viola Brasil Produções”.

Estes Encontros de Violas têm ainda a particularidade de envolver outros músicos, escolas de violas, investigadores e construtores, o que muito tem contribuído para um envolvimento e entusiasmo das pessoas que não se reduz aos 3 ou 4 dias do Evento.

Há outros Encontros de Violas que vão surgindo, outras formas de diálogo inexistentes no passado, e espera‑se que todo este trabalho contribua para que se reconheça o real valor das nossas Violas.

Este grupo de músicos lançou, há algum tempo, a ideia de uma can didatura da Viola de Arame a Património da Unesco. Todo o trabalho desenvolvido em cada Região, em cada Encontro, por cada músico e investigador ao longo dos últimos anos é um contributo para a afirma ção da Viola no nosso País e, até mesmo, da “redescoberta” da mesma em muitos locais. Com um trabalho conjunto, esperamos um dia conse guir concretizar mais este importante objectivo para a valorização das nossas Violas.

A Associação de Juventude Viola da Terra, formada em Dezembro de 2010, começou a organizar anualmente o “Festival Violas do Atlântico”. Desde 2011 que a Viola da Terra recebe uma Viola de Arame convidada, propor cionando, conjuntamente, um ou dois Concertos. Cada músico apresenta‑ ‑se a solo, especificando as técnicas e sonoridades características da sua Viola, mas, depois, tocam várias modas em conjunto, demonstrando a ver satilidade e complementaridade musical das nossas Violas.

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O músico Açoriano Rafael Carvalho tem sido o anfitrião destes encontros, recebendo em 2011 (1.ª edição) e 2017 Vítor Sardinha, com a Viola de Arame Madeirense. O músico Chico Lobo esteve nas edições de 2012 e 2018, com a Viola Caipira do Brasil.

José Barros trouxe a Viola Braguesa, em 2013, à 3.ª edição, e Amadeu Magalhães visitou‑nos com a Viola Toeira, em 2014. Em 2015 foi a vez da participação da Viola Campaniça, pelas mãos de Pedro Mestre.

A edição de 2016 contou com Orlando Martins, da Ilha do Pico, juntando assim o toque rasgado da Viola, característico daquela Ilha, com o toque ponteado de São Miguel.

Fig. 19 – Cartazes das 10 edições do Festival Violas do Atlântico
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A nona edição, em 2019, contou com a Viola Beiroa, pelas mãos do tocador Ricardo Fonseca.

A décima edição decorreu em 2020, em formato on‑line devido à pande mia, juntando os dois modelos de Violas dos Açores: a Viola de 15 Cordas (Viola Terceirense), pelas mãos de Bruno Bettencourt, e a Viola de 12 Cordas. Este Festival tem sido um importante marco para as Violas de Arame pois tem proporcionado encontros inéditos entre as nossas Violas.

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ENCONTROS DE VIOLAS AÇORIANAS…

O “Encontro de Violas Açorianas” surgiu para valorizar, dar a conhecer e desmistificar aquilo que as Violas representam para os Açorianos, bem como informar da realidade actual em cada Ilha. Era e é importante conhecermos o trabalho que é desenvolvido nas diversas Ilhas dos Açores: trocar ideias, conhecimentos, práticas de ensino, de execução e de construção. Fazia falta nos Açores um evento que impulsionasse a criação de uma rede de contactos entre tocadores e construtores, potenciando uma comunicação rápida e eficiente entre todos.

A primeira edição do Encontro de Violas Açorianas foi organizada pela Associação de Juventude Viola da Terra, na Ilha de São Miguel, em Setembro de 2011, com uma palestra que decorreu na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada e com um Concerto no Auditório Municipal da Povoação. Este primeiro Encontro contou com tocadores de Viola da Terra de 5 Ilhas dos Açores: Flores (José Serpa), Graciosa (António Reis), Pico (Orlando Martins), São Miguel (Rafael Carvalho) e Terceira (Lázaro Silva).

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O Encontro percorreu outras Ilhas nos anos seguintes, visitando as Flores, Pico, Terceira e São Jorge, seguindo uma estrutura de “Concerto Comentado”, em que cada músico apresenta a sua Viola, fala da sua téc nica de execução e interpreta temas que identifica como representa tivos da realidade da sua Ilha ou do conhecimento geral. Uma outra faceta destes Concertos é que os músicos escolhem alguns temas para tocarem em conjunto, demonstrando que as diferentes técnicas e afina ções das Violas complementam‑se e criam uma riqueza enorme dentro da diversidade que nos caracteriza.

