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azulatura

Belo Horizonte, janeiro de 2023. Depois de uma manhã por ruas, janelas, mãos dadas e histórias, subo na moto de um desconhecido passando pelas ladeiras da cidade que já quis morar, só pela sensação. No passeio solo, escolho trilhas de livrarias, sebos e lojas de discos, finalizando na praça bonita do palácio que me abrigou da chuva.

Depois do medo superado da moto que entendia as sinalizações apenas como uma sugestão, faço uma parte do percurso a pé, meu jeito favorito de ver as coisas, perdendo só para: encostar, cheirar, pensar no gosto e, às vezes, olhar. O endereço é: depois da rua com mesas na calçada, virando pra direita do senhor que estava passando com o carrinho de pipoca exatamente às três da tarde de uma quinta-feira, tinha a livraria laranja que vi na internet. E agora preciso fazer a partilha de um julgamento: "Que tipo de livraria é laranja?!”, pensei, mas já sabendo que aquela era e eu iria até lá.

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Tinham livros expostos na calçada, cuidadosamente separados em mesas que não permitiam o alcance do sol, o que já diz muito sobre o lugar e as pessoas. Parei onde tinha poesia, como de costume. Fico um pouco envergonhada de dizer que talvez tenha me demorado muito mais do que percebi nessa parte. Quando notei que alguém falava comigo, levantei o rosto e os clientes já eram outros, a luz era outra e eu posso jurar que o espaço também era, não só pelas sacolinhas embaladas para viagem que estavam no balcão quando cheguei e depois já tinham ido para a casa de alguém que pode (ou não) conhecer a livraria laranja, que eu queria que fosse amarela, essa cor quase não faz poesia. Amarelo faz. Mas aí são outras questões.

A de agora é que levantei o rosto e o livreiro tinha afirmado que eu gostava de poesia. Demorei pra entender a entonação, dei um sorriso e respondi que sim. Ele disse um pois é, no meio de outro sorriso, que me fez entender que a primeira frase não tinha sido uma pergunta, mas que ele não estava me criticando. Só pelo sorriso do livreiro eu já ganhei a tarde. Depois seguimos por conversas sobre poesia, que ele afirmou categoricamente não entender, não saber ler, mas que em todo sarau na livraria laranja, uma vez por mês, tem uma moça que declama poesia e que sempre faz o livreiro chorar. Sempre. Eu disse que pode ser uma mistura da moça com a poesia e que nem sempre a gente precisa saber ler, o bom da poesia é isso. Escutar deixa mais bonito.

Eu ia contar em como o laranja ficou diferente, meio solar, meio fim de tarde com quem se ama, meio explosões celestes de acordo com as histórias do livreiro que me deixou ver o maior galpão de estoque de livros que já vi na vida (e é justo dizer que eu talvez nunca tenha visto um, mas também é preciso salientar que quase não vi coisas, no geral). Ele disse que mais de meio milhão de livros transitam por ali e que eu poderia ficar lá sozinha um tempo. Saiu e eu me surpreendi com o medo que tive. Não do lugar, que era iluminado e organizado. Meu medo foram dos livros. Imaginei meio milhão de livros me olhando, aquele tantão imenso de palavras justo pra mim, que sou calada. Que quase não respondo, que quase não sei nenhum dizer. Tive medo e saí. Mas caminhei sorrindo, para o moço livreiro não perceber.

Fui pagar o livro que escolhi, que já sabia que deveria levar desde o começo e me senti feliz pelos mundos vividos na livraria laranja. Acontece que ao pegar o livro, ele me diz: Você gosta dela?

Respondo que é o segundo livro que vou ler da autora. Que o primeiro já me arrebatou.

“Ela é daqui, sabia?”

“Sim, de BH mesmo, né?”

“É. Mas daqui do bairro. Passou aqui mais cedo. Sempre muito educada.”

Respondi alguma amenidade, disse (genuinamente) que tinha sido um prazer conhecê-lo e imaginei que um dia escreveria sobre a tarde pelas livrarias e ladeiras de BH, do livreiro que conheci e de quando decidi que encontraria Ana Martins Marques em uma esquina e tomaríamos cachaça.

P.S. Já é Teresina, semanas depois, fevereiro. Terminei o livro que comprei aquela tarde e deixei nele um bilhete que recebi em páginas datadas de uma agenda:

“o dia em que você me contou. TE AMO! vou sentir saudade. o dia seguinte. continuo te amando e te apoiando”

Sinto que é preciso existir de um jeito cada vez mais manso, mais sereno, mais manhã de domingo chuvosa com carinho de pés, mais livro na praia, mais cozinhar tomando vinho escutando aquela playlist que me acalma, mais beijo lento que gera um toque lento e um sexo devagar, mais sorvete na praça vendo o tempo passar.

