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Ano 2050 - Noite de Natal - Manuela Cruz (Menção honrosa
N Ú M E R O E S P E C I A L
A N O 2 0 5 0 - N O I T E D E N ATA L
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Olhei à minha volta e não sabia como ali tinha chegado! Tudo me parecia estranho e deslocado, mas apesar disso, o lugar onde estava lembrava-me uma praça da minha cidade; mas por outro lado, quase tudo era diferente daquilo que eu conhecia...
Se bem me lembro, naquela praça havia ao centro uma estátua com um significado especial, mas agora era um largo todo ladrilhado... lembro-me de à volta haver várias lojas e esplanadas com gente disfrutando na primavera e no verão, a amenidade do nosso clima. Agora, apenas umas arcadas escuras com pouca iluminação e portas largas e fechadas, uma ou outra montra, mais parecendo uma janela do que as montras largas e iluminadas que eu conhecia... No meio da praça, uns carris fora de uso recordaram-me o metro que por aí tinha passado; vários jovens todos vestidos de negro dançavam e berravam algo incompreensível, quase todos tinham na mão uma lata de bebida, que depois verifiquei tratar-se de uma bebida energética... dois ou três tinham na cabeça uns barretes vermelhos que me eram familiares, apesar de velhos e desbotados... de repente fez-se luz e percebi o que gritavam: - Não me faças mal porque é Natal... - e completavam a gritaria com uns movimentos descoordenados e sem qualquer estilo.
Nesse momento, para me desviar, recuei para as arcadas escuras e numa “montra janela” vi um cartaz, sem graça, que dizia Natal de 2050, enquanto um relógio marcava a hora e a data - 20 horas, 24 de dezembro.
Interroguei-me: porque estaria eu ali, que salto no tempo teria acontecido para terem passado quase 30 anos sem dar por isso!!? não encontrei qualquer explicação; o ar estava momo e havia ainda alguma claridade... mas se era Natal como explicar a temperatura àquela hora... não tinha já dúvidas que estava numa praça da minha terra e que era noite de Natal!...mas que alterações climáticas teriam acontecido para as coisas mudarem desta maneira em tão pouco tempo?!... repeti para mim intrigadíssima, 2050???...
Como estaria ali, já que ainda há poucos dias tinha usufruído de um passeio, tantas vezes repetido ao Parque da Paz, que eu vira “nascer e crescer” e que não me cansava de admirar - caminhos agradáveis no meio de árvores frondosas e plantas variadas, aves canoras esvoaçando livremente e alegrando o ar com o seu livre chilrear, patos grasnando no enorme lago, crianças correndo e brincando na relva; homens e mulheres, correndo em grupo ou isolados pelos caminhos e ultrapassando os mais velhos, que faziam caminhadas a um ritmo mais lento, como era o meu caso: era este o maravilhoso cenário do pulmão da nossa cidade. Como era possível aquele cenário conviver com este que eu tinha agora à minha frente?!... Como explicar isto ?!!...
Lembrava-me que desde finais do século XX tinha havido várias cimeiras do clima em que se alertava para as grandes alterações ambientais e climáticas que se dariam a médio e longo prazo caso não se seguissem determinados procedimentos. Alguns países pouco ou nada faziam, escoM E N Ç Ã O H O N RO S A
–H I S T Ó R I A D E V I D A
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lhendo ignorar esses alertas, mas com o virar do século e as primeiras duas décadas, cada vez mais estados estabeleciam metas e aprovavam leis, com o fim de atingir os objetivos traçados... palavras como alterações climáticas, desenvolvimento sustentável, energias renováveis e descarbonização passaram a fazer parte do nosso dia a dia... havia cada vez mais carros elétricos, painéis solares e moinhos eólicos e sobretudo maior consciência ambiental, principalmente nos mais jovens, que, inclusivamente lançaram movimentos ambientais, mas estando todos muito mais despertos para o problema.
