O grito da Samara Weaving em Casamento Sangrento e porque todas nós somos final girls
por Ana Kálita
Mulheres seminuas cobertas de sangue, femme fatales buscando vingança, pobres vítimas de assassinos loucos que, mesmo com poucas chances de sobrevivência, saem vivas de noites de terror indescritível. As final girls são uma forma de poder peculiar num mundo em que homens têm todo o poder. Okay, esse “poder” foi “dado” pelos diretores dos filmes que tinham mais em vista a estética da mulher sexy e ensanguentada fugindo do grande vilão do que mostrar alguma resiliência feminina. Contudo, essas vítimas que no final escapam do psicopata, ou até mesmo os matam, podem ter um significado que vai além de uma tropa de filmes de terror.
Vou ser honesta, por muito tempo eu evitei filmes de horror e terror porque acima de tudo eu sou medrosa. Minha infância inteira eu tive pavor da máscara de Pânico (1995), o Ghostface era para mim um pesadelo. Então só fui conhecer a icônica Sidney Prescott no final da minha adolescência, quando o terror dos filmes já era menos assustador que a vida real. Uma final girl perfeita pode ser aquela que não se deixa abalar, que é esperta, que entende o jogo do assassino desde o começo. Mas elas não precisam entender o psicólogo do assassino logo no inicio para sobreviver. Elas podem sofrer, serem atingidas e perderem todos que amam, mas no final a última pessoa em pé será a final girl. E a Sidney, mesmo com seu ótimo instinto e coragem ainda passa boa parte do primeiro filme quase que sem defesas, a não ser por ela mesma. Ela é enganada, é alvo de ódio por coisas que não tem controle algum, e os assassinos são dois garotos que, tirando as tendencias homicidas, são normais para a época. No final, quando Sidney usa a máscara do Ghostface para atingir um dos garotos, é satisfatório ver a vítima usando das armas dos próprios vilões contra eles. É justiça, é vingança, e é poético. Pânico é um slasher clássico sim, mas só mais um slasher, se o propósito do filme foi fazer uma alusão sobre a experiência de ser designada mulher desde o nascimento e sobreviver as micro e macro agressões, bem, eu não tenho certeza.
Mas vamos focar no sentimento de justiça mencionado antes, naquele momento em que Sidney se certifica de que Billy está morto mesmo, na certeza (momentânea, já que a coitada da Sidney não tem um minuto de paz)
de que aquilo acabou. Mesmo que o sentimento seja sentido por qualquer pessoa assistindo o filme, acho que não dá pra negar que sendo uma mulher você sente uma satisfação maior por ela ter conseguido derrotá-los. Essa sensação se replica em todos os filmes em que existem final girls, mas Casamento Sangrento (2019) virou o ícone quando se trata de felicidade por um personagem ter sobrevivido.
Grace é uma mulher branca e em comparação com o noivo, pobre. Após o casamento ela participa de um jogo de esconde-esconde com a família do marido em que ela é a presa. Ela sofre, se machuca, e descobre que a lealdade do marido é para com a família dele, na qual ela não se encaixa. Sendo perseguida, Grace não tem nada a seu favor, e sério, nada mesmo, nem um desconhecido gentil, nem uma criança para não lhe dedurar, e mesmo quando tem uma ajuda, é miserável e no final, não adianta de muita coisa. Quando o filme está nos últimos minutos, Grace está com uma faca apontada a família do marido, ele incluso, e ela dá um grito. Esse grito me marcou. É gutural, cheio de medo e raiva, é primal e diz “eu vou sobreviver não importa como”. Não é um grito de socorro, é um grito de guerra lutado por uma só pessoa contra um mutirão. Esse grito está preso em minha garganta há muito tempo.
Assisti um TikTok um dia desses em que uma mulher fala sobre como todos a veem como calma e que ela nunca machucaria alguém, mas que nela há uma raiva que só se sente vivendo como mulher. Ao conversar com outras mulheres você descobre que esse sentimento é comum a todas nós. Pequena, sem defesas, fraca, uma vítima sempre, uma pedra no sapato, um brinquedo para brincar até cansar e descartar depois. Quantas vezes você esteve tão frustrada que gritar parecia ser a única opção. Derramar em lágrimas todo o veneno engolido todos os dias, assustar qualquer um que passasse perto. Ninguém sabe como são violentas as águas que correm dentro de uma mulher. E ninguém as teme também.
Impotência, acho que essa é uma boa palavra para o que eu e muitas outras sentem. Impotência diante de homens, de outras mulheres, do mundo. Até quando esse grito vai ficar entalado na garganta? Até quando essa raiva vai borbulhar dentro de mim, mas sem nunca transbordar?
Acho que estou esperando pelo final do terceiro ato em que após gritar, a final girl consegue escapar e o terror acaba. (exceto pra Sidney, alguém dá um descanso pra essa mulher!)
Uma Pérola em focinho de porco por Dhara
Assim como a Kálita, também nunca fui muito fã de filmes de terror. Tudo começou quando meus vizinhos adolescentes resolveram reunir-se na casa de um deles para assistir A Casa de Cera (2005). Era uma noite esquisita de um ano que não me lembro bem. Nós, as crianças da rua, resolvemos entrar de penetra no rolê e saímos de lá traumatizados. Lembro bem que na frente da casa onde vimos o filme existia um matagal mal iluminado e, diziam as outras crianças, assombrado. Anos depois, aquele terreno baldio viria a abrigar a casa do meu avô, mas, naquela noite, era um lugar que eu queria evitar até pensar sobre.
Depois disso, evitei ver filmes de terror o resto da minha infância e adolescência. Até que veio a pandemia. Logo que anunciaram o filme Pânico 5 (2022), comecei a ser bombardeada de informações, fotos e cenas dos primeiros filmes da franquia. Até que, eventualmente, não pude resistir aos charmes do Ghostface e resolvi maratonar as aventuras de Sidney Prescott antes da estreia do novo filme.
