Versos Perplexos

Page 1

Versos Perplexos

ViVências, experiências e produções das JuVentudes negras teresinenses

EDITORIAL, por Dhara Leandro

Das nossas vozes, faremos ouvir o eco da vida-liberdade

Muito do que sonho hoje começou na infância. O sonho de cursar Jornalismo começou quando eu descobri a paixão de escrever. O amor pela arte me acompanha desde as primeiras primaveras.

Alguns pesadelos também começaram quando criança. Eu não acho que preciso descrever o quão cedo descobrimos o racismo, todos nós sabemos bem.

Este trabalho também começou cedo. Entre alguns devaneios e a percepção de como a mídia visualiza os corpos negros, os primeiros rascunhos da Versos Perplexos surgiram, ainda em 2019, quando eu nem imaginava construir uma revista do zero.

Durante pouco mais de cinco meses, conversei com jovens negros e negras cheios de sonhos, assim como eu. Escutei suas histórias, olhei suas fotografias, registrei o brilho no ollhar de quem sabe bem o que está fazendo e qual marca que quer deixar nesse mundo. Vi, ouvi, senti e respirei suas criações.

E ainda que exista beleza no mundo que enxergo, através das vozes que compõem esta revista, também ecoam os "versos perplexos com

rimas de sangue e fome", que Conceição Evaristo citou em seu poema Vozes-Mulheres tantos anos atrás.

Neste trabalho, espero que você possa enxergar a infinidade de universos que podemos ocupar. Nós, negros e negras, podemos conquistar lugares onde jamais ousamos sonhar chegar. Nessas páginas, começamos a pintar um retrato de um Piauí, uma Teresina, onde os corpos negros possam ser outra coisa que não criminosos, dignos de punição e pena. Na música, no esporte, nas galerias, é possível encontrar as milhares de Juventudes Negras de Teresina. Assim, esperamos transformar nossos olhares e compartilhar outras vivências negras que não sejam o racismo e a criminalidade. Pois, com infinitas Juventudes, não é isso o que nos representa.

Que nossos talentos e criações sejam aplaudidos ainda em vida, e que não se transformem em espetáculo para uma mídia que só lucra com a nossa dor, mesmo após nossa partida.

Para Janaína, que merecia mais. E tantos outros que não podemos nem nomear. Das nossas vozes, faremos ouvir "o eco da vida-liberdade".

2 • versos perplexos

EXPEDIENTE

TEXTO: Dhara Leandro, Ana Carolina Dias

CAPA: Dhara Leandro

FOTOGRAFIA: Karine Rocha e Dhara Leandro

PROJETO GRÁFICO/DIAGRAMAÇÃO: Dhara Leandro

ILUSTRAÇÃO: Dhara Leandro

ORIENTAÇÃO: Nilsângela Cardoso Lima

3 versos perplexos •
04
Sistema Avançado de Preta Cakau
Tambor
SUMÁRIO
ENTREVISTA Espiando o
12 REPORTAGEM O esporte cada vez mais presente nas Lagoas do Norte 18 PINTURA
22 ENTREVISTA Nego Luiz, a desobediência que criou arte 27
ENSAIO Nós também somos as bonitas 30
08
ENTREVISTA A África em Teresina de Preto Kedé
CRÔNICA Azulatura 20 GRAFITTI Pão e Tinta

PRETA CAKAU Espiando o Sistema Avançado de

Foto: Bruno Tomaz. ENTREVISTA, por Dhara Leandro

“Enquanto eu tô compondo, saiba que eu tô só a alma”. O trecho descreve bem a relação de Gabriela Ferreira, a Preta Cakau, com a música. De sorriso aberto e uma timidez cativante, a jovem de 18 anos me recebe no jardim do condomínio onde mora a sua produtora, manager e amiga, a Patty.

Sistema Avançado , lançado em 31 de maio de 2022, é o primeiro single da artista teresinense, que descreve a si mesma como “a primeira trapstar negra” da capital do Piauí. Em seus clipes, a rapper busca trazer representatividade preta e diversidade de corpos, elevando a autoestima de mulheres negras.

Ao contrário do que sugere sua juventude, Cakau mostra maturidade ao falar da sua carreira, dos seus sonhos e projetos futuros. Antes de começar nossa conversa, ela tranquiliza a mim, que estava tensa por encontrar uma personalidade de quem sou fã.

“Fica tranquila, essa é a minha primeira entrevista também.”

Ansiosa para conhecer a mais nova adição das minhas playlists, pergunto: Quem é a Preta Cakau?

“Eu ainda me sinto uma criança em evolução” , ela responde. “Há um tempo atrás eu não andava nem na rua sozinha, sabe? Eu sou uma pessoa que está se descobrindo agora. Principalmente após lançar uma música e ser bem recebida.”

Devagarinho, a jovem vai se abrindo e me conta que seu início na música foi algo que ela

nem imaginava ser possível.

“Eu sou uma criança periférica que pensou que era impossível fazer muita coisa. Meu primeiro clipe foi uma realização que eu queria muito e achava que nunca ia acontecer. é até difícil falar isso porque, mano, era uma coisa que não cabia no meu orçamento e eu não tinha quem me ajudasse. [...] E lançar o clipe foi tão massa pra mim e pra minha família, que mesmo que não tenha estourado, que não seja reconhecido, mas está no meu coração. ‘Sistema Avançado’ abriu as portas pra mim na música e agora eu me sinto muito bem sendo aqui de Teresina.”

A Cakau escreve letras desde os oito anos de idade. Ela me diz que sempre gostou de ouvir música e que sempre anda com alguma coisa tocando nos fones de ouvido.

“Com oito anos de idade eu já fazia riminha, pegava o caderno pra escrever. Todo dia. Só que eu não conseguia terminar as músicas, e era sem beat, coisas que eu faço hoje em dia, né? Ouvir minha própria música no beat, mesmo gravado aqui no celular, sendo uma coisa que eu fiz, aquilo me deixou muito orgulhosa.”

E gravar sua primeira música só foi possível com o trabalho duro da artista. E dos parceiros incríveis que surgiram em seu caminho.

