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Rasgar a Espessura do Silêncio - Válter Deusdado (2.º Prémio

N Ú M E R O E S P E C I A L

R A S G A R A E S P E S S U R A D O S I L Ê N C I O

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Estava na mesma posição havia muito tempo. Doíam-lhe os ossos, tinha que mudar de sitio era urgente porque não aguentava mais o ar poeirento que ali se respirava. O cheiro a bafio do pouco arejamento e a luz escassa temperada pelas cortinas semifechadas das janelas, tornava aquele espaço um pouco sombrio. Quando a trouxeram para ali era muito admirada, todos se juntavam à sua volta e faziam os mais elogiosos e rasgados comentários, que incluíam sorrisos e gargalhadas. Ela reunia três gerações de rostos felizes. Agora, de coração vazio de afetos restavalhe permanecer ali esquecida, ou teria sido mesmo desprezada.

Por baixo dela estava uma estante grande com muitas prateleiras cheias de livros, todos alinhados por tamanhos que mãos cuidadosas ali colocara. De vez em quando, alguém se aproximava tirava um e punha outro no espaço deixado vazio. Se ao menos olhassem para ela não se sentiria tão abandonada à erosão do esquecimento, mas não, até parecia que a ignoravam e esse desdém doía-lhe como se fosse um insulto. Nem sequer lhe dirigiam um sorriso por pequeno que fosse, nem um aceno, e assim, a sua revolta crescia todos os dias. Ali recolhida e muda pensou na maneira como poderia alterar aquela situação e disse para com ela: - Se não podes parar o vento com as mãos nem mudar as estrelas de lugar, tens de fazer alguma coisa. Ah!... Se eu fosse um livro. - Comentou ela baixinho como uma divagação. - Tudo mudaria, escolheria uma capa com muitas cores e um titulo bonito, andaria de mão em mão porque gosto de unir as pessoas na magia da leitura. Levaria os leitores numa viagem sem saírem do lugar a sítios desconhecidos mostrando-lhe diversas culturas, os detalhes, os cheiros, as cores, os sentimentos principalmente quando os afetos de longínquas lembranças se condensam em lágrimas quentes. Gostaria também de entreter os mais novos, soltar-lhes o sorriso embalando-os umas vezes no sonho, outras, despertando-lhes a curiosidade do saber. Quando me dirigisse aos mais velhos gostaria de mostrar-lhes a minha realidade, narrando histórias umas vezes com final feliz, outras nem tanto. Se eu fosse um livro, também teria alma e poesia dentro de mim que arrumaria em contos, quadras, sonetos e outras vezes em versos livres, sempre carregados de sentimento e liberdade, procurando dessa forma fascinar os leitores pelo fulgor de lisonjeiras ilusões. Gostaria de todas as cores, menos a do lápis azul dos anos sessenta do século XX, preferia o arco íris com toda a exuberância de cor e luz que não tocamos, mas sentimos a magia quando a leitura nos faz sonhar.

Um dos livros que tinha estado muito atento à divagação da moldura, não se conteve e disfarçando a impaciência deu um passinho à frente, encarou a moldura com um olhar oblíquo e retorquiu:

Mas tu também tens bonitas histórias, reúnes toda a família, guardas com certeza muitos se2 . º P R É M I O

–H I S T Ó R I A D E V I D A

I n F o r m a r

gredos. Quando olho para ti e vejo a árvore da família rebentam-me irreprimíveis lágrimas, tremem-me os lábios e sinto um aperto no coração porque, uma boa parte das pessoas que retratas deixaram de me procurar.

- Sim!... Tenho muitas histórias. - Respondeu a moldura. - Vêm-me à lembrança todos aqueles nomes envoltos nas memórias, alguns estão mortos, silenciosos, mas sinto-os viver ainda aqui dentro.

Tens razão. - Prosseguiu o livro deixando desvanecer os vestígios da sua perturbação. - Muitos dos que aí mostras andaram comigo ao colo, claro que também outros houve que me abandonaram numa censura pungente, de uma leitura despida de razão só porque deitei cá para fora, tudo o que tinha dentro de mim ensinando-os como se deve viver e como se pode morrer. Desde que me conheço, há seis mil anos, e nesta forma como hoje me vês, já passaram mais de dois mil anos, muita coisa me aconteceu.

A moldura estava simultaneamente contente e triste, porque até ali, antes de ouvir o livro, pensava que ele tinha tido uma vida de facilidades, percebia agora que também já fora maltratado, esquecido, censurado e até imagine-se, queimado.

Não sabia que tinhas essa idade nem dos maus tratos de que foste vítima. - Apressou-se a moldura a lamentar.

Mas o pior é o que me está a acontecer agora. Estão a substituir-me por uma coisa moderna a que chamam livro digital, “e-books”. Eu disso nada entendo, mas o que sinto é cada vez maior abandono. Até há quem me acuse que sou contra o desenvolvimento sustentável, por destruir as árvores, eu!..., que sempre me esforcei em dar o meu contributo para o desenvolvimento da humanidade preservando o conhecimento para as gerações seguintes.

A moldura queria continuar aquele diálogo, mas verificou que o livro já se tinha recolhido.

Ah!... Se eu fosse um livro. - Prosseguiu a moldura erguendo a cabeça que a tristeza lhe curvara. - Havia de aprender várias línguas e dar a volta ao Mundo, resistir ao esquecimento que arquiva a desgraça e rasgar a espessura do silêncio, essa seria a minha história de vida.

Pseudónimo: Maurício Giestas Autor: Válter Deusdado*

*Valter Deusdado nasceu em 1952 no Concelho de Miranda do Douro, no Nordeste Transmontano. Aos dezassete anos alistou-se na Marinha de Guerra Portuguesa, onde faz a sua formação e carreira servindo o país durante mais de quarenta anos. Desde muito novo ganhou o gosto pela leitura e pela escrita. Começou cedo a escrever como sendo uma terapia do trabalho e nunca mais parou. Gosta de compor as palavras e daí criar contos, histórias, friccionando o presente e caricaturando de uma forma metafórica tudo o que o rodeia. Sempre atento às pessoas e ao seu comportamento, cria a atmosfera que vai servir de inspiração à sua escrita. É uma escrita de poucas palavras que é necessário mastigar para as sentir. Participou no jornal Nordeste publicando contos durante mais de cinco anos. Em 2011 publicou o seu primeiro livro “L Ancuontro” em língua mirandesa. Em 2016 publicou o 2.º livro “Noites Escuras” em duas línguas; português e mirandés. Em 2018 publicou o 3.º livro “ A Escolha” em duas línguas; português e mirandés. Em 2019 publicou o 4.º livro “O Regresso” em duas línguas; português e mirandés.

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