Jogos Florais 2022

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NOVEMBRO 2022 NÚMERO ESPECIAL SUPLEMENTO
InFormar
Aprender é Viver Melhor 7.ªEdição dos Jogos Florais

FICHA TÉCNICA

Título: InFormar Suplemento Revisão de texto: Ângela Mota Conceção gráfica, paginação: Domitila Cardoso Propriedade e Editor: Associação de Professores do Concelho de Almada (Apcalmada) Rua da Cerca, 21 23 2800 050 Almada Telefone: 219012420 URL: www.https://www.apcalmada.org E mail: apcalmada@sapo.pt

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InFormar

Índice

Editorial 5

História de vida

Ao serão Edite Prada (1.º Prémio) 7

Rasgar a Espessura do Silêncio Válter Deusdado (2.º Prémio) 9

Ano 2050 - Noite de Natal - Manuela Cruz (Menção honrosa) 11

Conto

Zé Gaivota Orlando Leal (1.º Prémio) 15

A Boneca Vítor Fernandes (2.º Prémio) 18

As palavras quebraram se Válter Deusdado (Menção honrosa) 21

Fotografia

Água-Elemento fundamental para o desenvolvimento e Sustentabilidade - Joaquim Louro (1.º Prémio) 23

Sustentabilidade e Globalização Eugénio Marques (Menção honrosa) 23

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NÚMERO ESPECIAL
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EDITORIAL

A Associação de Professores do Concelho de Almada e a USALMA Universidade Sénior de Almada reinventam se na celebração da vida, de forma luminosa, envolvente, confiante.

Juntas a descobrir caminhos essenciais para aproximar, sensibilizar, valorizar e celebrar pequenos gestos, sonhos e pretextos significativos para revelar sentidos existenciais, vitais.

Juntas a desafiar a cocriação de comunidade, em comunidades de aprendizagem e de prática, intergeracionais, interculturais, interidentitárias.

Juntas a valorizar o potencial humano, a pessoa, aprendente, que sabe usufruir da fonte inesgotável de criatividade, de imaginação, de sabedoria de que é detentora, fruto das vivências, das histórias que somos, que guardamos, na memória que engrandece, responsabiliza e humaniza.

Somos, sendo... Poesia, Histórias de Vida e Contos, em tempo de grande e crescente complexidade, de desafiantes incertezas e promessas à luz da esperança.

Juntas, no compromisso de promover a VII EDIÇÃO dos JOGOS FLORAIS - EDIÇÃO 2022, um evento cultural de referência, que se propõe, nesta edição, consciencializar para o tema “Desenvolvimento Sustentável”, em comunhão com o ideal UNESCO 2022.

Felicitamos os JOGOS FLORAIS 2022 e todos quantos participam e se inscrevem, nas diferentes modalidades. Uma iniciativa de (re)conhecimento profundo do ser humano, que aprende ao longo da vida, com as experiências pessoais e sociais, por amor à Vida. Histórias únicas que emanam do sonho de comunicar, em prosa e poesia, na intimidade de si próprio, na verdade dos sentimentos, das emoções, das memórias que resistem e emergem por palavras. Poeticamente!

Da infância à adultez, "era uma vez". No contexto das histórias vividas e sentidas, no confronto de mundividências que questionam, discorrendo, de forma clara e fluida, leve e sensível, envolvente e edificante, corajosa.

Um prazer para o leitor/escritor, que se identifica e reconhece, na compreensão dos sentidos, nos propósitos e deveres da memória, na urgência de mobilizar o pensamento crítico, a participação em cidadania, a inclusão social em dignidade e respeito para a regeneração de um mundo melhor, consciente, sustentável, mais inclusivo e humanizado.

Felicitamos todos os participantes, o júri dos JOGOS FLORAIS a quem compete a responsabilidade da atribuição de Prémios e Menções Honrosas e os ilustres premiados, desta VII EDIÇÃO dos JOGOS FLORAIS, a saber:

Modalidade História de Vida H1 1.º Prémio Pseudónimo Flor da Raposa Título do Texto Ao Serão;

Modalidade História de Vida H2 2.º Prémio Pseudónimo Maurício Giestas Título do Texto Rasgar a Espessura do Silêncio;

Modalidade História de Vida MH Memória Honrosa Pseudónimo Maria da Esperança Título do texto 2050 Noite de Natal;

- Modalidade Conto - C1 - 1.º Prémio - Pseudónimo - Cláudio Joaquim - Título do Texto - Zé Gaivota; Modalidade Conto C2 2.º Prémio Pseudónimo Anastácio do Rosário Título do Texto A Boneca;

Modalidade Conto C4 Menção Honrosa Pseudónimo Alcides Torres Título do Texto As palavras quebraram-se.

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NÚMERO ESPECIAL

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O fio da escrita e da leitura, convida ao infinito prazer do encontro com o outro, que lê, que se lê, se reinscreve na corrente dos dias, das palavras, em ambientes afetivos e sustentáveis. JOGOS FLORAIS 2023 convidam e aguardam a V/ participação. Aceitem o desafio de aprender a viver melhor, uns com os outros, em comunidade, saboreando a poética da vida, em fraternidade.

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AO SERÃO

As recordações da infância, esbatidas aqui e ali, trazem vislumbres das noites ao serão. Sem luz elétrica, na aldeia do interior profundo, os serões não eram longos, mas, na casa de Ana, eram concorridos. Várias razões contribuíam para a presença dos vizinhos à roda da lareira: o aparelho de rádio que permitia ouvir vários programas e peças musicais; a lareira em si não era razão despicienda num tempo em que a lenha não abundava e menos ainda o dinheiro para a adquirir; para Ana, as recordações mais gratas estão associadas às histórias contadas pelos participantes no serão. Não importava se eram reais ou imaginadas. O narrador esforçava-se por dar vida às palavras e quando ia dormir, Ana recordava cada palavra, cada entoação e assim, embalada, entrava no sono...

As noites de leitura constituem, também, recordações gratas. Jovenzinha ainda, ouvia a mãe ler para uma assistência não muito numerosa mas atenta, ouvindo num silêncio absoluto e quase reverente. Quando começou a dominar a leitura, esse encargo passou a ser seu. E ainda recorda, grata, o silêncio que aquele grupo de adultos à sua volta fazia para ouvir a sua vozinha ler muitas vezes livros já ouvidos, pois o número de obras disponíveis era reduzido.

Ana conhecia os livros que havia na sua casa e sabia que todos eles podiam ser emprestados e percorriam várias casas onde outros leitores replicavam o seu papel em outros serões, à volta de outras lareiras. Aos poucos, foi tendo conhecimento dos livros disponíveis na aldeia, cujos proprietários os emprestavam para poderem ser lidos por outros interessados... Não seriam mais de vinte, naquela aldeia transmontana, onde a relação com o mundo exterior se estabelecia através da carreira diária que fazia o percurso até à sede do distrito e regressava à noite trazendo uma vez por semana o correio que era distribuído ao domingo, depois da missa e através do som saído do aparelho de rádio que havia na sua casa e em poucas mais... A pouco e pouco, foi sabendo que as tabernas, uma a uma, lá foram comprando o seu aparelho de rádio, como forma de fixar clientes à volta das mesas e do baralho de cartas...

A forma como as notícias eram divulgadas passava pelo padre da aldeia que, no final da missa, fazia os avisos necessários, ou pelo regedor, no adro da Igreja depois da missa. Ana recorda com carinho aquele domingo da década de sessenta, em que o pároco avisou que, num dado dia dessa semana, passaria pela aldeia um carro da Gulbenkian que trazia livros para emprestar aos interessados.

Ana ficou sem saber muito bem como reagir, nem o que pensar... Ao longo dos dias até quinta à tarde, dia aprazado para a vinda do carro dos livros, ia imaginando como seria.

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HISTÓRIA DE VIDA –1.º PRÉMIO

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No dia estipulado, um som que, na altura, era único e que poucos anos depois se tomou comum com outros objetivos venda de peixe congelado, em primeiro lugar... venda de fruta... venda de..., percorreu a aldeia: o som da buzina de um carro chamando os leitores. Ouvido o sinal combinado, os interessados dirigiram se à praça da aldeia, onde a carrinha permaneceria durante três horas.