É certo que as ondas de calor levavam a fortes incêndios afetando grandes áreas de floresta; também havia cada vez mais tempestades com chuvas intensas e inundações, destruindo tudo à sua passagem; tudo isso deixava-nos por vezes muito preocupados, mas eram também sinais de alerta que faziam despertar mais para o problema... quis acreditar que cientistas e população em geral iriam conseguir cumprir as metas tão discutidas e necessárias à sobrevivência das futuras gerações…
Mas como é que tudo isto poderia estar a acontecer já em 2050... E eu a presenciar... era difícil de acreditar; algo não batia certo… Quem era aquela gente que festejava assim o Natal?... Fiquei curiosa ... queria saber mais. Passava nas arcadas um casal na casa dos vinte, quase trinta anos, de roupas desleixadas, rosto indiferente, com uma criança dos seus quatro anos pela mão. Meti-me com a criança, que me sorriu e comecei a entabular uma conversa. Apesar do aspeto indiferente foram simpáticos. Comecei por falar do Natal. Ambos ficaram admirados por eu fazer referência a essa data e responderam-me: - Agora ninguém liga ao Natal, lembro-me de quando era pequena, nos anos 20, ainda festejar o Natal, ainda tenho uma vaga recordação de uma árvore de Natal na minha meninice, mas tudo isso se foi perdendo ao longo dos anos. Agora é uma data que não se comemora.
Algumas lojas ainda tentam pôr cartazes e vender algumas bugigangas referentes à época, mas quase ninguém liga; já nem é feriado nesse dia… - E não há comidas especiais nessa data? Perguntei admirada… - Não, não... A nossa comida é sempre o mais rápido e fácil possível... há muitas famílias que em muitas refeições só tomam pílulas com os nutrientes necessários. Quase ninguém cozinha, mas por outro lado há os que só comem hambúrgueres e pisas, por isso há muitos obesos... quase ninguém se preocupa a fazer refeições: ou pílulas ou “fast food” é a nossa alimentação... O clima também não permite ter alimentos frescos.. .há grandes vagas de calor, os fogos dizimaram as florestas, há cheias e temporais tão intensos que tudo destroem e ao mesmo tempo longos períodos de seca... eu com trinta anos ainda me lembro vagamente de haver diferentes estações no ano. Agora não, tão depressa pode parecer verão em dezembro, como haver grandes tempestades com cheias e ventos que tudo destroem, em agosto…
Estava perplexa com esta conversa, mas ao mesmo tempo, uma ambivalência, uma mistura de medo e curiosidade sobre o que pudesse ter acontecido, fazia-me continuar a conversa: - Então e os jardins da nossa cidade? - Já não há jardins ... a água é um bem tão escasso que não dá para os regar e com estes picos de grande calor também não há nada que se salve... ainda me lembro de ir brincar para o parque infantil que havia num jardim no centro da cidade, o parque ainda lá está mas o jardim já não existe... assim como outros que desapareceram mais tarde, como o Jardim do Castelo; o castelo ainda existe com as sua muralhas altaneiras, mas o espaço onde era o jardim está empedrado como aconteceu a todos os jardins da cidade - o parque Urbano e todos os pequenos ajardinamentos foram desaparecendo. O último foi o da Casa da Cerca, esse pólo cultural que ainda se mantém, mas o seu Jardim Botânico, O Chão das Artes, está a desaparecer com as mais recentes e duras restrições em relação ao uso da água. É mais uma morte anunciada, a perda deste belo jardim... Eu estava estupefacta com o que ouvia, mas apesar de tudo, eu precisava saber mais e mais e o casal, ora ele, ora ela, iam satisfazendo a minha curiosidade enquanto uma grande tristeza me ia invadindo; soube que muitas das nossas maravilhosas praias, desde a Caparica à Fonte da Telha já não existiam, pois o mar, em invernos sucessivos tinha destruído paredões, galgado dunas e invadido casas próximas... Só poucas praias tinham escapado…