“A gente estava na busca da primeira música para me apresentar pra todo mundo porque ninguém me conhecia aqui. Então, para essa primeira visão nós começamos a procurar uma música que fosse boa. Pensamos em começar com uma música sensual, só

5 versos perplexos •

que eu falei que não queria isso agora. E eu já tinha feito ‘Sistema Avançado’, com o pensamento de abrir portas pra mim. De pedir para abrirem espaço para eu entrar, porque eu era nova no que estava fazendo.

Daí, mano, entrar no estúdio, sabe? A sensação de entrar no estúdio, que tem materiais bons, um produtor que sabia o que estava fazendo e poderia me gerenciar. Meu Deus, inexplicável a sensação de estar no estúdio com o Smith, que é o meu produtor agora.”

Para estrelar o clipe do seu primeiro single , Preta Cakau convidou mulheres “incríveis e empoderadas”.

“O trampo daqui é mais masculino, né? E eles estão sempre trazendo os manos deles. Eu nunca vi um clipe que trouxesse todas as manas empoderadas também. E eu falei: ‘Vou fazer isso.’ E comecei a procurar negras, trabalhadoras que estão aqui nesse corre diariamente. De ser uma mulher nordestina aqui nesse lugar que é tão difícil ter as coisas. Lidando com a vida assim sorrindo, mano. E ficou incrível. O resultado ficou ótimo.”

O segundo single , Me Quita La Paz , lançado em 31 de agosto de 2022, combina sensualidade, letras em espanhol e a batida já conhecida do trap. Dedicada a um antigo amor, o clipe desvenda a diferença entre a Gabriela do dia a dia e a Gabriela que sobe aos palcos.

“Eu pensei que não saberia lidar com o fato de ter muita gente ali me olhando, esperando eu fazer aquilo, sabe? Então, a Patty, minha produtora, falou assim: Mano, tu muda, tu cria ali o personagem, tu

é a Preta Cakau na câmera, entendeu?”

Prova viva do papel da música na vida de jovens e adolescentes periféricos, Preta Cakau já mostrou que veio para ficar, ao ser indicada como uma das cinco finalistas da categoria digital Manas For Reels , do Women’s Music Event Awards de 2022. Apesar dos desafios encontrados pelo caminho, ela me conta que agradece a Deus por não ter sofrido racismo nos novos espaços a que vem adentrando: “Na música eu estou muito bem confortável até agora.”

E Preta Cakau está tão confortável que agora se prepara para lançar seu primeiro EP, com previsão de lançamento em 2023. Não sabemos bem o que vem por aí, mas é certeza que a jovem artista não decepcionará seus fãs – inclusive eu.

6 • versos perplexos

enquanto eu tô compondo, saiba que eu tô só a alma. – Sistema Avançado.

Reprodução: Instagram @pretacakau.

7 versos perplexos •

azulatura

Belo Horizonte, janeiro de 2023. Depois de uma manhã por ruas, janelas, mãos dadas e histórias, subo na moto de um desconhecido passando pelas ladeiras da cidade que já quis morar, só pela sensação. No passeio solo, escolho trilhas de livrarias, sebos e lojas de discos, finalizando na praça bonita do palácio que me abrigou da chuva.

Depois do medo superado da moto que entendia as sinalizações apenas como uma sugestão, faço uma parte do percurso a pé, meu jeito favorito de ver as coisas, perdendo só para: encostar, cheirar, pensar no gosto e, às vezes, olhar. O endereço é: depois da rua com mesas na calçada, virando pra direita do senhor que estava passando com o carrinho de pipoca exatamente às três da tarde de uma quinta-feira, tinha a livraria laranja que vi na internet. E agora preciso fazer a partilha de um julgamento: "Que tipo de livraria é laranja?!”, pensei, mas já sabendo que aquela era e eu iria até lá.

Tinham livros expostos na calçada, cuidadosamente separados em mesas que não permitiam o alcance do sol, o que já diz muito sobre o lugar e as pessoas. Parei onde tinha poesia, como de costume. Fico um pouco envergonhada de dizer que talvez tenha me demorado muito mais do que percebi nessa parte. Quando notei

que alguém falava comigo, levantei o rosto e os clientes já eram outros, a luz era outra e eu posso jurar que o espaço também era, não só pelas sacolinhas embaladas para viagem que estavam no balcão quando cheguei e depois já tinham ido para a casa de alguém que pode (ou não) conhecer a livraria laranja, que eu queria que fosse amarela, essa cor quase não faz poesia. Amarelo faz. Mas aí são outras questões.

A de agora é que levantei o rosto e o livreiro tinha afirmado que eu gostava de poesia. Demorei pra entender a entonação, dei um sorriso e respondi que sim. Ele disse um pois é, no meio de outro sorriso, que me fez entender que a primeira frase não tinha sido uma pergunta, mas que ele não estava me criticando. Só pelo sorriso do livreiro eu já ganhei a tarde. Depois seguimos por conversas sobre poesia, que ele afirmou categoricamente não entender, não saber ler, mas que em todo sarau na livraria laranja, uma vez por mês, tem uma moça que declama poesia e que sempre faz o livreiro chorar. Sempre. Eu disse que pode ser uma mistura da moça com a poesia e que nem sempre a gente precisa saber ler, o bom da poesia é isso. Escutar deixa mais bonito.

Eu ia contar em como o laranja ficou diferente, meio solar, meio fim de tarde com quem se ama, meio explosões celestes de acordo com as histórias do livreiro que me deixou ver o maior galpão de estoque de livros que já vi na vida (e é justo dizer que eu talvez nunca tenha visto

8 • versos perplexos
CRÔNICA, por Ana Carolina Dias

um, mas também é preciso salientar que quase não vi coisas, no geral). Ele disse que mais de meio milhão de livros transitam por ali e que eu poderia ficar lá sozinha um tempo. Saiu e eu me surpreendi com o medo que tive. Não do lugar, que era iluminado e organizado. Meu medo foram dos livros. Imaginei meio milhão de livros me olhando, aquele tantão imenso de palavras justo pra mim, que sou calada. Que quase não respondo, que quase não sei nenhum dizer. Tive medo e saí. Mas caminhei sorrindo, para o moço livreiro não perceber.

Fui pagar o livro que escolhi, que já sabia que deveria levar desde o começo e me senti feliz pelos mundos vividos na livraria laranja. Acontece que ao pegar o livro, ele me diz: Você gosta dela?

Respondo que é o segundo livro que vou ler da autora. Que o primeiro já me arrebatou.