Nos locais por onde vai passando, este Encontro pretende ir alertando para a necessidade de uma maior aproximação (ou reaproximação) à nossa Viola e tenta ir motivando as pessoas para a sua aprendizagem ou, pelo menos, que se juntem para virem ouvir o som das Violas.

Em 2014, o “Encontro de Violas Açorianas” foi a São Jorge e a Associação de Juventude Viola da Terra lançou um desafio ao músico Renato

Fig. 20 – I Encontro de Violas Açorianas, Auditório Municipal da Povoação
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Bettencourt para juntar tocadores de Viola daquela Ilha para um momento musical a abrir o Serão. O desafio superou as expectativas, com 14 Tocadores da Ilha de São Jorge em Palco, naquele que foi o “I Encontro de Tocadores da Ilha de São Jorge”. Este Encontro deu frutos, levando depois à criação do “Grupo de Violas da Terra de São Jorge”, que tem participado em alguns eventos naquela Ilha e, ainda, na Ilha do Pico.

Em 2018, o concerto “Violas dos Açores” decorre integrado no CORDAS World Music Festival, organizado pela Associação MiratecArts, na Ilha do Pico, tendo contado com os músicos: Bruno Bettencourt (Terceira), José João Mendonça (Graciosa), José Silva “Canarinho” (Pico), Rafael Carvalho (São Miguel) e Renato Bettencourt (São Jorge).

No ano seguinte, o evento decorre no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas inserido no 1.º ano de Comemorações do “Dia da Viola da Terra”. Participaram os músicos Alexandre Fontes (Santa Maria), Bruno Bettencourt (Terceira), Jorge Silva “Canarinho” (Pico), Rafael Carvalho (São Miguel) e Renato Bettencourt (São Jorge).

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Fig. 21 – As Violas do Encontro de Violas Açorianas 2019
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A última edição do “Encontro de Violas Açorianas” decorreu em Julho de 2020, em formato on‑line. Mesmo à distância, o evento contou com a participação, pela primeira vez, de músicos de 6 Ilhas dos Açores: Alexandre Fontes (Santa Maria), Bruno Bettencourt (Terceira), Fábio Silveira (Pico), Rafael Carvalho (São Miguel), Renato Bettencourt (São Jorge) e Tiago Pavão (Graciosa).

Nesse ano houve ainda um importante evento, numa parceria da Associação MiratecArts e da Associação de Juventude Viola da Terra: “A Viola e a Mulher – I Encontro de Tocadoras de Viola da Terra”. O evento decorreu, também, em formato on‑line, na 5.ª edição do CORDAS World Music Festival, juntando pela primeira vez tocadoras de Viola da Terra de 5 Ilhas dos Açores num evento histórico: Maria Costa (Graciosa), Mariana Cabral (Terceira), Matilde Costa (Santa Maria), Mónica Goulart (Pico) e Sofia Vidal (São Miguel)

Fig. 22 – A Viola e a Mulher
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Um dos objectivos futuros do “Encontro de Violas Açorianas” é contar com um Concerto com tocadores de Viola de todas as Ilhas, um desafio enorme, mas que já esteve mais longe de acontecer.

Já se deram importantes passos, já se mostrou que é possível juntar as nossas Violas em concertos, palestras e convívios, mas tem de haver continuidade nas nossas Freguesias, nos nossos Concelhos, nas nossas

Ilhas: todos temos a responsabilidade de manter a nossa Viola Viva!

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DIA DA VIOLA DA TERRA…

No encerramento da terceira edição do Festival Cordas, em Setembro de 2018, houve a apresentação especial do Concerto “Violas dos Açores”, com tocadores de Viola da Terra de 5 Ilhas dos Açores. No que toca à parte da conferência do festival, o último dia foi dedicado à Viola de arame regional, a Viola dos dois corações dos Açores, onde foi decidida a criação do “Dia da Viola da Terra”.

