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As palavras quebraram-se - Válter Deusdado (Menção honrosa

N Ú M E R O E S P E C I A L

A S PA L A V R A S Q U E B R A R A M -S E

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Todas as semanas dava a mesma volta como se fosse uma via sacra, recolhia o saco de trigo ou de centeio, para na semana seguinte trazer de volta a farinha e repetia há anos esse fadário pelas aldeias mais próximas. Era garantido que a farinha era mesmo a do cereal que levara na semana anterior, compromisso que ele não quebrava e era escrupulosamente respeitado.

Gabriel era um homem baixo, cabelo a rarear, de pernas arqueadas, provavelmente por ter carregado ao ombro desde muito novo, sacos de cereal demasiado pesados para a sua idade. Enquanto carregava a carroça puxada por duas mulas, cantarolava ou assobiava modas populares que vinham de tempos antigos. Parecia nada faltar aquele homem para ser feliz, sempre com um sorriso que lhe suavizava a dureza do trabalho, estabelecendo com as suas clientes todas as conversas sem nunca se recusar a nenhuma, mesmo quando as horas de regresso já iam adiantadas. Conhecia-lhes os nomes e até muitos dos seus gostos. Meio enfarinhado, com a face da alvura da farinha, tinha sempre disposição para ouvir os queixumes de todos e deixava com um sorriso uma palavra de ânimo até ao ritual da semana seguinte.

Completada a volta, com a carroça carregada, já a manhã ia alta, pegava numa pequena chibata e batendo com ela nas rodas, as duas mulas determinadas arrancavam para a viagem de regresso que os levava ao moinho. Subiam com dificuldade e esforço dos animais o outeiro que antecedia a descida para a ribeira, onde se situava o moinho. Estava um dia triste de um céu desbotado da cor das estátuas da antiguidade, e ao som das rodas que esmagavam o xisto do caminho de pedras, ele enquanto caminhava ao lado, entrava- lhe um silêncio de desânimo e melancolia, deixava o pensamento arrastar-se para o passado, recreando uma juventude que não vivera.

Todos os dias, ainda as estrelas tremelicavam lá no alto, e já ele rasgava o manto da aurora que cobria o caminho em direção às várias aldeias que esperavam logo pela manhã a farinha, com o forno já aceso para a fornada do mês. Trabalhava o dia inteiro numa resignação de condenado, percorrendo léguas de solidão sem uma marca de carícia, apenas tendo presentes as rugas da fadiga à volta dos olhos.

Nos últimos tempos falava menos com as clientes e mais para ele próprio, tinha perdido uma boa parte da disposição de outrora. O negócio que herdara do pai estava ameaçado. Tinham inventado uma máquina ruidosa, que vomitava por um tubo mau cheiro misturado com fumo, criando uma nuvem escura e espessa que teimava em se dissipar. Não precisava de nenhuma ribeira, nem de vento, mas apenas de gasóleo para moer o trigo, e numa pressa. No mesmo dia, com uma pequena furgoneta, levavam o trigo, e à noite, ou no dia seguinte pela manhã ali estava a farinha. Claro que se mantinham algumas clientes fiéis, mas com o passar do tempo, como iria ele resistir aquela máquina? Esforçava-se por demonstrar que o pão perdia qualidade, porque a farinha aquecia muito naquela máquina nova, que trocavam as farinhas, que a rapidez não era tudo. Mas Gabriel sentia que todas as semanas perdia clientela. Com três filhos para criar, dois rapazes M E N Ç Ã O H O N RO S A

–C O N T O

I n F o r m a r

e uma rapariga entregues à mulher Lúcia, que na sua ausência tomava conta das tarefas do moinho, Gabriel sentia-se afundar num problema para o qual não sabia a resposta. O negócio perdia velhos clientes e não angariava novos, uma semana à espera da farinha era muito tempo, já se iam habituando à rapidez de um dia. Como competir com aquela máquina? Não encontrava respostas.

Na semana seguinte perguntou à Dna. Gracinda, sua velha cliente, se não tinha trigo para moer.

Olhe Sr. Gabriel entreguei-o a essa gente nova. Trazem-me a farinha no mesmo dia, sabe que estar uma semana à espera é coisa diferente.

Gabriel preparou nova pergunta que pudesse recuperar aquela cliente.

E o pão dessa farinha tem a mesma qualidade Dna. Gracinda?

Não lhe encontro grande diferença, talvez fique mais duro em menos tempo, mas compensa a rapidez com que trazem a farinha.

Era um desânimo que pairava no ar e a resposta da Dna. Gracinda caíra-lhe como um chicote que lhe retirava os sentidos, era como se fosse um gelo a cobrir-lhe o coração desiludido. Sentia-se agora como um figurante honrado, modelado pelos baldões da vida que o atiravam contra o abismo. As palavras daquela cliente feriram-lhe os ouvidos que pareciam terem sido assaltados por zumbidos. À noite encolhendo os ombros perguntou à mulher num total abandono da alma, como iria ser a vida deles dali para a frente. As palavras inseguras deslizaram no silêncio que os envolvia e foram quebrar-se, qual cristal no chão de laje. Foi a mulher que pôs fim aquela meditação dizendo:

Havemos de sobreviver, havemos de sobreviver - Respondeu ela a acompanhar o lastro de angústias do marido.

Enquanto a mó girava naquele ritmo arrastado e sonolento que era o adequado para uma boa farinha, ele olhava para aquele canal de agua cristalina que fazia girar a mó, pensava nos ensinamentos herdados do pai, do brilho nos olhos com que lhe transmitira todos os segredos, e emocionava-se ao sentir que agora tudo aquilo caminhava para o fim. Pegava numa mão cheia de água e espalhava-a pela face para disfarçar os olhos lamurientos.

Passaram alguns anos, o moinho continua no mesmo local, mas o cereal é moído numa moagem elétrica nova, autossuficiente, alimentada com energia eólica e solar que os filhos mandaram instalar nos terrenos ali perto.

A velha mó continua a rodar, mas agora para mostrar aos turistas como se fazia antigamente a farinha. Gabriel, o velho moleiro, recebe com entusiasmo os muitos turistas que admiram como foi possível um desenvolvimento sustentado que preserva a história, a cultura e salvaguarda o futuro.

O canal de água límpida lá continua, para quando Gabriel falar dele os olhos voltarem a brilhar.

Pseudónimo: Alcides Torres Autor: Válter Deusdado*

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