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Aí, com as lágrimas nos olhos recordei os bons banhos que desde a infância aí tomara e onde em dias de mar mais calmo aprendera a nadar... Será que já não mais, em finais de setembro, iria poder assistir ao chegar das redes, na Fonte da Telha? Espetáculo tantas vezes repetido, mas sempre por mim admirado, acompanhado as mais das vezes, por um pôr do sol magnífico… Até a Arriba Fóssil, essa joia do concelho, em certos lugares não resistiu à força dos ventos e das chuvas e encontra-se em grande parte derrubada… E agora eram eles que não paravam de falar e num desabafo de situações recalcadas continuavam: - Vive-se mal, quase não há empregos trabalha-se no máximo 10 horas por semana pois tudo está mecanizado, informatizado e robotizado. O trabalho que resta para os humanos é escasso. As grandes empresas têm lucros fabulosos, mas a maior parte das pessoas continua a viver mal. Há um ordenado fixo, quer se trabalhe ou não, que dá para viver sem luxos. O estado, com os impostos das grandes empresas, paga tudo - educação, saúde, habitação - mas as pessoas não têm motivação nem estímulos e sentem-se desanimadas. Os jovens, também não fazem pela vida porque, quer estudem, quer não, o futuro é o mesmo… Por exemplo, quando estamos doentes, vamos a um serviço de saúde, falo das minhas queixas e desabafo os meus queixumes para um computador com inteligência artificial, que elabora a informação e em seguida debita, se for o caso disso, uma série de exames fornecendo-me o resultado automaticamente e depois fornece a medicação e as instruções para os tomar. Isto acontece também com as cirurgias que são programadas, automatizadas e feitas sem a mão humana. Não há empatia, não há calor humano, não há qualquer emoção. Foi assim que resolveram a falta de capacidade de atendimento a que os serviços de saúde chegaram. A esperança de vida continua a aumentar, apesar de muitas epidemias terem assolado o mundo após a do Covid, nos primeiros anos da década de vinte. A ciência consegue responder com novas vacinas e novos medicamentos. Mas a verdade é que, apesar do aparente progresso, quase ninguém se sente útil e necessário. Somos todos descartáveis, as máquinas fazem tudo. O mais engraçado é que trabalhamos pouco, mas a frustração é tão grande que nos sentimos sempre cansados e aborrecidos pois temos uma vida inútil e desinteressante. Como quer a senhora que liguemos a festas se tudo é uma grande maçada!?... Também não temos estímulo para constituir família pois o futuro é triste e sem vislumbre de melhoria: Cada casal só pode ter um filho pois não precisam de nós para nada, mas mesmo assim há casais que não têm qualquer filho, pois estas perspetivas assustam… A taxa de natalidade baixou em todo o mundo. Outrora o problema era o crescimento demográfico, mas agora é o contrário. Na Europa, a população está diminuindo assustadoramente e a continuarmos assim, somos uma espécie em vias de extinção. A União Europeia foi-se desintegrando ao longo dos últimos 20 anos. Poucos países se mantêm unidos lutando pelos antigos ideais, a solidariedade foi desaparecendo progressivamente ao longo dos anos. É um “salve-se quem puder”. As alterações climáticas provocaram grandes êxodos populacionais dos países mais pobres e isso foi o cocktail ideal para germinarem partidos de extrema-direita que alimentaram nestas últimas décadas várias limpezas étnicas. Os árabes, os negros e os ciganos foram os alvos principais. Os povos esqueceram o descalabro e o terror nazi dos anos quarenta do século XX, tão repetidamente visto e narrado em filmes e livros e tivemos novas e semelhantes experiências, talvez em menor escala, mas mais uma vez “os outros”, que somos todos nós, assistimos horrorizados e quase nada fizemos. Eu sei do que estou a falar porque tenho um curso de sociologia, que para nada me serve, mas que me permite fazer uma análise destas situações… Quer saber mais? houve também vários ataques nucleares para experimentarem forças, com vítimas aos milhões como é fácil adivinhar. Depois “destas brincadeiras” houve uma certa acalmia, mas as consequências da destruição e das radiações continuarão a sentir-se por muitas décadas… Quanto aos imigrantes foram sendo expulsos progressivamente e agora também já ninguém quer imigrar para a Europa porque esta realidade ninguém a deseja… Mas agora reparo no seu horror e admiração!... Onde tem vivido? Noutro planeta ?!... De facto, há viagens frequentes a Marte, feitas por quem tem dinheiro. Será que tem lá vivido e escapado a todos estes horrores e desgraças?!... só pode ser isso… Depois de saber tudo isto percebe, certamente, que ninguém acredita ou tem vontade de festejar o Natal... ou qualquer outra comemoração. Ninguém acredita em milagres ou festas de Natal porque não há esperança de “Paz na terra para os homens de boa vontade”.
