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A África em Teresina de Preto Kedé

Enquanto muitos participavam de festividades em comemoração à Proclamação da República, eu me sentava na escrivaninha, me preparando para conhecer mais um artista teresinense a quem admiro. Nos fones de ouvido, o EP Sinta a Minha África tocava desde cedo pela manhã, atiçando a curiosidade em conhecer a história da voz que me conquistou pelo celular.

Na zona Norte da capital, a conversa com Preto Kedé desenrola-se na tarde quente e ensolarada. Num feriado até tranquilo, numa rua calçada por paralelepípedos, eu me sento na cadeira de plástico que o cantor posicionou na calçada e começo: “Quem é o Preto Kedé?”

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“Preto Kedé é um preto da periferia que vive na comunidade, tem sua arte, tem sua música, tem seu som, né? Tem seu trabalho social também. E é um menino muito teimoso, muito curioso, que gosta de ir além dos limites da coisa. Que não gosta de se limitar a padrões e tal. É isso, é muita coisa” , ele responde mostrando, além de tudo, muita simpatia.

O encontro do artista com o hip hop se deu ainda criança, quando o pai o levava para dançar breaking na Praça Pedro II, no centro da cidade. A partir da dança, Kedé descobriu outras expressões da cultura negra de rua, como o grafite e o rap. E o seu maior apoio veio de casa.

De casa, na periferia, também veio a parceria que se tornou A Irmandade, o grupo formado por Lu de Santa Cruz, Cleonilton Aliado e Preto Ked é , que uniu comunidades rivais através do rap.

"A Irmandade foi uma parada que mudou muito minha vida. Nós éramos rivais, né? De comunidades rivais. E através d'A Irmandade a gente conseguiu unir muita coisa, unir a comunidade. Então, para mim, foi uma arma muito poderosa, além do musical.”

Na região do grande Promorar, zona sul de Teresina, as duas gangues mais violentas operavam nas vilas São José e Santa Cruz. Cruzar a fronteira entre as duas poderia até acarretar risco de vida.

“Eu era da Vila São José, né? E a galera que participava da banda era da Santa Cruz. E as comunidades não se entendiam, sabe? Tinha uma rivalidade. Então através desse grupo, a galera que era da minha comunidade e a galera que era da comunidade deles começava a ter uma outra visão. Eu andava lá e eles andavam aqui. E o pessoal também começou a ter uma visão diferente, de se identificar com a questão da união, tá ligado? E que essa questão de confronto de gangue não era certo, que esse caminho não era certo.”

A batalha dos aliados para conscientizar os jovens e combater os índices de violência na comunidade inspirou até um documentário, que leva o nome da banda. O longa-metragem “A Irmandade”, dirigido por Juscelino Ribeiro e produzido por Alexandre Mello, também teve a coprodução da Globo Filmes.

O "Sinta a Minha África" é o primeiro trabalho solo de Kedé. Antes disso, suas composições eram lançadas em parceria com A Irmandade.

"Eu pensei em fazer uma parada diferente, né? Uma parada que tivesse a minha essência, a minha cara, o meu estilo, minha visão. Eu pensei em entrar no trap mas com uma pegada africana. Trazendo relatos da comunidade, temas como violência policial, sociedade. E a dança, né? Com esse tambor, esse barulho. Para construir esse EP eu fui atrás da minha história, me aprofundei mais na minha história."

Kedé traz para as duas músicas toda a sua versatilidade e diz não ficar preso a um só gênero musical.

“Eu sou muito versátil, musicalmente falando. Teve o momento do Sinta a Minha África, né? Agora estou nessa pegada do swingão, do pagodão e tal. Eu gosto de lançar umas coisas diferentes.”

Fico curiosa para saber a rotina criativa de Kedé. De onde vêm as ideias para compor o seu som? Quais são suas referências musicais?

“Eu fico observando como é que a galera tá fazendo, como é que a galera tá escrevendo as músicas, tá ligado? E aí eu procuro fazer diferente disso. Eu não sou muito de escutar os outros. E eu prefiro escutar minhas músicas mesmo, né? Minhas paradas mesmo, assim. Não sei se é egoísmo, mas é porque quando você escuta muito os outros, você acaba pegando as ideias dos outros.”