Nem preciso dizer que me apaixonei pelo gênero slasher. Ao contrário de filmes de terror com acontecimentos sobrenaturais, assistir as mortes horríveis e as vítimas fugindo de psicopatas assustadores é até divertido. É o que sempre digo: você sempre pode matar um homem, mas dar fim a uma freira demoníaca com centenas de anos é um pouco mais difícil.
Dos filmes de terror que assisti desde a estreia de Pânico 5, o que mais me marcou foi, com toda a certeza, X – A Marca da Morte (2022). O filme é da A24, companhia independente especializada na produção de filmes e séries de TV como Midsommar (2019) e Euphoria (2019), os dois exemplos mais famosos de seu sucesso enquanto empresa. Escrito e dirigido por Ti West, X conta a história de um grupo de pessoas que se reúnem para produzir um filme pornográfico na fazenda de um casal de idosos, na zona rural do Texas, mas acabam ameaçados por um assassino improvável.
A final girl Maxine Minx, estrelada por Mia Goth, conquistou o coração do público com sua frase de efeito e seu look perfeito para se tornar fantasia de Halloween, mas foi a Pearl, também encarnada por Mia Goth, que me ganhou.
Pearl, a velhinha assassina de X, ganhou uma prequel que leva o seu nome para explicar suas tendências assassinas do primeiro filme. Em Pearl (2022), o desejo ardente de se tornar uma dançarina famosa leva a protagonista a executar atos de violência contra seus próprios pais.
Com a estética Technicolor dos filmes antigos da Disney, Pearl é mais melodrama que terror, a medida em que descobrimos a profundidade do sonho da protagonista e vivenciamos com ela as situações que a fizeram se sentir solitária e aprisionada naquela fazenda.
Quase metade do filme já havia se passado e eu não conseguia enxergar o que havia de supostamente errado com a Pearl. Eu conseguia até me identificar com ela. Apenas uma garota com desejos maiores que ela e a vontade de fugir de casa e ganhar o mundo.
Foi o monólogo da Pearl, quase no final do filme, que fez eu me enxergar ainda mais na personagem (tirando a parte de ser uma assassina, óbvio!).
Pearl confessa dolorosamente sentir inveja do marido pela família e pela casa perfeita que ele abandonou e que ela sempre quis ter. E quando ela fala sobre o medo das pessoas a conhecerem profundamente, sobre ter gostado de fazer coisas ruins, eu achei que ela estava falando comigo.
“I want what they have so badly, to be perfect, to be loved from as many people as possible to make up for all my time spent suffering”
Ela é apenas mais uma garota que não cabia na família tradicional e religiosa, e que desprezava um futuro como mulher de fazendeiro. Eu também poderia ser uma Pearl mas me faltam as tendências assassinas, graças a Deus.
Acho que muitas mulheres subversivas vão se identificar com as protagonistas de X e Pearl. E no final, elas estão mesmo certas: nós não deveríamos aceitar uma vida que não merecemos.
Sobre filmes de terror e cardigans cor de rosa por Karine
Diferente das minhas colegas, eu nunca gostei de filmes de terror. Lembro de ter uns 10 anos de idade e estar na sala de casa, um sábado à noite, na companhia de minhas primas adolescentes assistindo (ou gritando e chorando de medo) a algum filme com serial killers. Ver sangue e violência eram de mais pra mim. Após inúmeros pesadelos de perseguição e levar isso para terapia, minha reação histérica ao sangue melhorou um pouco e posso afirmar confiantemente que continuo não gostando de filmes de terror. Minha imaginação é tão perspicaz que até suponho que um pedaço de plástico bolha viajando pelo meu quarto por conta do vento pode ser passos de algum invasor que jamais seria convidado a habitar minha casa.
As referências visuais da internet e as conversas com Kálita e Dhara foram capazes de me mostrar algo que minha memória não recordou: que certas sobreviventes e heroínas de filmes de terror são mulheres. Carol J. Clover, no livro “Men, Women and Chainsaws: Gender in the Modern Horror Film”, destacou como as final girls – termo designado para a última sobrevivente de assassinatos em série nos filmes de terror slasher – de meados dos anos 80 apresentam traços de pureza, são boas meninas, não consomem bebidas alcóolicas ou drogas e possuem aquela expressão de medo constante.
Desde o início do século, a mulher é retratada em diversos filmes como frágil, alguém que deveria ser poupada. Poupada da força física, poupada de grandes aspirações e poupada de frequentar determinados lugares. Esperava-se que seu comportamento fosse contido, seus desejos, puritanos e suas saias, longas. Nas produções cinematográficas de terror, mesmo que a protagonista feminina ocupasse o lugar de heroína, tendo que vencer o assassino e retomar a aparente segurança da comunidade, ela não estava tão longe do seu habitual lugar de fragilidade.
Tal como o cenário, os efeitos sonoros e a fotografia são pensados para comunicar suspense, as roupas e adornos não tem o fim exclusivo de enfeitar. Eles carregam significado. As peças são como palavras, que juntas se transformam em texto e são capazes de transmitir qualquer mensagem.
Alguns desses símbolos já foram fixados em nosso entendimento de modo que o associamos rapidamente a algo, como os apetrechos essenciais da mocinha: o relógio, porque ela é responsável com suas obrigações e nunca
se atrasa. O suéter em tons pastel, porque ela é doce. E um corte de cabelo ou penteado com franja numa tentativa de infantilizar sua imagem.
E reitero que não há problema algum nesses acessórios ou em ser pontual, gentil e querer usar franja. Mas associar isso à fragilidade, sim.