Era um momento solene. Ao dirigir-se à pessoa que, na portinhola lateral, preenchia a ficha de cada leitor, viu a porta traseira aberta e anteviu uma quantidade inimaginável de livros. Ansiosa, lá foi respondendo às perguntas: nome, idade. Idade! E se me não deixam levar os livros que me interessam! Treze anos! Não posso dizer treze anos! Quinze anos... Não, não tenho bilhete de identidade...

A décadas de distância, recordar esta reação ainda lhe arranca um sorriso... treze, quinze... que diferença faria, Deus meu! Mas naquela altura, na ânsia de ser mais velha, os dois anos acrescidos à idade preencheram lhe o ego. Tendo desenvolvido precocemente, a aparência física não desmentia o que dissera...

Ficha preenchida, foi a sua vez de entrar na biblioteca.

Tem alguma ideia do que quer levar? Perguntou a funcionária de apoio...

Não posso ver?

Claro, esteja à vontade. Se quiser romances é aqui ...

E aqui?

Aí são livros de Ciências.

Ana olhou em volta, encantada... Pressentia em cada lombada uma aventura, em cada livro um caminho novo... Foi tirando das prateleiras, um, dois... cinco livros...

Não pode levar mais...

Feliz com a preciosa carga, o caminho até casa pareceu-lhe mais extenso do que habitualmente... Aí chegada, não eram horas de ler e sim de ajudar a mãe a preparar o jantar... As tarefas demoravam mais do que de costume. Até o fogão já havia fogão a gás lá em casa! aquecia as panelas com uma lentidão desusada...

A noite não era dia de serão comunitário pôde ler em silêncio um dos livros que trouxera... Não era um romance. Era um livro de medicina: O sangue, de Jean Bernard... Não imaginava que coubesse em livro tanta informação... Leu, como se de um romance se tratasse, com avidez... Algumas décadas depois, Ana ainda recorda o prazer que sentiu com a leitura daquele livro... Foi de longe o mais marcante dos primeiros cinco... E dos mais marcantes dos cinco anos em que frequentou a Biblioteca Itinerante...

Infalivelmente, recorria todos os meses ao carro dos livros e levava sempre o máximo que lhe permitiam. Muitos continuaram a servir de leitura durante o serão coletivo que, aos poucos, se foi desfazendo...

Ana olha para as prateleiras da Biblioteca, alinhadas, cheias de livros organizados e, inadvertidamente, vê se de novo a mexer nas prateleiras da Biblioteca Itinerante, sentindo um prazer enorme no manuseio daquele manancial de conhecimento encaixado, à espera de ser redescoberto. E sorri…

Autora: Edite Prada*

*Biografia na contra capa.

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Pseudónimo: Flora da Raposa

RASGAR A ESPESSURA DO SILÊNCIO

Estava na mesma posição havia muito tempo. Doíam lhe os ossos, tinha que mudar de sitio era urgente porque não aguentava mais o ar poeirento que ali se respirava. O cheiro a bafio do pouco arejamento e a luz escassa temperada pelas cortinas semifechadas das janelas, tornava aquele espaço um pouco sombrio. Quando a trouxeram para ali era muito admirada, todos se juntavam à sua volta e faziam os mais elogiosos e rasgados comentários, que incluíam sorrisos e gargalhadas. Ela reunia três gerações de rostos felizes. Agora, de coração vazio de afetos restava lhe permanecer ali esquecida, ou teria sido mesmo desprezada.

Por baixo dela estava uma estante grande com muitas prateleiras cheias de livros, todos alinhados por tamanhos que mãos cuidadosas ali colocara. De vez em quando, alguém se aproximava tirava um e punha outro no espaço deixado vazio. Se ao menos olhassem para ela não se sentiria tão abandonada à erosão do esquecimento, mas não, até parecia que a ignoravam e esse desdém doía lhe como se fosse um insulto. Nem sequer lhe dirigiam um sorriso por pequeno que fosse, nem um aceno, e assim, a sua revolta crescia todos os dias. Ali recolhida e muda pensou na maneira como poderia alterar aquela situação e disse para com ela:

Se não podes parar o vento com as mãos nem mudar as estrelas de lugar, tens de fazer alguma coisa. Ah!... Se eu fosse um livro. Comentou ela baixinho como uma divagação. Tudo mudaria, escolheria uma capa com muitas cores e um titulo bonito, andaria de mão em mão porque gosto de unir as pessoas na magia da leitura. Levaria os leitores numa viagem sem saírem do lugar a sítios desconhecidos mostrando lhe diversas culturas, os detalhes, os cheiros, as cores, os sentimentos principalmente quando os afetos de longínquas lembranças se condensam em lágrimas quentes. Gostaria também de entreter os mais novos, soltar lhes o sorriso embalando os umas vezes no sonho, outras, despertando lhes a curiosidade do saber. Quando me dirigisse aos mais velhos gostaria de mostrar lhes a minha realidade, narrando histórias umas vezes com final feliz, outras nem tanto. Se eu fosse um livro, também teria alma e poesia dentro de mim que arrumaria em contos, quadras, sonetos e outras vezes em versos livres, sempre carregados de sentimento e liberdade, procurando dessa forma fascinar os leitores pelo fulgor de lisonjeiras ilusões. Gostaria de todas as cores, menos a do lápis azul dos anos sessenta do século XX, preferia o arco íris com toda a exuberância de cor e luz que não tocamos, mas sentimos a magia quando a leitura nos faz sonhar.

Um dos livros que tinha estado muito atento à divagação da moldura, não se conteve e disfarçando a impaciência deu um passinho à frente, encarou a moldura com um olhar oblíquo e retorquiu:

Mas tu também tens bonitas histórias, reúnes toda a família, guardas com certeza muitos se-

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HISTÓRIA DE VIDA –2.º PRÉMIO

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gredos. Quando olho para ti e vejo a árvore da família rebentam me irreprimíveis lágrimas, tremem me os lábios e sinto um aperto no coração porque, uma boa parte das pessoas que retratas deixaram de me procurar.

Sim!... Tenho muitas histórias. Respondeu a moldura. Vêm me à lembrança todos aqueles nomes envoltos nas memórias, alguns estão mortos, silenciosos, mas sinto os viver ainda aqui dentro.

Tens razão. Prosseguiu o livro deixando desvanecer os vestígios da sua perturbação. Muitos dos que aí mostras andaram comigo ao colo, claro que também outros houve que me abandonaram numa censura pungente, de uma leitura despida de razão só porque deitei cá para fora, tudo o que tinha dentro de mim ensinando os como se deve viver e como se pode morrer. Desde que me conheço, há seis mil anos, e nesta forma como hoje me vês, já passaram mais de dois mil anos, muita coisa me aconteceu.

A moldura estava simultaneamente contente e triste, porque até ali, antes de ouvir o livro, pensava que ele tinha tido uma vida de facilidades, percebia agora que também já fora maltratado, esquecido, censurado e até imagine-se, queimado.

Não sabia que tinhas essa idade nem dos maus tratos de que foste vítima. - Apressou-se a moldura a lamentar.

Mas o pior é o que me está a acontecer agora. Estão a substituir me por uma coisa moderna a que chamam livro digital, “e books”. Eu disso nada entendo, mas o que sinto é cada vez maior abandono. Até há quem me acuse que sou contra o desenvolvimento sustentável, por destruir as árvores, eu!..., que sempre me esforcei em dar o meu contributo para o desenvolvimento da humanidade preservando o conhecimento para as gerações seguintes.

A moldura queria continuar aquele diálogo, mas verificou que o livro já se tinha recolhido.

Ah!... Se eu fosse um livro. Prosseguiu a moldura erguendo a cabeça que a tristeza lhe curvara. Havia de aprender várias línguas e dar a volta ao Mundo, resistir ao esquecimento que arquiva a desgraça e rasgar a espessura do silêncio, essa seria a minha história de vida.

*Valter Deusdado nasceu em 1952 no Concelho de Miranda do Douro, no Nordeste Transmontano. Aos dezassete anos alistou se na Marinha de Guerra Portuguesa, onde faz a sua formação e carreira servindo o país durante mais de quarenta anos. Desde muito novo ganhou o gosto pela leitura e pela escrita. Começou cedo a escrever como sendo uma terapia do trabalho e nunca mais parou. Gosta de compor as palavras e daí criar contos, histórias, friccionando o presente e caricaturando de uma forma metafórica tudo o que o rodeia.