Mesmo com a sua genialidade e os muitos anos de carreira, o artista não está isento dos entraves causados pelo racismo.

“Fácil não é, né? Preto, de periferia. Não vou dizer de periferia, mas para a gente que é preto sempre tem essa questão de sabotagem, panelinhas. Infelizmente, essa é a realidade. Só que a gente faz um trabalho de formiguinha, né? Vai juntando um aqui, fazendo parceria ali, conseguindo espaço, ocupando espaço. Não é tão fácil como muitos pensam, rola muito sacrifício. Mas a gente conquista, a gente consegue.”

Em 2022, Kedé teve a oportunidade de se apresentar no palco do Festival GiraSol, um evento que reuniu ídolos nacionais como Alceu Valença, Duda Beat e Whindersson Nunes.

“Estar no palco do GiraSol foi muito massa porque eu pude mostrar meu trabalho pra galera que ainda não me conhecia, apesar desse meu tempo de caminhada.”

Questiono a Kedé qual é a sensação de ocupar espaços como esse, onde, talvez, ele nunca pensou que fosse se apresentar.

“ Um sentimento de sacrifício, de loucura, de barreiras, de sonhos. Mas é aquela coisa, procurar sempre evoluir. Não se limitar, estudar mais, buscar outras vertentes e procurar sempre amadurecer.”

Falando um pouco sobre a importância da música na vida de jovens e adolescentes da periferia, Kedé afirma ser uma das vidas transformadas pela arte.

“A música é uma arma muito poderosa. Ela já resgatou muita gente. Um funk, um rap, um trap, um samba, um reggae. Já resgatou muita gente. Eu sou um cara que até hoje só é música. Então, se só é música, o que seria de mim se eu não estivesse na música? Estava me jogando em outros lugares, né?

Principalmente no lugar onde a gente mora, que não tem saneamento básico, não tem estrutura, não tem assistência, a galera acaba ocupando a cabeça com outras coisas que a gente sabe que são erradas.”

Falo das intenções para esse trabalho, do desejo de mostrar uma imagem diferente das diversas Juventudes Negras que existem em Teresina, e o artista concorda. Existem muitos outros caminhos para negros e negras nesta cidade, do que aquele que nos leva a ser pintado como criminoso pelos portais de notícia.

“A periferia também tem esse lado bom, só que a galera não quer reconhecer esse lado. A mídia só mostra o que dá dinheiro, dá grana, sabe? Mas tem uma galera da dança, da arte, da música, que estão preocupados em fazer alguma mudança. Só que eles acabam não tendo visibilidade, né?”

O ano de 2023 começou trazendo boas experiências para o artista, como o Festival Batukada, festa que reuniu as mais diversas tribos em um só evento. Idealizado e organizado por Preto Kedé, o festival promete continuar trazendo esse clima dançante para as mais diversas regiões da cidade.

Rap, Funk, Axé, Reggae, Xiola e até mesmo o Pagodão, tão amado por Kedé, os ritmos ocuparam o centro da cidade no período do Carnaval. Além da música, brechós e artesanatos tornaram o evento ainda mais interessante para todos que compareceram.

Embalando no sucesso da Batukada e do Carnaval, Kedé lança o seu mais novo single.

Um gostinho do Afrobeat de Teresina, Kiwi é a promessa do artista para um ano repleto de novos desafios.

"Perseverança e resistência eu tenho na minha vida. Nada foi fácil, sabe? Já passei por altos e baixos, e mesmo assim estou aqui resistindo na música. Outras pessoas falam: ‘Ah, é que Teresina é assim’, mas eu prefiro fazer história na minha própria cidade, virar o jogo. Ainda vou conquistar a minha própria cidade e chegar lá fora."

Comentando os desafios de ocupar certos espaços, foi assim que encerramos nossa conversa naquela tarde de novembro. Quatro meses depois ainda percebo a insistência do artista em espalhar a sua história pelos quatro cantos da cidade. E aos poucos os teresinenses vão sentindo a África de Kedé.

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