“Ela é daqui, sabia?”

“Sim, de BH mesmo, né?”

“É. Mas daqui do bairro. Passou aqui mais cedo. Sempre muito educada.”

Respondi alguma amenidade, disse (genuinamente) que tinha sido um prazer conhecê-lo e imaginei que um dia escreveria sobre a tarde pelas livrarias e ladeiras de BH, do livreiro que conheci e de quando decidi que encontraria Ana Martins Marques em uma esquina e tomaríamos cachaça.

P.S. Já é Teresina, semanas depois, fevereiro. Terminei o livro que comprei aquela tarde e deixei

nele um bilhete que recebi em páginas datadas de uma agenda:

“o dia em que você me contou. TE AMO! vou sentir saudade. o dia seguinte. continuo te amando e te apoiando”

Sinto que é preciso existir de um jeito cada vez mais manso, mais sereno, mais manhã de domingo chuvosa com carinho de pés, mais livro na praia, mais cozinhar tomando vinho escutando aquela playlist que me acalma, mais beijo lento que gera um toque lento e um sexo devagar, mais sorvete na praça vendo o tempo passar.

Pra acalmar esse bicho do mato que rosna e arranha dentro de mim.

É muito engraçado imaginar o começo de um texto. Esse, por exemplo, já começou de diversas formas:

“Eu queria saber escrever. Enxergar as coisas além do rasinho de onde vejo;”

“Fiquei tentando caminhos para esse texto e não achei rumo nas palavras. Pensei em amor, música, desejo, cidades, estradas, lua, mentiras. Nada me serviu. Lembrei de uma série meio boa, meio boba que vi uma vez, sobre três amigas, depois dos 25, vivendo. Eu gosto disso, sabe?”

E algum outro que quase lembro, mas que devo ter deixado anotado em um terceiro lugar e perdi, como fazia com um livro que decidi escrever aos 13 anos em pedaços de papel soltos, só para perder com calma. O fato é que em todos eu começo a me justificar pela minha completa

9 versos perplexos •

inaptidão e desajuste com as palavras. Queria ver de outro jeito e sei que sempre gosto mais da personagem forte, independente e bem resolvida nos filmes. Mas acontece que eu tenho medo. Especialmente das palavras. Mas isso é outro texto. Tem uma anotação das 15h28 no meu celular que diz apenas: “casar aos 20 e poucos”. Então, decididamente é sobre isso que vou escrever.

Eu não sei qual a idade de vocês (e aqui me reservo o melhor direito disfuncional que uma mulher adulta pode ter: pagar de Fleabag , quebrar a quarta parede e falar com amigos quase imaginários) ou como esse texto pode chegar aí. É sexta-feira à tarde, vou tirar 10 dias de férias depois de anos, já tomei vinho desde a hora do almoço. Então, talvez esse não seja um guia prático de qualquer coisa que seja, ou espelho para a sua vida e algo assim. Respira fundo, cuida da mente, fortalece o espírito e saiba que aqui são só sentimentos imensos em palavras miúdas de uma mulher que quase nada sabe.

Casar aos 20 e poucos

Uso a rede social para acessar, essencialmente, quatro tipos de conteúdo: poesia, foto de casa, vídeo de comida e de viagem. Gosto que seja assim e gosto da lógica do algoritmo que me mostrou esses dias um vídeo com um casal preparando um jantar gostoso porque agora moravam juntos e todo dia era tempo de celebrar. Foi aí que decidi palavrear a melhor coisa que tenho: o passar leve dos dias.

Acho tudo meio mágico. Não é defeito e nem qualidade, só um fato. Uma dessas coisas mágicas que mais gosto, é a luz laranja do final do dia, aquela que fica meio em tudo até escurecer. Outra coisa são as borboletas do Mearim que ficam juntas voando. Tem pra mais de cem, bem amarelinhas. Desde que conheci a Isabele, parece que cada vez que ela anda, fala ou só existe, tem mil borboletas do Mearim dançando com uma luz laranja ao lado. Isabele é um mistério e um milagre na vida. E olha que nunca fui muito dada aos milagres. Mistérios, sim.

No dia que uma amiga nos apresentou naquele bar que eu nunca tinha ido, a Isabele me abraçou e parece que ficou assim desde então. Porque ela está em mim desse jeito laranjafimdetardeborboletasdomearim toda hora. Já vimos filmes, começamos série, lemos poesia, viajamos, choramos, andamos de barco, vimos o rio, o mar, o mangue, lavamos louça, tomamos cerveja, caipirinha e vinho, fomos ao supermercado comprar frutas e legumes, todos os dias prometemos regular o sono, criamos mundos possíveis no 301 e além. Conversamos, sorrimos e somos colo nos dias ruins (e acho que isso é o que mais faz a gente ser a gente).

É com ela que consigo colocar um biquíni, abrir cerveja e fazer faxina, é pra ela que quero voltar ao fim do dia, é com ela que experimento os perigos da rua (e aqui não vou detalhar, essa é uma revista séria. Só deixo registrado). É com ela que

10 • versos perplexos

construo amor, um lar e a família que nunca achei que merecesse ter. Todo sonho, meta, objetivo e desejo é mais realizável depois dela. Isabele mudou meu senso de perspectiva e tenho orgulho imenso desse amor que construímos. Dormir e acordar ficou melhor. O tempo entre esses dois atos também. Pode não ter sido o texto romântico que talvez você, leitora, esperasse. Mas é, sabe? Eu sei.

11 versos perplexos •

Oesporte cada vez mais presente nas

Lagoas do Norte

12 • versos perplexos
Fotos: Karine Rocha.

Iniciativas apoiadas pelo poder público ainda correspondem à maior parte dos projetos sociais que atendem juventudes negras e periféricas em Teresina, ainda assim, esse apoio nem sempre é financeiro e nem atende completamente às necessidades desses grupos. As atividades que apresentam resultados mais evidentes são aquelas ligadas à prática esportiva. O tênis de mesa é uma delas.

Na zona norte de Teresina, o olhar atento da engenheira Kamila Fonteneles identifica os erros na postura dos jovens atletas e sua voz rápida e determinada logo dispara instruções para que os alunos mais velhos ajudem os mais novos. Kawane Sales e Lorenzo Alves são dois dos jovens responsáveis por monitorar o treinamento e apresentar aos iniciantes as regras do tênis de mesa.