Pra acalmar esse bicho do mato que rosna e arranha dentro de mim.

É muito engraçado imaginar o começo de um texto. Esse, por exemplo, já começou de diversas formas:

“Eu queria saber escrever. Enxergar as coisas além do rasinho de onde vejo;”

“Fiquei tentando caminhos para esse texto e não achei rumo nas palavras. Pensei em amor, música, desejo, cidades, estradas, lua, mentiras. Nada me serviu. Lembrei de uma série meio boa, meio boba que vi uma vez, sobre três amigas, depois dos 25, vivendo. Eu gosto disso, sabe?”

E algum outro que quase lembro, mas que devo ter deixado anotado em um terceiro lugar e perdi, como fazia com um livro que decidi escrever aos 13 anos em pedaços de papel soltos, só para perder com calma. O fato é que em todos eu começo a me justificar pela minha completa inaptidão e desajuste com as palavras. Queria ver de outro jeito e sei que sempre gosto mais da personagem forte, independente e bem resolvida nos filmes. Mas acontece que eu tenho medo. Especialmente das palavras. Mas isso é outro texto. Tem uma anotação das 15h28 no meu celular que diz apenas: “casar aos 20 e poucos”. Então, decididamente é sobre isso que vou escrever.

Eu não sei qual a idade de vocês (e aqui me reservo o melhor direito disfuncional que uma mulher adulta pode ter: pagar de Fleabag , quebrar a quarta parede e falar com amigos quase imaginários) ou como esse texto pode chegar aí. É sexta-feira à tarde, vou tirar 10 dias de férias depois de anos, já tomei vinho desde a hora do almoço. Então, talvez esse não seja um guia prático de qualquer coisa que seja, ou espelho para a sua vida e algo assim. Respira fundo, cuida da mente, fortalece o espírito e saiba que aqui são só sentimentos imensos em palavras miúdas de uma mulher que quase nada sabe.

Casar aos 20 e poucos

Uso a rede social para acessar, essencialmente, quatro tipos de conteúdo: poesia, foto de casa, vídeo de comida e de viagem. Gosto que seja assim e gosto da lógica do algoritmo que me mostrou esses dias um vídeo com um casal preparando um jantar gostoso porque agora moravam juntos e todo dia era tempo de celebrar. Foi aí que decidi palavrear a melhor coisa que tenho: o passar leve dos dias.

Acho tudo meio mágico. Não é defeito e nem qualidade, só um fato. Uma dessas coisas mágicas que mais gosto, é a luz laranja do final do dia, aquela que fica meio em tudo até escurecer. Outra coisa são as borboletas do Mearim que ficam juntas voando. Tem pra mais de cem, bem amarelinhas. Desde que conheci a Isabele, parece que cada vez que ela anda, fala ou só existe, tem mil borboletas do Mearim dançando com uma luz laranja ao lado. Isabele é um mistério e um milagre na vida. E olha que nunca fui muito dada aos milagres. Mistérios, sim.

No dia que uma amiga nos apresentou naquele bar que eu nunca tinha ido, a Isabele me abraçou e parece que ficou assim desde então. Porque ela está em mim desse jeito laranjafimdetardeborboletasdomearim toda hora. Já vimos filmes, começamos série, lemos poesia, viajamos, choramos, andamos de barco, vimos o rio, o mar, o mangue, lavamos louça, tomamos cerveja, caipirinha e vinho, fomos ao supermercado comprar frutas e legumes, todos os dias prometemos regular o sono, criamos mundos possíveis no 301 e além. Conversamos, sorrimos e somos colo nos dias ruins (e acho que isso é o que mais faz a gente ser a gente).

É com ela que consigo colocar um biquíni, abrir cerveja e fazer faxina, é pra ela que quero voltar ao fim do dia, é com ela que experimento os perigos da rua (e aqui não vou detalhar, essa é uma revista séria. Só deixo registrado). É com ela que construo amor, um lar e a família que nunca achei que merecesse ter. Todo sonho, meta, objetivo e desejo é mais realizável depois dela. Isabele mudou meu senso de perspectiva e tenho orgulho imenso desse amor que construímos. Dormir e acordar ficou melhor. O tempo entre esses dois atos também. Pode não ter sido o texto romântico que talvez você, leitora, esperasse. Mas é, sabe? Eu sei.

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