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PREFÁCIO

“Partilhar, questionar, aprender e ensinar um instrumento que não se ensi‑ nava… aprendia-se!” Aqui está o melhor resumo que se poderia fazer sobre este livro. Rafael Carvalho marca o ritmo e a substância desta obra com estes quatro verbos, que dizem tudo: partilhar, porque a arte não existe para si mas para os outros, questionar, porque todo o caminho se faz de interrogações que se tornam (ou não) oportunidades de decisão, aprender, porque a sede de saber só se mata com tempos e modos de aprendizagem, e ensinar, porque o dom de transmitir conhecimentos é o mais belo corolário do saber.

Por isso mesmo, este livro não precisa de qualquer prefácio. E muito menos um prefácio de alguém para quem a viola da terra continua um mistério na sua execução e na multiplicidade dos seus sons que nos levam a infinitos de tempo e ternura de passado. Criei‑me embalado por esses sons. Da Ribeira Quente, onde Rafael Carvalho nasceu a 22 de Setembro de 1980, à “minha Ribeira das Tainhas”, poucas léguas vão e, com certeza que os mesmos ou semelhantes acordes vibravam nas ruas e casas, festas e arraiais, em tempos de Natal e Reis, Estrelas e Matanças, Carnaval e Espírito Santo, baile rodado ou furado, sapateia, saudade ou desgarrada!

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Eles e elas, mãos tisnadas de trabalho, dedilhavam a viola da terra, com corações, por vezes sangrando, unindo arte e alma aos dois corações que consagram tão belo e nosso património.

Sempre achei extraordinário o título que Rafael Carvalho escolheu para as suas inesquecíveis crónicas no semanário “Atlântico Expresso”, “9 Ilhas, 2 Corações”. Essencialmente porque como magistralmente define o autor “não têm de ser os 2 Corações da Viola. É muito mais do que isso: corações que nos unem há séculos, mesmo quando circular entre as Ilhas era privilégio só de alguns, mas em que o bater do pé nos temas mais picadinhos e que convi‑ davam ao baile ou o aperto forte no peito de quem escutava as “Saudades” era igual”. Porque o tanger da Viola sempre uniu os Açorianos.

É preciso, porém, que se diga que este livro, apesar do seu título “ Viola da Terra – Crónicas” é muito mais que a recolecção das crónicas publicadas no Atlântico Expresso. Elas aqui estão, algumas com adaptações e actualização e outras que em livro ganham a sua própria vida, pois que estórias de vida são de alguém que, na sua juventude, nos dá já um testemunho que não tenho receio de classificar único e entusiasmante e que marca as últimas décadas no campo da música nos Açores.

Rafael Costa Carvalho começou a aprender a arte da viola da terra em 1994, com esse grande mestre e entusiasmo do nosso folclore, Carlos Quental, e no ano seguinte já começou a dar formação na Escola de Viola da Terra da Ribeira Quente, terra que marca pelas suas iniciativas, entre as quais a de membro fundador do Grupo de Violas/Foliões da Ribeira Quente em 1996 e do grupo “Musica Nostra” em 2005.

Foi membro do Grupo Folclórico São Paulo de 1993 a 2005 e colaborou com os Grupos Folclóricos das Camélias (Furnas), São Pedro (Lomba do Cavaleiro), Água Retorta, Fajã de Baixo e o da Associação Académica da Universidade dos Açores

Como ele próprio escreve no seu espaço da blogosfera, em 1996 estreou‑ ‑se a acompanhar as Cantigas ao Desafio, com o seu colega Jaime Braga ao Violão, conseguindo, ainda que com alguma dificuldade no

princípio, afirmar a Viola da Terra neste género musical, que havia sido substituída pela Guitarra Portuguesa. Nesta última década teve o prazer de acompanhar ao Desafio, Desgarrada e Velhas, cantadores como Jorge Rita, João Luís Mariano, Lupércio Albergaria, António Silva, António de Sousa, José Eliseu, João Ângelo, Mota, João Leonel, José Fernandes, Vasco Aguiar, Manuel Antão entre outros.

Foi também responsável pela Escola de Viola da Terra e Violão da Ribeira Quente que já formou, nos últimos 20 anos, dezenas de músicos que têm assegurado a continuidade dos grupos e tradições que existiam na Freguesia e estavam em vias de se extinguir.

Formou em 2005 com Ricardo Melo e Ana Medeiros o trio Musica Nostra com o qual lança o primeiro trabalho discográfico em 2010 "Cantos da Terra". O mesmo grupo actua em 2008 no X Aniversário da Orquestra Regional Lira Açoriana, num Concerto inédito para Orquestra e Viola da Terra. Este grupo também já actuou nas 9 Ilhas dos Açores, tendo ainda actuado em Bruxelas por duas vezes, no Teatro da Trindade e nos espaços Fnac do Colombo e Alfragide.

É formador da Escola de Viola da Terra da Fajã de Baixo. Foi também Formador de Viola da Terra na Academia de Música da Povoação de 2007 a 2010.