"Eu conheci a Kamila aqui no Parque Lagoas do Norte. Com uns onze, doze anos, eu vinha jogar tênis de mesa com meus amigos do colégio e ela sempre ficava na administração do parque trabalhando até tarde. Ela via a gente jogando e vinha jogar junto", afirma Lorenzo Alves, de 19 anos.

A engenheira percebeu o interesse das crianças da região pelo esporte e deu um jeito de puxar as cordinhas, trazendo mais equipamentos para incentivar a prática no parque. "Nós já tínhamos o costume de jogar no colégio, mas lá era muito bagunçado. Jogar aqui era melhor por ter mais espaço, e nós podíamos jogar todos os dias”, diz Lorenzo.

O exercício de tentar aprender as regras do esporte sozinho e ensinar aos amigos parece ter ficado gravado no consciente do jovem, que,

13 versos perplexos •
Foto: Karine Rocha.

mesmo treinando toda semana, diz não ter intenção de priorizar uma carreira como atleta profissional. “Eu vinha jogar aqui no parque e não sabia fazer nada, pô. Nada, nada, nada. A gente procurava vídeos no YouTube e ficávamos tentando reproduzir. Era assim. Um que sabia mais alguma coisinha ensinava para os que sabiam menos. Mas agora enxergo o tênis de mesa mais como um hobby. Quero aprender e me capacitar mais só para ensinar as crianças, porque acho que já estou muito velho. Só que ainda tenho muito tempo pela frente para passar o meu conhecimento para as crianças mais novas.”

Um dos mesa-tenistas mais antigos do projeto idealizado por Kamila, Lorenzo encontrou uma treinadora que o incentiva não somente a continuar praticando, mas também a estudar e trabalhar.

“A Kamila aconselha a gente demais. Antes da pandemia eu passei por um momento muito complicado na minha vida. Eu ficava em casa o tempo todo, sem saber o que fazer, sem tomar partido de nada, sem ter um rumo. Aí a Kamila chegou, foi um anjo mesmo que bateu na minha porta assim, do nada. Do nada ela bateu na minha porta e: ‘E aí está fazendo o quê?’ E eu: ‘Rapaz, estou fazendo nada.’ Aí ela me deu uns conselhos, me incentivou a entrar no IFPI, a estudar de novo, a fazer uns cursos e agora eu tô aqui, né? O braço direito dela. Na verdade, um dedo mindinho”, Lorenzo brinca.

Sob a sombra das árvores que preenchem de verde o pátio da escola onde praticam, Kawane, de 17 anos, me mostra seu sorriso pela primeira vez ao me falar do amor que tem pela raquete. Treinando há cinco anos, a atleta já participou

14 • versos perplexos
Lorenzo Alves. Foto: Karine Rocha.

de quatro edições dos Jogos Escolares Brasileiros, além de campeonatos municipais e estaduais, e da Copa das Federações de Tênis de Mesa.

Diferente de Lorenzo, a jovem planeja priorizar a carreira como mesa-tenista profissional. “Eu sonho muito com isso, mas a gente tem que ter pé no chão, né? Eu foco nos meus estudos e no treino, e consigo conciliar os dois, mas também pretendo seguir carreira profissional e continuar competindo.”

Para os dois jovens, o tênis de mesa é um lugar seguro longe das discriminações raciais. Nos eventos dentro e fora do estado, Kawane diz nunca ter sofrido racismo.

“Nunca sofri discriminação na quadra por ser negra, mas sim por ser mulher. Aqui no Piauí principalmente, porque não existem muitas mulheres no tênis de mesa. Eles têm aquela visão:

‘Ah, ela não vai ganhar porque ela é mulher.’ Mas eu tô aqui ganhando e fazendo meu nome.”

Lorenzo também diz não ligar muito para a opinião de preconceituosos. “Eu não levo pro pessoal, de querer brigar. Eu nunca fui de fazer confusão não. As pessoas tentam se desfazer da gente pela nossa cor, mas aí eu vejo que é uma forma de me diminuir para tentar me alcançar. Ela está tentando fazer isso pra eu me sentir menosprezado, para eu fraquejar. Mas não, a gente tem que ir pra cima, a gente tem que lutar.”

Por virem da periferia, os dois atletas sabem bem a importância que o esporte tem na socialização de crianças e adolescentes.

“Muitos desses jovens não tem metas, não tem objetivos, e com a implantação do esporte você consegue dar um rumo para essas pessoas não ficarem ociosas, longe da criminalidade. Eu

15 versos perplexos •
Kawane Sales. Foto: Karine Rocha.

mesma ficava muito em casa e através do esporte eu pude sair, conhecer novas pessoas, dar um rumo pra minha vida”, afirma Kawane.

Lorenzo até se emociona ao contar a história de um dos meninos que iniciou no esporte junto com ele. “São os dois lados da mesma moeda. A gente começou junto, estávamos sempre juntos, conversando, jogando bola. Nós ficávamos aqui no parque até tarde, até doze, uma hora da manhã conversando. Acho que também teve a questão do apoio familiar, ele não teve tanto. E ele acabou entrando nesse mundo das drogas. E ficou. Eu não consegui tirar ele”, conta.

Apesar das histórias tristes, ele diz que nunca perdeu as esperanças no esporte e nem a vontade de trazer outros para o mesmo caminho. “Nós conseguimos trazer muita gente de volta.

Gente que mora na vila, que é uma situação de

perigo, mas nós trouxemos esses meninos pra gente. Não é só ensinar a jogar. Nós aconselhamos, tentamos arrumar uma coisa para estudar, dá dicas, entende? Não é só o esporte porque eles têm talento. Nem todo mundo tem talento pro esporte, mas a gente tenta ajudar a dar uma condição melhor para essas crianças.”

No entanto, mesmo com sua importância comprovada através das premiações alcançadas pelos jovens e adolescentes, o projeto enfrenta dificuldades como a falta de espaço e materiais adequados para a prática do esporte.

“O meu grande problema no tênis de mesa é isso aqui (aponta para as mesas e raquetes). É muito caro. E quem compra tudo sou eu. Eles (os meninos) não têm condições, apesar da vontade”, afirma Kamila Fonteneles. “Eu até comento com os meninos. Quero que eles se esforcem para nos

16 • versos perplexos
Foto: Karine Rocha.

destacarmos e tentarmos conseguir as coisas, mas é muito difícil assim.”