Sempre atento às pessoas e ao seu comportamento, cria a atmosfera que vai servir de inspiração à sua escrita. É uma escrita de poucas palavras que é necessário mastigar para as sentir.

Participou no jornal Nordeste publicando contos durante mais de cinco anos.

Em 2011 publicou o seu primeiro livro “L Ancuontro” em língua mirandesa.

Em 2016 publicou o 2.º livro “Noites Escuras” em duas línguas; português e mirandés.

Em 2018 publicou o 3.º livro “ A Escolha” em duas línguas; português e mirandés.

Em 2019 publicou o 4.º livro “O Regresso” em duas línguas; português e mirandés.

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Pseudónimo: Maurício Giestas Autor: Válter Deusdado*

ANO 2050 - NOITE DE NATAL

Olhei à minha volta e não sabia como ali tinha chegado! Tudo me parecia estranho e deslocado, mas apesar disso, o lugar onde estava lembrava me uma praça da minha cidade; mas por outro lado, quase tudo era diferente daquilo que eu conhecia...

Se bem me lembro, naquela praça havia ao centro uma estátua com um significado especial, mas agora era um largo todo ladrilhado... lembro me de à volta haver várias lojas e esplanadas com gente disfrutando na primavera e no verão, a amenidade do nosso clima. Agora, apenas umas arcadas escuras com pouca iluminação e portas largas e fechadas, uma ou outra montra, mais parecendo uma janela do que as montras largas e iluminadas que eu conhecia... No meio da praça, uns carris fora de uso recordaram me o metro que por aí tinha passado; vários jovens todos vestidos de negro dançavam e berravam algo incompreensível, quase todos tinham na mão uma lata de bebida, que depois verifiquei tratar se de uma bebida energética... dois ou três tinham na cabeça uns barretes vermelhos que me eram familiares, apesar de velhos e desbotados... de repente fez se luz e percebi o que gritavam:

Não me faças mal porque é Natal... e completavam a gritaria com uns movimentos descoordenados e sem qualquer estilo.

Nesse momento, para me desviar, recuei para as arcadas escuras e numa “montra janela” vi um cartaz, sem graça, que dizia Natal de 2050, enquanto um relógio marcava a hora e a data 20 horas, 24 de dezembro.

Interroguei me: porque estaria eu ali, que salto no tempo teria acontecido para terem passado quase 30 anos sem dar por isso!!? não encontrei qualquer explicação; o ar estava momo e havia ainda alguma claridade... mas se era Natal como explicar a temperatura àquela hora... não tinha já dúvidas que estava numa praça da minha terra e que era noite de Natal!...mas que alterações climáticas teriam acontecido para as coisas mudarem desta maneira em tão pouco tempo?!... repeti para mim intrigadíssima, 2050???...

Como estaria ali, já que ainda há poucos dias tinha usufruído de um passeio, tantas vezes repetido ao Parque da Paz, que eu vira “nascer e crescer” e que não me cansava de admirar caminhos agradáveis no meio de árvores frondosas e plantas variadas, aves canoras esvoaçando livremente e alegrando o ar com o seu livre chilrear, patos grasnando no enorme lago, crianças correndo e brincando na relva; homens e mulheres, correndo em grupo ou isolados pelos caminhos e ultrapassando os mais velhos, que faziam caminhadas a um ritmo mais lento, como era o meu caso: era este o maravilhoso cenário do pulmão da nossa cidade. Como era possível aquele cenário conviver com este que eu tinha agora à minha frente?!... Como explicar isto ?!!...

Lembrava me que desde finais do século XX tinha havido várias cimeiras do clima em que se alertava para as grandes alterações ambientais e climáticas que se dariam a médio e longo prazo caso não se seguissem determinados procedimentos. Alguns países pouco ou nada faziam, esco-

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HISTÓRIA DE
–MENÇÃO HONROSA
VIDA

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lhendo ignorar esses alertas, mas com o virar do século e as primeiras duas décadas, cada vez mais estados estabeleciam metas e aprovavam leis, com o fim de atingir os objetivos traçados... palavras como alterações climáticas, desenvolvimento sustentável, energias renováveis e descarbonização passaram a fazer parte do nosso dia a dia... havia cada vez mais carros elétricos, painéis solares e moinhos eólicos e sobretudo maior consciência ambiental, principalmente nos mais jovens, que, inclusivamente lançaram movimentos ambientais, mas estando todos muito mais despertos para o problema.

É certo que as ondas de calor levavam a fortes incêndios afetando grandes áreas de floresta; também havia cada vez mais tempestades com chuvas intensas e inundações, destruindo tudo à sua passagem; tudo isso deixava nos por vezes muito preocupados, mas eram também sinais de alerta que faziam despertar mais para o problema... quis acreditar que cientistas e população em geral iriam conseguir cumprir as metas tão discutidas e necessárias à sobrevivência das futuras gerações…

Mas como é que tudo isto poderia estar a acontecer já em 2050... E eu a presenciar... era difícil de acreditar; algo não batia certo… Quem era aquela gente que festejava assim o Natal?... Fiquei curiosa ... queria saber mais. Passava nas arcadas um casal na casa dos vinte, quase trinta anos, de roupas desleixadas, rosto indiferente, com uma criança dos seus quatro anos pela mão. Meti me com a criança, que me sorriu e comecei a entabular uma conversa. Apesar do aspeto indiferente foram simpáticos. Comecei por falar do Natal. Ambos ficaram admirados por eu fazer referência a essa data e responderam me:

- Agora ninguém liga ao Natal, lembro-me de quando era pequena, nos anos 20, ainda festejar o Natal, ainda tenho uma vaga recordação de uma árvore de Natal na minha meninice, mas tudo isso se foi perdendo ao longo dos anos. Agora é uma data que não se comemora.

Algumas lojas ainda tentam pôr cartazes e vender algumas bugigangas referentes à época, mas quase ninguém liga; já nem é feriado nesse dia…

- E não há comidas especiais nessa data? Perguntei admirada…

Não, não... A nossa comida é sempre o mais rápido e fácil possível... há muitas famílias que em muitas refeições só tomam pílulas com os nutrientes necessários. Quase ninguém cozinha, mas por outro lado há os que só comem hambúrgueres e pisas, por isso há muitos obesos... quase ninguém se preocupa a fazer refeições: ou pílulas ou “fast food” é a nossa alimentação... O clima também não permite ter alimentos frescos.. .há grandes vagas de calor, os fogos dizimaram as florestas, há cheias e temporais tão intensos que tudo destroem e ao mesmo tempo longos períodos de seca... eu com trinta anos ainda me lembro vagamente de haver diferentes estações no ano. Agora não, tão depressa pode parecer verão em dezembro, como haver grandes tempestades com cheias e ventos que tudo destroem, em agosto…

Estava perplexa com esta conversa, mas ao mesmo tempo, uma ambivalência, uma mistura de medo e curiosidade sobre o que pudesse ter acontecido, fazia-me continuar a conversa: - Então e os jardins da nossa cidade? Já não há jardins ... a água é um bem tão escasso que não dá para os regar e com estes picos de grande calor também não há nada que se salve... ainda me lembro de ir brincar para o parque infantil que havia num jardim no centro da cidade, o parque ainda lá está mas o jardim já não existe... assim como outros que desapareceram mais tarde, como o Jardim do Castelo; o castelo ainda existe com as sua muralhas altaneiras, mas o espaço onde era o jardim está empedrado como aconteceu a todos os jardins da cidade o parque Urbano e todos os pequenos ajardinamentos foram desaparecendo. O último foi o da Casa da Cerca, esse pólo cultural que ainda se mantém, mas o seu Jardim Botânico, O Chão das Artes, está a desaparecer com as mais recentes e duras restrições em relação ao uso da água. É mais uma morte anunciada, a perda deste belo jardim... Eu estava estupefacta com o que ouvia, mas apesar de tudo, eu precisava saber mais e mais e o casal, ora ele, ora ela, iam satisfazendo a minha curiosidade enquanto uma grande tristeza me ia invadindo; soube que muitas das nossas maravilhosas praias, desde a Caparica à Fonte da Telha já não existiam, pois o mar, em invernos sucessivos tinha destruído paredões, galgado dunas e invadido casas próximas... Só poucas praias tinham escapado…

