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A VIOLA E A CANTORIA

O Cantar ao Improviso tem uma forte ligação à Viola nas nossas Ilhas. Nas Cantigas ao Desafio, Desgarradas, Velhas e Pezinhos a Viola é o instrumento de eleição para acompanhar a improvisação e genialidade dos Cantadores.

A “Cantoria”, tocada usualmente na tonalidade de Lá menor, acaba por ser a forma de improviso mais comum no nosso Arquipélago e tem ganho uma nova vitalidade com o aparecimento de dezenas de jovens Cantadores na última década. Do mesmo modo, a Viola, que era a acompanhante “original” e imprescindível a qualquer Cantoria, também começou a reaparecer com grande força nos últimos anos, recuperando um lugar que tinha sido tomado, principalmente, pela Guitarra Portuguesa.

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É certo que há Ilhas onde a Viola poderá ter estado sempre mais presente, mas há outras realidades em que a mesma esteve fora dos palcos das Cantigas ao Desafio por muitos e muitos anos.

Sobre este assunto recordo algumas histórias que vivi quando comecei a integrar de modo frequente as Cantorias, tocando Viola da Terra a partir dos meus 16 anos e sempre acompanhado ao Violão pelo colega Jaime Cardoso.

Em 1996 uma das primeiras Cantorias em que toquei foi na Ribeira Seca, de Vila Franca do Campo. Quando chegámos ao local, havia já alguns “velhotes” à espera para confraternizar com os Cantadores, contar histórias e reviver cantigas “míticas” que ficaram na memória das gentes. Lembro‑me de ouvir um dos velhotes lamentar: “pela forma do saco, aquilo é uma Viola, não é uma guitarrinha! Já não vai haver aqueles sons repenicados”. Pode parecer um comentário ofensivo, mas não era. A Viola já pouco aparecia em palcos da Cantoria na Ilha de São Miguel. Os próprios Cantadores assim o referiam, habituados a percorrer as muitas freguesias da Ilha. Ou eram acompanhados à Guitarra Portuguesa e Violão, ou só com Violão e, até, com o Acordeão.

A Cantoria lá começou e dei as primeiras notas da melodia que costumava tocar, repenicando o mais que podia, “dobrando a voz na Viola” e preenchendo os vazios dos Cantadores nas pequenas hesitações. Hora e meia a duas horas depois, terminada a Cantoria, subiram todos ao palco para a Desgarrada. Puxei o arpejo bem repenicado, em Lá Maior, que me ensinara o Mestre Carlos Quental, e a noite terminou em boa disposição. No final, os mesmos velhotes, que haviam torcido o nariz à forma da Viola dentro do saco, foram os primeiros a vir falar connosco, entusiasmados. Diziam que nunca tinham ouvido uma Viola repenicar assim (e isso só prova que o povo tem a memória curta) e que um deles tinha ainda uma Viola em casa, que tinha sido do Pai, que fora um grande Tangedor de Viola. Desde esse dia que essa situação foi‑se repetindo, com histórias semelhantes, em vários locais.

Uma outra história de que me recordo com frequência decorreu em Ponta Garça, também no final da década de 90. A Junta de Freguesia organizava uma Cantoria de dois dias com os mais conhecidos Cantadores da Ilha e, ainda, com Cantadores de renome da Ilha Terceira e outros emigrados nas nossas Comunidades dos Estados Unidos e Canadá. Era um dos maiores Festivais em torno da Cantoria na Ilha de São Miguel.

Fomos lá tocar durante alguns anos, eu na Viola e o Jaime Cardoso no Violão, acompanhando nomes como Vasco Aguiar, Manuel Antão, José Fernandes, José Eliseu, Tio João Ângelo, João Luís Mariano e muitos outros. Numa das edições, chegados mais cedo, estávamos a ver o cartaz do evento que referia o grande final com as “Velhas” entre José Eliseu e o Tio João Ângelo. Eu conhecia mais ou menos a melodia, mas nunca a tinha tocado em público e cheguei a comentar com o meu colega que seria divertido de ouvir! Também me questionei sobre quem viria tocar as “Velhas”?

Passou o tempo, os Cantadores chegaram, mas nem mais um Tocador. Conheci pela primeira vez o José Eliseu e o Tio João Ângelo. Em conversa com eles compreendemos que nós é que iriamos acompanhar as “Velhas”, algo que a comissão organizadora não se lembrou de nos informar! O José Eliseu, enorme Cantador e excelente pessoa, imediatamente se dispôs a ensaiar um pouco connosco.

Tudo decorreu bem durante a Cantoria e ao longo do Serão, mas, na altura das “Velhas”, depois de eu fazer a primeira introdução, o Tio João Ângelo não entrava. Dei mais uma volta na melodia e ele continuava a não cantar. O Cantador José Eliseu veio segredar -me ao ouvido: “ele está à espera que dobres a melodia”. Assim fiz, “dobrei a melodia”, e o Tio João Ângelo então arrancou nos seus improvisos. Enganei‑me muito nesse dia porque não conseguia controlar o riso, mas ninguém pareceu notar, pois toda a gente se ria também com a moda das “Velhas”.

Esta partilha foi um pouco mais pessoal, reflectindo a forma como tive a felicidade de viver uma parte da minha vida ligado ao improviso popular. A Viola acompanha estas manifestações populares e muitas outras. Cada Tocador e Cantador terá centenas de histórias para contar e para partilhar.

Recomendo a pesquisa e leitura das dezenas de publicações de Líduino Borba sobre esta temática e seus intervenientes. No livro “Improvisadores da Ilha de São Miguel” encontra‑se a seguinte quadra de Vasco Aguiar sobre a Viola:

Para cantar um fadinho Não é preciso ir à escola É dar ao corpo um jeitinho Ao compasso da Viola.

Outro livro que me fascinou ler chama‑se “Aurora e Sol Nascente – Turlu e Charrua – Confidências”, de Mário Pereira da Costa, e que aconselho a todos. Regista‑se uma cantiga do Charrua, ainda em início de carreira, a um Tocador de Viola:

Toca‑me nessa Viola, Ó rapaz da minha estima, Faz dessa mão uma bola Girando abaixo e acima.

A qualidade dos Poetas Populares Açorianos é inigualável na realidade nacional: quer na forma da rima, versatilidade de conteúdos e bom gosto nas palavras. Claro que, com a Viola a acompanhar bem repenicada, as “Cantigas” saem mais fluidas. Esta conversa ouvi -a do Cantador Capelense João Luís Mariano inúmeras vezes.

Por altura dos Impérios, das Festas de Freguesia, dos Peditórios e das Folias nas nossas Ilhas e nas nossas Comunidades, vejam com outros olhos e oiçam de outra forma estes enormes artistas. Se tiverem oportunidade, peçam para conhecer as suas histórias.