Exerce funções docentes (professor provisório) de Viola da Terra, desde o ano lectivo 2008/2009, no Conservatório Regional de Ponta Delgada. Desenvolveu o primeiro Programa Mínimo de Viola da Terra Micaelense para o Conservatório Regional de Ponta Delgada, da Iniciação ao V Grau.

Com o seu saber e com o número de solicitações sempre a crescer, participou no I Encontro de Violas de Arame, de 11 a 13 de Setembro de 2009, em Castro Verde, representando os Açores com a Viola da Terra.

Estiveram também presentes Pedro Mestre (Viola Campaniça), José Barros (Viola Braguesa) e Vitor Sardinha (Viola de Arame – Madeira), e organizou em 2010, no Conservatório Regional de Ponta Delgada, o II Encontro de Violas de Arame com a presença também do tocador de Viola Brasileira Chico Lobo.

Tem desenvolvido um conjunto de aulas de Viola da Terra online para apoio às pessoas que não têm acesso a um professor de Viola da Terra, e tem mantido o site www.violadaterra.webs.com, o primeiro site dedicado unicamente à Viola da Terra e que tem uma actualização muito frequente no seu Blogue.

Em 2010 participa no Projecto Azorecombo – Transmutações para Viola da Terra num Concerto para Viola da Terra e Música Electrónca onde tocou com @c (Miguel Carvalhais e Pedro Tudela) e Vitor Joaquim

Em Junho de 2010 é convidado para tocar na Inauguração da Exposição "A arte do Violeiro", no Museu de Vila Franca do Campo, pelo Dr. Rui de Sousa Martins, tendo ao Violão o tocador Dinis Raposo e ainda Carlos Estrela à Viola da Terra.

Organiza desde 2009 o “Dia da Viola da Terra” no Conservatório Regional de Ponta Delgada e é o responsável e Director Musical da Orquestra de Violas da Terra formada em Fevereiro de 2010 e que conta actualmente com cerca de 30 elementos, todos tocadores de Viola da Terra da Ilha de São Miguel.

Organizou com a Associação de Juventude Viola da Terra o “I Encontro de Violas Açorianas” a 2 e 3 de Setembro de 2011 que envolveu a presença de tocadores de 5 Ilhas dos Açores, Flores (José Serpa), Graciosa (António Reis), Pico (Orlando Martins), Terceira (Lázaro Silva) e São Miguel (Rafael

Carvalho. Um evento que a Viola aguardou cerca de 5 séculos nos Açores para que se concretizasse.

Concluiu o Curso Básico de Viola da Terra no Conservatório Regional de Ponta Delgada, tendo sido o primeiro músico Micaelense a submeter‑se a exame de V Grau de Viola da Terra.

Colaborou com a RTP Açores no programa "Açores 9 Ilhas na Europa" com a gravação do genérico numa junção do "Hino à alegria" com uma "Sapateia", tendo ainda gravado um tema de cada Ilha para ser passado ao longo dos programas da Série documental.

Lançou em Fevereiro de 2012 o seu primeiro CD a solo "Origens" com 10 temas instrumentais, 5 dos quais temas originais, o que constituiu o primeiro trabalho do género na Viola da Terra nos Açores.

O tema "Mouraria" do seu CD "Origens" foi utilizado como genérico do "Programa das Festas" da RTP Açores, num projecto de Vasco Pernes e Rui Machado.

Em Novembro de 2013 lançou o seu primeiro livro "Método para Viola da Terra – Iniciação" com partituras de iniciação ao instrumento, ilustrações de Luís Cardoso, e, ainda, com vídeos de apoio online de todas as peças e exercícios. Para além disso o Método para Viola da Terra adoptou o Príolo como mascote.

Lançou em Setembro de 2014 o seu segundo CD "Paralelo 38" que resgata algumas variações de temas tradicionais, continua a sua vertente de novos temas originais, e combina, ainda, instrumentos como Contrabaixo, Violoncelo, Violino, Gaita‑de‑Foles, Violão e Percussão.

Colaborou no CD "Chi‑Coração" da multi instrumentista Açoriana BIA, com a participação em 4 temas com Viola da Terra.

Colaborou com o Realizador Zeca Medeiros no seu filme "O Livreiro de Santiago" executando um dos temas do filme em Viola da Terra.

Em Outubro de 2015 lançou o seu segundo livro "Método para Viola da Terra – Básico" com partituras, acordes e vídeos de apoio online de todas as peças e exercícios.

Compôs o tema "Gente Franca" para a série televisiva da RTP Açores, com o mesmo nome, produzida por Vasco Pernes.

A 28 de Maio de 2016 participa no espectáculo comemorativo dos 75 anos da RDP Açores e Sata Air Açores, num evento que decorreu no Teatro Micaelense. Nessa gala musical foi convidado a tocar num quarteto formado para a ocasião com Manuel Costa Júnior, Manuel Canarinho, Manuel Rocha e Rafael Carvalho.

Em Outubro de 2016 editou o seu terceiro livro o "Método para Viola da Terra – Avançado".