“Um dos grandes problemas do esporte também é essa questão da falta de espaços. Eu já cheguei a ter trinta crianças treinando comigo, mas não tenho condições de manter por causa de falta de estrutura. Os meninos de hoje querem atenção cem por cento do tempo e eu não tenho condições de dar. Só fica mesmo quem ama o esporte.”

E mostrando o quanto ama o esporte, a engenheira tem trabalhado para a construção de um centro de treinamento onde as crianças possam praticar com mais conforto. Com a ajuda de Kawane, Lorenzo e outros atletas talentosos ainda escondidos dos holofotes, Kamila busca tornar o projeto uma referência não só no Piauí, mas também em todo o Brasil.

É como o Lorenzo me disse. “A gente tem grandes atletas e há possibilidade de ter muitos e muitos atletas maiores ainda.” Falta apenas uma parceria que tire esses sonhos do papel, seja ela pública ou privada.

PINTURA, por Mumbu

Lucas da Rocha, o Mumbu, é um arte-educador em formação, que vive experimentando de tudo um pouco no campo artístico.

Nascido em Simplício Mendes e criado em Brasília, Mumbu hoje reide em Teresina, onde também vem construindo suas vivências.

Tambor é uma pintura acrílica sobre papelão paraná, criada em 2019.

tambor

18 • versos perplexos
19 versos perplexos •

Aline Guimarães, a Línea, é ilustradora, artista urbana e arte-educadora. Seu trabalho conta histórias, desde a brincadeira das crianças até a sabedoria dos velhos, como ela própria descreve. Pão e Tinta é um mural desenvolvido no festival de mesmo nome, em Pernambuco, setembro de 2022.

pão e tinta

20 • versos perplexos
GRAFFITI, por LÍNEA
21 versos perplexos •

NEGO LUIZ, a desobediência que criou arte

22 • versos perplexos
Foto: Instagram @luznegrathe. ENTREVISTA, por Dhara Leandro

Artista e desobediente. É a descrição que nos cumprimenta ao entrar na página de Luiz Felipe, o Nego Luiz, no Instagram. Como qualquer membro da Geração Z, a primeira coisa que faço para conhecer o trabalho de alguém é procurar a pessoa em todas as redes sociais existentes. Isso é um problema, reconheço, mas não é o ponto aqui.

É uma manhã como todas as outras. Entro na página do Luiz e passo alguns minutos analisando as fotos e vídeos de suas representações artísticas.

Artista e desobediente, Nego Luiz vem pintando sonhos e transformando a vida de outros jovens teresinenses através da dança.

E é na periferia da capital que nasce o projeto que me apresentou ao seu trabalho. Uma iniciativa da secretaria municipal da Juventude em parceria com o Programa Lagoas do Norte, o concurso “Se Liga Na Ideia” buscava soluções viáveis de prevenção à violência na cidade. Jovens dos treze bairros que compõem a região do Lagoas desenvolveram propostas nas temáticas de arte, cultura, empreendedorismo, esporte e inovação tecnológica. Ao todo, 20 projetos foram escolhidos para participarem de uma capacitação e foram premiados com R $10 mil reais para a implementação da ideia. Luiz Felipe foi um dos participantes ganhadores do concurso. Com o projeto “Cultura Negra na cidade”, ele realizou oficinas de percussão e danças afro-brasileiras, buscando introduzir outros jovens talentos teresinenses ao espaço artístico na capital.

“Participar do projeto ‘Se Liga na Ideia’ foi uma experiência incrível. Aliás, está sendo até hoje, permeando o meu corpo, permeando as minhas caminhadas. É uma experiência que me fez crescer muito na minha construção como indivíduo. E realizar duas oficinas como uma contribuição dentro de uma localidade, de um bairro, foi muito benéfico especialmente para mim. Esse é um caminho muito bacana de construir em Teresina, porque nós trazemos empoderamento para essa juventude negra que é muito talentosa, muito rica e que precisa ter espaço, precisa ter oportunidade, que precisam ser inseridos nesses espaços artísticos que são predominantemente brancos. Acredito que nós temos muito o que apresentar, muito o que ensinar, muito o que mostrar.

E o projeto tem esse olhar de trazer a juventude como protagonista da sua própria história, da sua própria arte.”

Meu contato com Nego Luiz se dá inteiramente por meio das redes sociais. E graças a Deus a Internet existe, pois atualmente ele mora em São Paulo, cursando Dança na Universidade Anhembi. É impossível falar do Luiz sem falar da dança, uma paixão que só se fortaleceu apesar das dificuldades do meio em que cresceu. Quando peço que ele descreva quem é, Nego Luiz fala de sonhos.

“Nego Luiz é um ser humano sonhador, guerreiro, que cresceu em uma estrutura onde o ‘não’ foi mais presente do que o ‘sim’. A minha base foi a minha mãe, né? Quem me ensinou a sonhar, me

23 versos perplexos •

ensinou a pensar nessa relação de sabedoria. De saber como lidar com o não, mas entender que esse ‘não’ pode se tornar um ‘sim’ durante a minha existência.”

Da desobediência nascem a paixão pela arte e a perseverança para correr atrás dos seus sonhos.

“Sou um eterno sonhador, sempre acreditei no meu potencial, sempre acreditei que eu poderia muito mais do que socialmente estavam me ofertando. Um dos meus lemas é esse, né? Artista e desobediente. Eu me coloco nessas duas falas. Sou Nego Luís artista, sou negro desobediente, porque acredito que a desobediência me fez alcançar, me fez chegar a outros lugares.”

Para Luiz, a dança é uma ferramenta importante para se entender enquanto indivíduo. Em suas palavras, ter o corpo como proposta de estudo inspira empatia, nos tornando seres humanos cada dia melhores.

“Meu primeiro passo, meu primeiro movimento dançante foi quando eu nem sabia que eu estava dançando. Mas eu sentia que esse era o meu chamado. Tentei resistir, tentei ir para outros todos os espaços de trabalho, mas a dança sempre me chamava de volta.

Existem pessoas que nascem pra fazer isso. Existe missão. Então a dança é uma missão pra mim. É uma missão de cura, é uma missão de libertação, é uma missão de descobertas, é uma missão de aprendizagem. E principalmente de amor. Comigo e com os demais que me rodeiam e fazem parte da minha vida, e até aqueles não fazem também.”