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Aí, com as lágrimas nos olhos recordei os bons banhos que desde a infância aí tomara e onde em dias de mar mais calmo aprendera a nadar... Será que já não mais, em finais de setembro, iria poder assistir ao chegar das redes, na Fonte da Telha? Espetáculo tantas vezes repetido, mas sempre por mim admirado, acompanhado as mais das vezes, por um pôr do sol magnífico… Até a Arriba Fóssil, essa joia do concelho, em certos lugares não resistiu à força dos ventos e das chuvas e encontra-se em grande parte derrubada… E agora eram eles que não paravam de falar e num desabafo de situações recalcadas continuavam:

Vive se mal, quase não há empregos trabalha se no máximo 10 horas por semana pois tudo está mecanizado, informatizado e robotizado. O trabalho que resta para os humanos é escasso. As grandes empresas têm lucros fabulosos, mas a maior parte das pessoas continua a viver mal. Há um ordenado fixo, quer se trabalhe ou não, que dá para viver sem luxos. O estado, com os impostos das grandes empresas, paga tudo - educação, saúde, habitação mas as pessoas não têm motivação nem estímulos e sentem se desanimadas. Os jovens, também não fazem pela vida porque, quer estudem, quer não, o futuro é o mesmo… Por exemplo, quando estamos doentes, vamos a um serviço de saúde, falo das minhas queixas e desabafo os meus queixumes para um computador com inteligência artificial, que elabora a informação e em seguida debita, se for o caso disso, uma série de exames fornecendo me o resultado automaticamente e depois fornece a medicação e as instruções para os tomar. Isto acontece também com as cirurgias que são programadas, automatizadas e feitas sem a mão humana. Não há empatia, não há calor humano, não há qualquer emoção. Foi assim que resolveram a falta de capacidade de atendimento a que os serviços de saúde chegaram. A esperança de vida continua a aumentar, apesar de muitas epidemias terem assolado o mundo após a do Covid, nos primeiros anos da década de vinte. A ciência consegue responder com novas vacinas e novos medicamentos. Mas a verdade é que, apesar do aparente progresso, quase ninguém se sente útil e necessário. Somos todos descartáveis, as máquinas fazem tudo. O mais engraçado é que trabalhamos pouco, mas a frustração é tão grande que nos sentimos sempre cansados e aborrecidos pois temos uma vida inútil e desinteressante. Como quer a senhora que liguemos a festas se tudo é uma grande maçada!?... Também não temos estímulo para constituir família pois o futuro é triste e sem vislumbre de melhoria: Cada casal só pode ter um filho pois não precisam de nós para nada, mas mesmo assim há casais que não têm qualquer filho, pois estas perspetivas assustam… A taxa de natalidade baixou em todo o mundo. Outrora o problema era o crescimento demográfico, mas agora é o contrário. Na Europa, a população está diminuindo assustadoramente e a continuarmos assim, somos uma espécie em vias de extinção. A União Europeia foi se desintegrando ao longo dos últimos 20 anos. Poucos países se mantêm unidos lutando pelos antigos ideais, a solidariedade foi desaparecendo progressivamente ao longo dos anos. É um “salve se quem puder”. As alterações climáticas provocaram grandes êxodos populacionais dos países mais pobres e isso foi o cocktail ideal para germinarem partidos de extrema-direita que alimentaram nestas últimas décadas várias limpezas étnicas. Os árabes, os negros e os ciganos foram os alvos principais. Os povos esqueceram o descalabro e o terror nazi dos anos quarenta do século XX, tão repetidamente visto e narrado em filmes e livros e tivemos novas e semelhantes experiências, talvez em menor escala, mas mais uma vez “os outros”, que somos todos nós, assistimos horrorizados e quase nada fizemos. Eu sei do que estou a falar porque tenho um curso de sociologia, que para nada me serve, mas que me permite fazer uma análise destas situações… Quer saber mais? houve também vários ataques nucleares para experimentarem forças, com vítimas aos milhões como é fácil adivinhar. Depois “destas brincadeiras” houve uma certa acalmia, mas as consequências da destruição e das radiações continuarão a sentir-se por muitas décadas… Quanto aos imigrantes foram sendo expulsos progressivamente e agora também já ninguém quer imigrar para a Europa porque esta realidade ninguém a deseja… Mas agora reparo no seu horror e admiração!... Onde tem vivido? Noutro planeta ?!... De facto, há viagens frequentes a Marte, feitas por quem tem dinheiro. Será que tem lá vivido e escapado a todos estes horrores e desgraças?!... só pode ser isso… Depois de saber tudo isto percebe, certamente, que ninguém acredita ou tem vontade de festejar o Natal... ou qualquer outra comemoração. Ninguém acredita em milagres ou festas de Natal porque não há esperança de “Paz na terra para os homens de boa vontade”.

De repente ouvi uma campainha e acordei a chorar convulsivamente... tentei com alguma dificuldade, si-

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tuar me no tempo e no espaço: estava em casa, em Almada onde sempre vivi e eram dez horas da manhã do dia 25 de Abril de 2022 e tinha tido um grande pesadelo…

Tentei acalmar-me e raciocinar o mais friamente possível.

Será que isto pode vir a acontecer?!... é para isto que caminhamos? interroguei me.

Não, não pode ser, o Homem é um ser racional e inteligente e vai ser capaz de lutar e vencer as dificuldades que existem, o futuro nunca poderá ser tão desastroso …

É certo que todos teremos de trabalhar nesse sentido quer a nível mundial, quer europeu, quer local. No nosso país poderá ser o poder local a ter um papel muito importante, quer a nível de criação de estruturas que promovam o desenvolvimento sustentável nas suas vertentes ambiental, económica e social, quer através da motivação das populações para o cumprimento de determinados procedimentos: . transportes urbanos frequentes e gratuitos levarão certamente a menor uso do carro, parques de estacionamento gratuitos perto dos transportes que dão acesso à capital motivá las ão a querer deixar o carro e utilizá los. Mais ciclo vias levarão a maior uso de bicicletas.... Rede abundante de contentores para reciclagem e de recolha do lixo normal vão levar certamente a um melhor uso e a menos lixo nas ruas; praças e avenidas limpas servirão também de exemplo... Instruções criteriosas nos recibos da água sobre como a poupar, assim como prémios para os mais poupados motivarão certamente alguns… Por outro lado, a vigilância e proteção da Arriba Fóssil e do Pinhal do Rei, assim como das dunas para proteção das nossas praias será imprescindível. Aí estarão os técnicos para a planificar.... A educação e a cultura ambientais, assim como a responsabilização são sem dúvidas fatores muito importantes, por isso a informação e o ensino não podem descurar este assunto. Por outro lado, as novas tecnologias e a inteligência artificial, não podem substituir o homem, na totalidade, devendo sim ser aproveitadas naquilo que têm de mais útil para o seu melhor desempenho e aí estarão mais uma vez os técnicos de diferentes áreas para o fazer corretamente.

Com estas conclusões e pensamentos positivos consegui acalmar-me.

Muito está a ser feito, mas muito mais deverá continuar a sê lo, para evitar os horrores do meu pesadelo e a perda total de esperança. Todos, sim todos, teremos que trabalhar para ter um mundo cada vez melhor, em que cada dia seja vivido como se fosse um dia de paz, solidariedade, amor e fraternidade, como um verdadeiro Dia de Natal… Por isso, ao acordar daquele pesadelo nesta manhã de abril, a esperança que senti no dia 25 de Abril de 74 encheu-me, de certa maneira, o coração. Sim, iremos todos juntos conseguir ultrapassar estas dificuldades e cada um tem o seu papel neste grande desafio que são as alterações climáticas e o desenvolvimento socioecónomico equilibrado, pois ambos são a face do desenvolvimento sustentável.

Pseudónimo: Maria da Esperança Autora: Manuela Cruz*

*Maria Manuela dos Santos Figueiredo da Cruz nasceu em Lisboa, mas desde os quatro dias de vida que mora em Almada. Foi professora durante quatorze anos e médica durante mais de quarenta, tendo exercido, quase sempre, em Almada. Recorda a sua primeira manifestação cívica, quando aos quatro anos de idade, assistiu às manifestações de alegria e libertação do final da II guerra.

Amante das letras, sempre recorreu à escrita e à leitura, como meio de evasão, ainda que a vida profissional e familiar exigentes tenham limitado essa expressão. A reforma devolveu lhe tempo para as leituras regulares e para a escrita. As aulas de escrita criativa ajudaram e vai recebendo alguns prémios em concursos Na gaveta “acumulam se” trabalhos aguardando publicação.