Dessa conversa entre Tocadores seguiu uma nota de imprensa a toda a comunicação social dos Açores e aos órgãos do Governo Regional, dentro dos seguintes moldes:

“A MiratecArts, entidade organizadora do CORDAS World Music Festival, em parceria com a Associação de Juventude Viola da Terra e o maior dinamizador da Viola da Terra, o professor Rafael Carvalho, com o apoio dos grupos Casa da Música da Candelária, Grupo de Tocadores de Violas de São Jorge e da Associação de Músicos da Ilha Branca, declaram que o Dia da Viola da Terra seja a 2 de Outubro, porque o dia da música não é só um e os dois corações devem correr todas as ilhas e terras das comunidades açorianas um dia do ano em seu nome.

“A Viola da Terra é a forma mais pura de identificar musicalmente um açoriano”, diz Bruno Bettencourt dos Myrica Faya, presente no Festival Cordas

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com a Viola da Terra terceirense, “faz todo o sentido haver um dia em que se celebre essa raiz musical.”

Sendo assim, as entidades presentes, desafiam o Governo dos Açores para oficializar este dia 2 de Outubro, e para que a partir de 2019 sejam celebra dos eventos a destacar a Viola de Terra, por todo o mundo açoriano.”

Desse modo, em 2019, aconteceu pela primeira vez a comemoração do “Dia da Viola da Terra” nos Açores, com eventos em 7 Ilhas Açorianas: Santa Maria, São Miguel, Terceira, Pico, São Jorge, Graciosa e Flores. Foram organizados dezenas de eventos, concertos, palestras, sessões de sensibilização em escolas e museus, envolvendo inúmeros tocadores de Viola da Terra dessas 7 Ilhas.

Fig. 23 – Logotipo do “Dia da Viola da Terra”
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Em cada uma dessas Ilhas tivemos uma Associação ou um tocador de Viola que se chegou à frente para produzir uma programação específica. Coube depois à Associação MiratecArts a elaboração de uma revista com toda a programação.

Essas comemorações do “Dia da Viola da Terra”, em 2019, foram a maior movimentação de sempre nos Açores, na história da Viola da Terra, em torno do instrumento e das suas várias facetas e contextos. Uma união Arquipelágica só possível graças à boa vontade de todos os envolvidos e a uma nova visão, no presente, de que só com amizade, partilha de conhecimentos e colaboração pessoal e institucional se pode garantir a valorização e perpetuidade que a Viola da Terra necessita e merece.

No ano 2020 houve uma diminuição do número de eventos e uma adaptação da maior parte dos mesmos para um formato “on‑line. Mesmo assim, com todas estas dificuldades, conseguiu‑se concretizar vários eventos, que tiveram muita visibilidade e adesão nas plataformas digitais, proporcionando a todos os que assistiram momentos muito diversificados e muito ricos em torno das nossas Violas. Provou‑se, mais uma vez, a capacidade da Viola e dos seus responsáveis de se adaptarem rapidamente a novas realidades e condicionantes, de modo a conseguirem continuar a chegar às pessoas.

No ano 2021, ano em que este livro de crónicas será apresentado ao público, nas comemorações do “III Dia da Viola da Terra”, espera‑se reforçar o desafio conjunto de fazer o Governo dos Açores compreender a importância da oficialização desta efeméride para os Açores e para os Açorianos. O certo é que, oficializado ou não, o dia tem sido comemorado desde 2019 e assumido por todos como sendo o nosso dia, o nosso momento de mostrar o valor da Viola da Terra!

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Baker, C. Alice (1882) – A Summer in the Azores with a glimpse of Madeira. Lee and Shepard Publishers.

Borba, Liduíno e Sousa, José Fonseca de (2017) – Improvisadores da Ilha de São Miguel. Turiscon Editora.

Carvalho, Rafael Costa (2013) – Método para Viola da Terra – Iniciação. Rafael Carvalho Dias, Tenente Francisco José (1981) – Cantigas do Povo dos Açores. Instituto Açoriano de Cultura. Angra do Heroísmo. Lobo, Chico e Sombra, Fábio (2015) – Conversa de Violeiro. KUARUP Produções, Lda. Melo, Dias de (2008) – Pedras Negras. Ver Açor, Lda. Nemésio, Vitorino (1950) – FESTA REDONDA: décimas & cantigas de terreiro oferecidas ao povo da Ilha Terceira. 1950. Livraria Bertrand.

Revista Ilustração Portugueza, 9 de Março de 1914. Vieira, Virgílio (2019) – Entre Silêncios. Letras Lavadas edições.

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