coluna
Celebrar nossa cultura
by Ricardo Câmara
SEU PERIGOSO E A ARTE DE CONTAR CAUSOS As grandes distâncias entre as cidades sul-mato-grossenses desenvolveram, ao longo das décadas, uma importante população rural. Nos dias de hoje, o rádio, a televisão e a internet chegam aos lugares mais isolados e longínquos; mas, há pouco tempo, a realidade era outra e uma das principais formas de expressão e transmissão cultural eram as rodas de causos. O contador era uma figura importante, aguardada nas noites de lua com sua poética oral para encher aquele universo silencioso e calmo de fantasia e emoções. Seu Perigoso é um famoso contador de causos de Maracaju e cercanias. Ele se autointitula o maior matador de onças do Pantanal e diz que, com uma bala, já matou mais de quinhentas pintadas de uma só vez. Valmir Noberto dos Santos é o nome de batismo da fera. Ele nasceu em 1942, na fazenda Água Fria, no mesmo município. Trabalha esporadicamente nos pantanais como furador de poço.
Seu Perigoso faz parte de um grupo de artistas que está em extinção: os contadores de causos. Em Dourados, havia uma grande figura nesta arte, Libertão Leite de Farias, o Laquicho. O causo pode ser considerado um gênero poético, que é expresso oralmente e que tem sua temática fincada na regionalidade. Em nossa região, essas narrativas são mais visíveis no Pantanal e por isso são conhecidas como causos pantaneiros. Eles são contados principalmente nas rodas de tereré e retratam o cotidiano real e imaginário do pantaneiro. Munido apenas de sua experiência e de muita imaginação, o contador cria com gestos e expressões um cenário e nele desenvolve uma ação narrada.
A primeira vez em que estivemos em sua casa para ouvilo, ele já nos alertou de que estava cansado e meio tonto, pois tinha chegado no dia anterior de Nova York com o supersônico que seu padrinho Leonel Brizola lhe emprestara. Quem garantia a veracidade nas narrações de Seu Perigoso era Dona Cida, sua mulher. Ela sempre esteve ao lado do marido para confirmar a história, lembrar de outras e participar de algumas. Ele mora com a família em um bairro pobre de Maracaju. É pai de nove filhos, cinco mulheres e quatro homens. Quem lhe ensinou a arte de matar onça e de contar causos foi seu pai.
O causo das três onças montadas - Onça? A federal pediu pra mim, num matá mais, né. - É, pediu? - É pra pegá ela viva. - Ah! É pra pegar ela viva? E o senhor tem pegado?
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- Meu pai tinha uma espingarda de treis cano, assim. Ele (se levanta para explicar melhor) botava a espingarda num gaio de pau. Botava, assim, e ia circulano. Amarrava um barbante e desenrolava no chão, de noite. Deixava armada e gatiada, né. Quando a onça pisava no barbante, saía o tiro, peei! No otro dia ia vê, tinha quinze, vinte onça morta. Treis cano assim. (manuseando um objeto imaginário) Um aqui ó, um do meio e um aqui. Dava as treis partida. Com mil quilo de chumbo. Chumbão grande. Botava cem quilo de pórva e a onça pisava no barbante, né, e estorava o tiro lá, paaau! Saía nos treis gatilho. Eu falei: - Eu vô lá, vô lá pra sete horas. - Cheguei lá, tava aquele monte de onça morta. A bala só passava no ouvido, assim. Dentro do buraco do ouvido da onça. Então o bicho ficô famoso, né. Aí pusero eu de Perigoso, né, pra eu matá onça também.
- Aí eu comprei um gravadô lá na Argentina... Uma bateria, uma televisão, um gravadô, né. Guardei assim ó, dentro de uma mata, eu puis um tendão assim ó com dois metro e meio de cumprimento, né, liguei a bateria pra crariá lá a televisão, e quando amanheceu o dia o patrão falô: “Perigoso sumiu!” E eu vinha muntado nas treis onça. Muntado nas treis. Eu abri as perna, assim... eu muntado nas onça. E assim Seu Perigoso vai contando suas aventuras ao pequeno público que tem tempo para ouvi-lo. Ele já foi assunto de tese de doutorado, defendida no estrangeiro e foi filmado no documentário Os Causos: uma poética pantaneira. Se agora está na universidade, o maior desejo do artista, no entanto, é voltar a ter ouvidos que ouçam o que a sua imaginação cria para alumiar a noite escura e solitária trazida pelas redes sociais. Ricardo Pieretti Câmara, Doutor em Humanidades pela Universidade Autônoma de Barcelona Presidente da Fundação Nelito Câmara