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ZÉ GAIVOTA

Estava eu aqui a pensar, enquanto debicava com força num saco. E foi então que me lembrei que, para que me entendam, terei de usar a forma estranha que eles têm para se comunicar. Usam sopros e gargarejos muito embrulhados em entoações imensas a que chamam palavras. Nós e todas as outras espécies viventes, comunicamo nos desde sempre, sem uso da forma esquisita deles. Na minha última tentativa para que me entendam, vou usá-las e a sua semântica. Eu sei que vai ser um esforço vão. Estou cada vez mais convencido que é seu prazer e gosto tropeçar nos próprios passos. Os outros seres e o universo não precisam das minhas explicações e do meu alarme pois sabem que a vida não é uma suposta alteração do que é.

Chamam saco a um estranho invólucro, que tem dentro algo a que dão o nome de lixo. Não sabem que muito do que deitam fora é para mim, e para todos os da minha espécie, um luxo. Foram milhões de anos que amanharam e construíram o que eles lançam fora com leviandade. Vivem em confusão, metem as asas pelas patas (desculpem: os pés pelas mãos). Lixo, para nós, é o que eles fabricam, adulteram e depois, atiram pela janela por ser inútil. Inclusive o saco que eles inventaram. Eu estou a pensar como um ser normal, desses que vivem a vida simplesmente. Eu penso e irradio para o universo onde tudo me entende. Esqueço-me é que, muitas vezes, eles não me compreendem.

Tenho dado umas voltas por aí, deixo me levar pelos ventos que me atiram para mais alto e de lá vejo tudo muito mais claro e amplo. Desço, poiso suave junto de um desses invólucros, sacudo as penas e encolho os ombros (desculpem, as asas) e concluo: são uns idiotas sem cura. Estão sempre, obsessivamente, a descumprir as leis. Sabem que a Natureza não faz trapaça, mas fingem que não sabem. Não sabem ou fingem desconhecer que as regras são antes do seu início e serão depois do seu fim. Violentam nas com inconsciência e arrogância sistemáticas. Atribuem se a maior inteligência universal, mas desprezam o que já sabem: que o planeta onde estão seja a sua única possibilidade de sobrevivência.

Perdoem me não os ter apresentado. Eles são uma variedade de vida que por aqui anda e a quem, há uns milhares de anos, um espécime de entre eles, lhe atribuiu o genérico nome de “homo”. E que, passados uns tempos, acresceu-lhe o espampanante e soberbo “sapiens”. E para não ficarem diminuídos ante meu primo que tem três nomes, pespegou- lhe outro “sapiens”. E ficou assim: “Homo Sapiens Sapiens” (eles escrevem sempre os nomes próprios com maiúsculas).

Perdoem me também não me ter apresentado. Eu sou parente, suponho que primo, dum famoso congénere que nas Américas denominaram Jonathan Livingston Seagull. Pomposo, não é? Bastante, pensam eles, porque é o tipo de atavio que os “sapiens” veneram muito. Neste caso, com um apelido paterno perfeitamente dispensável. No Brasil, e porque tal nome era impronunciável, chamaram lhe, por óbvio reflexo, Femão Capelo Gaivota. Como veem, também ele sofre do trauma atávico. Deve ter sido herdado dos gibões de cetim e dos chapelões emplumados que

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chegaram jesuiticamente balançados pelas caravelas.

A mim chamam me zé. Também sou gaivota. Mas dispenso o nome de família: quem tiver olhos que veja. Não tenho os problemas existenciais do meu primo americano. Chamem-me o que quiserem. Não procuro afinar o meu voo pelos nomes ou sobrenomes que me atribuírem. Pode ser tosco e quebrado: não me importa. Bastam me asas cruas, que o instinto logo me leva a pousar perto de qualquer saco. Eu devia andar empurrado pelas correntes aéreas, mergulhar nos oceanos, lutar pela sobrevivência simples, mas o “homo” desviou me da Natureza. Por causa dele, não me faltam sacos. Imensos, de tamanhos diversos, imundos, de várias cores e alimentos. Entopem com eles todos os recantos que lhes pareçam adequados.

Mas há muito mais a dizer dessa estranha espécie. Ignora e pisoteia de tal modo a ordem natural de tudo, que me leva a pensar que será a única variedade de vida aberrante neste planeta. E não creio que haja alguma outra semelhante em qualquer ponto do Universo. Ela chama inteligência a essa obsessão descontrolada e progressivamente desenfreada que a faz destruir o lugar onde vive e os alimentos que lhe dão vida: a água, o ar e os frutos da terra. Diz que inverte as coisas para garantir alimento a todos os humanos. A acreditar no que diz, não haveria milhões deles a morrer de fome todos os anos... Milhões deles, mal acabados de nascer, secos por inanição, como gravetos.

Deixei de pairar sobre os mares e viajar de uns para outros. Atravancou-o de enormes monstros flutuantes, inchados de inutilidades acumuladas e infectas que, de quando em vez, lançam pela borda. Que tomaram as águas opacas e sólidas. Já não mergulho: a minha visão confunde se no turbilhão de imagens das algas, dos corais, dos peixes, dos anfíbios e dos objetos estranhos que para lá vomitam todos os dias. Já não distingo uma garrafa de plástico ou um saco translúcido duma sardinha. Não tardará que seja mais fácil caminhar sobre as águas do que engolfar me nelas, como sempre fiz. Eu vejo a angústia e o pânico nos olhos dos tubarões, das tartarugas e das baleias: não conseguem competir com a ocupação descabida do espaço que é deles e que lhes está a ser roubado a cada momento. Veem a sua extinção vir a galope ao seu encontro. Os humanos declararam guerra à harmonia e equilíbrio dos oceanos.

Tenho até a minha possibilidade de voar posta em causa. Os céus, que são meus há milhões de anos, estão agora entupidos de mostrengos metálicos, que passeiam as vaidades humanas e outras arrogâncias. Que barram os ventos e os impedem de limpar os ares. E ainda deixam flutuantes rastos venenosos que empeçonham os espaços que são nossos e os pulmões que nos permitem existir. Dizem que, visto de muito acima da minha possibilidade de observar, é azul o manto que protege e dá alma à casa de todos os seres que aqui moram. Mas não tarda que seja vermelho de peçonha irrespirável e mortífera como são os fluidos de outros planetas que há por aí.

O “Homo Sapiens Sapiens” declarou guerra à harmonia e equilíbrio dos ares.

Avança com volúpia e frenesi contra o verde e todas as cores da terra firme. Transforma o seu arco íris na terrífica monotonia do preto e branco. Passa trucidando árvores, esmagando ervas e suprimindo vidas que existem para lá dos tempos e dos mitos. E deixa para trás, por todos os continentes, incontáveis legiões de seres vivos desfolhados, que esticam para os deuses os braços secos, torrados e mortos num pedido imenso de socorro que não é ouvido. Os seus membros retorcidos e impotentes recolhem das nuvens lágrimas ácidas e negras, que escorrem pelos troncos e que se depositam sobre a Terra num imenso véu de dor e luto.

O homem declarou guerra à harmonia e equilíbrio dos campos e das montanhas.

À minha volta polvilhou tudo de casarões onde se escondem imensas caldeiras donde irrompem grossos tubos por onde fumegam venenos líquidos e gasosos. É onde se ocupa a engendrar o suicídio e a extinção do que possa restar. Chama a isso evolução, progresso, civilização. Porque se arroga ser deus e os deuses sabem o que fazem.

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Os homens desenvolveram, entre todos os seres viventes, a capacidade exclusiva de se odiarem. Nada nem nenhum ser se odeia neste planeta, além deles. Escondem se cada vez mais atrás de si próprios. O medo é a sua emoção dominante. E por isso, gestam e parem, continuamente, objetos incontáveis, bizarros e absurdos. Com a loucura que os caracteriza, deram a essas coisas aspetos e tamanhos inumeráveis. Podem caber num bolso ou ter a medida dum quarteirão; percorrer milhares de quilómetros, ocupar campos, florestas e desertos; deslizar céleres nas profundezas dos oceanos e sibilar fulgurantes pelos espaços, invadindo os caminhos das estrelas. De onde estiverem podem pulverizar milhões de humanos e, por reflexo da estupidez, a vida de todas as espécies no meu planeta. Chamam-lhes armas.

