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nós também somos as bonitas
from Versos Perplexos
Eu gosto de fantasiar coisas. Imaginar os bilhetes de amor secretamente guardados em livros. Pensar nos poemas sutilmente escorregados para dentro de armários. Sonhar em flores secas e chás da tarde e letras de músicas escritas nas carteiras da escola e eu te amos e beijos roubados e promessas feitas à luz do luar. Isso faz de mim uma romântica. Clichê até.
Com quantas fantasias imaginadas nas madrugadas insones se faz um amor real?
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Tenho medo. E se fantasiar for o meu único futuro? Eu também quero viver os sorrisos secretos e olhares desviados e bochechas rosadas e abraços reconfortantes. Isso faz de mim uma romântica?
Uma idiota?
Como essas cenas dignas de filme, esses momentos que eu tenho vivido apenas nos livros e imaginado e sonhado, como esses amores vêm tão fácil para uns e outros não? Ninguém me disse que eu nunca seria desejável, eu descobri por conta própria.
Ninguém me disse que eu odiaria o meu cabelo e a cor da minha pele e o meu peso e a condição financeira da minha família. Ninguém me avisou sobre os choros em quartos escuros ou as coisas que eu deixaria de comer por me sentir culpada. Ninguém me avisou sobre as crises de ansiedade ou sobre as dores de barriga ou sobre fingir que não quero muito alguma coisa porque pessoas como eu não podem ter aquilo. Ninguém me avisou sobre duvidar de mim mesmo. Nem me avisaram sobre não saber como me amar.
Eu vim ao mundo sem um manual do usuário e depois de dezoito anos ainda não sei como me usar.
Por que precisar de outra pessoa para me sentir completa? Por que precisar de alguém que me diga como eu sou espetacular e maravilhosa e inteligente e linda, principalmente linda?
Apesar da minha fixação por romances, eu sei que não preciso deles. Mas eu me sinto só.
Eu só não quero me forçar a viver algo com alguém para provar ao mundo que garotas como eu também podem ser desejáveis. Também podem ser amadas. Garotas como eu, você sabe. Negras.
Eles vão dizer: Mas você não é retinta e você é magra e você é linda e você tem uma família que te apoia.
Ou dirão: Você é inteligente e nunca passou fome e não tem motivos para se preocupar e você é ingrata.
Mas eles não poderão apagar as noites em que você se sentiu só e os olhares estranhos que te deram e a vez que você foi a escrava na peça da escola porque você é preta e os pretos foram escravos, né?
E eles não poderão apagar os momentos em que você se esforçou e tentou demonstrar força porque você não tem dinheiro e nem é bonita e as coisas não vêm fáceis para gente como você.
Eles não vão apagar os momentos em que você chorou porque foi mal em uma prova mesmo sabendo que isso não iria afetar o seu resultado final porque você é preta e é pobre e precisa ser três vezes melhor do que a sua amiga porque as coisas não vêm fáceis para você.
Eles não vão apagar o colega que riu de você e te chamou de macaca e o homem que te chamou de moreninha e como você se sentiu suja porque nenhum menino que você gosta vai te preferir a uma garota branca e você tem que ser melhor e mais bonita e mais inteligente e mais talentosa que todas elas. Eles não te farão esquecer a dor de saber que teus irmãos os pretos sofrem coisas piores que tu e que isso não apaga o teu sofrimento porque o racismo chega diferente para cada preto e ainda assim é doloroso. Cada preto recebe a parte do racismo que lhe cabe e eles os brancos vão dizer que você é mal agradecida e está reclamando de barriga cheia e o seu problema é menor que o dos teus outros irmãos pretos porque você é quase branca, né? E nunca passou fome, né?
Mas eles não saberão que você chora porque teus irmãos os pretos tem coisas piores com que se preocuparem e que as relações de amor não são mesmo tão importantes quanto outras formas mais dolorosas e reais de racismo e talvez você seja mesmo ingrata e talvez você chore porque você se sente culpada por querer mais que um teto e comida mesmo sabendo que as meninas brancas nunca se sentirão culpadas por desejarem alguém que as ame porque, afinal, os brancos não precisam se preocupar com o racismo, certo? Perdão pelos intermináveis aditivos, é difícil colocar os pensamentos no papel de uma outra forma. São tantas coisas sobre as quais estou curiosa. Sobre como a minha aparência no geral, não só a cor da minha pele, me afeta e como isso molda a minha atitude para com as pessoas à minha volta. Eles nos ensinaram a nos sentir feias. Eles nos ensinaram a duvidar de nós mesmas porque nós somos diferentes das meninas que são bem sucedidas porque nós não queremos ser pobres e solitárias a vida toda.
Como eles foram capazes de criar um padrão para algo que não depende de nós? Como eles foram capazes de nos transformarem em máquinas buscando uma perfeição que é errônea e impossível de alcançar? Se nós não somos feias nem burras e nossos corpos são lindos e merecem ser tratados muito bem e nós não temos culpa de sermos diferentes?
Se é bom ser diferente, o nosso cabelo e a nossa pele e o nosso peso não nos fazem indesejáveis. O sistema que eles criaram te classifica como indesejável. Mas você é maravilhosa e eu sou maravilhosa. E cada uma de nós é um milagre da criação. (Ou da evolução ou do acaso, como quiser.)
E é muito bom ser diferente e estar nessa jornada de auto descoberta com você.
Eu não estou excluindo as garotas brancas. não, eu amo vocês. Vocês são maravilhosas. Mas vocês têm e sempre tiveram muitas outras garotas brancas para falarem e servirem de exemplo para vocês.
Eu quero, preciso falar às garotas pretas, retintas ou não, gordas ou não, porque nossa luta para nos amarmos é dobrada, até triplicada e nós nem sempre tivemos representantes pretas nas quais pudéssemos nos espelhar. Você não está sozinha.
É difícil para mim acreditar e entender que nós também somos bonitas e que também somos desejáveis. É ainda mais difícil fazer outras pessoas, pretas ou não, acreditarem nisso. Eu ainda estou aceitando que não há nada de errado em querer ser desejada e que eu posso sim sonhar com romance e que não me parecer com as garotas que eles tentam nos forçar a idolatrar não faz de mim uma menor que elas. Nós também somos as bonitas.