Colaborou com o Realizador Zeca Medeiros na série televisiva de 11 episódios "Viola de Dois Corações", executando em Viola da Terra um tema tradicional de cada Ilha dos Açores.

Colaborou com Sérgio Ávila e José Serra com temas musicais originais para o programa "Jovens Cientistas dos Açores".

Foi convidado a participar com um momento musical em duo, com o seu irmão César Carvalho, na cerimónia de atribuição de título Honoris

Causa ao Dr. Jaime Gama que decorreu a 6 de Março de 2017 na Aula Magna da Universidade dos Açores.

Em 2017 editou o seu terceiro álbum a solo, intitulado de “Relheiras”, com 7 originais seus para Viola da Terra. Em 2018 editou o álbum duplo “9 Ilhas, 2 Corações”, com 80 modas tradicionais Açorianas, modas de todas as Ilhas dos Açores. Em 2019 apresenta “Um Natal à Viola”, um álbum com 14 músicas de Natal.

Em 2020 edita o álbum “Sons no Tempo”, com o trio Origens, que fundou em 2016 com a Violinista Carolina Constância e o irmão César Carvalho ao Violão.

Em 2021 apresenta o seu 6.º álbum a solo, “Cordas do Mundo”, numa viagem musical por várias sonoridades do mundo, pelos sons da Viola da Terra.

Caber tanto em 40 anos de vida é um fenómeno que a poucos é dado, mas que Rafael Carvalho assume com uma simplicidade e autenticidade que dele fazem um verdadeiro mestre na música e no saber estar que demonstra sempre e ao todos na sua já proverbial disponibilidade.

É importante deixar este registo aqui, porque, muitas vezes, somos prontos a elogiar a e reconhecer valores que vão sendo importados ao sabor das modas e dos interesses e relegamos para o plano do esquecimento ou da indiferença o valor e a garra dos nossos que, na obscuridade e no quase anonimato de cada dia, vão engrandecendo a nossa Terra e preservando as nossas tradições.

Para além do aspecto didático de muitas das crónicas destes livro que nos ensinam coisas, como “Da viola, suas cordas e seus nomes”, “Afinações da viola”, “Rasgueados , ponteados e outras questões”,

“Trastos, pontos , espelhos e vaidades”, ou ainda esta magnífica crónica/ capítulo intitulado “Símbolos , saudades , coroas e fortuna”,

Rafael Carvalho, de forma encantadora, pois a sua linguagem, eivada de simplicidade é, ao mesmo tempo cativante e sugestiva, ainda nos leva aos mais diversos momentos e ambientes em que a viola é rainha, tais como convívios, carnaval, cantorias e foliões.

Os muitos encontros, seminários, eventos culturais e exibições que se vão multiplicando por essas ilhas, mostram aquilo que o autor deste livro vem defendendo e que prova o trabalho que ele e mais uns quantos têm feito pela divulgação e ensino da viola da terra. Da ideia de que era um “instrumento dos antigos”, passou‑se para a realidade de hoje, com centenas e centenas de jovens de todos os Açores a dar vida, uso e amor à viola da terra, numa verdadeira “ressurreição”, mais valiosa ainda porque da aprendizagem meramente empírica e oral se passou para um ensino técnico, metodológico e organizado.

E cabe aqui uma referência muito especial ao escritor e investigador Manuel Ferreira, autor de “O Barco e o Sonho”, popularizado pela série televisiva realizada pela RTP/Açores, que, conjuntamente com o Padre João Caetano Flores, nos anos oitenta do século passado, muito contribuíram para o ressurgir do entusiasmo em volta da viola de dois corações, a que dedicaram um número completo do Boletim “Despertar”, da Ribeira Chã, que viria a dar origem ao livro “Viola de dois corações”, editado em 1990 e mais tarde reeditado em 2010 e apresentado no Coliseu Micaelense, num memorável espectáculo em que, entre outros artistas e grupos, esteve Rafael Carvalho, com o seu “Grupo de Violas da Terra” e a “Escola da Violas da Ribeira Quente”. Tudo isto no mesmo dia em que outro investigador e cultor da história dos Açores, General Ferreira Almeida, apresentava o seu livro “A Viola de Arame dos Açores”.

Podemos dizer, pois, que Rafael Carvalho representa e aparece como um elo intergeracional nos caminhos da afirmação de tão popular instrumento. As crónicas escritas para o “Atlântico Expresso” e que aqui ganham nova vida e perenidade, são uma pauta escrita a letras de ouro, numa história que tem sido composta a várias vozes e expandida em acordes maiores e menores, em que cada dedilhar e cada ponto significam um acto de amor aos nossos antepassados e um testamento valioso para o futuro da nossa música, do nosso folclore e da nossa etnografia.

E este livro de Rafael Carvalho é para qualquer leitor, um presente cheio de futuro. Que vale a pena ler e divulgar, pelo talento, pela dedicação e acima de tudo pelo amor que destas páginas se desprende, neste verdadeiro hino de “9 ilhas, 2 corações”.

Santos Narciso

Director‑Adjunto do “Atlântico Expresso”