Ao longo da sua existência, lá ia a Natureza apontando o dedo à sua insanidade. Raramente lhe prestaram atenção. E agora, mais uma vez, o olhar de aviso acusador pousou sobre eles. Vindo da fronteira do infinitamente pequeno uma partícula invisível aos seus olhos irrompeu por todos os lados. Veio tentar provar lhes que é muito mais poderosa que todas as suas armas e convicções e quebrou lhes os pés de barro! Os enormes monstros flutuantes vaguearam sem norte pelos oceanos: não encostavam aos cais porque ninguém os queria receber; os metálicos mostrengos voadores, que lhes passeavam as futilidades, viram se humilhados e pousados sobre o negro do asfalto dos aeroportos, onde ficaram arrumados, hirtos e inúteis; nuvens de tóxicos automóveis desapareceram em buracos abertos no solo, ou encostados às casas onde os seus donos se esconderam aterrados.

E, de repente, os ares começaram a ficar mais lavados, as terras e as águas com mais cores que as do arcoíris e os outros seres a respirar. A vida do silêncio que é o som da natureza tornou a circular: as cascatas voltaram a falar, as aves a cantar, o sol a dar vida e a lua a dar repouso.

Mas receio que não tenham aprendido nada. Nem com a sua própria história. Receio que a surdez aos gritos à sua volta seja incurável. Que substituam os pés de barro por próteses metálicas. Procuram obcecados calcular a dimensão do Universo e não sabem calcular a sua. Receio muito que nos extingam. Mas vem me à memória o que nos contava a nossa avó Rosa Gaivota. Contava ela, que uma velhinha, que se alimentava e à sua família junto à lota, lhe dizia muitas vezes: “a esperança é a última a morrer, minha Rosinha. Não te canses de dizer aos teus meninos que viver é amar. Foi o Amor que nos trouxe e não nos vai deixar.”

*Orlando Leal, nasceu em Angola a 27 de julho de 1947.

Curso liceal (antigo 7.º ano) no Liceu Almirante Lopes Alves (Lobito) em 1967.

Agrimensor pela Escola de Topografia e Agrimensura dos Serviços Geográficos e Cadastrais de Angola (Luanda) em 1971.

Na sua primeira juventude, obteve menção honrosa em concurso literário promovido pelo jornal "O Lobito" com um estudo etnográfico. Viu publicadas algumas crónicas nesse jornal, no mesmo período de sua vida.

Exerceu a sua atividade profissional, quase toda a vida, em Angola e no Brasil.

Aposentado, reside em Vila Nova de Gaia desde 1991. Frequenta a Academia Sénior desta cidade. Pratica andebol sénior.

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NÚMERO ESPECIAL
Pseudónimo: Cláudio Joaquim Autor: Orlando Leal*

A BONECA

Andava triste por esses dias o senhor Manuel. Antes de entrar no portão clamava sempre pelo da casa e se lhe não respondessem, dava meia volta e ia embora. Era porque não estava ninguém. Mas se ao dar de vaia escutasse, Entre, entre, senhor Manel, na verdade todos lhe chamavam Manel, embora o seu nome fosse Manuel, transpunha o portão devagar, apoiado no seu cajado, dava a salvação aos presentes, quase sempre amigos que se reuniam no alpendre lá de casa e ao convite de Puxe de uma cadeira senhor Manel, lá puxava, mas as mais das vezes sentava se no bordo do poço que, por precaução com as crianças, era tapado e ali ficava com o traseiro meio sentado, meio encostado, uma mão sobre a outra, e ambas sobre o bordo arredondado do cajado, que era assim a posição de descanso dos pastores. Quase sempre encostava também o queixo às mãos, numa posição de repouso para a cabeça. E ali ficava vendo os demais a jogarem às cartas, sendo que muitas vezes, sem sequer abrir a boca, dava meia volta e ia-se embora. Já se vai embora, senhor Manel quase sempre era eu que perguntava, O qu’ é estou práqui fazendo se vossemecês estão jogando à carta?, respondia perguntando e umas vezes ia, outras vezes ficava, à espera que houvesse alguém disponível para uma troca de palavras, quase sempre escassas, que o senhor Manel não era de falar muito, as frases não lhe saiam com fluência, por vezes ficava por meias frases, parando como se o epílogo da sentença fosse obvio. Noutras, aos poucos, lá lhe iam saindo as histórias, quase sempre começadas por Quer ouvir esta senhor Anastácio? Indo depois desfiando, com alguns sorrisos pelo meio, por vezes nostálgicos, outros por graça e até outros de tristeza, porque a tristeza, por vezes também nos traz um sorriso ao rosto e cujo sentimento se não consegue disfarçar.

Naquele dia o senhor Manel estava triste. Vai um copinho senhor Manel? perguntei lhe, como habitualmente fazia. Só se for uma pinguinha poucochinha que ando mal dos diabetes, utilizando os dois diminutivos seguidos para reforçar e lá aceitava um copinho, tanto se lhe dava que fosse tinto ou branco desde que estivesse fresco, pois que os verões são sempre abrasadores na aldeia. E do que vossemecês estiverem bebendo, mas não se incomode senhor Anastácio e lá aceitava o copinho. Do que é que é essa cara senhor Manel? Parece que o meu amigo não está lá muito bem, perguntou lhe o Fragoso, que jogava connosco à sueca, morava no Cabeço e só aparecia quando lhe cheirava a cartas, enquanto baralhava as cartas para nova rodada. Ah, não é nada, é a minha cara... não tenho outra... e rematava Coisas cá minhas, coisas sem importância...parecendo a uns que a frase acabaria assim e a outros que era apenas a sua costumeira pausa no discurso. Naaah!, respondia lhe o Fragoso que meio de costas, meio de viés, também já tinha notado que a cara do senhor Manel naquele dia, era diferente da dos outros dias, se bem que a pele crestada e tisnada pelo Sol, era a de todos os dias e, à medida que estes passavam, na inexorável corrida do tempo se ia notando que os olhos tinham cada vez menos brilho. Ajeitou o boné e disse, como se alguém o estivesse ouvindo, para os que na mesa tinham começado nova partida e se concentravam no trunfo, que era ouros, se a manilha ou o ás já tinham saído e se os dois tentos

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CONTO2.º
PRÉMIO

da dama de paus ainda iriam dar para ganhar o jogo ou não, Assim o Narciso puxasse paus. Não tens um pauzinho para mim, Narciso? perguntava o Fragoso com a dama de paus em riste e já com cinquenta e nove em mãos, se fizesse, faria sessenta e um, era limpinho, mas para azar dos Távora, o Narciso tinha guardado o temo de trunfo para o fim, foi ele quem fez os sessenta e um foi ele também que no meio de uma gargalhada de satisfação deixou o Fragoso a falar sozinho e a dizer repetidamente, Como é que eu me fui esquecer do terno de ouros, como é que me esqueci, esta cabeça, esta cabeça..., já o Monteiro baralhava de novo. O Monteiro fazia par com o Narciso, eu com o Fragoso, estávamos empatados sete a sete, quem ganhasse o próximo vencia a bola, que era assim que chamávamos aos oito riscos, sendo cada risco um jogo. Eu sentenciei que não jogaria mais, para poder dar um bocadinho de atenção ao senhor Manel que de facto, não me parecia estar bem.