De repente ouvi uma campainha e acordei a chorar convulsivamente... tentei com alguma dificuldade, si-
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tuar-me no tempo e no espaço: estava em casa, em Almada onde sempre vivi e eram dez horas da manhã do dia 25 de Abril de 2022 e tinha tido um grande pesadelo…
Tentei acalmar-me e raciocinar o mais friamente possível. - Será que isto pode vir a acontecer?!... é para isto que caminhamos? interroguei-me.
Não, não pode ser, o Homem é um ser racional e inteligente e vai ser capaz de lutar e vencer as dificuldades que existem, o futuro nunca poderá ser tão desastroso …
É certo que todos teremos de trabalhar nesse sentido quer a nível mundial, quer europeu, quer local. No nosso país poderá ser o poder local a ter um papel muito importante, quer a nível de criação de estruturas que promovam o desenvolvimento sustentável nas suas vertentes ambiental, económica e social, quer através da motivação das populações para o cumprimento de determinados procedimentos: . transportes urbanos frequentes e gratuitos levarão certamente a menor uso do carro, parques de estacionamento gratuitos perto dos transportes que dão acesso à capital motivá-las-ão a querer deixar o carro e utilizá-los. Mais ciclo vias levarão a maior uso de bicicletas.... Rede abundante de contentores para reciclagem e de recolha do lixo normal vão levar certamente a um melhor uso e a menos lixo nas ruas; praças e avenidas limpas servirão também de exemplo... Instruções criteriosas nos recibos da água sobre como a poupar, assim como prémios para os mais poupados motivarão certamente alguns… Por outro lado, a vigilância e proteção da Arriba Fóssil e do Pinhal do Rei, assim como das dunas para proteção das nossas praias será imprescindível. Aí estarão os técnicos para a planificar.... A educação e a cultura ambientais, assim como a responsabilização são sem dúvidas fatores muito importantes, por isso a informação e o ensino não podem descurar este assunto. Por outro lado, as novas tecnologias e a inteligência artificial, não podem substituir o homem, na totalidade, devendo sim ser aproveitadas naquilo que têm de mais útil para o seu melhor desempenho e aí estarão mais uma vez os técnicos de diferentes áreas para o fazer corretamente.
Com estas conclusões e pensamentos positivos consegui acalmar-me.
Muito está a ser feito, mas muito mais deverá continuar a sê-lo, para evitar os horrores do meu pesadelo e a perda total de esperança. Todos, sim todos, teremos que trabalhar para ter um mundo cada vez melhor, em que cada dia seja vivido como se fosse um dia de paz, solidariedade, amor e fraternidade, como um verdadeiro Dia de Natal… Por isso, ao acordar daquele pesadelo nesta manhã de abril, a esperança que senti no dia 25 de Abril de 74 encheu-me, de certa maneira, o coração. Sim, iremos todos juntos conseguir ultrapassar estas dificuldades e cada um tem o seu papel neste grande desafio que são as alterações climáticas e o desenvolvimento socioecónomico equilibrado, pois ambos são a face do desenvolvimento sustentável. Pseudónimo: Maria da Esperança Autora: Manuela Cruz*
*Maria Manuela dos Santos Figueiredo da Cruz nasceu em Lisboa, mas desde os quatro dias de vida que mora em Almada. Foi professora durante quatorze anos e médica durante mais de quarenta, tendo exercido, quase sempre, em Almada. Recorda a sua primeira manifestação cívica, quando aos quatro anos de idade, assistiu às manifestações de alegria e libertação do final da II guerra. Amante das letras, sempre recorreu à escrita e à leitura, como meio de evasão, ainda que a vida profissional e familiar exigentes tenham limitado essa expressão. A reforma devolveu-lhe tempo para as leituras regulares e para a escrita. As aulas de escrita criativa ajudaram e vai recebendo alguns prémios em concursos – Na gaveta “acumulam-se” trabalhos aguardando publicação.