Pergunto quais outros frutos ele conseguiu

perceber enquanto transitava através dos mais diferentes espaços, usando aquilo que ele mais gosta de fazer: essa expressão artística que é tão antiga quanto a própria humanidade.

“Os frutos são diversos, né? Mas posso trazer algumas relações até bastante óbvias dentro do que percebi durante o projeto ‘Cultura Negra na cidade’.

A gente percebe uma alteração comportamental ali daquela juventude. Nós conseguimos despertar sorrisos, trazer esses sonhos escondidos para serem vistos, escutados. Os efeitos também são percebidos nos processos de buscar, de se aprofundar, de se inserir, de se colocar na sociedade.

Eu tenho esse olhar de multiplicação. Através desses projetos diaspóricos de relação artística e de pesquisa é possível fomentar uma juventude fortalecida. A juventude negra de combate, de resistência, né? É um corpo que tem entendimento da sua existência. É um corpo também que traz nas suas oralidades a importância do seu eu nesses espaços diversos.”

Falando de espaços, procuro saber qual é a sua opinião sobre o cenário artístico na capital do Piauí, um Estado com múltiplas manifestações e movimentos artísticos da negritude mas que ainda reproduz racismo em seus palcos e palanques.

“Sobre o cenário artístico de Teresina, né? O que que eu posso falar sobre Teresina? [...] A gente vê que é uma cidade que traz uma diversidade artística muito grande, mas que ainda não inclui a todos.

É uma cidade de muitas potências artísticas, de

24 • versos perplexos

grandes artistas. Tem organização. Mas acredito que a rotatividade fica sempre entre as mesmas pessoas. Isso me deixa um pouco reflexivo, né? Nessa questão de criar estratégias para que a arte, para que a dança, o teatro, a música cheguem para todos. Entende isso? Que os editais, que as verbas públicas cheguem para todos. E se chega, quais caminhos, estratégias devem ser usadas para que o público tenha acesso a isso?

Por exemplo, alguém de uma comunidade que tinha uma ideia bacana de intervenção, só que não havia orientação de escrita, de elaboração de projetos, e assim acaba perdendo a verba para realizá-lo.

Perde a oportunidade de fazer algo bacana naquela comunidade.”

Um desafio que ficou claro na preparação para este trabalho é a dificuldade encontrada pelos jovens marginalizados em participar de editais como o do “Se Liga na Ideia”, pois a inscrição muitas vezes só pode ser concluída mediante a apresentação de um projeto bem escrito.

“Existe uma abertura para os jovens? Fica uma interrogativa sobre essa abertura porque, se a gente for pensar no cenário público, né, na perspectiva deles existe abertura, mas nós sabemos que o processo dessa

25 versos perplexos •
Foto: Instagram @negoh_piaui.

abertura não rola e não ocorre entre a juventude periférica. Porque geralmente quem avalia esses projetos são pessoas que não tem nenhuma relação com a comunidade. Isso me faz questionar. Quem deve avaliar esses projetos? Entendeu? Quem está avaliando?

Em se tratando de projetos periféricos, eu obviamente ia buscar entender que eles vêm de uma realidade salarial diferente da minha, e eu tenho propriedade e entendimento para entender onde o autor quer chegar. Às vezes a escrita não está tão boa, mas nós conseguimos entender os objetivos do projeto. Entende? Acho que essa é a maior dificuldade. Existem pessoas super talentosas que não conseguem ser alcançadas por essa ‘abertura’, pois não possuem as ferramentas para isso.”

O “Se Liga na Ideia” capacitou jovens a transformar suas ideias inovadoras em projetos qualificados para serem selecionados, além de possibilitar a implementação de suas ideias na comunidade em que vivem. A partir de iniciativas como essa, jovens negros da periferia, assim como o Nego Luiz, encontram aberturas para transformar não somente suas próprias vidas mas também o mundo. Por que não investir em mais projetos como esse?

26 • versos perplexos
Foto: Instagram @negoh_piaui.

nós também somos as bonitas

Eu gosto de fantasiar coisas. Imaginar os bilhetes de amor secretamente guardados em livros. Pensar nos poemas sutilmente escorregados para dentro de armários. Sonhar em flores secas e chás da tarde e letras de músicas escritas nas carteiras da escola e eu te amos e beijos roubados e promessas feitas à luz do luar. Isso faz de mim uma romântica. Clichê até.

Com quantas fantasias imaginadas nas madrugadas insones se faz um amor real?

Tenho medo. E se fantasiar for o meu único futuro? Eu também quero viver os sorrisos secretos e olhares desviados e bochechas rosadas e abraços reconfortantes. Isso faz de mim uma romântica?

Uma idiota?

Como essas cenas dignas de filme, esses momentos que eu tenho vivido apenas nos livros e imaginado e sonhado, como esses amores vêm tão fácil para uns e outros não? Ninguém me disse que eu nunca seria desejável, eu descobri por conta própria.

Ninguém me disse que eu odiaria o meu cabelo e a cor da minha pele e o meu peso e a condição financeira da minha família. Ninguém me avisou sobre os choros em quartos escuros ou as coisas que eu deixaria de comer por me sentir culpada. Ninguém me avisou sobre as crises de ansiedade ou sobre as dores de barriga ou sobre fingir que não quero muito alguma coisa porque

pessoas como eu não podem ter aquilo. Ninguém me avisou sobre duvidar de mim mesmo. Nem me avisaram sobre não saber como me amar.

Eu vim ao mundo sem um manual do usuário e depois de dezoito anos ainda não sei como me usar.

Por que precisar de outra pessoa para me sentir completa? Por que precisar de alguém que me diga como eu sou espetacular e maravilhosa e inteligente e linda, principalmente linda?

Apesar da minha fixação por romances, eu sei que não preciso deles. Mas eu me sinto só.

Eu só não quero me forçar a viver algo com alguém para provar ao mundo que garotas como eu também podem ser desejáveis. Também podem ser amadas. Garotas como eu, você sabe. Negras.

Eles vão dizer: Mas você não é retinta e você é magra e você é linda e você tem uma família que te apoia.

Ou dirão: Você é inteligente e nunca passou fome e não tem motivos para se preocupar e você é ingrata.