Mas diga me cá senhor Manel, que cara é essa homem? O senhor está doente? Não estava doente de facto mas andava doente, que é uma maneira de a gente dizer, porque anda preocupado com uma situação, que não lhe seria nada favorável e que, pelo sim, pelo não, haveria de querer precaver, pois tinha até algumas noites que já só dormia à custa dos comprimidos. Diga me cá amigo Anastácio, vossemecê não tem “ouvisto” as notícias, que era assim que ele falava, cometendo muitos erros de expressão, dada a sua condição de quem nunca foi à escola e outras vezes usando os termos mais comuns lá por aquelas bandas, onde se chama calitro ao eucalipto e se referia o Champalimaud, pelo Champalimão. Eu tenho visto as notícias, sim senhor, senhor Manel, mas o que foi que ouviu que o apoquentou?, perguntei lhe pois não só estava interessado em conversar um bocadinho com o homem, mas também, agora, curioso com aquele estado de espírito, chamemos-lhe assim. Está-se a ver amigo Anastácio que vossemecê não se preocupa com certas coisas. Vivesse o amigo por aqui, em vez de cá praticamente só passar as férias... e interrompeu a sequência para dizer que era um dó de alma ver o Monte assim, quase que já não tinha ninguém, chegava o inverno aquilo parecia um deserto, que só cá vinham no verão, Ao menos valhanos isso, rematava. Mas no relambório ainda constavam os motivos e os destinos das gentes da terra. Uns abalaram para Alemanha, desde que as minas fecharam, têm já para lá filhos e netos, outros para França e para Bélgica, já não querem voltar. E, embora o senhor Manel nem fosse de tanta conversa, referiu o fim das searas, não tendo muito bem dado a entender se era contra ou a favor do Salazar, pois tanto elogiava o pão que a terra dava, que no dizer dele e no jeito de falar da região queria dizer trigo, que tinha sido o Salazar que tinha mandado cultivar, Vossemecê é novo, senhor Anastácio, se calhar não sabe disso, como lhe chamava bandido que em menos de nada tinha cansado as terras. Esse homem era do piorio. Sofreu se muito cá no Alentejo por conta dele, rematava. Depois falava, com alegria, do magote de ceifeiras e de ceifeiros, cavadores e mondadeiras, que invadiam, desde madrugada ao sol pôr, esses campos por aí fora, nas cantigas que os homens cantavam às raparigas e que elas respondiam a preceito, na infusa e no cantil de água fresca, nas sombras dos chaparros onde tinha de descansar nas horas de mais calmaria, sempre com um olho no capataz ou no manajeiro, não fosse algum deles topar e o mais certo era ser despedido, contando não ser raro um ou outro desmaiar com o calor. Pois não está a ver, senhor Anastácio? Quando acabaram as searas e a mais o fecho da mina, abalaram todos desses montes por aí. Foi tudo pró estrangeiro. Ia começar a contar me a história de um tal Joaquim de Brinches, mas ao lembrar-se do que o tinha levado até ali, emudeceu de novo e ficou para ali a cismar. Embora com a referida pouca fluência, já tinha sido ele que me contara a história do curandeiro espanhol e a história de quando foi visitar a sobrinha nos arredores de Lisboa, palmilhando toda a cidade a pé, com uma posta de bacalhau embrulhada num jornal, numa trouxa improvisada com um trapo de cozinha, posta de bacalhau essa, que seria para o seu almoço já que ele não queria ser estorvo para a moça. Mais tarde contarei também estas histórias. Mas então senhor Manel que raio de notícia é essa que o traz tão apoquentado, homem? Ao que ripostou, Que raio de notícia, que raio de notícia, estou mas é vendo que o senhor Anastácio não sabe de nada, não ouviu nada, ou então não quis saber, é o mais certo, já que vossemecê não é burro nenhum, tem os seus estudos, eu é que sou um analfabeto que por aqui anda, até que Deus queira. Ao amigo estas coisas não afetam, quer dizer, é bom de ver que afetam a todos, se é como eles para aí dizem. E novo silêncio, as mãos ainda sobre o queijado, o queixo encostado às costas da mão que ficava por cima, os olhos postos no chão, como que pensado as palavras que haveria de dizer a seguir ou então definitivamente calado, daria a salvação e abalaria sem mais água vai, nem água vem.

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Mas não desta vez não, o senhor Manel levantou a cabeça e sentenciou. Vou vender a Boneca! Primeiro pareceu me não ter entendido. Aliás, não era raro eu não entender as frases do senhor Manel, mas neste caso nada tinha a ver com dicção, sotaque, plebeísmo ou expressão idiomática. Não, nada disso. O que não entendi foi o que é que o senhor Manel quis dizer com “Vou vender a Boneca”. Mas qual boneca, senhor Manel. Algum brinquedo que a sua neta deixou por aí? E ele, quase me fulminando com o olhar, ainda que de baixo para cima pois continuava recostado no queijado, provavelmente pensando que eu estaria a mofar dele, providencialmente interrompidos por Vai uma mini?, na voz do Monteiro, que tinha ido lá dentro buscar ao frigorifico umas fresquinhas, Não, agora não vai nada que ainda estou na digestão, respondi e depois, virando me de novo para o senhor Manel, Então, homem, não se quer explicar? E ele, explicou. A Boneca, senhor Anastácio, a minha bezerra e disse a última palavra já com a voz embargada que parecia até que o homem queria chorar. Primeiro, tive a sensação de que eu iria soltar uma gargalhada quando ele especificou que a Boneca era a bezerra, mas ao vê lo tão triste, tão desolado e comovido, consegui suster a vontade de rir e assim com um sorriso velado, meio de quem estava também nervoso por não estar a perceber, Mas vai vender a Boneca, porquê senhor Manel. Não é aquela bezerrita que comprou para a sua neta? Que sim, que era essa mesma, mas as notícias não eram animadoras. Então não ouviu dizer, no noticiário, que há aí partidos políticos que pedem o fim das vacas por causa dos puns que elas dão? Dizem que é o pior que há para o Universo e que por causa das vacas é que há o buraco do outono... interrompi, Do ozono, corrigi, mas sem qualquer esperança de que ele também emendasse, só me respondeu, Ou isso... E depois falam nas estufas que eu não faço a mínima ideia de quais estufas é que estão falando e dizem que é por causa das vacas que temos estes verões escaldantes e que o gelo está a derreter lá para o polo norte, que até os pinguins já não têm onde morar.

Nesta altura não pude evitar de rir e disse para o senhor Manel ficar descansado que não precisaria de vender a Boneca, coisa nenhuma. Estive a explicar lhe tim tim por tim tim o que era o efeito de estufa, as tais estufas de que ele falava, que os gases emitidos, pelas manadas eram efetivamente problemáticos para o ambiente, mas o pior ainda era a grande desmatação que se fazia nas grandes florestas tropicais, principalmente na Amazónia, onde se arrasava a floresta para dar origem a grandes plantações de soja, cujo objetivo principal é o da fabricação de rações para animais e, depois de o sossegar e de lhe garantir que ele não teria que vender a bezerra e que a redução da pecuária seria uma coisa de longo prazo, ainda lhe expliquei que no polo norte não há pinguins. Parecendo ter ficado mais aliviado, embora não totalmente convencido, esticou o braço com o copo na mão e Vá lá mais uma pinguinha pró caminho. Poucachinho, ouviu, amigo Anastácio? Desencostou-se do poço, virou o meio copo de branco, que lhe servi, deve ter dito qualquer coisa sobre a diabetes que, mais uma vez, não percebi muito bem e abalou.

*Vítor

(Lisboa, 1955) licenciou se em Engenharia Eletrotécnica no IST, Lisboa e a sua atividade profissional andou à volta dos computadores. Em 2003 cria o seu primeiro blog e (re)toma o gosto pela escrita. Publicou os romances Sete facadas e carapaus de escabeche e Há fogo na doca e o livro de contos “Pero que los hay, los hay” e outros sabores. Em coautoria publicou também o romance “O diabo dos políticos” e participou em várias coletâneas e antologias de poesia e de conto. Tem sido premiado em vários Jogos Florais no País, nas modalidades de poesia, conto e textos para teatro. Dedica se à fotografia como hobby, dá aulas desta disciplina na USALMA, na Unisseixal e no Centro Social Paroquial Padre Ricardo Gameiro em regime de voluntariado cultural e toca cavaquinho na Tuna do CSPPRG

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Pseudónimo: Anastácio do Rosário Autor: Vítor Fernandes* Manuel Alves Fernandes

AS PALAVRAS QUEBRARAM-SE

Todas as semanas dava a mesma volta como se fosse uma via sacra, recolhia o saco de trigo ou de centeio, para na semana seguinte trazer de volta a farinha e repetia há anos esse fadário pelas aldeias mais próximas. Era garantido que a farinha era mesmo a do cereal que levara na semana anterior, compromisso que ele não quebrava e era escrupulosamente respeitado.

Gabriel era um homem baixo, cabelo a rarear, de pernas arqueadas, provavelmente por ter carregado ao ombro desde muito novo, sacos de cereal demasiado pesados para a sua idade. Enquanto carregava a carroça puxada por duas mulas, cantarolava ou assobiava modas populares que vinham de tempos antigos. Parecia nada faltar aquele homem para ser feliz, sempre com um sorriso que lhe suavizava a dureza do trabalho, estabelecendo com as suas clientes todas as conversas sem nunca se recusar a nenhuma, mesmo quando as horas de regresso já iam adiantadas. Conhecia lhes os nomes e até muitos dos seus gostos. Meio enfarinhado, com a face da alvura da farinha, tinha sempre disposição para ouvir os queixumes de todos e deixava com um sorriso uma palavra de ânimo até ao ritual da semana seguinte.

Completada a volta, com a carroça carregada, já a manhã ia alta, pegava numa pequena chibata e batendo com ela nas rodas, as duas mulas determinadas arrancavam para a viagem de regresso que os levava ao moinho. Subiam com dificuldade e esforço dos animais o outeiro que antecedia a descida para a ribeira, onde se situava o moinho. Estava um dia triste de um céu desbotado da cor das estátuas da antiguidade, e ao som das rodas que esmagavam o xisto do caminho de pedras, ele enquanto caminhava ao lado, entrava lhe um silêncio de desânimo e melancolia, deixava o pensamento arrastar se para o passado, recreando uma juventude que não vivera.

Todos os dias, ainda as estrelas tremelicavam lá no alto, e já ele rasgava o manto da aurora que cobria o caminho em direção às várias aldeias que esperavam logo pela manhã a farinha, com o forno já aceso para a fornada do mês. Trabalhava o dia inteiro numa resignação de condenado, percorrendo léguas de solidão sem uma marca de carícia, apenas tendo presentes as rugas da fadiga à volta dos olhos.

Nos últimos tempos falava menos com as clientes e mais para ele próprio, tinha perdido uma boa parte da disposição de outrora. O negócio que herdara do pai estava ameaçado. Tinham inventado uma máquina ruidosa, que vomitava por um tubo mau cheiro misturado com fumo, criando uma nuvem escura e espessa que teimava em se dissipar. Não precisava de nenhuma ribeira, nem de vento, mas apenas de gasóleo para moer o trigo, e numa pressa. No mesmo dia, com uma pequena furgoneta, levavam o trigo, e à noite, ou no dia seguinte pela manhã ali estava a farinha. Claro que se mantinham algumas clientes fiéis, mas com o passar do tempo, como iria ele resistir aquela máquina? Esforçava se por demonstrar que o pão perdia qualidade, porque a farinha aquecia muito naquela máquina nova, que trocavam as farinhas, que a rapidez não era tudo. Mas Gabriel sentia que todas as semanas perdia clientela. Com três filhos para criar, dois rapazes

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CONTO –MENÇÃO HONROSA

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e uma rapariga entregues à mulher Lúcia, que na sua ausência tomava conta das tarefas do moinho, Gabriel sentia-se afundar num problema para o qual não sabia a resposta. O negócio perdia velhos clientes e não angariava novos, uma semana à espera da farinha era muito tempo, já se iam habituando à rapidez de um dia. Como competir com aquela máquina? Não encontrava respostas.

Na semana seguinte perguntou à Dna. Gracinda, sua velha cliente, se não tinha trigo para moer.

Olhe Sr. Gabriel entreguei-o a essa gente nova. Trazem-me a farinha no mesmo dia, sabe que estar uma semana à espera é coisa diferente.

Gabriel preparou nova pergunta que pudesse recuperar aquela cliente.

E o pão dessa farinha tem a mesma qualidade Dna. Gracinda?

Não lhe encontro grande diferença, talvez fique mais duro em menos tempo, mas compensa a rapidez com que trazem a farinha.

Era um desânimo que pairava no ar e a resposta da Dna. Gracinda caíra lhe como um chicote que lhe retirava os sentidos, era como se fosse um gelo a cobrir lhe o coração desiludido. Sentia se agora como um figurante honrado, modelado pelos baldões da vida que o atiravam contra o abismo. As palavras daquela cliente feriram lhe os ouvidos que pareciam terem sido assaltados por zumbidos. À noite encolhendo os ombros perguntou à mulher num total abandono da alma, como iria ser a vida deles dali para a frente. As palavras inseguras deslizaram no silêncio que os envolvia e foram quebrar se, qual cristal no chão de laje. Foi a mulher que pôs fim aquela meditação dizendo:

Havemos de sobreviver, havemos de sobreviver Respondeu ela a acompanhar o lastro de angústias do marido.

Enquanto a mó girava naquele ritmo arrastado e sonolento que era o adequado para uma boa farinha, ele olhava para aquele canal de agua cristalina que fazia girar a mó, pensava nos ensinamentos herdados do pai, do brilho nos olhos com que lhe transmitira todos os segredos, e emocionava se ao sentir que agora tudo aquilo caminhava para o fim. Pegava numa mão cheia de água e espalhava-a pela face para disfarçar os olhos lamurientos.

Passaram alguns anos, o moinho continua no mesmo local, mas o cereal é moído numa moagem elétrica nova, autossuficiente, alimentada com energia eólica e solar que os filhos mandaram instalar nos terrenos ali perto.

A velha mó continua a rodar, mas agora para mostrar aos turistas como se fazia antigamente a farinha. Gabriel, o velho moleiro, recebe com entusiasmo os muitos turistas que admiram como foi possível um desenvolvimento sustentado que preserva a história, a cultura e salvaguarda o futuro.

O canal de água límpida lá continua, para quando Gabriel falar dele os olhos voltarem a brilhar.

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Pseudónimo: Alcides Torres Autor: Válter Deusdado*
*Biografia na página 10.
Página 23 NÚMERO ESPECIAL FOTOGRAFIA: 1.º PRÉMIO ( À ESQUERDA )MENÇÃO HONROSA ( À DIREITA ) ÁGUA-ELEMENTO FUNDAMENTAL PARA O DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE SUSTENTABILIDADE E GLOBALIZAÇÃO Pseudónimo: JL74 Autor: Joaquim Louro* Pseudónimo: Maximiniano Pereira Autor: Eugénio Marques* *Biografia na contra capa.

NOTAS BIOGRÁFICAS

Edite Prada nasceu em Izeda, concelho de Bragança, em 1954. Entre 1970 e 1972 frequentou a Telescola. Sempre como trabalhadora estudante, foi completando o seu percurso académico que terminou com o Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses. Trabalhou como administrativa durante onze anos, tendo de seguida iniciado a carreira letiva. Lecionou Português, Francês, Iniciação ao Jornalismo, Técnicas de Tradução (na escola e na Aliance Française) e Latim. Esteve requisitada na Inspeção Geral da Educação entre 2002 e 2007. Trabalhou no Centro de Novas Oportunidades da Escola Secundária do Monte de Caparica. Foi formadora em várias instituições, com destaque para o centro de formação Proformar, a Lusa, a RDP e a RTP. É consultora do Ciberdúvidas. É professora de Língua e Literatura na USALMA e voluntária na Biblioteca e no Grupo Editorial da Apcalmada USALMA.

Joaquim Maria Louro Alves, nascido m 1956, na cidade de Évora. Lá frequentou o ensino primário e secundário, em 1975 ingressou na Escola Naval, tendo se licenciado em Ciências Socio Militares. Em 1981 iniciou a carreira de Oficial de Marinha, tendo desempenhado vários e diversificados cargos, passando à situação de reserva na efetividade de serviço em 2007. Nesta situação desempenhou funções na Direção Geral da Autoridade Marítima, até 2012. Após cinco anos na reserva passou à situação de reformado.

Eugénio José Vieira Marques. Natural da Freguesia das Lajes, Ilha Terceira, Açores. Nascido a 18 de agosto de 1952 Filho de pai natural do continente e de mãe açoriana. Veio para Portugal continental, para a Cova da Piedade, com cerca de dois anos de idade Foi no Concelho de Almada que estudou e fez a maior parte do seu percurso profissional até 2009, aposentando se em fevereiro de 2010.

O segundo ano do ensino preparatório frequentou na Escola Comercial e Industrial Emídio Navarro, igualmente numa extensão da escola D. António da Costa. Iniciou o curso de Formação de Serralheiros, na Escola Comercial e Industrial Emídio Navarro no ensino diurno e concluiu a formação no ensino noturno. Profissionalmente passou pelos extintos estaleiros navais: H. Parry & Son, Lisnave. Arsenal do Alfeite, Rocha do Conde de Óbidos e Lisnave, em Mitrena, Setúbal. Realizou alguns trabalhos na área da formação profissional, na proximidade do final da carreira profissional que durou mais de quarenta e três anos. Aposentado desde o ano de 2009.

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