Mas eles não poderão apagar as noites em que você se sentiu só e os olhares estranhos que te deram e a vez que você foi a escrava na peça da escola porque você é preta e os pretos foram escravos, né?

E eles não poderão apagar os momentos em que você se esforçou e tentou demonstrar força

27 versos perplexos •
ENSAIO, por Dhara Leandro

porque você não tem dinheiro e nem é bonita e as coisas não vêm fáceis para gente como você.

Eles não vão apagar os momentos em que você chorou porque foi mal em uma prova mesmo sabendo que isso não iria afetar o seu resultado final porque você é preta e é pobre e precisa ser três vezes melhor do que a sua amiga porque as coisas não vêm fáceis para você.

Eles não vão apagar o colega que riu de você e te chamou de macaca e o homem que te chamou de moreninha e como você se sentiu suja porque nenhum menino que você gosta vai te preferir a uma garota branca e você tem que ser melhor e mais bonita e mais inteligente e mais talentosa que todas elas. Eles não te farão esquecer a dor de saber que teus irmãos os pretos sofrem coisas piores que tu e que isso não apaga o teu sofrimento porque o racismo chega diferente para cada preto e ainda assim é doloroso. Cada preto recebe a parte do racismo que lhe cabe e eles os brancos vão dizer que você é mal agradecida e está reclamando de barriga cheia e o seu problema é menor que o dos teus outros irmãos pretos porque você é quase branca, né? E nunca passou fome, né?

Mas eles não saberão que você chora porque teus irmãos os pretos tem coisas piores com que se preocuparem e que as relações de amor não são mesmo tão importantes quanto outras formas mais dolorosas e reais de racismo e talvez você seja mesmo ingrata e talvez você chore porque

você se sente culpada por querer mais que um teto e comida mesmo sabendo que as meninas brancas nunca se sentirão culpadas por desejarem alguém que as ame porque, afinal, os brancos não precisam se preocupar com o racismo, certo? Perdão pelos intermináveis aditivos, é difícil colocar os pensamentos no papel de uma outra forma. São tantas coisas sobre as quais estou curiosa. Sobre como a minha aparência no geral, não só a cor da minha pele, me afeta e como isso molda a minha atitude para com as pessoas à minha volta. Eles nos ensinaram a nos sentir feias. Eles nos ensinaram a duvidar de nós mesmas porque nós somos diferentes das meninas que são bem sucedidas porque nós não queremos ser pobres e solitárias a vida toda.

Como eles foram capazes de criar um padrão para algo que não depende de nós? Como eles foram capazes de nos transformarem em máquinas buscando uma perfeição que é errônea e impossível de alcançar? Se nós não somos feias nem burras e nossos corpos são lindos e merecem ser tratados muito bem e nós não temos culpa de sermos diferentes?

Se é bom ser diferente, o nosso cabelo e a nossa pele e o nosso peso não nos fazem indesejáveis. O sistema que eles criaram te classifica como indesejável. Mas você é maravilhosa e eu sou maravilhosa. E cada uma de nós é um milagre da criação. (Ou da evolução ou do acaso, como quiser.)

28 • versos perplexos

E é muito bom ser diferente e estar nessa jornada de auto descoberta com você.

Eu não estou excluindo as garotas brancas. não, eu amo vocês. Vocês são maravilhosas. Mas vocês têm e sempre tiveram muitas outras garotas brancas para falarem e servirem de exemplo para vocês.

Eu quero, preciso falar às garotas pretas, retintas ou não, gordas ou não, porque nossa luta para nos amarmos é dobrada, até triplicada e nós nem sempre tivemos representantes pretas nas quais pudéssemos nos espelhar. Você não está sozinha.

É difícil para mim acreditar e entender que nós também somos bonitas e que também somos desejáveis. É ainda mais difícil fazer outras pessoas, pretas ou não, acreditarem nisso. Eu ainda estou aceitando que não há nada de errado em querer ser desejada e que eu posso sim sonhar com romance e que não me parecer com as garotas que eles tentam nos forçar a idolatrar não faz de mim uma menor que elas. Nós também somos as bonitas.

29 versos perplexos •

PRETO KEDÉ A África em Teresina de

Reprodução: Festival GiraSol. Instagram @festivalgirasol

30 • versos perplexos
ENTREVISTA, por Dhara Leandro

Enquanto muitos participavam de festividades em comemoração à Proclamação da República, eu me sentava na escrivaninha, me preparando para conhecer mais um artista teresinense a quem admiro. Nos fones de ouvido, o EP Sinta a Minha África tocava desde cedo pela manhã, atiçando a curiosidade em conhecer a história da voz que me conquistou pelo celular.

Na zona Norte da capital, a conversa com Preto Kedé desenrola-se na tarde quente e ensolarada. Num feriado até tranquilo, numa rua calçada por paralelepípedos, eu me sento na cadeira de plástico que o cantor posicionou na calçada e começo: “Quem é o Preto Kedé?”

“Preto Kedé é um preto da periferia que vive na comunidade, tem sua arte, tem sua música, tem seu som, né? Tem seu trabalho social também. E é um menino muito teimoso, muito curioso, que gosta de ir além dos limites da coisa. Que não gosta de se limitar a padrões e tal. É isso, é muita coisa” , ele responde mostrando, além de tudo, muita simpatia.

O encontro do artista com o hip hop se deu ainda criança, quando o pai o levava para dançar breaking na Praça Pedro II, no centro da cidade. A partir da dança, Kedé descobriu outras expressões da cultura negra de rua, como o grafite e o rap. E o seu maior apoio veio de casa.

De casa, na periferia, também veio a parceria que se tornou A Irmandade, o grupo formado por Lu de Santa Cruz, Cleonilton Aliado e Preto Ked é , que uniu comunidades rivais através do rap.

"A Irmandade foi uma parada que mudou muito minha vida. Nós éramos rivais, né? De comunidades rivais. E através d'A Irmandade a gente conseguiu unir muita coisa, unir a comunidade. Então, para mim, foi uma arma muito poderosa, além do musical.”

Na região do grande Promorar, zona sul de Teresina, as duas gangues mais violentas operavam nas vilas São José e Santa Cruz. Cruzar a fronteira entre as duas poderia até acarretar risco de vida.

“Eu era da Vila São José, né? E a galera que participava da banda era da Santa Cruz. E as comunidades não se entendiam, sabe? Tinha uma rivalidade. Então através desse grupo, a galera que era da minha comunidade e a galera que era da comunidade deles começava a ter uma outra visão. Eu andava lá e eles andavam aqui. E o pessoal também começou a ter uma visão diferente, de se identificar com a questão da união, tá ligado? E que essa questão de confronto de gangue não era certo, que esse caminho não era certo.”

A batalha dos aliados para conscientizar os jovens e combater os índices de violência na comunidade inspirou até um documentário, que leva o nome da banda. O longa-metragem “A Irmandade”, dirigido por Juscelino Ribeiro e produzido por Alexandre Mello, também teve a coprodução da Globo Filmes.

O "Sinta a Minha África" é o primeiro trabalho solo de Kedé. Antes disso, suas composições eram lançadas em parceria com A Irmandade.

31 versos perplexos •

"Eu pensei em fazer uma parada diferente, né? Uma parada que tivesse a minha essência, a minha cara, o meu estilo, minha visão. Eu pensei em entrar no trap mas com uma pegada africana. Trazendo relatos da comunidade, temas como violência policial, sociedade. E a dança, né? Com esse tambor, esse barulho. Para construir esse EP eu fui atrás da minha história, me aprofundei mais na minha história."

Kedé traz para as duas músicas toda a sua versatilidade e diz não ficar preso a um só gênero musical.

“Eu sou muito versátil, musicalmente falando. Teve o momento do Sinta a Minha África, né? Agora estou nessa pegada do swingão, do pagodão e tal. Eu gosto de lançar umas coisas diferentes.”

Fico curiosa para saber a rotina criativa de Kedé. De onde vêm as ideias para compor o seu som? Quais são suas referências musicais?

“Eu fico observando como é que a galera tá fazendo, como é que a galera tá escrevendo as músicas, tá ligado? E aí eu procuro fazer diferente disso. Eu não sou muito de escutar os outros. E eu prefiro escutar minhas músicas mesmo, né? Minhas paradas mesmo, assim. Não sei se é egoísmo, mas é porque quando você escuta muito os outros, você acaba pegando as ideias dos outros.”

Mesmo com a sua genialidade e os muitos anos de carreira, o artista não está isento dos entraves causados pelo racismo.

“Fácil não é, né? Preto, de periferia. Não vou dizer de periferia, mas para a gente que é preto

sempre tem essa questão de sabotagem, panelinhas. Infelizmente, essa é a realidade. Só que a gente faz um trabalho de formiguinha, né? Vai juntando um aqui, fazendo parceria ali, conseguindo espaço, ocupando espaço. Não é tão fácil como muitos pensam, rola muito sacrifício. Mas a gente conquista, a gente consegue.”

Em 2022, Kedé teve a oportunidade de se apresentar no palco do Festival GiraSol, um evento que reuniu ídolos nacionais como Alceu Valença, Duda Beat e Whindersson Nunes.

“Estar no palco do GiraSol foi muito massa porque eu pude mostrar meu trabalho pra galera que ainda não me conhecia, apesar desse meu tempo de caminhada.”

Questiono a Kedé qual é a sensação de ocupar espaços como esse, onde, talvez, ele nunca pensou que fosse se apresentar.

“ Um sentimento de sacrifício, de loucura, de barreiras, de sonhos. Mas é aquela coisa, procurar sempre evoluir. Não se limitar, estudar mais, buscar outras vertentes e procurar sempre amadurecer.”

Falando um pouco sobre a importância da música na vida de jovens e adolescentes da periferia, Kedé afirma ser uma das vidas transformadas pela arte.

“A música é uma arma muito poderosa. Ela já resgatou muita gente. Um funk, um rap, um trap, um samba, um reggae. Já resgatou muita gente. Eu sou um cara que até hoje só é música. Então, se só é música, o que seria de mim se eu não estivesse na

32 • versos perplexos

música? Estava me jogando em outros lugares, né?

Principalmente no lugar onde a gente mora, que não tem saneamento básico, não tem estrutura, não tem assistência, a galera acaba ocupando a cabeça com outras coisas que a gente sabe que são erradas.”

Falo das intenções para esse trabalho, do desejo de mostrar uma imagem diferente das diversas Juventudes Negras que existem em Teresina, e o artista concorda. Existem muitos outros caminhos para negros e negras nesta cidade, do que aquele que nos leva a ser pintado como criminoso pelos portais de notícia.

“A periferia também tem esse lado bom, só que a galera não quer reconhecer esse lado. A mídia só mostra o que dá dinheiro, dá grana, sabe? Mas tem uma galera da dança, da arte, da música, que estão preocupados em fazer alguma mudança. Só que eles acabam não tendo visibilidade, né?”

O ano de 2023 começou trazendo boas experiências para o artista, como o Festival Batukada, festa que reuniu as mais diversas tribos em um só evento. Idealizado e organizado por Preto Kedé, o festival promete continuar trazendo esse clima dançante para as mais diversas regiões da cidade.

Rap, Funk, Axé, Reggae, Xiola e até mesmo o Pagodão, tão amado por Kedé, os ritmos ocuparam o centro da cidade no período do Carnaval. Além da música, brechós e artesanatos tornaram o evento ainda mais interessante para todos que compareceram.

Embalando no sucesso da Batukada e do Carnaval, Kedé lança o seu mais novo single.

Um gostinho do Afrobeat de Teresina, Kiwi é a promessa do artista para um ano repleto de novos desafios.

"Perseverança e resistência eu tenho na minha vida. Nada foi fácil, sabe? Já passei por altos e baixos, e mesmo assim estou aqui resistindo na música. Outras pessoas falam: ‘Ah, é que Teresina é assim’, mas eu prefiro fazer história na minha própria cidade, virar o jogo. Ainda vou conquistar a minha própria cidade e chegar lá fora."

Comentando os desafios de ocupar certos espaços, foi assim que encerramos nossa conversa naquela tarde de novembro. Quatro meses depois ainda percebo a insistência do artista em espalhar a sua história pelos quatro cantos da cidade. E aos poucos os teresinenses vão sentindo a África de Kedé.

33 versos perplexos •

Versos Perplexos Versos Perplexos Versos Perplexos Versos Perplexos

Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.